quarta-feira, 22 de julho de 2020

Crimes contra a humanidade

Denúncias podem dar em nada juridicamente, mas terão alto custo político e econômico

Como já havia sido afirmado num evento acadêmico pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no qual advertiu que o alto número de militares na cúpula do Ministério da Saúde em meio à pandemia de covid-19 está associando a imagem das Forças Armadas à ideia de “genocídio”, tornando o País vulnerável a processos em organismos multilaterais, o Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou que, recentemente, foram protocoladas três denúncias contra o presidente Jair Bolsonaro sob a acusação de crimes contra a humanidade.

Nos três processos, o presidente é acusado de negligência no combate ao novo coronavírus. As denúncias foram feitas pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), pelo grupo Engenheiros pela Democracia e por uma agremiação partidária – o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 2019, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns já havia denunciado Bolsonaro por outro motivo, acusando-o de genocídio contra povos indígenas.

Planejado na década de 1950, quando a ONU criou uma comissão para elaborar seu estatuto, o TPI é uma Corte permanente e independente que julga crimes de genocídio, guerra, agressão e crimes contra a humanidade – tipificados pelo Estatuto de Roma, firmado em 1998. Sediada em Haia, a Corte iniciou suas atividades oficialmente em 2002 e não julga Estados, mas pessoas. Uma vez apresentadas, as denúncias são apreciadas pela procuradoria do TPI, que verifica se elas se inserem na jurisdição da Corte e se estão lastreadas em fatos que justifiquem a abertura de uma investigação. A etapa seguinte avalia a gravidade da denúncia e, se considerar que há base para a abertura de uma investigação oficial, a procuradoria pede autorização a uma câmara integrada por três juízes.

Apesar das denúncias, o risco de Bolsonaro sofrer uma investigação formal no TPI é pequeno. Como afirmam especialistas, dentre eles a juíza Sylvia Steiner, que integrou a Corte entre 2003 e 2016, é difícil diferenciar uma gestão desastrosa no combate à pandemia de covid-19 de uma atitude consciente e deliberada de promover um crime contra a população. Segundo Steiner, como o caso brasileiro se destaca basicamente pela incompetência do governo Bolsonaro, o foro mais adequado não seria o TPI, mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos. “É uma questão de responsabilização de políticas de Estado, e não de responsabilidade individual”, afirma.

Se do ponto de vista jurídico as denúncias contra Bolsonaro pela prática de crime contra a humanidade não devem prosperar no TPI, do ponto de vista político elas podem macular ainda mais a imagem externa do País. Por causa de iniciativas desastrosas de Bolsonaro em matéria social, educacional e ambiental, sua administração é tão ruim que, no mês passado, por exemplo, cerca de 30 grandes instituições financeiras mundiais ameaçaram retirar seus investimentos do Brasil caso o governo não mude a política para a Amazônia. Além disso, nos Estados Unidos, Europa e Ásia os principais veículos de comunicação há muito tempo vêm publicando contundentes editoriais contra Bolsonaro, acusando-o de estar convertendo o Brasil numa espécie de pária internacional.

Desde a última década do século 20, um dos conceitos mais importantes na teoria das relações internacionais para descrever a capacidade de um Estado de se firmar no plano mundial é o de soft power. Contrapondo-se ao conceito de hard power, que envolve poderio militar e financeiro, o conceito de poder suave pressupõe valores, ideias, reputação, credibilidade, autoridade moral e respeito a conquistas civilizatórias. Por isso, mesmo que as denúncias contra Bolsonaro no TPI não deem em nada no plano jurídico, no plano político elas corroerão o pouco que o Brasil ainda tem de soft power, desde a ascensão de Bolsonaro ao governo, o que só dificulta a captação de investimentos e conquista de novos mercados num período de crise econômica e escassez de recursos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
22 de julho de 2020 | 03h00

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