Com a descoberta de Queiroz, devem ganhar nitidez ligações perigosas do clã Bolsonaro com o submundo das milícias
Ainda houve tentativas de criá-los usando redes sociais e seus robôs. Sem sucesso, porque não há mais União Soviética e nem existe o comunismo. A verdade é que não se sustenta algum discurso pretensamente civilizado para justificar o estrangulamento da democracia. Uma das virtudes inalcançáveis deste regime é que ele pode ser aperfeiçoado sem cataclismos políticos, econômicos, sociais, humanitários. No Brasil, o golpe bolsonarista, se fosse possível, implicaria um regime de força, truculento, isolado no mundo, com uma economia já conectada a mercados globais, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, repleto de desníveis sociais, mas com todas as condições de reduzi-los dentro das liberdades constitucionais.
Bolsonaro sempre foi transparente ao pregar inconstitucionalidades. Não deveria surpreender. Na crise da saída de Moro, afirmou que desejava fazer trocas na sua “segurança” — era na Polícia Federal, nunca se teve dúvida —, porque queria “interagir” com o comando da PF, a diretoria-geral e a superintendência do Rio, área sensível para o presidente e família — sabe-se cada vez mais por quê —, sempre preocupado com que investigações e denúncias pudessem ser feitas contra “amigos” e filhos.
Não deixaram de ser veiculadas informações sobre o caso, mas o novo governo era insuperável como fator de atração das atenções. O caso da “rachadinha” criou tensões no Supremo, depois da decisão monocrática do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, tomada a pedido da defesa de Flávio, de paralisar todas as investigações iniciadas com base em relatórios do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), sobre movimentações bancárias atípicas que não houvessem tido autorização da Justiça em todas as suas etapas de elaboração.
Muitos inquéritos sobre lavagem de dinheiro ficaram em suspenso junto com os de Flávio e Queiroz, já então desaparecido. O Brasil chegou a ser ameaçado com a saída de acordos multilaterais que facilitam a troca de informações entre os Estados nacionais, para coibir crimes financeiros, crescentemente globais, cometidos para esconder grandes volumes de dinheiro gerados na corrupção, no tráfico de drogas e armas, em todo tipo de operação gerenciada pelo crime organizado. O plenário da Corte reviu aquela decisão, e o próprio Toffoli recuou no julgamento final.
O processamento das informações sobre as traficâncias financeiras de Flávio Bolsonaro, com a ajuda de Fabrício, terminou sendo retomado no MP do Rio de Janeiro, e parte das descobertas foi conhecida com o resgate de Queiroz, que se escondia numa casa em Atibaia, próximo a São Paulo, de propriedade de Frederick Wassef, advogado do presidente da República. O imóvel parecia receber uma maquiagem para parecer um escritório de advocacia do novo frequentador assíduo do Alvorada e do Planalto, e dessa forma se beneficiar da inviolabilidade legal do espaço de trabalho dos advogados. Mas a polícia chegou antes, na quinta-feira.
O PM aposentado, amigo de Jair Bolsonaro e depois dos filhos, comprovadamente pagou despesas de Flávio e família com dinheiro de origem desconhecida. Todas as evidências indicam que veio do desfalque nos cofres públicos dado com a subtração de parte dos salários dos assessores do ainda deputado estadual Flávio, muitos deles da família de Queiroz e de Bolsonaro. Este tem de ser um negócio em família, literalmente.
Junto com a descoberta de Queiroz sob proteção do advogado presidencial devem ganhar nitidez ligações no mínimo arriscadas do clã Bolsonaro com o submundo das milícias cariocas. O próprio Queiroz explorava transporte de vans em Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio, QG de uma quadrilha de bandidos fardados — da ativa ou da reserva. É preciso muita intimidade com os homens fortes do pedaço para entrar nesses negócios.
Editorial de O Globo
edição de 23/06/2020 - 00:00
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