sábado, 26 de setembro de 2020

Trem da alegria da AGU ficou parado na estação

Mesmo suspensa, a promoção absurda de 607 procuradores prova a urgência da reforma administrativa

Existe o Brasil real: é o país onde a pandemia fez a economia encolher quase 10%, salários foram cortados, empresas fecharam as portas, houve ondas de demissões, o desemprego cresceu 28% e atinge quase 13 milhões. E existe um Brasil paralelo, o Brasil do funcionalismo público: é o país onde nenhum salário foi cortado, ninguém foi demitido e onde, não fosse uma investigação da imprensa, 607 procuradores federais teriam sido promovidos, 606 ao topo da carreira, passando a ganhar R$ 27,3 mil por mês.

O trem da alegria na Advocacia-Geral da União (AGU), resultado de uma canetada do procurador-geral Leonardo Fernandes na última sexta-feira, só foi suspenso depois de revelado pelo site Poder360. O episódio, além de revelar a importância da imprensa profissional, é mais uma prova eloquente — como se provas ainda faltassem — da necessidade urgente da reforma administrativa. Dos passageiros do comboio que ficou preso na estação, 303 cumpririam a regra estapafúrdia que prevê promoções automáticas a cada cinco anos. Outros 303 entrariam no vagão daqueles que, no entender de Fernandes, são dignos de “merecimento”. Depois das promoções, 93% dos 3.783 procuradores da AGU estariam no nível mais alto de uma carreira cujo salário inicial, de R$ 21 mil, já os coloca entre os 2% de maior renda no país.

Em nenhum governo ou empresa, em nenhum lugar do mundo, uma medida dessas faria sentido. Era tão somente uma manobra artificial para dar aumento a servidores públicos cujo salário está congelado até o final de 2021 — e cujos privilégios estão ameaçados pela reforma administrativa. O mais intrigante é que os procuradores que seriam beneficiados foram excluídos da reforma, pois são, como os juízes, considerados “membros de poder”.

Fica também claro, pelo episódio, por que não faz sentido excluir de uma reforma que se propõe a trazer um mínimo de racionalidade à gestão pública justamente as carreiras que desfrutam os privilégios mais escandalosos. É o caso, na AGU, dos “honorários de sucumbência” pagos a advogados que vencem causas em favor do governo. Não há, da parte deles, risco comparável aos da advocacia privada para justificar a prebenda que custou, em 2019, R$ 590 milhões aos cofres públicos.

O presidente da associação dos advogados públicos chegou a definir as promoções como “procedimento padrão”. Pior é que são mesmo. A AGU informou que as realiza a cada seis meses. Assim como todos os privilégios do alto funcionalismo, promoções por tempo de serviço nada têm de ilegal. A lei precisa mudar, entre tantos motivos, justamente para barrar esse tipo de absurdo.

Para categorias como juízes ou procuradores, é justo preservar a estabilidade como garantia contra pressões políticas ou financeiras. Mas todos os descalabros assegurados pela lei — licença-prêmio, promoções automáticas, férias de 60 dias, auxílios-paletó, honorários de sucumbência e penduricalhos — deveriam ser revistos. O episódio ilustra à perfeição por que o Estado brasileiro precisa da reforma administrativa com urgência urgentíssima.

Editorial de O Globo, edição de 25.09.2020.

Nenhum comentário: