quarta-feira, 29 de abril de 2020

Cargos que Bolsonaro negocia com Centrão têm mais de R$ 10,6 bi 'livres' para investir em 2020

Os órgãos públicos que estão sendo negociados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com as legendas do chamado "centrão" possuem mais de R$ 10,6 bilhões livres para investimentos em 2020.

As autarquias e empresas públicas que estão na mesa de negociações possuem um orçamento total de R$ 68,5 bilhões para 2020. No entanto, a maior parte do dinheiro está comprometida com despesas fixas, como o pagamento de salários de servidores públicos. Restam, livres para investimentos, um total de R$ 10.611.342.802,00. Os dados foram levantados pela BBC News Brasil usando a ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal.

O comando de autarquias e empresas públicas como o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs ) e a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) sempre foi valorizado por políticos: são postos que permitem inaugurar obras e entregar equipamentos com grande apelo eleitoral.

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Além de Codevasf, Dnit e Dnocs, o Planalto também estaria negociando com o "centrão" o comando da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Banco do Nordeste.

Este último gerencia os recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). São R$ 29,3 bilhões adicionais — além dos R$ 10,6 bilhões iniciais — disponíveis para financiar projetos, inclusive de infraestrutura.

Os partidos do centrão também negociam a indicação de secretarias no Ministério da Saúde — especialmente as de Vigilância em Saúde (SVS) e a de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE). Num momento de pandemia do novo coronavírus, a importância destes cargos transcende o orçamento do Ministério da Saúde, que é de R$ 148,2 bilhões em 2020.

As tratativas foram noticiadas por vários veículos de imprensa brasileiros e depois confirmadas pela BBC News Brasil com pessoas dos partidos.

O namoro de Bolsonaro com o "centrão" começou em meados de abril, antes das demissões dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública).

A "luz amarela" da necessidade de conversar com o Congresso acendeu-se no Palácio do Planalto depois que os deputados impuseram ao governo uma derrota na votação do plano de ajuda de R$ 90 bilhões aos Estados e municípios, no dia 13 de abril. Na ocasião, a posição governista foi preterida por 431 votos a 70.

Segundo cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, a crise política aberta pelas demissões de Mandetta e Moro acentuou a necessidade do governo de ganhar apoio no Congresso. Inclusive para a eventualidade de um processo de impeachment de Bolsonaro, que, todavia, ainda não está em discussão.

Do lado do Planalto, as negociações estão sendo conduzidas pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência, o general da Reserva do Exército Luiz Eduardo Ramos. O objetivo é ganhar o apoio de siglas do chamado "centrão", como o Progressistas (PP), o PL (antigo PR), o Republicanos (antigo PRB) e o PSD. Juntas, apenas estas quatro siglas somam 146 deputados na Câmara — sem contar os demais partidos do grupo.

Ao longo das últimas semanas, Bolsonaro vem recebendo no Palácio do Planalto políticos ligados ao comando destes partidos. Também recebeu os presidentes do MDB, o deputado Baleia Rossi (SP), e do DEM, o prefeito de Salvador (BA), ACM Neto. Estes dois últimos partidos, no entanto, negam estar negociando cargos.

Antes de Bolsonaro, negociações com os mesmos cargos foram conduzidas por todos os governos do período democrático, segundo políticos e especialistas consultados pela reportagem.

No jargão da política, "centrão" é um termo pejorativo usado para referir-se a partidos conservadores sem orientação ideológica clara, que costumam buscar proximidade com o Executivo em troca de cargos e outras benesses. Siglas como PP, PL, PSD, PTB, Republicanos, PSC, Pros, Solidariedade, PEN, PTN e PHS, entre outros, costumam ser enumerados entre os integrantes do grupo — embora os dirigentes dessas legendas geralmente rejeitem a alcunha.

Açudes, estradas e irrigação: o que fazem os órgãos

Dos órgãos que estão sendo negociados por Bolsonaro com o centrão, o que tem o maior orçamento disponível para investimentos é o Dnit — dos R$ 8,4 bilhões no orçamento do órgão em 2020, R$ 6,9 bilhões estão livres para obras.

O órgão tem, por exemplo, R$ 127,3 milhões reservados para obras de reforma e adequação do entroncamento das BRs 116 e 259, próximo à cidade de Governador Valadares (MG); outros R$ 123 milhões para reformas em um trecho de estrada federal entre Porto Alegre e Pelotas (RS); e mais R$ 103,4 milhões para abrir uma estrada entre Ferreira Gomes (AP) e o município mais setentrional do Brasil, Oiapoque (AP).

Em seguida vem o FNDE, com R$ 1,8 bilhão para investimentos em 2020 — de um orçamento total de R$ 53,2 bilhões. Mesmo assim, sobram R$ 220,7 milhões para a compra de ônibus de transporte escolar, por exemplo.

Na Funasa, os recursos são destinados a obras de saneamento básico — são R$ R$ 831,4 milhões para investimentos em 2020.

A Codevasf (R$ 727 milhões disponíveis para investimentos) aplica principalmente em agricultura: tem, por exemplo, R$ 31,1 milhões para gastar em um projeto de irrigação no município de Petrolina (PE).

Enquanto isso, o forte do Dnocs (R$ 265 milhões em investimentos) é a construção de barragens e açudes nas regiões áridas do país, como o nome sugere. São R$ 53,8 bilhões para a construção da barragem intitulada Fronteiras, no rio Poty, no município de Crateús (CE).

As obras da Barragem Oiticica, no sertão do Rio Grande do Norte, em imagem de satélite
Outros R$ 41,2 milhões estão guardados para a obra da barragem de Oiticica, um grande reservatório de água em construção nos municípios de Jucurutu, Jardim de Piranhas e São Fernando, no Rio Grande do Norte.

Um político que está a par das negociações explica que nem sempre as cifras refletem a importância política de cada posto — o valor de cada indicação tem a ver com o tipo de trabalho executado por cada um desses órgãos.

"Por exemplo: R$ 7 bilhões para o Dnit é até pouco, porque a obra de estrada é cara. Mas, para a Codevasf, R$ 700 milhões são muito. É dinheiro para furar poço (artesiano), para comprar equipamentos agrícolas. É muito importante para as comunidades que ela atende", explica ele.

'Tradição do clientelismo brasileiro', diz cientista político
Para o cientista político e professor Bruno Carazza, a troca de cargos por apoio realizada por Jair Bolsonaro representa a continuidade de uma tradição de séculos da política brasileira.

"Tem a ver com aquele conceito tradicional da ciência política, do pork barrel (expressão americana para clientelismo), que é você entregar um resultado direto para o eleitor. São órgãos cujo trabalho aparece para as pessoas. (...) Isso dá visibilidade para o político e garante votos nas próximas eleições", diz ele.

"Além de permitir uma série de desvios de dinheiro. Porque são obras que não são de grande vulto; são obras pulverizadas, de controle mais difícil. E aí fica mais fácil você favorecer empresas próximas, por meio de licitações realizadas no âmbito local. É uma lógica de (garantir) dinheiro e votos", diz Carazza, que é autor do livro Dinheiro, eleições e poder: As engrenagens do sistema político brasileiro (2018).

"Isso é coisa do tradicional clientelismo brasileiro. Vem lá de trás, dos coronéis da República Velha, na época da política do café com leite (1898-1930), de você chegar nos eleitores com essas obras. É aquele mecanismo contado pelo Victor Nunes Leal, no livro Coronelismo, Enxada e Voto (1948). Ele retratou naquela época, e continuou", diz Carazza.

Para o cientista político, troca de cargos por apoio realizada por Jair Bolsonaro representa a continuidade de uma tradição de séculos da política brasileira; acima, BolsoNaro é cumprimentado pelo novo diretor da PF, Alexandre Ramagem
"No período democrático de 1946 a 1964 isso acontecia; na ditadura militar (1964-1985) também. E no regime democrático (de 1985 em diante) também, todos os presidentes fizeram esse movimento. Esses órgãos sempre foram moeda de troca para os 'centrões' da época", relata o cientista político.

O cientista político lembra que o centrão também fez este tipo de barganha com os antecessores de Bolsonaro que estiveram em apuros — como os ex-presidentes Fernando Collor (1990-1992), Dilma Rousseff (2011-2016), e até Michel Temer (2016-2018). "Ele (o centrão) se aproveita da fragilidade da situação, para se fortalecer ainda mais", diz Carazza.

Na opinião de Carazza, Bolsonaro busca se resguardar contra a "tempestade perfeita" que pode vir na sequência da epidemia do novo coronavírus.

Bolsonaro "está perdendo suporte de uma parte do eleitorado, que garantiu a eleição dele e poderia ajudar na reeleição em 2022. Está perdendo apoio da população mais rica, antipetista, que acabou votando nele (...). E a crise econômica que vem aí é muito forte. E a gente sabe que, numa tempestade perfeita como esta que está se formando, ele acabará ficando na mão do Congresso. Está se lançando para o 'centrão' para tentar se garantir", diz Bruno Carazza.

Para o cientista político Cláudio Couto, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da FGV, o começo das negociações entre Bolsonaro e o centrão não chega a ser surpreendente.

"O presidencialismo de coalizão não é uma escolha (do presidente). É uma característica institucional do sistema (político). Quer dizer, você não querer montar uma coalizão num sistema com tantos partidos, onde o maior deles não chega a ter 10% da Câmara... numa situação dessas, se você não monta uma coalizão, fica muito difícil (governar)", diz à BBC News Brasil o cientista político Cláudio Couto.

"Bolsonaro, além de não montar coalizão, conseguiu piorar as coisas ao brigar com o seu antigo partido (PSL) e antagonizar todas as forças dentro do Legislativo. É como se ele chegasse num forró e começasse a dançar punk rock. Não tem como funcionar. Era inviável governar desta maneira", diz Couto.

"É óbvio que quando você faz uma escolha como essa (de não formar uma coalizão), ela tem consequências. Vai afetar a capacidade de governar. E agora a conta começou a chegar", diz o analista.

Quem manda em quê

A maioria dos órgãos hoje em negociação já era comandada por indicados dos partidos do centrão — a discussão agora entre Planalto e os partidos gira em torno de mudar o comando dos órgãos ou apenas alterar os ocupantes de secretarias ou cargos específicos.

O FNDE, por exemplo, já esteve nas mãos do PP no ano passado, por meio do ex-presidente Rodrigo Sérgio Dias. Em dezembro, o órgão passou a ser presidido por uma servidora de carreira, concursada, Karine Silva dos Santos.

Na semana passada, circulou no Congresso vídeo de Bolsonaro com Arthur Lira (PP-AL, dir.)
Agora, se as negociações prosperarem, o órgão deverá será chefiado por Marcelo Lopes da Ponte. Ele é ex-chefe de gabinete do presidente nacional do PP, o senador Ciro Nogueira (PI), e já trabalha como diretor do FNDE. A tratativa foi descrita por mais de uma fonte à BBC News Brasil.

O Banco do Nordeste, por sua vez, é comandado hoje por Romildo Rolim, indicado pelo ex-presidente do Senado Eunício Oliveira (MDB-CE), hoje sem mandato. Agora, deverá passar às mãos de um indicado do deputado Arthur Lira (PP-AL) — líder do PP e do chamado bloco da maioria na Câmara (formado por partidos de direita e centro em fevereiro passado), e um dos políticos mais próximos de Bolsonaro no centrão.

A Codevasf, por sua vez, é hoje comandada por Marcelo Andrade Moreira Pinto, um gestor indicado pelo antigo líder do Democratas na Câmara, o deputado Elmar Nascimento (BA). O mais provável, segundo políticos ouvidos pela BBC News Brasil, é que ele seja removido para ceder espaço a um indicado de outro partido.

André Shalders - @andreshalders
Da BBC News Brasil em Brasília
Há 3 horas

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