sábado, 23 de maio de 2020

Inconcebível e inacreditável

O ministro Augusto Heleno, assim como seu chefe, não só é despreparado para o cargo que ocupa, como considera “democracia” o regime em que Bolsonaro manda e os demais obedecem

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, divulgou ontem uma “nota à Nação brasileira” para dizer que é “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” o “pedido de apreensão do celular do presidente da República”. A nota do ministro é, em si mesma, para usar suas próprias palavras, inconcebível e inacreditável.

O ministro Augusto Heleno fazia referência a solicitações de parlamentares e partidos de oposição em notícia-crime enviada ao Supremo Tribunal Federal, relativa a suspeitas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na direção da Polícia Federal, conforme denúncia do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, igualmente citado na petição.

Respeitando a praxe para casos como esse, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello encaminhou o caso para a Procuradoria-Geral da República, a quem cumpre opinar se cabe ou não investigar a denúncia. O ministro Celso de Mello enfatizou que é dever jurídico do Estado apurar essas suspeitas, “quaisquer que possam ser as pessoas alegadamente envolvidas, ainda que se trate de alguém investido de autoridade na hierarquia da República, independentemente do Poder (Legislativo, Executivo ou Judiciário) a que tal agente se ache vinculado”.

É sintomático que o decano do Supremo tenha que relembrar tamanha platitude: numa República em que vigora o Estado Democrático de Direito ninguém está acima da lei, inclusive o presidente. Infelizmente, como mostrou a afrontosa nota do ministro Augusto Heleno, a advertência do ministro Celso de Mello é mais do que oportuna – é indispensável.

Para o ministro Augusto Heleno, “caso se efetivasse (a apreensão do celular do presidente), seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder na privacidade do presidente da República e na segurança institucional do País”.

Ora, ainda que o pedido de apreensão do celular fosse aceito pela Procuradoria-Geral, o que ainda não aconteceu nem se sabe se acontecerá, não haveria nenhuma “afronta à autoridade máxima do Poder Executivo”, apenas o cumprimento do que mandam os diplomas legais em vigor no País que o sr. Bolsonaro governa – e que ele, aliás, prometeu solenemente respeitar quando tomou posse.

Mas o ministro Augusto Heleno não se limitou a expressar sua indignação e enveredou pelo temerário caminho da ameaça de ruptura institucional: “O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os Poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Recorde-se, para todos os efeitos, que o cidadão Augusto Heleno é general reformado, sem comando, e, atualmente, funcionário público demissível ad nutum.

Assim, o ministro Augusto Heleno elevou à categoria de comunicação oficial do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República os libelos golpistas que circulam nas fétidas redes sociais bolsonaristas, que passaram o dia de ontem a demandar nada menos que o fechamento do Supremo Tribunal Federal – sob a hashtag “Heleno já tá na hora”. Nada disso é por acaso: a nota oficial de teor sedicioso e a campanha de ódio contra o Supremo se anteciparam à decisão do ministro Celso de Mello de autorizar a divulgação, na íntegra, da reunião ministerial que, segundo o ex-ministro Sérgio Moro, comprova a tentativa do presidente Bolsonaro de interferir na Polícia Federal, entre outras barbaridades deste desgoverno.

Está claro que o ministro Augusto Heleno, assim como seu chefe, não só é completamente despreparado para o cargo que ocupa, como considera “democracia” o regime em que Bolsonaro manda e os demais obedecem. Mais do que isso: colabora decisivamente para que suas atitudes irresponsáveis, de natureza essencialmente pessoal, pois sua função não é falar em nome do governo, sejam confundidas com o pensamento das Forças Armadas. Assim, urge que os comandos militares desvinculem as Forças Armadas desses inconformados com a democracia que, para desgraça do País, chegaram à Presidência nas eleições de 2018. Se não o fizerem imediatamente, e de maneira clara, correm o risco de ver sua imagem, duramente reconstruída depois de 20 anos de ditadura, atrelada a um governo que flerta dia e noite com a ruptura.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
23 de maio de 2020 | 03h00

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