sábado, 23 de maio de 2020

Bolsonaro cometeu crime na reunião ministerial de 22 de abril? Juristas comentam

'Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, orque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa', disse o presidente


Imagens da reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 foram divulgadas na sexta-feira, 22, pelo 
Ministro Celso de Mello, e mostram cobranças enfáticas do presidente da República em relação a seus ministros. O vídeo é considerado peça chave do inquérito que investiga se houve, como alega o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, tentativa do presidente de interferir politicamente na Polícia Federal.

O Estadão procurou juristas para analisarem o que Bolsonaro disse na reunião. Entre ameaças, ofensas e palavrões, as imagens mostram o chefe do Executivo cobrando mudanças no governo e fazendo pressão sobre Moro e os demais auxiliares sob a alegação de que não vai esperar “foder a minha família toda”.

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“Mas é a putaria o tempo todo pra me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”, disse Bolsonaro.


Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em direito público administrativo pela FGV

"A gravação demanda uma investigação muito criteriosa para que se possa afirmar com absoluta segurança sobre a questão sensível da suposta 'interferência política' do presidente nos diferentes órgãos do serviço de informação e da Polícia Federal. Torna-se indispensável e extremamente relevante do ponto de vista político-institucional (no caso de comprovação de crime de responsabilidade) ou penal (na hipótese de cometimento de infração penal comum) que se apurem todos os meios de provas no sentido de se poder ratificar aquelas 'falas' do presidente.

Ao fazer a leitura da reunião, surgiram 'dúvidas razoáveis' sobre o verdadeiro direcionamento das expressões sobre a 'necessidade de obter informações', como por exemplo, ao criticar o serviço de informações porque não tinha o acesso suficiente para detectar pessoas de esquerda que estariam ainda trabalhando nos diversos ministérios e que precisaria saber acerca dessa questão.

Por outro lado, em outra fala, o presidente faz alusões ao fato de que um irmão seu teria sido agredido e nesse contexto ele acrescenta que trocaria todos os cargos necessários para dar segurança à família e amigos que estariam sendo perseguidos. Essa fala é a mais evidente e que realmente adquire maior potencial para remeter às supostas interferências de natureza política, tanto nos ministérios, quanto nos órgãos do serviço de informação e nesse caso, na própria Polícia Federal, o que caracterizaria 'desvio de finalidade' do ponto de vista jurídico-administrativo, desembocando inevitavelmente num crime de responsabilidade.

Contudo, seria de fundamental importância que os diferentes contextos em que estão inseridas as suas intervenções pudessem ser correta e seguramente interpretadas por técnicos de órgãos especializados, como a própria Polícia Federal. Nessa direção, o inquérito em andamento no STF terá que apurar os fatos e se ancorar em outros instrumentos que possam comprovar de fato e de direito o cometimento ao que tudo indica, de um crime de responsabilidade. Dessa forma, a busca e apreensão do celular do presidente amparada constitucionalmente constituiria, de fato, um meio de prova capital para essa questão."

Conrado Gontijo, criminalista, doutor em direito penal e econômico pela USP

O vídeo divulgado pelo ministro Celso de Mello causa perplexidade, porque demonstra que os ocupantes dos mais altos cargos do Poder Executivo da União desconhecem valores básicos da democracia e se valem de linguajar absolutamente chulo para se expressar sobre temas essenciais de interesse da Nação.

Ademais, há manifestações claras de desconhecimento do real significado de democracia, inclusive, com ataques inaceitáveis ao Supremo Tribunal Federal. Entretanto, tendo lido o laudo com as transcrições das conversas, não identifiquei tão claramente que o ex-ministro Sérgio Moro tenha sido pressionado a realizar a troca do comando da Polícia Federal, especificamente para favorecer familiares de Bolsonaro em investigações em andamento.

O presidente manifesta, sim, desejo de interferir no trabalho de diversos órgãos e na obtenção de informações oriundas da Polícia Federal, mas não é possível presumir que o tenha feito para prejudicar trabalhos de investigação. A impressão que tenho é a de que a reunião, isoladamente, não confirma as acusações de Sérgio Moro em face do presidente."

Telma Rocha Lisowski, Doutora em Direito do Estado pela USP

"Considero muito preocupante a fala do Presidente da República em que ele demonstra a intenção de armar a população civil para que esta possa se rebelar contra normas sanitárias editadas pelos Governadores e Prefeitos. É possível, sim, que tenha havido alguns excessos pontuais nas normas sobre o isolamento social, mas não podemos perder de vista que estamos em uma situação absolutamente excepcional de pandemia e que em geral os governos locais têm seguido as orientações da OMS e outros especialistas de saúde, com o objetivo primordial de preservar vidas. A postura do Presidente poderia configurar crime de incitação à subversão da ordem política e social (art. 23, I, da Lei nº 7.170/83).

Quanto à fala do Presidente da República em que ele reclama por não ter conseguido trocar alguém “na ponta da linha” do sistema de segurança para proteger familiares e amigos e, em outro momento, menciona que “vai interferir sim” (referindo-se ao serviço de informações), entendo que apenas as falas desta reunião, isoladamente, não permitem concluir que ele estava falando sobre interferência na Polícia Federal. Porém, em conjunto com outros elementos de prova, especialmente o episódio da exoneração do Diretor-Geral da Polícia Federal (que acabou levando à demissão do então Ministro da Justiça) e em seguida a mudança na Superintendência da Polícia Federal do Rio de Janeiro, há indícios muito fortes de cometimento dos crimes que estão sendo investigados em inquérito que corre perante o Supremo Tribunal Federal (dentre eles, advocacia administrativa e obstrução de Justiça)."

Matheus Lara, O Estado de S.Paulo
23 de maio de 2020 | 10h06

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