quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Olhando a banda passar

Pandemia segue matando, Bolsonaro se recupera, mas tema da esquerda é stalinismo. Comenta Vera Magalhães em artigo publicado hoje por O Estado de São Paulo.

 Já são mais de 127 mil os brasileiros mortos pela covid-19. Diante desse número, assim como dos que o antecederam, Jair Bolsonaro segue em sua jornada negacionista. O mais recente ataque ao bom senso se dá em declarações diárias semeando desconfiança na população quanto à necessidade e a segurança da vacinação em massa.

Enquanto isso, num planeta muito distante em que vive uma parcela da esquerda brasileira, a discussão do momento se dá entre os que defendem que o stalinismo nem foi tão nefasto assim e os que lembram o genocídio promovido por Stalin na União Soviética no século passado.

A banda de Bolsonaro passa na janela e nossa gente sofrida para tudo para discutir o passado distante.

Isso não é um fenômeno isolado, um lapso de um feriado prolongado. Tem sido uma constante desde antes da eleição do capitão e segue de forma sistemática e espantosa a cada avanço do presidente contra as liberdades, a ciência, o bom senso, as instituições e o que mais ele tiver pela frente para destruir.

E agora, quando ele se recupera nas pesquisas, ou lá na frente, quando e se chegar competitivo a 2022, a “culpa” certamente terá sido da imprensa, que “normalizou” (bocejos) Bolsonaro, e não dos adversários que não entenderam absolutamente nada do modus operandi do bolsonarismo.

A imprensa sempre denunciou que Bolsonaro era misógino, machista, homofóbico, que louvava a ditadura e aplaudia a tortura. Fez isso de forma repetitiva na campanha. E as pessoas votaram em Bolsonaro apesar ou até por causa disso, a verdade é essa.

A imprensa denuncia os abusos de Bolsonaro diariamente. É vítima preferencial deles. E a banda segue, cantando coisas de amor e fazendo populismo fiscal e político.

Não existe nenhuma organização, da centro direita à esquerda, para desmontar o discurso de Bolsonaro, oferecer alternativas a ele e, principalmente, responsabilizá-lo pela forma como sabota o enfrentamento da pandemia no Brasil.

Agora são os stalinistas do Twitter, mas já tivemos dezenas de discussões igualmente estéreis, que servem para distrair as Carolinas na janela enquanto o tempo e a banda passam.

E parcela considerável da chamada intelligentsia brasileira contribui para a distração. Há algumas semanas, uma intelectual brasileira cuja obra de denúncia do racismo e de defesa da igualdade de raças é incontroversa, Lilia Schwarcz, foi submetida ao tribunal das redes sociais por ter emitido uma opinião crítica a um filme da cantora norte-americana Beyoncé.

Em que isso ajuda na discussão sobre racismo e representatividade no Brasil ou, no sentido mais amplo, na articulação das forças ditas progressistas para se contrapor a Bolsonaro e a seu desmonte das políticas de reparação, por exemplo? Em absolutamente nada. Mas consumiu horas a fio de algumas das principais vozes da oposição e levou a historiadora a ter de se retratar uma, duas, três vezes até receber um desconfiado salvo-conduto para poder voltar a falar. Isso é absolutamente irrazoável e é a chave da nossa tragédia.

O Pantanal queima há semanas, fornecendo imagens cada vez mais tristes de morte de animais e desespero de populações locais, mas estamos sendo distraídos pelo secretário de Cultura, um dublê de canastrão de seriado adolescente dos anos 1990 e bolsominion. É uma armadilha à qual todos nós, jornalistas incluídos, são atraídos diariamente.

Enquanto as opções forem escolher o genocida mais limpinho, ou entre o pronunciamento de Bolsonaro ou Lula no Sete de Setembro, não sairemos da espiral de morte, destruição civilizatória e declínio científico, educacional, cultural e econômico em que estamos enfiados. Olhando a banda passar e esquecidos da vida.

Vera Magalhães é comentarista de política e âncora do Roda Viva, programa de debates da TV Cultura, apresentado às segundas feiras. Este artigo foi publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 09.09.20.

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