quinta-feira, 25 de junho de 2020

Hora do voto facultativo

Ascanio Saleme sustenta, em artigo, que a tese de que o voto obrigatório educa politicamente é um mito

A Câmara dos Deputados podia aproveitar a discussão sobre o adiamento das eleições deste ano para debater mais uma vez o voto obrigatório. A alteração das datas do primeiro e do segundo turno é lateral e fácil de resolver, embora os deputados sejam mais encrenqueiros que os senadores, que já aprovaram o novo cronograma para novembro. Para contribuir com o tema, sugiro dois dias de votação. No sábado, votam eleitores com nomes de A a L. No domingo, de M a Z. De resto, organiza-se tranquilamente uma eleição em dezenas de milhares de seções em todo o país de maneira mais fácil e segura do que fila de supermercado. Prorrogar mandatos, nem pensar.

Sobre o voto obrigatório, a retomada do debate poderia ser útil. A Constituição de 1988 manteve regra em vigor no Brasil desde o Código Eleitoral de 1932. Os constituintes argumentaram que o voto é um dever, seu exercício educa politicamente e trata-se de uma tradição. Mais importante, contudo, foi o discurso do medo. O Brasil engatinhava no processo de redemocratização, iniciado com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney no último colégio eleitoral, de 1985. Os que votaram a favor do voto obrigatório alegaram que a democracia brasileira não estava madura o suficiente para tornar o voto facultativo. Perderam os que entendiam que o voto é um direito, e não um dever.

Em 2015 o assunto voltou à pauta do Congresso durante a discussão da reforma política. O voto facultativo, como previsto no relatório do deputado Rodrigo Maia (DEM), hoje presidente da Câmara, foi abatido mais uma vez em nome do medo. O então deputado Chico Alencar (PSOL), um dos principais defensores da obrigatoriedade do voto, disse o seguinte na sessão de votação: “(O voto obrigatório) é uma medida importante para a consolidação da democracia brasileira, ainda tão frágil”. Alencar disse que era melhor manter o sistema inalterado e “o cidadão que estiver totalmente desencantado com a política, não comparece, paga aquela multa irrisória e a vida segue”.

Este debate ocorreu 30 anos depois da volta do poder aos civis, com a democracia brasileira, convenhamos, bem testada e madura. Se o medo fazia sentido em 1988, sobretudo para os que viveram sob a ditadura militar, hoje ele não se justifica. Nem mesmo com Bolsonaro no poder e a turma da intervenção militar no seu calcanhar. As instituições nacionais são sólidas e permanecerão assim. Bolsonaro é pequeno e o agrupamento antidemocrático é ínfimo. Se alguém acha mesmo que o fim do voto obrigatório permitiria um retrocesso político, cabe explicar por quê. Ademais, se houvesse agora um improvável retrocesso, ele ocorreria sob a vigência do voto obrigatório.

A tese de que o voto obrigatório educa politicamente é um mito. Os que vão votar apenas por não ter alternativa são os mais facilmente manipuláveis, aderentes aos impulsos da boca de urna, já que não se prepararam para o pleito. Por outro lado, supõe que os eleitores brasileiros são subdesenvolvidos politicamente e precisam da tutela do Estado para crescer. O argumento de que o voto facultativo facilita o voto de cabresto parou no tempo. Hoje, com irrestrito acesso aos meios de comunicação e com as redes sociais que permitem ampla e permanente vigilância política, não existe mais a possibilidade de coronel transportar e alimentar eleitores, mesmo na minúscula Jacaré dos Homens, em Alagoas.

Mais uma questão poderia ser debatida agora, a redução para dois anos dos mandatos dos que forem eleitos este ano, de modo que as eleições coincidam em 2022. Seria aproveitar a bola levantada. Mas aí já é mais que sonho.

Outra coisa

O depoimento de Bolsonaro no inquérito sobre suposta interferência indevida na Polícia Federal servirá para se ouvir mais mentiras. O presidente vai dizer que a declaração na reunião do dia 22 de abril se referia à sua segurança pessoal, não à PF. Mesmo já desmoralizada pelo depoimento do ministro Augusto Heleno, a argumentação é a única que resta a Bolsonaro. A alternativa é confessar um crime. Mas, havendo o depoimento, ele vai mentir e se enrolar mais ainda.

Publicado originalmente em O Globo, edição de 25.06.2020

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