quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

O Direito Penal não é um instrumento do Estado para punir o suspeito. É um instrumento do suspeito para se defender do Estado.

Jurista dos mais admirados e respeitados do País, Damásio de Jesús  concedeu entrevista aos repórteres Gláucia Milício e Maurício Cardoso do Consultor Jurídico publicada na edição de 07 de dezembro de 2008.

Segue a íntegra:

ConJur — O Direito Penal pode ser usado fazer política de segurança pública?

Damásio de Jesus — Ele é usado como um instrumento de política eleitoral. As coisas do Direito Penal dão voto. As pessoas, em épocas determinadas, se valem do Direito Penal como se ele resolvesse todos os problemas.

ConJur — Aumentar pena diminui a criminalidade?

Damásio de Jesus — Não. Nem criar novos crimes, e nem reduzir direitos. Existem três tendências no Direito Penal. A primeira é usar a pena como política. A segunda é ir para o caminho da ressocialização. A terceira tendência é intermediária. O Brasil não sabe para onde vai. Não sabe se a pena é punitiva, ressocioalizadora, ou se fica no meio do caminho. O Direito Penal não é um instrumento do Estado para punir o suspeito. É um instrumento do suspeito para se defender do Estado.

ConJur — O que o senhor pensa sobre pena de morte?

Damásio de Jesus — O Estado deve reduzir a criminalidade por outros meios, não matando o cidadão. Ainda que o cidadão seja o pior do mundo, há um princípio que se chama princípio da dignidade. Ele faz parte de todas as Constituições federais modernas. Dignidade é aquela apreciação que você faz de você mesmo a respeito dos seus atributos morais, físicos e intelectuais.

ConJur — Com nosso sistema penitenciário, a pena de morte não faz falta.

Damásio de Jesus — Nada faz falta. Assim como a penitenciária não faz falta. Hoje, o número de foragidos é maior do que o número de presos. Por dia, fogem mais do que são detidos. E veja bem, 30% dos presos poderiam estar fora da cadeia, segundo o Ministério da Justiça. O que esse povo faz que não verifica isso?

ConJur — Os mutirões do Conselho Nacional de Justiça ajudam a resolver o problema do caos penitenciário?

Damásio de Jesus —Não, porque é um trabalho que não tem continuidade.

ConJur — Como o senhor analisa a responsabilidade da imprensa na cobertura do crime?

Damásio de Jesus — A imprensa é o olho da Polícia e por isso tem um grande valor, mas também comete excessos. Muitos excessos. Para mim, notícias sobre autoria de crimes só poderiam ser publicadas quando houvesse elementos de autoria e materialidade do crime, como manda o processo penal.

ConJur — Isso não é cercear a liberdade de expressão?

Damásio de Jesus — É por isso que até agora não deram bola para a minha sugestão. É muito tênue a linha que separa liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana. Exigir elementos de autoria e de materialidade é seguir o que determina a lei, não é cercear a imprensa em relação àqueles casos em que há somente indícios.

ConJur — O senhor é contra ou a favor da videoconferência?

Damásio de Jesus — A favor. Sou favorável à tecnologia. Outro dia, fui visitar o ministro Celso de Mello, que é amigo meu. Quando cheguei no Supremo Tribunal Federal, no balcão da portaria havia tanto processo que eu não conseguia ver o funcionário que estava atrás dos papéis. Depois perguntei: Celso, aquilo lá é distribuição de quantos anos? Ele falou: de um mês.

ConJur — Como fazer para que não cheguem tantos processo à Justiça?

Damásio de Jesus — É preciso pensar grande e não esquecer a tecnologia. Também precisamos de Justiça alternativa, no sentido de permitir que haja outros meios para solucionar problemas que não o que envolve processo e sentença. Acontece que os juízes também precisam evoluir para aceitar novas ferramentas de Justiça.

ConJur — O senhor já atuou na ONU?

Damásio de Jesus — Não de forma oficial. Em 1994, fiz parte do Conselho Nacional de Política Penitenciária. A secretária de Justiça era Sandra Valle. Sandra é especialista em Direito do Trabalho, não em Direito Penal. Então, ela perguntou para alguém do Ministério quem entendia de Direito Penal. Deram-lhe alguns nomes e ela mandou me chamar. A Sandra me levou para Viena na ONU, no UNODC, que é o escritório das Nações Unidas sobre crimes e drogas. Fiz parte de várias delegações brasileiras.

ConJur — O Direito evoluiu?

Damásio de Jesus — Não. O Direito está perdendo da tecnologia, da comunicação. O Direito não tem nem palavras para expressar as coisas que estão acontecendo. Fiz parte de duas comissões de descrição de crime de informática. Sabe por que nenhum vai para frente? Porque não há palavras que expressam o que está acontecendo dentro do computador. Não tem jeito, porque o sistema criminal brasileiro é o da denúncia. E Código de Processo Penal diz que a denúncia deve descrever o fato com todos os seus elementos e circunstâncias. Então, tratando-se de crime de informática, é preciso também que o promotor descreva o crime, mas não há palavras para isso. A lingüística não acompanhou a evolução tecnológica, assim como o Direito.

ConJur — Diante dessa situação, no combate ao crime, a resposta pode ser, por exemplo, a que os Estados Unidos deram ao combate ao terrorismo, que é cercear os direitos individuais?

Damásio de Jesus —Não sei se há soluções. O presidente Bush tomou uma medida enérgica e grave porque passou por cima das Nações Unidas. Sua atitude não resolveu nada. Mas também não dá para ir pelo caminho do bom senso. Alguém já me disse o seguinte: só haverá solução quando uma parte destruir a outra.

ConJur — No caso do crime, por exemplo, é quando o bem vencer o mal ou vice-versa?

Damásio de Jesus — O crime é diferente. Até hoje para alguns paises não é crime. É ato de fé, sagrado.

ConJur — Um caso típico de avanço da tecnologia em que o direito fica órfão é o da interceptação telefônica. A comunicação é uma arma poderosa para o crime. Qual o limite para fazer interceptação?

Damásio de Jesus — Quem permite a interceptação telefônica é o juiz. E existem requisitos na lei que não estão sendo obedecidos. Sou a favor dessa tecnologia, é evidente. Ninguém pode ser contra um instrumento que reduz a criminalidade, mas o problema é ser radical. Ou proíbem a interceptação, ou os próprios juízes permitem tudo. Há pouco tempo havia um Tribunal de Justiça no Brasil em que todos os desembargadores estavam sendo interceptados. Encontrei um desembargador que me falou: Damásio, não posso falar sobre esse assunto com você no telefone. Isso é abuso. Ninguém mais sabe se está sozinho A liberdade e a privacidade acabaram há muito tempo.

ConJur - Instrumentos úteis de redução de criminalidade se transformam em excesso.— Se transformam em crimes.

Damásio de Jesus — E o excesso favorece o criminoso.

ConJur — Como foi criado o Complexo Jurídico Damásio de Jesus?

Damásio de Jesus — Lecionei durante 12 anos na faculdade de Direito de Bauru, onde me formei. Nos finais de ano, os alunos que pretendiam fazer concurso de ingresso na magistratura ou no Ministério Público me procuravam para orientá-los sobre qual matéria deveria ser estudada, qual autor deviam ler. Com o tempo, coloquei essas informações em um livrinho. Assim, no ano seguinte, quando outros alunos me procuravam, eu já tinha um material para ceder. Do caderninho para o curso preparatório foi um passo. Comecei em Bauru. O curso foi um sucesso e durou cinco anos. Em um determinado dia, em 1974, na praça João Mendes Junior, uma idéia brotou. Algo me dizia: “fecha em Bauru e abre em São Paulo”. Não havia nenhum curso preparatório em São Paulo. Em fevereiro de 1975 aluguei uma sala na Avenida Liberdade. Coloquei anúncio no prédio do Fórum, comprei uns centímetros de anúncio no Estadão. Aparecerm dois alunos — um não pagou e o outro fugiu. No segundo dia, já tínhamos quatro alunos, cinco alunos. Fechei minha primeira turma com 32 alunos. Foi um sucesso. O número de candidatos aumentou e tive de procurar um lugar maior. Me indicou o Colégio São José, na Rua da Glória 195. Aluguei uma sala. Exigiram seis meses de aluguel adiantado. Começamos com duas matérias (Penal e Processo Penal). Pouco tempo depois já ensinávamos 12 disciplinas e tínhamos 700 alunos. Era uma escola dentro de outra escola.

ConJur — O complexo está nesse endereço até hoje?

Damásio de Jesus — Depois de algum tempo, mudei para outro local. Foi quando o nome do cursinho passou para complexo. Tínhamos um prédio de 11 andares. Ofereci parceria com a Editora Saraiva, que não quis nenhuma sala. Ofereci para o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), que também não quis. Fiquei sozinho e deu certo. Até que o Colégio São José me escolheu e voltei para lá. O colégio tem uma história muito interessante. O prédio é de 1880. Os vitrais são portugueses e franceses. O teto, em algumas salas, é de dormentes de estrada de ferro. Outros são de trilhos. Há uma capela. A construção é assinada por Ramos de Azevedo. Foi cobiçado por um sacerdote de Curitiba e por uma empresa internacional de jóias. Mas sabia que seria meu.

ConJur — Por que o Complexo Jurídico Damásio de Jesus cresceu tão rápido em tão pouco tempo?

Damásio de Jesus — Porque a minha intenção nunca foi a de transformar o curso preparatório em um instrumento de comércio. Sempre pretendi e ainda pretendo ser correto. Por meio dos valores passados por mim aos professores, formo não só promotores e juízes, mas profissionais sérios competentes, que fazem diferença.

ConJur — Qual é a formula de um curso preparatório?

Damásio de Jesus — É, sobretudo, saber escolher o professor. E ter um comportamento que será seguido por ele. Esse é o segredo. Também não pode querer enganar o professor e pagar menos do que ele merece ganhar. Assim, você consegue do professor fidelidade. Ele se transforma em um amigo, em um soldado da sua missão.

ConJur — Como o senhor analisa o ensino jurídico no Brasil?

Damásio de Jesus — Péssimo. Um dos piores do mundo. E a culpa é do método de ensino adotado pelas faculdades. A forma como aprendi Direito na minha faculdade é a mesma usada hoje por 95% das faculdades.

ConJur — Qual é o método de ensino da Faculdade de Direito do Complexo Jurídico Damásio de Jesus?

Damásio de Jesus — Trazemos um caso concreto e o discutimos, como se fosse uma aula prática. O aluno tem de dizer se existe crime e qual é ele. Nossa faculdade não admite salas com mais do que 50 alunos. Tem muita sala lá com 17 alunos. É um método quase artesanal.

ConJur — Como é o processo seletivo?

Damásio de Jesus — Por vestibular, organizado por uma instituição. O que penso é que hoje é difícil encontrar uma maneira que seja realmente seletiva, porque faculdade de Direito não dá lucro. Ela só dá prejuízo. Antes dos cinco anos não empata, de jeito nenhum. Então, se tiver uma turma com 17 alunos, você vai ter por cinco anos uma turma de 17 alunos, quando poderia ter 50. Gostaria de ter candidatos no vestibular em número suficiente para encher cada sala com 50 alunos. MS tenho de pagar professor, haja 17 ou 50 alunos por sala.

ConJur — O aluno de sua faculdade, quando termina a faculdade, precisa fazer curso preparatório?

Damásio de Jesus — Não. Eles têm passado nos concursos sem fazer o cursinho. É mais ou menos como aquela história de que filho de juiz e de desembargador tem de ser muito melhor do que os outros.

ConJur — O curso preparatório surgiu de uma falha do ensino jurídico das faculdades?

Damásio de Jesus — Sim e a falha ainda existe.

ConJur — E onde que as faculdades falham?

Damásio de Jesus — O nível de ensino é muito baixo. Os professores bons se mandam para fazer outras coisas. Vão advogar, mas não ensinar. Até na Universidade de São Paulo é assim. Na USP, os professores titulares não dão aula. Nas outras universidades, o valor-aula é muito baixo, também. As faculdades contratam os piores professores, que aceitam ganhar pouco. Agora, há um outro aspecto em relação à faculdade e curso preparatório, que é o seguinte: a técnica do curso preparatório não tem nada a ver com a faculdade. Em um curso preparatório os alunos querem estudar para passar no concurso. Não querem brincadeira. Então, tem de ser aplicado um método que permita a aprovação.

ConJur — O que o senhor tem a dizer sobre o Exame de Ordem?

Damásio de Jesus — Só posso dizer a respeito daquilo que precede o Exame de Ordem, que é um ensino jurídico sobre o qual eu já falei. Moro em uma cidade que se chama Arealva. Fica perto de Bauru. Tem sete mil habitantes. Há uma faculdade de Direito em que o professor de Direito Administrativo, que eu conheço, é cirurgião dentista. As duas profissões são muito boas, mas cada macaco na sua floresta.

ConJur — Como o senhor seleciona o corpo docente na faculdade? Qual o critério?

Damásio de Jesus — O critério é de passar pelo Damásio (risos). Os professores fazem um teste. São filmados dando aula. E a palavra final é minha. Bato um papo de três minutos com o candidato. É a experiência de quem já lecionou por muitos anos que vai aprovar o professor.

ConJur — A crise financeira atingiu o mercado de ensino jurídico?

Damásio de Jesus — Atingiu. Todo mundo está devendo alguma coisa por conta da crise. Não se pode dizer que haja algum curso preparatório ou alguma faculdade em que o lucro é grande, em que sobrou dinheiro. A crise atingiu os pais dos alunos, principalmente. Não é qualquer pessoa que consegue pagar R$ 1 mil de mensalidade de faculdade, como é na minha faculdade de Direito.

Damásio Evangelista de Jesús morreu ontem à noite em Bauru, São Paulo, aos 84 anos de idade. 

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