sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Brasil deve ter aumento de 42% nos casos de câncer na próxima década, diz estudo

Na última década, salto foi de 28% entre 2010 e 2020

Nos próximos dez anos, o Brasil pode ter um aumento de 42% nos casos de câncer. Em toda a América Latina, a previsão chega a 67% de crescimento da doença. Os dados agravam um contexto que já incluía a falta de acesso a diagnóstico precoce e a tratamento adequado, que diminuem as chances de sobrevida de pacientes e aumentam os custos em saúde.

O número é bem maior do que o registrado na última década, de acordo com dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer) divulgados pela SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia). Em 2010, foram somados 489.270 casos de câncer no país. Já para 2020, são esperados 625 mil registros em todo o ano, um salto de quase 28%.

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A estimativa de novos casos e os desafios fazem parte de um estudo inédito da Varian Medical Systems, empresa de softwares e equipamentos para tratamentos oncológicos, em parceria com a The Economist Intelligence Unit (EIU).

A pesquisa revela o desafio do sistema público de saúde brasileiro e da América Latina no geral em atender a uma demanda crescente, mesmo antes da Covid-19. O impacto da pandemia, com interrupção de exames e consultas, foi mais um entrave no combate a uma doença que responde por cerca de 650 mil novos casos no Brasil por ano.

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Segundo o levantamento da Varian, o Brasil tem a maior capacidade para otimizar recursos de atendimento e pesquisa entre os países da região, mas tropeça em transformar esse ambiente em uma assistência oncológica eficiente. Os gastos com saúde são extensos, e a população encara disparidades no acesso a diagnóstico e tratamentos, principalmente aos mais recentes ou de alto custo. 

— O envelhecimento da população vai naturalmente levar ao aumento da incidência de câncer. É uma questão estatística, e não há como reduzir esse impacto. O que pode ser feito é diminuir a taxa de mortalidade do câncer, que tem prevalência maior na população com mais de 60 anos. A pesquisa traz esse senso de urgência para um problema que já é grave e vai ficar ainda mais — explica Humberto Izidoro, presidente da Varian para a América Latina. 

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Para Clarissa Mathias, presidente da SBOC, a projeção de 42% está dentro do esperado, mas "assusta". Ela destaca, ainda, que a preocupação maior é que o dado ainda pode sofrer um aumento em função da pandemia de coronavírus:

— O grande problema também é a pandemia, pois provavelmente vamos ter um aumento ainda maior nos casos de câncer, em função do crescimento no consumo de cigarro, de bebida alcóolica e nos índices de obesidade — alerta.

O Brasil tem uma taxa de mortalidade de câncer de 91 a cada 100 mil habitantes, mais alta que a média da América Latina, de 87, evidencia o estudo. O país também se destaca em incidência e mortalidade de câncer como de mama e próstata, entre os mais comuns no país, na comparação com países desenvolvidos. 

— A incidência de câncer no Brasil, e na América Latina como um todo, chega a ser o dobro da dos Estados Unidos, inclusive em casos de câncer muito mais tratáveis hoje, com toda a tecnologia que existe — diz Izidoro. — Isso tem a ver com a falta de acesso ao tratamento e com a nossa habilidade de diagnosticar precocemente. O paciente demora muito para fazer exames de imagem. Casos de biópsia são emblemáticos no sistema público de saúde. Pacientes com um tumor local viram metastáticos por conta da lentidão de diagnóstico e tratamento.

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Enquanto 60% das ocorrências de câncer de mama nos EUA, por exemplo, são diagnosticadas nos estágios iniciais, no Brasil esse índice cai para 20%, e no México, para 10%, mostra o levantamento.

— As pessoas estão morrendo, quando poderiam sobreviver — diz Izidoro. — O câncer de mama que é descoberto no estágio inicial tem chance de sobrevida de mais de 90%. Mas muitas vezes os casos chegam no sistema de saúde já tarde, diminuindo a chance de sucesso e aumentando o custo de tratamento.

No Brasil, acrescenta o levantamento, casos de câncer de pulmão, por exemplo, o terceiro de maior incidência no país, podem levar até sete meses para ser diagnosticados.

— É um tempo que faz toda a diferença — diz Solange de Oliveira, diretora da Associação Brasileira de Apoio aos Pacientes com Câncer (Abrapac).

Exames feitos 'por fora', na rede particular
Há 20 anos, quando descobriu um câncer de mama, Solange foi tratada no Instituto Nacional de Câncer (Inca). Fez quimioterapia, radioterapia, tomou medicamentos. Ela elogia o tratamento, mas diz que muitos exames, como ressonâncias, foram feitos “por fora”, no sistema particular, para acelerar o processo de diagnóstico e tratamento.

— Quanto mais tempo passa, mais um caso se agrava. Há casos que levam seis, sete, oito meses até o diagnóstico. Ou mesmo depois do diagnóstico falta acesso a uma biópsia para ter essa confirmação mais clara. Aí, quando o paciente chega ao hospital para o tratamento, o tumor já está maior, há maior risco de morte, a quimioterapia terá de ser mais forte, a internação mais longa, e o custo mais oneroso para o município ou o estado — explica Solange, que há um ano tratou um câncer na tireoide.

Também chama a atenção, afirma, a diferença entre sistema público e privado.

— Quem tem condições de ter um convênio e plano de saúde tem acesso mais rápido a tratamento e chance de cura — constata Solange.

Hospitais têm poucos profissionais, que estão sobrecarregados
O estudo da Varian com a EIU destaca a indisponibilidade de tratamentos, principalmente em radioterapia. E afirma que, embora 64% dos pacientes com câncer precisem desse tratamento no país, dados recentes sugerem que o gasto com radioterapia é de cerca de nove vezes menor que o de quimioterapia, e está diminuindo.

Segundo a pesquisa, a oferta deve piorar ainda mais, considerando que quase metade das atuais máquinas de radioterapia disponíveis no sistema público vão se tornar obsoletas até 2021.

— O pior gargalo que temos é o da radioterapia — afirma Solange, da Abrapac. — No Rio de Janeiro, por exemplo, temos poucos aparelhos de radioterapia, e outros precisam de manutenção, que não é feita com frequência. Além disso, faltam técnicos que saibam operar esses equipamentos no sistema público.

Durante a pandemia de Covid, afirma, a situação piorou. Consultas e exames de rotina foram interrompidos, e só agora, aos poucos, começam a retornar.

— Os hospitais estão com poucos profissionais e estão sobrecarregados. Vimos também que muitos pacientes tiveram medo devido à pandemia de coronavírus. Os hospitais tiveram que ligar. Só agora estão retomando consultas e exames — conta Solange.

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Para a América Latina, a estimativa do estudo é de aumento de 67% dos casos de câncer nos próximos dez anos. Com os impactos do coronavírus, esses números podem crescer.

—  É uma conta simples. Em muitos centros de oncologia, o tratamento de quimio e radioterapia caiu pela metade, principalmente nos primeiros meses da Covid. São novos pacientes que não entraram no sistema - diz Izidoro, da Varian. — Muitos centros estavam fechados. Outros pacientes afirmaram que estavam com medo. Isso estressa ainda mais o sistema de saúde e pode levá-lo a um novo colapso.

Uma pesquisa feita pelo Instituto Oncoguia em abril e maio mostra que 41% dos pacientes relataram ter o tratamento impactado. Esse número caiu em julho, com a retomada de atividades, para 31%. Os relatos foram principalmente relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a tratamentos de quimioterapia, hormonioterapia, imunoterapia e radioterapia.

— Se por um lado entendemos que enfrentar uma pandemia requer que todos os esforços se voltem para isso, qual é o espaço que outras doenças como o câncer ganham? — questiona Luciana Holtz, do Instituto Oncoguia. — Nesse período faltaram protocolos claros de como cuidar de um paciente com câncer. E a comunicação sobre os tratamentos e os procedimentos de segurança adotados deve melhorar.

Segundo Luciana, o risco é de mais uma epidemia:

— Podemos sair de uma pandemia e, com biópsias e cirurgias sem fazer, enfrentar uma epidemia de cânceres avançados.

A solução sobre câncer no Brasil, afirma, passa por alocar melhor os recursos, com melhor gestão e urgência:

— É cada vez mais gritante a diferença entre quem pode pagar por saúde suplementar e quem depende do SUS. Mesmo em alguns casos de convênios o fluxo não é transparente. O câncer precisa ser mais priorizado no país, e isso inclui políticas públicas mais efetivas, atuais e justas.

Elisa Martins e Ana Letícia Leão, de O Globo
04/09/2020 - 18:45 / Atualizado em 04/09/2020 - 19:12

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