segunda-feira, 15 de junho de 2020

Radicalismo do bolsonarismo divide a oficialidade das Forças Armadas

Decisão do presidente de incentivar seguidores a invadir hospitais e ataque de milícia ao STF causaram repulsa em oficiais que pretendem reafirmar profissionalismo dos militares

Repórter especial de O Estado de São Paulo, Marcelo Godoy acompanha as relações entre o Poder Civil e as Forças Armadas. Neste artigo, pubicado hoje, ele analisa os movimentos do Presidente da República que tem resultado no enfraquecimento da governabilidade.



Até quem gosta do presidente admite: os atos do governo Jair Bolsonaro dividiram as Forças Armadas. Uma parte dos oficiais, ainda que afinada politicamente com as ideias do presidente, critica cada vez mais a forma como o governo executa suas ideias para atingir seus objetivos. Há uma certeza crescente de que besteiras, como o incentivo à invasão de hospitais públicos para filmar os leitos de UTI e mostrar se eles estão realmente ocupados, causarão estragos à imagem das instituições, principalmente, do Exército.

"Que ideia de jerico. Se eu não fosse bolsonarista, ia dizer que chegou a hora de reeditar o Febeapá", disse um coronel das Força Aérea Brasileira, em referência ao Festival de Besteiras que Assola o Brasil (Febeapá), título das crônicas que o jornalista Sérgio Porto publicava no jornal Última Hora, nos anos 1960, sob o nome de Stanilaw Ponte Preta. Um oficial da reserva do Exército  teve a mesma reação no sábado: "isso vai cair no nosso colo". Outro, um general de brigada, sempre disposto a defender Bolsonaro, prefirou, desta vez, se calar diante da nova ideia do presidente.

Bolsonaro criou os fiscais da covid-19. Em 1986, José Sarney criara os fiscais do Plano Cruzado. Cada um lidou com o gado como pôde... Sua intervenção na área da Saúde e a atuação do general Eduardo Pazuello - um militar da ativa - na pasta, com sua pedalada sanitária barrada pela Justiça e com a falta de transparência ou de planos compartilhados com Estados e Municípios para enfrentar a pandemia, deixaram a Nação sem referência confiável para o combate à doença, o maior desafio enfrentado neste século pelo País.

A própria presença de Pazuello e de outros militares da ativa em manifestações de rua, na Esplanada dos Ministérios, incomoda parte dos chefes militares. Generais e almirantes conversaram sobre a situação e o desconforto chegou aos ouvidos do ministro Luiz Eduardo Ramos, que deixara a caserna para exercer cargo político, sem passar para a reserva. Ramos anunciou no sábado, dia 13, que vai deixar o quadro ativo de oficiais, no mesmo dia em que o general Santos Cruz cobrava publicamente uma solução para o problema.

Os generais de Bolsonaro sonharam repetir com o capitão a situação vivida nos anos 1930, quando Getúlio Vargas foi apontado como o responsável pelo Estado Novo, preservando-se a imagem do marechal Eurico Gaspar Dutra e do general Góis Monteiro. Os dois, por fim, distanciaram-se do mandatário, depondo Vargas em 29 de outubro de 1945, quase oito anos depois de terem mandado cercar, em 10 de novembro de 1937, o regimento de aviação, com receio da reação de Eduardo Gomes, contrário à ditadura. Em vez disso, os generais do Planalto foram obrigados a se expor, como Ramos ao pedir que a oposição "não estique a corda".  E, ao fazer isso, voltou a despertar reações na caserna.

Depois de falar à coluna, o brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla concedeu nova entrevista, desta vez ao jornal italiano Il Fatto Quotidiano. "Os nosso oficiais, seduzidos por Bolsonaro, são uma vergonha", afirmou. Um dos pioneiros da Embraer, o brigadeiro foi ainda presidente do Superior Tribunal Militar (STM) . Ao jornal italiano, disse ainda: "Sobre alguns generais do Exército que fazem parte de sua equipe presidencial, já expressei minha opinião: eles provocam um dano à imagem das Forças Armadas, que não aceitam a participação deles em disputas partidárias e em atos radicais que ameaçam a democracia". Ferolla é só o sintoma. Não só brigadeiros, mas também almirantes e generais começam a se distanciar em silêncio do bolsonarismo. 

O presidente vê diminuir o apoio entre militares, desde a demissão de Sérgio Moro da pasta da Justiça, e o início das negociações com centrão, além de não conseguir explicar as razões para precisar proteger amigos e filhos no Rio por meio da nomeação do superintendente da PF. O próprio início das negociações com o Centrão é interpretado como consequência da perda de consenso na caserna e do fim da ilusão de círculos bolsonaristas de que seria possível contar com as Forças Armadas para uma aventura, para fazer de Bolsonaro um ditador.

Como sempre se negou a governar por meio da produção de consenso, ao bolsonarismo restavam dois caminhos: o uso da força ou a corrupção. Corrupção aqui não é apenas a mala de dinheiro entregue em um restaurante ou em uma garagem. Mas qualquer tipo de vantagem, até mesmo um cargo, obtido em troca de voto no Congresso ou de decisão na Justiça. Bolsonaro testou dezenas de vezes os limites legais e foi rechaçado diversas vezes pelo Congresso e pelo Judiciário. Não conseguiu galvanizar as ruas a fim de justificar uma intervenção redentora. Sobraram-lhe os meios da política tradicional para governar.

Busca, no entanto, comportar-se como se dispusesse da carta das armas. Na sexta-feira, dia 12, o presidente, seu vice, Hamilton Mourão, e o ministro da defesa, Fernando Azevedo e Silva, assinaram uma nota, afirmando que as "Forças Armadas do Brasil não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos."

Os três constitucionalistas da Esplanada esqueceram que o impeachment é também um processo político? Desde quando ocupantes de cargos civis do Poder Executivo podem se comportar como intérpretes da Lei? Quem lhes dá autonomia para dizer se algo é ilegal, subtraindo-se aos tribunais? Teriam eles a tropa à disposição, como tinham Aurélio de Lyra Tavares, Augusto Rademaker e Márcio de Sousa Melo, quando interpretaram a Constituição? Eis o exemplo que vem do Planalto.

Não se deve reduzir as Forças Armadas à condição de espantalho na política nacional. Nem elas devem proteger a milícia bolsonarista que atacou o prédio do Supremo, no sábado, dia 14, à noite. Baderneiros, arruaceiros e bandidos ameaçam invadir hospitais, agredir médicos, enfermeiros e doentes na maior pandemia dos últimos cem anos. Essa é a turma que vai dizer às Forças Armadas quais ordens elas devem cumprir? Se continuar ressuscitando o Febeapá, o governo vai descobrir rápido que, de fato, os militares profissionais, aqueles que não se renderam à militância política, não cumprem notas absurdas.

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