quarta-feira, 3 de junho de 2020

O mundo sem conseguir respirar

George Floyd virou o símbolo da opressão pela pandemia, pelo racismo e pelo autoritarismo



Mulher segura um pedaço de papelão com as frases 'eu não consigo respirar', dita por George Floyd antes de morrer, e 'black lives matter' ('vidas negras importam', em português), durante protesto pela morte dele em Londres, no Reino Unido, neste domingo (31). — Foto: Matt Dunham/AP
Mulher segura um pedaço de papelão com as frases 'eu não consigo respirar', dita por George Floyd antes de morrer, e 'black lives matter' ('vidas negras importam', em português), durante protesto pela morte dele em Londres, no Reino Unido, neste domingo (31). — Foto: Matt Dunham/AP

“Não consigo respirar.” A frase de George Floyd enquanto era assassinado pelo policial Derek Chauvin (sic) entrará nos livros de história como a melhor expressão do mundo sufocado. Pela pandemia, mas também pelo racismo, pela violência policial e pelo autoritarismo, que surgem como reflexo condicionado de lideranças ineptas.

Não foi o novo coronavírus que desencadeou uma síndrome respiratória aguda e matou Floyd. Não foi o ar viciado nos ambientes fechados das quarentenas. Não foi uma máscara a tapar-lhe a boca e as narinas. Foram os joelhos de Chauvin em seu pescoço. Foi a violência racista daquele cujo dever era protegê-lo, não matá-lo.

Manifestações em protesto contra o assassinato de Floyd tomaram conta dos Estados Unidos. Nem todas pacíficas. Em meio à confusão, parte da polícia preferiu atacar ou reagir com violência. Outra parte se solidarizou com os manifestantes. O presidente Donald Trump procura pretextos jurídicos para mandar o Exército investir não contra um inimigo externo, mas contra a própria população.

O chefe de Estado Maior saiu às ruas fardado. Trump usou o escudo de policiais e gás lacrimogêneo para dispersar manifestantes, reunidos pacificamente na frente da Casa Branca em desafio ao toque de recolher. Atravessou a rua e foi brandir uma Bíblia, em gesto ridículo diante de uma igreja. Quer classificar todos como baderneiros. Invoca a preservação da ordem como mote, de olho na reeleição.

O país, sufocado, testemunha cenas que estava acostumado a ver apenas naqueles lugares onde a democracia fraqueja, como Oriente Médio ou América Latina. Lugares como o Brasil, onde a polícia fez questão, no último fim de semana, de atacar em São Paulo manifestantes que defendiam a democracia, poupando os que vociferavam em prol da ditadura e do fascismo.

Trump e seu êmulo Jair Bolsonaro comandam os dois países mais atingidos pela pandemia. É nítida a tentação de que se aproveitem dela para exercitar seus músculos autoritários e para tentar provocar uma ruptura na ordem institucional. Mas também é nítida a inépcia de ambos para entender a dimensão do desafio.

Uma pandemia não é apenas uma questão de saúde. Como as guerras, paralisa a economia e desestrutura a sociedade. Traz à tona, em cada país, os piores fantasmas, os acertos de conta mal-feitos ao longo da história, as tensões reprimidas sob o manto da civilização.

Nos Estados Unidos, o racismo e a desigualdade. Persistentes, a despeito das décadas de luta pelos direitos civis e da eleição de Barack Obama. O ressentimento que elegeu Trump, a polarização política e o ódio latente irrompem num conflito de desfecho imprevisível.

No Brasil, além de racismo e desigualdade, há ainda a inclinação autoritária de parcela da sociedade. Persistente, a despeito das décadas de democracia e eleições livres. Bolsonaro não chegou ao poder sozinho. O apoio de setores como empresariado ou Forças Armadas revela um país ainda inseguro com as próprias escolhas.

A solução fácil e tentadora de líderes como Trump ou Bolsonaro é tentar eliminar a diferença. A confusão apenas os favorece. Oferece o pretexto ideal para lançarem mão de coturnos e baionetas, para sufocarem o grito de revolta, qual o joelho de Chauvin sobre o pescoço de Floyd.

Nada mais natural que quem esteja sufocado queira gritar para se libertar. É preciso ouvir o grito e entender seu significado. Também é verdade que gritar não resolve. Em sociedades rachadas ao meio, será preciso instaurar alguma forma de diálogo – e só pode haver diálogo onde não há armas, onde todos se sentem livres para respirar.

Não há diálogo onde impera o ressentimento, onde as dores do passado continuam a comandar os atos do presente, a ditar os movimentos no futuro. Ou bem entendemos que a democracia é a única forma de aplacar a angústia, de aliviar o sufoco e de permitir o convívio pacífico entre vozes discordantes – ou então estaremos, como Floyd, fadados à asfixia. Nos Estados Unidos e no Brasil, é esse o maior desafio. Nem Trump nem Bolsonaro estão à altura de enfrentá-lo.

O autor deste artigo, Helio Gurovitz,  foi Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo. Publicado originalmente em Época, desta semana.

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