terça-feira, 12 de janeiro de 2021

'No governo Bolsonaro, país vive um aumento das violações de direitos humanos', diz superintendente do Fundo Brasil

A frente da instituição que distribui recursos para organizações da sociedade civil, Ana Valéria Araújo acredita que, em 2021, brasileiros não verão avanços nos direitos humanos. Trabalho será para 'conter retrocessos'


Superintendente do Fundo Brasil, Ana Valéria Araújo Foto: Divulgação

O ano de 2020 ficará marcado na história. A Covid-19 assolou o Brasil e uma de suas inúmeras consequências foi o agravamento das violações de direitos humanos já vividas por muitas comunidades e populações tradicionais do país e o aprofundamento das desigualdades de gênero, raça e classe. O desafio foi ainda maior em função do discurso governista antidireitos, avalia a advogada Ana Valéria Araújo.

Ela está à frente do Fundo Brasil de Direitos Humanos, uma fundação instituída por Abdias do Nascimento, Margarida Genevois, Rosie Marie Muraro e Dom Pedro Casaldáliga em 2006 com o objetivo de encontrar formas alternativas para garantir a sustentabilidade de organizações que atuam na defesa dos direitos humanos Brasil afora. Desde sua criação, a organização já distribuiu R$ 29,5 milhões a mais de 550 projetos pelo país.

Especializada em direitos indígenas e na defesa dos direitos socioambientais, a superintendente do Fundo Brasil ressalta as violações sofridas pelos povos indígenas durante a pandemia — de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 161 povos foram afetados pela doença, 44.261 casos foram confirmados e 921 indígenas morreram por causa da Covid-19.

Em entrevista à CELINA, ela afirma que o governo de Jair Bolsonaro atua em duas frentes: fortalece uma narrativa que permite o recrudescimento da violência contra defensores dos direitos humanos e contra populações vulneráveis e também promove o desmonte de estruturas institucionais criadas para assegurar o cumprimento desses direitos e a participação desses atores nos espaços de decisão.

— Embora tenha sido precarizada em 2020, a sociedade civil organizada está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não haja retrocessos.

CELINA: O ano que passou foi desafiador. As pessoas que já tinham seus direitos humanos violados ficaram ainda mais vulneráveis no Brasil?

Ana Valéria Araújo: Sem dúvida. A pandemia agrava a situação para toda a população brasileira, mas, para os mais vulneráveis, ela criou uma série de dificuldades de sobrevivência, de acesso material à alimentação, à saúde e à higiene. A gente tem um país onde direitos humanos são violados de formas muito diversas. Basta olhar para os povos indígenas, que estão em uma situação absolutamente difícil de disputa territorial, com questões que há tempos tinham sido superadas voltando à tona nos últimos dois anos, fortalecidas pelo discurso do governo de que é preciso desenvolver a Amazônia a qualquer custo. Isso faz com que os indígenas sejam vistos como um obstáculo. As queimadas e o desmatamento aumentaram nas terras indígenas, mas isso é negado pelo governo. Junto com os indígenas, pode colocar os quilombolas e todas as comunidades tradicionais que vivem no campo. O panorama para elas é similar.

Todas essas populações que têm seus direitos recorrentemente violados, no ano de 2020 ficaram ainda mais vulneráveis, seja porque tiveram que brigar por outros direitos e se expuseram ainda mais, seja porque mal conseguiram colocar luz sobre suas lutas porque a pandemia tomou conta da pauta. O pouco recurso que as organizações da sociedade civil tinham para implementar as lutas de defesa de direitos foram deslocados para o que era emergencial, ou seja, saúde e alimentação.

Historicamente, embora o Estado seja o maior responsável por garantir e assegurar os direitos humanos, ele também viola esses direitos. A senhora avalia que isso piorou nos últimos anos?

No governo Bolsonaro, vivemos um quadro de aumento de violações de direitos humanos. Se a gente olhar para o campo, a entidade que tem a obrigação constitucional de defender terra indígena, demarcar terra quilombola e proteger e buscar solucionar os conflitos no campo passou a  incentivar esses conflitos. No discurso, o governo incentiva invasão de terra, invasão por garimpeiro, diz que não tem desmatamento nem queimada e vai incrementando uma violência que já é forte. Além dos órgãos de participação, também teve desmonte no Ibama, no ICMbio e na Funai. Desde que o Bolsonaro assumiu, esse é um governo que age dos dois lados: procura desmontar a estrutura de direitos e incentiva com o discurso que a violência recrudesça.

Isso também se reflete na cidade. Quando você tem um governo que faz piada do racismo, das mulheres e das religiões de matriz africana, com uma narrativa quase oficial incentivando a população a fazer o mesmo, aqueles que já eram racistas, homofóbicos e machistas se sentem absolutamente liberados. A gente vê a coisa recrudescer de uma forma muito violenta.

Qual papel devem exercer a sociedade civil organizada e o setor privado neste contexto, em 2021?

Embora tenha sido precarizada em 2020, a sociedade civil organizada está atuante e é graças a ela que está sendo possível resistir a um desmonte maior. Existe um movimento grande de impedir que se passem leis ainda piores no Congresso, de levar às questões ao Judiciário. Nós não estamos num momento de trabalhar para avançar em direitos, mas de resistir para que não haja retrocessos. Isso está sendo feito de uma maneira heroica, por organizações muito precarizadas por conta da situação econômica e da pandemia, mas conduzidas por lideranças muito fortes, que enfrentam essas ameaças e que estão lá, à frente dessas lutas.

Fortalecer a sociedade organizada é fundamental. E quem é que pode fazer isso? A própria sociedade, enquanto cidadãos, reconhecendo a importância dessas organizações e se colocando ao lado delas. A imprensa e o setor privado têm um papel fundamental nisso. Até porque a luta da sociedade organizada precisa não só de apoio político, mas de recursos. O Fundo Brasil de Direitos Humanos faz isso, mobiliza esses recursos para destinar para organizações que atuam na ponta.

O que podemos esperar para 2021?

A pandemia continua sendo um desafio. O Fundo Brasil teve um fundo emergencial em 2020 e distribuiu mais de R$ 2,5 milhões para ações em todas as partes do país. Agora temos quatro editais — um específico para enfrentamento ao racismo, outro de justiça criminal, um terceiro para a população LGBTQIA+ e outro mais geral, que vai contemplar trabalhadores informais. Vamos apoiar cerca de 75 projetos nos próximos 18 meses, com cerca de R$ 3,5 milhões. Esses recursos são flexíveis para que as organizações os coloquem nas suas maiores necessidades e 30% podem ser alocados para necessidades impostas pela Covid.

Em 2021, seria fundamental que a gente pensasse a sociedade civil organizada dessa maneira. Ainda vai ser necessário algum aporte para a resposta à pandemia, mas é preciso que esses recursos também possam ser utilizados na reestruturação das organizações para que elas possam se reerguer e, com isso, apoiar se não os avanços, as ações necessárias para conter as tentativas de desmonte.

Na última década, a defesa dos direitos humanos passou a ser questionada por uma parcela da sociedade, que a considera 'mi mi mi' ou uma pauta de esquerda. Como reverter isso?

Eu fico me perguntando como chegamos a esse ponto. Há uma desinformação muito grande sobre os direitos humanos e também uma necessidade enorme de comunicar para a população que eles são os direitos de todos e todas. A partir do momento em que a sociedade compreender isso, vai ter mais empatia. A gente peca pela falta de compreensão, que, historicamente, se deu porque a sociedade civil organizada é pequena e faz três milhões de coisas ao mesmo tempo.

As organizações que defendem os direitos humanos estão defendendo sobretudo o avanço civilizatório do nosso país e o fortalecimento da nossa democracia. A gente vinha num processo crescente de educação e comunicação nesse sentido. Mas, de um tempo para cá, isso começa a retroceder em função desse novo governo, que tem um discurso radicalmente antidireitos. Há uma disputa de narrativa muito forte que nós traz para onde estamos agora. Estávamos avançando e fazendo o que era preciso em termos de comunicação e discurso, mas fomos, digamos assim, atropelados por essa contra narrativa.

Leda Antunes / O GLOBO, Caderno Celina, em 11.01.2021.

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