quinta-feira, 25 de junho de 2020

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com uma homenagem a um empreendedor que está na galeria dos grandes perfis que construíram o progresso do país e que nos deu adeus. Um orgulho para o Rio Grande do Norte.

Nevaldo Rocha

Um homem simples que enxergava longe. De origem pobre e nascido em pleno semiárido nordestino. Caraúbas, RN. Um visionário. De uma pequena loja de costura, plasmou um império, um dos maiores pilares do varejo do Brasil, as Lojas Riachuelo. Tive a oportunidade de conhecê-lo, uma vez em seu apartamento em São Paulo, onde ouvi seu desencanto com a política. Homem de poucas palavras. Mas preciso nas convicções. Outra vez, vi-o dirigindo seu carrinho elétrico na fábrica Guararapes, sendo aplaudido por uma multidão de costureiras. Controlava tudo e todos. Seu filho Flávio me dizia: fazia questão de ir à loja todos os dias para ver o andamento das coisas. E fazia mudanças até na disposição, que não gostava, de roupas nos manequins. Pontuou sua história com bons exemplos. Não desperdiçava tempo. Vivia cada momento como se fosse o mais importante de sua vida. Sóbrio. Esbanjava simplicidade. E não gastava dinheiro à toa. Bolso fechado. Dava valor às coisas essenciais, descartando o desnecessário. Dizem que tinha dois pares de sapato: um, velho, para o dia a dia; outro, novo, para comparecer a eventos importantes. Nevaldo Rocha. Um sobrenome que indica um inquebrantável caráter.

Agora, minha costumeira introdução hilária.

Onde mora o doutor?

Quem entra no "Hotel Roma" de Alagoinhas, na Bahia, vai com os olhos a uma tabuleta agressiva em que peremptoriamente se adverte:

PAGAMENTO ADIANTADO, HÓSPEDES SEM BAGAGENS E CONFERENCISTAS

Também, em Pernambuco, o proprietário do hotelzinho de Timbaúba é, com carradas de razão, um espírito prevenido contra conferencistas que correm terras. Notei que se tornou carrancudo comigo quando lhe disseram que eu era conferencista, a pior nação de gente que ele contava em meio à sua freguesia. Supunha o hoteleiro de Timbaúba que eu fosse doutor de doença ou doutor de questão. Por falar em Timbaúba, há ali um sobrado, em cuja parte térrea funciona uma loja de modas, liricamente denominada "A Noiva". O andar superior foi adaptado para residência de uma família. Eu não sabia de nada disso quando, ao perguntar a Ulpiano Ventura onde residia o dr. Agrício Silva, juiz de Direito da comarca, recebi esta informação engraçada:

O Doutô Agriço? O Doutô Agriço está morando em riba d' "A Noiva".

O inverno de nossa desesperança

O inverno chegou, deixando para trás um outono de muito desespero. O título desta nota é do clássico livro de John Steinbeck, publicado em 1961, um ano antes de ele receber o Prêmio Nobel de Literatura, que, por sua vez, puxou a expressão da primeira fase da peça Ricardo III, de Shakespeare. Em sua obra, o magistral escritor norte-americano descreve e interpreta o mundo de um homem atormentado pelos dilemas impostos pelo dinheiro e pela moral, o protagonista Ethan Hawley, empregado de uma mercearia, casado, dois filhos, convivendo em uma comunidade de baleeiros, e atormentado pela ideia de melhorar sua vida e a da família. Até onde vão os escrúpulos e a vida digna e honesta quando se trata de conseguir dinheiro? Um ser humano pode suportar a pressão de seu meio social sem romper com a ética da decência?

A lógica da pecúnia

Façamos outra leitura da ética da decência. A lógica da pecúnia é pontuada em tom de desencanto, a traduzir o dilema entre seguir a trilha da ordem moral ou buscar o conforto material para si e os seus. O tema cai bem nesse momento em que o planeta mergulha em uma catástrofe que já é considerada a maior dos últimos 100 anos. E cai bem por nossas plagas em momentos em que o tema da rachadinha ressurge no palco da polêmica. E também no instante em que avançam as negociações com o Centrão. Afinal, a tal repartição z parte ou não do DNA de nossa política? O balcão de negócios para atender às demandas de partidos que formam o centrão é coisa normal? Tem sentido discutir esse tipo de política no percurso de gigantesca pandemia que já contaminou mais de um milhão de brasileiros e matou mais de 50 mil? E o que dizer da política e de seus conjuntos que disputam assentos nos espaços dos Poderes?

Déficit de ética e pântano da moral

Questões como essas batem em nossa mente nesse início de inverno, a prenunciar tempos de desesperança. O presidente está muito isolado, a tentar administrar a tal rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, no RJ. Fabrício Queiroz, que comandava o esquema, foi encontrado na casa do advogado que até então defendia a causa do atual senador. O presidente ainda teve de se desdobrar para resolver o pepino com nome de Abraham Weintraub, já nos EUA, onde irá ser diretor-executivo do Banco Mundial. Só conseguiu entrar no país com o drible do passaporte diplomático. Comprimido entre muitas paredes, Bolsonaro negocia apoio do centrão para construir uma fortaleza de apoio em caso de pedido de impeachment. Em suma, estampam-se o déficit de ética e o pântano da moral.

Na política, um costume

Pagar a um funcionário registrado apenas uma fração e alguém ficar com o restante é crime. Roubo. Mesmo que o funcionário aceite essa maneira torta de receber seu ganho. E mesmo que a justificativa seja para formar um fundo para a próxima campanha ou ainda ajudar uma organização beneficente, de caridade. Não disponho de dados para dizer que essa falcatrua é realizada por muitos. Mas, conhecendo como são nossos padrões de política, é razoável garantir que essa prática se desenvolve em muitos lugares.

Rachadão I

Assíduo leitor dessa coluna, ante o farto noticiário sobre a rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, e dando ênfase à ideia de que não quer "passar o pano" na sujeira que ali teria sido cometida no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, envia sua explicação para rachadinha ou ao que também chamo de rachadão: "Você cria um programa do governo e intitula com um nome, MAIS MÉDICOS. E aí o governo contrata médicos de Cuba ao custo mensal de R$ 11.000,00 para cada um, aproximadamente.

Rachadão II

Desse valor o governo paga ao médico apenas R$ 3.000,00, o que constitui exploração de mão de obra análoga à escrava, repassando R$ 8.000,00 ao governo cubano, a quem se subordinam esses médicos. Chegando a Cuba o dinheiro é dividido com outros protagonistas servindo para alimentar a corrupção. O programa tinha 12.240 médicos, totalizando 135 milhões por mês. Era o que podemos chamar de "rachadão", o maior do país durante anos".

E o Wassef, hein?

Frederick Wassef desistiu da causa do senador Flávio Bolsonaro. Disse que querem "destruir" a imagem dele. Fabrício Queiroz foi encontrado na casa do advogado em Atibaia. Alega que não conversava com ele. Mas confessou que o abrigou por "questões humanitárias". O presidente se queixou que o advogado "falava demais". Teme ser a bola da vez. Essa história vai rolar. Leio que os Bolsonaros estão com medo. A verdade (ou parte dela) virá à tona. Interrogações multiplicam-se. E o Centrão está de olho nas expectativas.

Desânimo?

Paulo Guedes dá ares de desânimo. Rodrigo Maia, em suas falas, expressa um tom queixoso. O melhor quadro da área técnica, Mansueto Almeida, está de saída do governo. Alcolumbre parece cansado. Tenta ser ponte de diálogo, não consegue. STF parece incomodado com os recados do governo. Os ministros não vão transigir. Alexandre de Moraes está demonstrando firmeza. Os processos que afligem e incomodam Bolsonaro dão sinais de que seguirão adiante. O Centrão tem um olho à direita e outro à esquerda. As massas estão cansadas de ouvir lorotas, briguinhas e conflitos entre alas. Seu bolso está quase vazio. O presidente demonstra aborrecimento. Parece cansado da mesmice. Trump falou para seis mil pessoas em Tulsa, Oklahoma, EUA, no primeiro comício de campanha. Fracasso. Seis mil pessoas. Leio que Trump tem dito: se eu perder farei as coisas que sempre fiz e gosto de fazer. Sinal de conformismo. E uma eventual derrota em novembro aumentará o desânimo por aqui no verão de fim de ano.

A força da palavra

Não subestimem o poder da palavra. Certa feita, um amigo do poeta Olavo Bilac queria vender uma propriedade, que considerava um sítio que dava muito trabalho e despesa. Reclamava ser um homem sem sorte. Suas propriedades davam-lhe dores de cabeça e não valia a pena conservá-las. Pediu então ao amigo poeta para redigir o anúncio de venda do sítio. Acreditava que se ele descrevesse sua propriedade com palavras bonitas, seria muito fácil vendê-la. Olavo Bilac, que conhecia bem o sítio, redigiu o seguinte texto: "Vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros, ao amanhecer, no extenso arvoredo. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeiro. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes, na varanda." Meses depois, o poeta encontrou o amigo e perguntou-lhe se tinha vendido a propriedade. "Nem pensei mais nisso. Quando li o anúncio que você escreveu, percebi a maravilha que eu possuía". Algumas vezes, só conseguimos enxergar o que possuímos quando pegamos emprestados os olhos alheios.

Os generais

A imagem das Forças Armadas, principalmente a do Exército, com a maior visibilidade, está em descenso. É oportuno que a cúpula dessa Força analise com acuidade a questão e reforce o conceito: sua missão é a favor do Estado, não a favor de governos. Manter a segurança, a harmonia, a paz social e a defesa do país. Deveriam ter pensado em comedimento, razoabilidade. Locupletar as estruturas com quantidade exagerada de militares é um desatino.

 Os prefeitos

Muitos devem permanecer, principalmente aqueles que administraram com eficiência o combate ao novo coronavírus. Mas a revoada será grande. O sentimento de renovação grassa por toda a parte.

As mulheres

O gênero feminino está ascendendo na política. As mulheres estarão em alta no próximo pleito. Centenas serão candidatas com boas possibilidades de eleição. E muitas serão convidadas a compor a chapa como vice. Em São Paulo, o nome de uma mulher para vice de Bruno Covas (PSDB) está sendo procurado. Marta Suplicy cairia como uma luva. Mas é provável que ela venha compor uma chapa de oposição.

Nome para 2020

Ainda não apareceu um nome altamente competitivo para enfrentar Bolsonaro em 2022. Os que desfilam na passarela estão muito desgastados. E alguns são inexperientes.

O bolsonarismo

Tende a decrescer. Os bolsonaristas de raiz - firmes na ponta direita do reacionarismo conservador - continuarão firmes. Algo como 10%. Os bolsonaristas por conveniência – que votaram no atual presidente por ojeriza ao PT – tendem a procurar outro nome para enfrentar o lulopetismo. Algo como 15%. Os bolsonaristas que viram em Bolsonaro a possibilidade de corrigir certos padrões da política estão decepcionados e tendem a caminhar numa linha de independência, buscando um nome limpo, que encarne a nova realidade brasileira. Algo como 10%. São os racionais. Se as crises sanitária, econômica e política projetarem seus danos sobre o eleitorado até margens do pleito de outubro de 2022, nem candidato de extrema direita nem perfil de extrema esquerda terão chance. A polarização já deu o que tinha que dar.

O livro de John Bolton

Ontem foi lançado nos EUA o livro do ex-assessor de Segurança de Donald Trump, John Bolton, aquele do bigodão que foi recebido por Bolsonaro num café da manhã em sua casa, onde degustaram pão com doce de leite. O livro - The Room Where It Happened – coloca o Brasil no papel de coadjuvante de segunda classe. E fala mal do caráter do presidente. Deverá ter impacto (não tão forte) na campanha americana. Pequeno trecho: "O presidente elogiou Xi pela construção de campos de concentração em Xinjiang – vimos Trump fazer algo semelhante em relação à covid-19, elogiando muito a atuação de Xi, provavelmente, na esperança de preservar seu acordo comercial. Bolton descreve Trump "negociando com Xi para garantir sua reeleição".

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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