sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Muitos motivos para desconfiar. Sequência de crises tem levado investidores a se questionar se o governo será capaz de cumprir promessas de ajuste fiscal e encaminhamento de reformas

O Estado mostrou em reportagem publicada ontem que os investidores começam a se perguntar se o governo de Jair Bolsonaro será mesmo capaz de cumprir suas promessas de ajuste fiscal e de encaminhamento de reformas. O motivo é a sequência de crises geradas em várias frentes, em particular na área econômica do governo e na articulação do Palácio do Planalto com o Congresso.

Conflitos são próprios da política e naturais na administração de um país. Afinal, é do confronto aberto de ideias e visões diferentes que surgem as melhores soluções. O problema é que, tanto na política quanto na governança, é preciso que haja lideranças capazes de conduzir a bom termo o processo de tomada de decisões, transmitindo firmeza e segurança a todos os que serão, direta ou indiretamente, afetados por elas.

Infelizmente, ao longo do primeiro ano de mandato e, em particular, nos últimos dias, o governo de Bolsonaro tem dado demonstrações públicas de confusão e confronto, seja internamente, seja na sua relação com o Congresso. Desde sempre houve dúvidas genuínas sobre o compromisso de Jair Bolsonaro com as reformas e com o equilíbrio fiscal, mas recentemente sua hesitação causou graves ruídos no Ministério da Economia – cujo titular, Paulo Guedes, passou todo o primeiro ano de governo a reafirmar a promessa de promover uma revolução liberal no Estado brasileiro, com reformas profundas, privatizações em massa, redução drástica de subsídios e abertura para o mundo.

Quase nada disso foi entregue até agora, em parte porque havia uma distância descomunal entre as promessas de Paulo Guedes e a realidade, e em parte porque o presidente Bolsonaro jamais foi um liberal. Ao contrário, sua carreira política como deputado se notabilizou pela defesa de corporações de funcionários públicos e contra as reformas. Mas, graças em larga medida à presença de Paulo Guedes na campanha de Bolsonaro à Presidência, havia no mercado a expectativa de que a agenda de racionalização do Estado pudesse avançar a despeito das reticências do presidente.

Um ano bastou, porém, para que muitos investidores – bem como a maioria dos cidadãos – percebessem que Bolsonaro não apenas carece das qualidades básicas para presidir o País, como tem de sobra características que comprometem o andamento das reformas e, no limite, a própria governabilidade.

Um exemplo recente foi o comportamento errático do presidente na negociação com o Congresso a respeito do manejo do Orçamento. Primeiro, vetou mudança na Lei de Diretrizes Orçamentárias que tornou obrigatória a execução de emendas apresentadas por relatores, o que daria ao Congresso o controle de R$ 46 bilhões. Na visão da equipe econômica, isso engessaria ainda mais o Orçamento; na prática, reduziria a capacidade do governo de usar a liberação de emendas como moeda de troca para obter apoio no Congresso. Diante da perspectiva da derrubada do veto, o governo, na figura do ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Carlos Ramos, passou a negociar um meio-termo, em que o Executivo recuperaria o controle sobre cerca de R$ 11 bilhões. Um acordo chegou a ser anunciado, mas então tanto o presidente Bolsonaro como seu ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Alberto Heleno, se queixaram de “chantagem” do Congresso.

Além de criar um enorme problema com o Congresso, o episódio levantou sérias dúvidas sobre a capacidade de Bolsonaro e de seus ministros mais próximos de tomar e sustentar decisões. O presidente, em especial, parece perigosamente suscetível ao burburinho das falanges radicais do bolsonarismo, que tratam os parlamentares como inimigos e a política como coisa imunda.

Esse padrão caótico mina a credibilidade do governo, pois não se sabe se medidas que valem hoje continuarão a valer amanhã ou se o presidente Bolsonaro, de uma hora para outra, conseguirá em algum momento ser o presidente que até agora não foi.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.02.20

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