sábado, 21 de março de 2020

Planeta Terra, hora zero

Os impactos sociais, políticos e econômicos da pandemia de covid-19 apontam para uma espiral de desconstrução sem precedentes. Não sairemos dessa como entramos.

"Se há um país onde a covid-19 pode transformar-se num genocídio, este é o Brasil", escreve J.P. Cuenca, escritor e cineasta, que vive entre São Paulo e Berlim.

Um espectro ronda a Europa – o espectro do coronavírus.

Invisíveis, acelulares, vírus são micro-organismos parasitários que dependem inteiramente da interação com uma célula viva. Sem elas, deixam de se reproduzir e dormem como vírions – até encontrar outra célula hospedeira. Microscópicos, eles medem entre 20 e 300 nanômetros. Se um vírus tivesse o tamanho de uma bola de tênis, um ser humano teria 800 quilômetros de altura. 

Ainda assim, sua biomassa é maior que a nossa. Somados, os vírus do planeta pesam mais de 3 vezes toda a população humana.

Nós representamos apenas 0,01% da vida terrestre – a biomassa dos seres humanos é menor também que a de fungos, bactérias e insetos. Apenas os artrópodes (insetos, crustáceos e aracnídeos) têm biomassa 17 vezes maior. O total de peixes nos oceanos pesa 11 vezes mais que os 7,7 bilhões de seres humanos do planeta, e por aí vai. Não nos enxergamos.

Talvez por isso, nosso impacto sobre a Terra seja brutalmente desproporcional. Especialmente a partir da Revolução Industrial, nossas intervenções por aqui alteraram os ecossistemas terrestres a ponto de ameaçarem nossa existência – e a de tantas outras espécies, bastante mais nobres. O aquecimento global é apenas um dos desafios colocados pelo Antropoceno, nova era geológica marcada pela nossa atuação.

"Nossa", e aí, claro, incluo o nosso sistema capitalista como o protagonista desse apocalipse.

Há uma boutade, atribuída em memes ao Žižek, que diz ser mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. E talvez o planeta tenha precisado de uma pandemia global para finalmente negar o anticientificismo, o negacionismo climático e as políticas neoliberais de extermínio do Estado, embaladas pelo neofascismo populista da segunda década do século 21.

Está claro que não apenas o acesso à saúde precisa ser igualitário entre os cidadãos de um país, mas também entre os países. E não só a pandemia deve ser combatida num esforço conjunto dos governos, mas também a recessão econômica mitigada por políticas anticíclicas globais. Talvez micro-organismos tenham ensinado a economistas e formuladores de política o que o senso comum keynesiano não conseguiu.

Se estou sendo otimista? Depois de amanhã, sim. Hoje, ainda falta um longo, muito longo e escuro, túnel a atravessar.

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Penso em Decameron. Logo no início do livro, Bocaccio apresenta um panorama da Europa flagelada por outra peste vinda do Oriente, a de 1348. Vamos a ele.

Uma vez que "não só falar e conviver com os doentes causava a doença (…), como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade”, a população local dividiu-se: "Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.”

Os nobres florentinos do século 14  jamais poderiam imaginar tamanha semelhança com os brasileiros privilegiados quase sete séculos depois.

Aqui, por enquanto lidamos com a falta de álcool gel, as agruras do isolamento social em home office e a indecisa navegação no catálogo da Netflix – num país onde 48% da população não têm coleta de esgoto, e quase 35 milhões de pessoas não têm água tratada em casa. Onde a população que tem a sorte de ter um trabalho precário ainda está exposta ao vírus sem garantias ou direitos. Sem falar nos milhões de brasileiros em situação de rua – apenas em São Paulo, foram 419 mil os abordados em 2019. Se há um país onde essa gripe pode transformar-se num genocídio, este é o Brasil.

A população menos sortuda, segue Bocaccio, repartia-se entre "rir e zombar do que estava acontecendo”, "abandonar sua cidade, suas casas, suas propriedades, seus parentes e suas coisas, buscando os campos da sua região ou das alheias” e, claro, adoecer e morrer, "sem nenhum socorro de médicos nem ajuda de serviçais, (…) não como homens, mas quase como animais”. A Europa perdeu cerca de um terço da sua população, só duzentos anos depois recuperou seu índice populacional pré-peste – e vou poupá-los das descrições sobre valas comuns e cadáveres abandonados pelas calçadas.

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Sobre os governantes florentinos, Bocaccio escreve: "Em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse.”

Até agora, 22 (vinte e dois) integrantes da comitiva do presidente Jair Bolsonaro que viajou aos Estados Unidos recentemente foram infectados com o coronavírus. O presidente diz ter testado negativo, mas, a uma altura dessas, poucos acreditam nele. Frente a crise, a atuação errática desse governo néscio, comandado por um fascista psicopata, é ameaça maior à população brasileira que qualquer pandemia.

Aqui, na terra sem revolução, onde o progresso é fumaça e os direitos são alheios, o desespero costuma vir sem raiva. Mas, nessa última semana, algumas placas tectônicas deslocaram-se no Brasil: o som é familiar, acordaram as panelas.

Desde janeiro de 2019, Bolsonaro falou e governou exclusivamente para o seu terço. O terço que o levaria pro segundo turno de 2022, e aí ele daria o seu jeito – com a máquina, acordos, tribunais, o que fosse. Essa estratégia parece ter funcionado apenas  até domingo passado, quando o presidente do Brasil prestigiou uma manifestação golpista e abraçou eleitores quando deveria estar em quarentena.

Uma pandemia exige discurso e postura majoritária. Agora Bolsonaro precisa – por sobrevivência política, pela primeira vez – falar e governar para todos os brasileiros. Como isso ultrapassa seu ethos, e ele segue dobrando a aposta no derretimento das instituições, é fácil apostar em qualquer tipo de aventura golpista (ou contragolpista) nos próximos meses. Ainda mais sob uma crise econômica aparentemente sem precedentes – sob um Ministro da Economia que já mostrou ser um inapto em qualquer um dos sentidos que possamos dar a palavra.

O trem suicida da civilização veio descarrilar na floresta tropical. Em nenhum outro país do mundo com essa escala há um projeto tão claramente genocida de destruição da natureza e do Estado democrático de Direito. Talvez o mundo como o conhecemos, sob a religião do capitalismo tardio, comece a acabar aqui – ou já tenha acabado e estejamos diante de seus rescaldos.

Mas depois do túnel há uma curva fechada. Não sairemos dessa como entramos, nunca tivemos tanto pelo que lutar – e, em meio ao caos, isso é uma boa notícia.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca.

Este artigo foi publicado originalmente pela Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha, que produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter |

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