segunda-feira, 6 de julho de 2020

Brasil, nosso problema

Bolsonaro nada propôs em lugar do que tenta destruir, constata Flávio Miragaia Perry, embaixador aposentado, neste artigo publicado originalmente em O Globo, edição de hoje.

Não acredito na conversão de Bolsonaro. Sua ignorância é espantosa.

O governo tentou “governar” pelo confronto: disputou com todo mundo, em critérios sobre costumes, na desmontagem da política ambiental, na contestação dos valores e vantagens do multilateralismo. Conduziu uma política externa à deriva dos fatos internacionais, contra a busca do entendimento, a solução de conflitos, a moderação dos excessos, a defesa da história e cultura brasileiras, a ampliação do horizonte econômico, a defesa dos direitos humanos e desdobramentos válidos, o que sempre fizemos no cuidadoso comportamento diplomático, para aproveitar as ocasiões de afirmação do interesse nacional, na defesa da paz, entre tantos aspectos que nos qualificaram como um país e uma diplomacia confiáveis. Bolsonaro nada propôs em lugar do que tenta destruir.


O governo Bolsonaro tem sido um despropósito internamente, no confronto com o Congresso e com o Supremo Tribunal Federal, no desprezo pela Constituição, nos maus conceitos jurídicos, numa discutível adesão à economia chamada liberal, numa generalização da ideia do Estado mínimo e numa suposta solução do problema do desenvolvimento econômico via investimento privado e clara despreocupação social, num país desequilibrado e desigual. Franca oposição ao ambiental.

A pandemia implantou-se no Brasil com força, por falta de planejamento e coordenação entre União, estados e municípios, por uma idiossincrasia do presidente alimentada pela frieza dos números de seu ministro da Economia. É frontal a falsa oposição entre a economia e a vida humana. Bolsonaro desprezou a vida humana. Na economia, sob pressão da opinião nacional ofendida, tomou providências que não se completaram. O auxílio emergencial, para atender a cerca de 50 milhões de brasileiros desprovidos de recursos para sobrevivência, não chegou a um número expressivo de cidadãos pobres: o método foi falho. Pequenas e microempresas não conseguiram acesso ao crédito, apesar da propaganda governamental. Há falências e assustador desemprego.

A recuperação da economia, assim que a crise da pandemia acalmar, não tem um plano discutido com a sociedade: sim, faremos a reforma tributária, para amenizar as diferenças de tratamento e as sobrecargas, mas ninguém reformulou os projetos conhecidos, que já não têm a mesma serventia, pois eram focados apenas no equilíbrio fiscal. O que o país necessita é de um forte socorro do Estado aos 50 milhões de desassistidos e apoio decidido à pequena empresa. É preciso encontrar a fórmula para assistir a esse terço de cidadãos que estiveram à margem das considerações da economia. Isso deve ser feito com uma perspectiva, projetada, de realização anos à frente do equilíbrio fiscal.

Não acredito na solução do problema do desequilíbrio crônico de contas com a simples alienação de bens que o estatismo nos legou. Muito pode ser desmobilizado, nunca na bacia das almas, e sem dúvida não deve incluir alienação de símbolos da confiança nacional, Banco do Brasil, Correios e Petrobras, nem pode alienar investimentos em andamento na área nuclear.

O país não é simples e tem uma história de patrimonialismo e centralização. Esse pecado histórico deve ser amenizado e desconstituído.

Não acredito em Bolsonaro e sua ostensiva incompetência nem no apoio que o possa socorrer da parte de alguns generais de boa vontade. Governo se faz com as disponibilidades de cidadãos bem formados (universidades, centros de pesquisa, organizações sociais), militares ou não, desimpedidos de suas amarras corporativas. Por isso acredito que a nova proposta de reforma tributária há de acontecer a par com uma reforma do Estado, supondo um novo pacto federativo, criador de uma autêntica federação, e uma nova estrutura de reforma de atividades e funções na estrutura do Estado, nos três níveis, superando o empreguismo e formando inteligências a seu serviço, nos três ramos, Legislativo, Executivo e Judiciário.

A qualquer governo é preciso cabeças mais capazes, sem preconceitos, para enfrentar a crise que nos sufoca e encaminhar soluções.

Bolsonaro não irá longe.

Nenhum comentário: