sábado, 7 de março de 2020

Jogam-se uns contra os outros, e elevam o espírito de pelada: quem peita mais, leva

Vira e mexe, existe uma desconfiança (legítima, pelo que Bolsonaro, filhos e aliados dizem) de que haverá intervenção militar.

Boa sorte, Brasil
     
Todos nós temos amigos alarmistas inseridos em grupos de propagação de fake news. Lamento que a maioria deles se informe via WhatsApp. Costumo lembrar, inutilmente, que a assinatura mensal de um grande jornal custa uma pizza com guaraná (em papel) ou uma breja no bar (em digital). Preferem o carboidrato à informação apurada. Recentemente, me mandaram dois áudios para avaliação.

Áudio 1: “A única solução possível que vai deter o STF é o artigo 142 da Constituição. É dever de ofício das Forças Armadas, e o Bolsonaro pode acionar o artigo, não vai fechar o STF, vai afastar os ministros, para defender a democracia, destituir temporariamente para que sejam julgados por crimes contra a nação brasileira. E o processo é rápido, três meses, e eles vão presos, agora é a hora da realidade, todo mundo sabe que não tem saída, quem vai ser preso é o Dias Toffoli, o nome dele está na planilha da Odebrecht. Não o Bolsonaro, ele continua presidente. Todo mundo sabe quem eles são, temos todas as provas, estão passando por cima da lei e de outros poderes, criando a Lei da Fake News, nos criando uma mordaça, uma mordaça na internet, para nos punir nas redes sociais... O afastamento e julgamento serão feitos pelo Superior Tribunal Militar, e desafio qualquer político que queira discutir comigo in live, fiz hangouts pelo Patriotas do Brasil, estou nessa luta há muito tempo, aqui sim é patriotismo... Vamos pra cima deles. Aí sim vamos ter a verdadeira democracia”.

Áudio 2: “Atenção pessoal, esse áudio aí que ‘compartilei’ é do secretário de Segurança Nacional, general de Exército Walter Braga Netto, vamos repassar em todos os grupos com a máxima urgência, estamos perto de ter uma intervenção militar constitucional artigo 142, as Forças Armadas ‘vai’ prender os corruptos, não vai acontecer nada com o Bolsonaro, só com os envolvidos em falcatruas, em três meses todos serão julgados e presos, espalhem isso em toda parte. Boa sorte, Brasil”.

Primeiro, bróder, STF não faz lei. Não existe secretário de Segurança Nacional. Existe o secretário nacional de Segurança Pública, general Guilherme Theophilo. Braga Netto é desde fevereiro de 2020 ministro (militar) chefe da Casa Civil da Presidência. Como todo general é nacionalista, não sairia soltando termos em inglês.

O artigo 142 da Constituição Democrática promulgada no fim da ditadura não prevê a possibilidade de intervenção militar. Ele trata do papel das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito: “São instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Numa simples consulta em site de busca, descobre-se que a voz é do psicólogo Wagner Cunha: “Alguém colocou esse texto dizendo que era do general Walter Braga. Não sei quem. Chegou desse jeito para mim também. Mas esse áudio é meu”, disse ao G1. É fake!

Quem primeiro citou a possibilidade de intervenção via artigo 142 foi o próprio Bolsonaro, ainda deputado, durante os protestos contra Dilma. Seu vice, general Hamilton Mourão, também vislumbrou a possibilidade de intervenção constitucional caso os poderes chegassem a uma “situação anárquica”. Depois, relativizou.

Vira e mexe, existe uma desconfiança (legítima, pelo que Bolsonaro, filhos e aliados dizem) de que haverá intervenção militar. Eles se cercam de militares pela ojeriza à política, políticos, debate, negociações, e se garantir no Poder.

As referências ao AI-5 (que fechou o Congresso duas vezes, em 1969 e 1977, Assembleias Legislativas dos Estados, fundiu o Executivo com o Legislativo, instituiu a censura prévia na música, cinema, teatro, televisão, imprensa, tornou ilegal reuniões políticas não autorizadas pela polícia, criou toques de recolher, suspendeu o habeas corpus por crimes de motivação política, prerrogativa do STF, cassou mandatos de parlamentares, suspendeu direitos políticos de cidadãos considerados subversivos) são blefes daqueles que não conseguem chegar a um acordo, ou nem procuram, entre os poderes independentes.

A ameaça paira no ar desde os primeiros dias da ascensão do bolsonarismo. Não é nada saudável à economia, autoestima do País, nossa imagem, ao investimento estrangeiro, liberdade de expressão. Sem instaurar uma ditadura, e sem criticá-la, jogam-se uns contra os outros, e elevam o espírito de pelada: quem peita mais, leva.

O desejo de intervenção militar, que nasceu em junho de 2013, quando estava para ser entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, nos 50 anos do Golpe de 64, e cresceu, excita desinformados. Torna-se um fetiche, como no hit da banda Gang of Four, I Love a Man in a Uniform:

“I had to be strong for my woman. You must be joking. She needed to be protected. The good life was so elusive. I had to regain my self respect. So I got into camouflauge. The girls love to see you shoot. I love a man in a uniform. To have ambitions was my ambition...”. (Eu tinha que ser forte para minha garota. Você deve estar brincando. Ela precisava ser protegida. A boa vida era tão ilusória. Eu tive que recuperar meu respeito próprio. Então vesti minha camuflagem. As garotas amam ver você atirar. Cantam ‘Eu amo um homem de uniforme’. Ter ambições era minha ambição...)

Ressuscitaram a censura e autocensura, criaram filtros políticos e morais na literatura, televisão e cinema, como no caso do History Channel, que trocou a palavra “ditadura” por “regime militar”, num seriado documental sobre o período, que tem grana da Ancine.

Como será difícil nos livrarmos da epidemia de fake news. Como será muito difícil a reconstrução de um sentimento democrático, de civilidade, cidadania, respeito às diferenças, aos direitos individuais, e garantir a liberdade de expressão, a ousadia de pensamento. Ou seja, será difícil valer a Constituição. Boa sorte a todos.

Este artigode Marcelo Rubens Paiva foi publicado originalmente em  O Estado de S. Paulo, edição de 07 de março de 2020. Marcelo Rubens Paiva é escritor. Autor de "Feliz Ano Velho".

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