EdsonVidigal.com

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Gabriela, a primeira na novela foi Sônia Braga

Postado por EdsonVidigal.com às 1:15:00 PM
Enviar por e-mailBlogThis!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial
Assinar: Postar comentários (Atom)

Vasto Mundo

De como o óbvio é revolucionário

Por Fernão Lara Mesquita

"O Brasil não funciona porque a avaliação do setor público independe da ‘satisfação do cliente’

Domingo agora, J. R. Guzzo escreveu neste jornal que “a igualdade não é um direito, é o resultado do que o cidadão aprendeu”, que “é inútil querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos” e que “não há como ser igual nos méritos se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais”. Conclusão: “ainda não foi inventada no mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente”.

Mas como arrancar a educação pública brasileira dos dois atoleiros aos quais está presa, a corrupção inerente ao ambiente estatal e o serviço a um projeto de poder? Ontem, falando de corrupção, Modesto Carvalhosa lembrou nesta página que “um fenômeno sistêmico é o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão”. Mas pode haver uma versão virtuosa disso. Eu tenho fascínio pela instituição da eleição direta do school board das escolas públicas em todos os países de colonização inglesa. É a peça mais básica da democracia moderna, que é a que foi reinventada por eles. É ali que se dá a intersecção mais concreta do público com o privado e que se define, no nível mais próximo do cidadão comum, a relação hierárquica que há entre ele e o seu representante eleito, de modo a criar a sua própria continuidade.

Sendo a base de tudo na democracia moderna a necessidade de ela ser “representativa” e o sistema distrital puro de eleição a única maneira sem tapeações de prover essa representação de modo aferível, preto no branco, o bairro, a menor célula do sistema, elege obrigatoriamente entre candidatos que moram nele (pais de alunos) o conselho gestor da escola pública local. Nos Estados Unidos esses boards têm, tipicamente, sete membros para que não haja empate em suas decisões, com duas “metades”, uma de três outra de quatro membros, eleita a cada dois anos, para mandatos desemparceirados de quatro anos. Como todo funcionário eleito, também estes estão sujeitos a recall a qualquer momento que seus eleitores se sentirem mal representados. Esse conselho tem por atribuição contratar e demitir o diretor da escola e aprovar ou não os seus orçamentos e planos de voo anuais.

A esta altura os leitores ainda sujeitos ao complexo de vira-latas já estão pensando como o brasileiro das favelas ou lá dos fundões poderá mandar na educação (de seus filhos) com bons resultados. A função do school board, assim como a da democracia como um todo, não é imprimir sofisticação aos currículos, é estabelecer o filtro contra a mais mortífera de todas as doenças que acompanham a humanidade ao longo dos tempos neste vale de lágrimas, que é a corrupção pelo poder, e tornar a escola pública “orientada para o cliente”. Hoje, com as exceções que confirmam a regra, ela está orientada para servir a seus servidores e manter para sempre nas mãos dos próprios privilegiados o controle sobre a distribuição de privilégios pelo Estado, que é ao que se resume, despido de sua fantasia século 20, todo o blablablá em torno da estatização ou não do que quer que seja.

Qualquer pai terá condições de saber quem são as pessoas mais capacitadas para fazer parte desse board na sua comunidade e, sendo o voto secreto, de defender-se de pressões indevidas. E qualquer ser humano em poder de suas faculdades saberá avaliar a razoabilidade ou não de um orçamento a partir da segunda vez que tiver de tratar do assunto. Além disso, como todos, esse sistema gera os seus próprios meios de tornar-se “sistêmico” e autorreproduzir-se: centros de apuração e difusão de melhores práticas, cursos de aperfeiçoamento de membros de school boards, etc.

Nenhum prejuízo colateral será maior que o de manter o controle das verbas e das decisões na área de educação nas mãos de quem terá o poder de transformá-las no próprio salário e o de deixar a avaliação de quem deve preparar um país inteiro para a competição global a indivíduos que não têm, eles próprios, de competir por seu lugar ao sol. Ontem mesmo, aliás, editorial na página ao lado desta constatava que há mais professores do ensino básico sendo formados no Brasil de hoje, onde eles já são 3,1% da força de trabalho e 20% das mulheres com ensino superior, que alunos a demandá-los. Por que seria, se os salários são tão baixos? Porque o magistério público atrai pessoas de famílias paupérrimas e, no quadro da miséria nacional, ser professor prestando um vestibular de Pedagogia é um modo mais fácil que o vestibular de Medicina, por exemplo, para disputar uma posição de segurança vitalícia num emprego estatal.

Não é, portanto, aumentando salários num ambiente regido pela regra da isonomia – aquela que afirma: “eu merecerei ganhar mais sempre que outra pessoa fizer por merecer ganhar mais” – que se vai resolver o problema da qualidade da educação básica no Brasil. E a solução passa obrigatoriamente pelo rompimento com a “mentira analítica”: a crítica do sistema tem de ser feita pelo consumidor, e não pelo fornecedor de educação pública, como geralmente acontece até mesmo nas bancas (quase exclusivamente compostas por professores de universidades públicas) que os jornalistas convocam para debater o problema.

Nada disso, porém, pode ocorrer isoladamente. Se quisermos viver numa democracia, o school board é só a peça mais básica. Um certo número de distritos eleitorais escolares (bairros) comporá um distrito eleitoral municipal, um conjunto destes fará um distrito estadual e outro múltiplo deles fará um distrito federal, que elege um deputado federal, todos eles diretamente atrelados a eleitores específicos e sujeitos a recall, ou seja, submetidos à mesma meritocracia sob a qual vivem os seus representados.

Não é só o sistema de educação pública. O Brasil inteiro não funciona porque a avaliação e a condição de permanência, seja no emprego, seja no poder públicos, é absolutamente independente da “satisfação do cliente”.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro. com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 10.12.19

Dia sim, outro também

O tempo não para

Brasília

Um Poeta

Bonfim Tobias

INCONFIDENTE

Essa vontade de aço mentirosa,
Às vezes a espera em definir
Onde é o espinho e onde é a rosa
E onde o caminho a seguir!

Essa vontade cega e imperiosa
Que faz com que o ser vive a fingir,
Vencendo falsas guerras e enganosa
Ânsia de um inócuo porvir!

Vontade que tortura o querer,
Melhor seria nada entender,
Diluir-se em vida escondida,

Sem precisar ser pedra ou coração,
Sem precisar ser sim dizendo não,
Só ser, sem a vontade construida!

Os Outros

  • Alexandre Garcia
  • BBC Brasil
  • Blog do Sabá
  • Ciências Criminais
  • Consultor Jurídico
  • Correio Braziliense
  • Crusoé, a Revista
  • Diário do Poder
  • Direto da Aldeia / Imperatriz, MA
  • Folha de São Paulo
  • Jornal da Cidade online
  • Jornal Pequeno - Maranhão
  • José Nêumanne
  • Josué Moura - Imperatriz, MA
  • Ludwig Almeida
  • Migalhas
  • O Estado de São Paulo
  • O Estado do Maranhão
  • O Globo
  • O Imparcial - Maranhão
  • Política Em Tempo Real
  • Renê Ariel Dotti
  • Revista Época
  • UOL
  • Valor Econômico
  • Veja

Tradução

Vamos Juntos

Wikipedia

Resultados da pesquisa

Pesquisar este blog

Dia Internacional de Combate à Corrupção

Por Modesto Carvalhosa
Neste mês de dezembro inúmeras manifestações e eventos marcam o Dia Internacional de Combate à Corrupção. Sobre esse grave delito, que afeta, empobrece, mantém na miséria e mata milhões de pessoas em todo o planeta, muito se poderia relatar trazendo uma lista significativa de medidas e de campanhas que no Brasil, em 2019, têm procurado neutralizar e mesmo destruir as instituições e as pessoas dedicadas ao seu combate.

Por outro lado, seria possível ressaltar o entusiasmado apoio que o povo brasileiro tem dado aos agentes públicos encarregados da difícil tarefa de enfrentar esse crime contra a humanidade de cujas vítimas não conhecemos o rosto, mesmo porque pertencem a nada menos que dois terços da humanidade. Os efeitos devastadores da corrupção são evidentes em todo o mundo. Por isso é necessário pensar nas causas desse flagelo.

No âmbito dos diversos países verifica-se uma diferença grande na prática desse tipo de ilicitude. Nas nações civilizadas, com presença marcante da sociedade civil nos destinos do país e ordenamento jurídico fundado na ética e no interesse público, a corrupção é episódica e não sistêmica. Já nos países com fraca presença da sociedade civil, ou seja, com a onipresença do Estado, a corrupção é claramente sistêmica, ultrapassando as práticas criminosas das propinas para se instituir nas leis e na própria Constituição.

Afinal, o que é um fenômeno sistêmico? É o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão. Reproduz-se naturalmente. Essa corrupção sistêmica acaba por se tornar estrutural, fazendo parte dos fundamentos e das bases do Estado.

Nos países do terceiro mundo e nos emergentes temos três espécies de corrupção sistêmica: a corrupção constitucionalizada, a legalizada e a criminalizada.

E o que se entende por estrutural, nesse contexto?

São as bases institucionais que condicionam a vida social, mediante o modelo político expresso no sistema normativo-administrativo.

No Brasil a corrupção é claramente sistêmica e, por isso, estrutural a partir exatamente do modelo institucional, como se pode ver na Carta de 1988.

Sem uma profunda reforma política e administrativa será muito difícil mudar a fonte da corrupção. Pode-se combatê-la eficientemente, como se tem feito no Brasil nos últimos cinco anos. Dificilmente, no entanto, teríamos bases estruturais capazes de mudar a cultura dessa prática criminosa, que destrói vidas, oportunidades e esperanças. Para tanto cabe desde logo lembrar a necessidade de extinção do foro privilegiado por exercício de função, fonte de impunidade que produz todas as práticas corruptivas dos potentados da política.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser estabelecido que os ministros serão automaticamente nomeados pela regra do decanato, com um mandato de oito anos. Ou seja, as vagas serão preenchidas pelos ministros mais antigos em exercício no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A mesma regra de decanato valerá para os demais tribunais superiores. Nada de nomeação política, como atualmente. Também o STF terá competência unicamente de declaração de constitucionalidade das leis, deixando de ser uma instância recursal que trata de todas as demandas, incluídas as de habeas corpus.

A outra medida é proibir a reeleição para qualquer cargo eletivo nas eleições seguintes. A reeleição é nefasta por várias razões, principalmente por propiciar as mais variadas formas de corrupção.

Deve ser vedada a qualquer representante eleito a nomeação para cargo de ministro de Estado ou para qualquer outra função no âmbito do Poder Executivo. A mesma proibição se aplica nas esferas dos Estados e municípios.

Outra mudança estrutural necessária: o voto distrital puro, permitindo o controle dos eleitores sobre seus eleitos, inclusive com o direito de recall a cada dois anos, por ocasião das eleições gerais e municipais. Também as candidaturas independentes se impõem, para se dissolver a partidocracia instituída pela Constituição de 1988.

A eliminação do Fundo Partidário e do fundo eleitoral são medidas de moralização pública, fazendo com que os partidos políticos assumam o seu papel institucional e recobrem a sua relação com a sociedade civil e os seus eleitores, que deverão ser a única fonte de seus recursos. Outra providência constitucional imprescindível: a extinção das emendas parlamentares, fonte sistêmica de corrupção.

Por outro lado, o seguro de obra, de 100% do seu valor (performance bonds), adotado nos Estados Unidos desde l896, constitui o antídoto para a corrupção em obras públicas, pois quebra a interlocução direta dos agentes públicos com os empreiteiros licitantes e contratados. A seguradora assume, ademais, o prosseguimento da obra em caso de inadimplência da construtora.

Ainda no aspecto da administração do Estado, é fundamental que se declare que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse público no que tange aos agentes públicos. O Banco Mundial, no seu célebre relatório de 2017, apontou esse direito como o maior responsável pelos enormes e absurdos privilégios dos agentes políticos e administrativos em nosso país.

Nesse mesmo assunto, a extinção da estabilidade ampla, geral e irrestrita dos 13 milhões de servidores públicos se impõe, para que se possa estabelecer um regime de isonomia de direitos entre os que trabalham no setor público e no privado.

E, finalmente, o regime de transparência das atividades governamentais, a tempo presente e com leitura prévia, deve ser aprofundado com o sistema de robotização, capaz de abranger todos os setores da administração pública a um só tempo.

A lista não se esgota aqui. Contudo essas medidas acima devem ser adotadas para que o Brasil saia da lista dos países sistemicamente corruptos.

Uma nova Constituição cada vez mais se faz necessária.

Modesto Carvalhosa é Advogado. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.12.19

Uma mentira puxa a outra

Por Fernão Lara Mesquita

Uma mentira puxa a outra. Até o Lula sabe disso e, excepcionalmente, confessa. O empilhamento de “erros” – e no Brasil a esmagadora maioria deles não passa de mentiras – é a maior maldição nacional. É daí que vem a obesidade mórbida da Constituição (245 artigos, 105 emendas) e essa legiferância desenfreada que nos estão matando. Arrotamos “direitos” sem parar, mas temos “cerca de” 200 mil leis em vigor (ninguém sabe o número exato), entre elas a que afirma que “ninguém pode alegar em sua defesa o desconhecimento da lei”...

O País real (99,5% da população) vai como vai o mundo da hipercompetição que ruge lá fora: corrigindo o mais rapidamente possível os seus erros porque contemporizar com eles é morte certa. Nada de mais. Até os animais irracionais funcionam assim. Mas não aquele Brasil isento de competição, com mandatos e empregos inabalavelmente “estáveis” (0,5% da população). Este desfruta uma combinação de prerrogativas capaz de corromper até o mais santo dos homens. Não só está dispensado de pagar pelos seus, como pode cometer “erros” em causa própria, fazer deles leis e normas constitucionais e impô-los, “petrificados” para todo o sempre, ao resto de nós.

Esse “erro” original da invulnerabilidade é o pai de todos os outros. E cada vez que é constitucionalmente “petrificado” mais um dos acertos entre grupos de poder para auferir benefícios ilícitos à custa dos outros que dela decorrem, uma nova e frondosa árvore de gambiarras legais começa a estender seus galhos sobre a Nação, de crise em crise, na vã tentativa de cercar os efeitos do “erro” original “imexível”.

Não é por acaso, portanto, que a alegação da “constitucionalidade” deste ou daquele movimento é tida pelo povo brasileiro como a mais segura prova da sua ilegitimidade. Assim como não é por acaso – e o freguês tem sempre razão! – que a imprensa que recorre a esses mesmos argumentos para declarar inconstitucional qualquer tentativa de corrigir essas distorções colhe do povo o mesmo repúdio que ele reserva aos toffolis e gilmares. A verdade no Brasil de hoje está sempre nas nuances...

O mundo todo, aliás, anda mergulhado na Babel da subversão conceitual. Muita gente vê como sinal de morte da democracia a epidemia de explosões sociais sem projetos utópicos que grassa no planeta. A Primavera Árabe (2010), o Occupy Wall Street (2011), o Brasil-2013 e, neste 2019, França, Chile, Líbano, Bolívia, Equador, Iraque e o mais compõem um feixe de casos que não poderia ser mais diversificado em matéria de liberdades democráticas e níveis de desenvolvimento e renda. O que eles têm em comum não é o “descrédito generalizado nas instituições de representação do povo que sustentam a democracia”. É, ao contrário, o repúdio às versões falsificadas, às democracias sem povo ou ao esvaziamento do poder do povo por via direta ou indireta mesmo nas mais avançadas.

Andar para trás na senda das conquistas econômicas e sociais é sempre explosivo, não importa a altura da qual se parta. Abertas às pressões populares, entre as quais as mais fortes estão sempre ligadas ao medo da perda do emprego, a grande diferença entre as democracias e as ditaduras onde o títere pode bancar sua “valentia” com o sangue dos outros é a covardia institucionalizada. Essas manifestações são os estertores de morte, sim, mas das classes médias meritocráticas, que, em qualquer canto do mundo, são as que primeiro aprendem a usar o poder de mobilização que as redes sociais proporcionam.

O poder de mercado chinês é, antes de mais nada, a projeção internacional de força do partido totalitário no poder. E tem tido enorme sucesso em dobrar e perverter o capitalismo democrático. Este tem de aprender com os socialistas a ser inflexível na sanção das manifestações em contrário. Em vez disso, citando Bolívar Lamounier, domingo, nesta página, vemos Hollywood aceitando a censura para não ser expulso do mercado chinês, a NBA fazendo rapapés a assassinos para se desculpar pela declaração de apoio de um único atleta às manifestações de Hong Kong, as 40 maiores empresas aéreas do mundo concordando em apagar de seus sites qualquer referência a Taiwan como país e, acrescento eu, democracias maduras revogando legislações antitruste para entrar na corrida de monopólios (e no consequente desembesto da corrupção) imposta por Pequim. Já são quase 40 anos de recordes sucessivos de fusões e aquisições...

Sempre a China totalitária impondo limites à liberdade de expressão e retrocessos às democracias, e não o contrário, como deveria ser, mediante a criação de impostos sistemáticos contra a violação de direitos humanos e de propriedade que ela perpetra impunemente sem parar para roubar empregos, no primeiro momento, e liberdades, no fim da linha, às classes médias meritocráticas ao redor do mundo.

Feito de pequenos avanços no prazo de gerações que tornam impossível que qualquer uma isoladamente tenha memória viva de modelos muito diferentes para cotejar, a única maneira de evoluir rapidamente na arte da construção de instituições é com estudos comparativos. Daí o zelo da censura que os inimigos da democracia exercem no Brasil contra a cobertura do funcionamento das ferramentas do sistema imunológico das mais adiantadas (primárias diretas, recall, referendo, iniciativa, etc.) que proporcionam aos seus povos o luxo de não estar nem aí para aquilo que querem nos apresentar como a essência delas, como é o caso de Donald Trump (que não manda nada) nos (próprios) Estados Unidos.

A resposta às explosões de descontentamento que pululam por aí é a que Sebastian Piñera está articulando no Chile: depois de cortar pela metade os salários dos políticos numa só tacada, eliminar os erros de raiz com uma nova Constituição elaborada do zero por constituintes especialmente eleitos para isso (e não pelos políticos usurpadores da constituição a ser reformada), seguida de referendo popular do documento que eles elaborarem.

A única reforma que funciona continua, portanto, sendo a mesma de sempre: “Power to the people”.

Fernão Lara Mesquita,é Jornalista, é o editor de www.vespeiro.com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.12.19

Guerra Imaginária

Foi espantosa a facilidade com que o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou, na segunda-feira passada, a hipótese de adoção de uma medida de exceção nos moldes do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) para conter eventuais manifestações violentas de oposição. Como se fosse algo trivial, o principal ministro do presidente Jair Bolsonaro considerou plausível e até natural que, a título de enfrentar uma “quebradeira” nas ruas, haja o clamor para que o governo emule o regime militar, fechando o Congresso e cassando liberdades individuais, pois foi isso o que aconteceu em dezembro de 1968 com a edição do AI-5, ora evocada.

Ao comentar recente discurso do ex-presidente Lula da Silva, que incitou a militância petista a “seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia” e “atacar, não apenas se defender”, o ministro Paulo Guedes declarou que “é irresponsável chamar alguém para rua para fazer quebradeira, para dizer que tem que tomar o poder”. Acrescentou que “quem acredita numa democracia espera vencer (as eleições) e ser eleito”, isto é, “não chama ninguém pra quebrar nada na rua”. E continuou: “Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”.

Que Lula da Silva aposta suas fichas no confronto com o atual governo, parece não haver dúvida. Seu discurso denota claramente essa disposição, que não seria novidade na trajetória belicosa do PT, principalmente quando está na oposição. Tampouco é novidade que junto com a “resistência” petista sempre vêm os baderneiros, que abusam da liberdade de manifestação para causar tumulto e que, quando reprimidos, posam de vítimas da “truculência” do Estado. Nada disso, contudo, justifica que se invoque a hipótese de cancelar direitos políticos e garantias individuais, o que só poderia acontecer em resposta a uma excepcionalíssima situação de rebelião interna – conforme os artigos 136 a 141 da Constituição, que versam sobre estado de defesa e estado de sítio.

Como o ministro Paulo Guedes não foi o primeiro entre os mais próximos do presidente Bolsonaro a falar em reedição do AI-5 – recorde-se a recente declaração do deputado Eduardo Bolsonaro a esse respeito –, preocupa a possibilidade de que tal flerte com a ruptura democrática esteja se disseminando no governo, a ponto de ser publicamente manifestado.

O presidente não quis comentar essas declarações de seu ministro da Economia (sobre outras declarações de Guedes, ver abaixo o editorial ‘Dólar em alta, mais um alerta’), mas é notória sua admiração pelo regime militar – para ele, “o único erro da ditadura foi torturar e não matar”. Logo, a referência ao AI-5 dentro de um governo inspirado por esse tipo de raciocínio não é casual nem inocente. Tanto é assim que o presidente Bolsonaro defende agora que as forças de segurança envolvidas em repressão a protestos tenham licença para matar – chamada de “excludente de ilicitude” para operações de Garantia da Lei e da Ordem. Para tanto, basta classificar a manifestação como “ato terrorista” caso haja algum episódio violento.

Um desavisado que chegasse hoje ao Brasil poderia imaginar, ouvindo esse discurso, que o País está à beira de um conflito civil. Esse estrangeiro estranharia, contudo, o fato de não haver nas ruas nenhum sinal de conflito – apenas o vaivém cotidiano dos cidadãos para cumprir seus compromissos. E diante disso talvez o visitante se perguntasse, com razão, o que pretende um governo que demonstra tanta preocupação com esse confronto imaginário, a tal ponto de parecer mesmo desejá-lo.

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena, do Estado de Direito e da estabilidade política e social deveriam se fazer a mesma pergunta. Mais do que isso: deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas de exceção como o AI-5, especialmente quando a tentativa parte de quem está no poder e que, mais que todos, deve dar o exemplo de respeito às liberdades democráticas gravadas na Constituição que jurou cumprir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, resumiu bem a questão: “Não dá para usar a expressão ‘AI-5’ como se fosse bom dia ou boa noite”.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 27.11.19

Inaptidão para a democracia

Não se pode confundir democracia com liberdade para afrontar os princípios básicos da convivência política e social. E isso tem acontecido com frequência preocupante desde que chegou ao poder um grupo político que, a título de recuperar os “valores e tradições” mais caros à sociedade brasileira, como prometeu o presidente Jair Bolsonaro em sua posse, vem intoxicando a atmosfera do País com truculência e intolerância.

Esses não são os valores mais caros à sociedade brasileira. Não era isso o que clamavam os que se enojaram da corrupção e da leviandade dos políticos na era lulopetista. Era o exato oposto: que fossem resgatados os valores frontalmente aviltados por mais de uma década de desfaçatez e autoritarismo protagonizada pelo PT de Lula da Silva, que dificultou o diálogo democrático mesmo na esquerda e fez da arrogância e da violência retórica – quando não física, como atesta o longo histórico de vandalismo do MST e seus congêneres a serviço do partido – um método para chegar ao poder e lá ficar para sempre.

E tudo isso, é sempre bom lembrar, sob o disfarce de partido campeão da ética, com o qual Lula e seus devotos pretendiam se apresentar como moralmente superiores e, assim, impor suas vontades ao resto do País. Quem ousava não votar no PT era desde logo estigmatizado como inimigo dos pobres, insensível ante a “revolução social” capitaneada pelo demiurgo de Garanhuns.

Foi contra esse crime continuado cometido pelo PT contra a democracia que os eleitores manifestaram, no ano passado, sonoro repúdio. Mas, por mais eloquente que tenha sido, tal voto certamente não trazia embutida nenhuma autorização para que os eleitos dessem vazão a seus instintos mais primitivos, como se a vitória eleitoral tivesse o condão de levantar todas as interdições que a civilização impõe àqueles que dela pretendem fazer parte.

Quando um deputado federal destrói parte de uma exposição na Câmara alusiva ao Dia da Consciência Negra, sob o argumento de que o que ali estava retratado vilipendiava os policiais militares ao acusá-los de promover um “genocídio da população negra”, a democracia é violentada – com a agravante de se dar nas dependências da chamada “Casa do Povo”. Quando esse mesmo deputado faz de seu ato insano um evento para suas redes sociais, como se fosse um gesto político legítimo, então é a barbárie.

E quando outro deputado, em defesa do gesto agressivo do colega, vai à tribuna da Câmara e diz que a Polícia Militar não pode ser responsabilizada pela morte de negros “porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”, adentra-se o terreno em que inexistem padrões mínimos de convivência em sociedade. É o vale-tudo – o exato oposto da democracia.

Não é mera coincidência que esses parlamentares sejam correligionários do presidente da República, Jair Bolsonaro, que reiteradas vezes ao longo de sua trajetória política demonstrou escassa disposição de aceitar os ritos e costumes próprios da vida democrática, a começar pelo respeito a quem pensa diferente. Logo, nada mais fazem do que imitar o estilo do “mito”, na presunção de que isso deleitará os eleitores.

Pode até ser que alguns eleitores de fato vibrem com essas demonstrações cabais de menosprezo pela democracia e suas instituições, mas certamente a grande maioria se preocupa com a escalada de grosserias por parte dos bolsonaristas, pois esse comportamento jamais dá em boa coisa. Pelo contrário, é um indicativo claro de inaptidão para a democracia.

Não se pode tratar esses fatos como normais ou mesmo toleráveis. A naturalização da violência como instrumento político torna a sociedade mais vulnerável à ação dos liberticidas. É preciso demonstrar, de maneira clara, total repúdio a essa tentativa de transformar a política em rinha de galos. Muitos eleitores, com carradas de razão, ajudaram a defenestrar o PT do poder justamente por tentar criar uma insuperável divisão na sociedade; agora, espera-se que esses mesmos eleitores, com igual vigor, condenem aqueles que, a título de combater “esquerdistas” em toda parte, alimentam um clima de confronto crescente com o qual planejam minar a democracia e, assim, estender indefinidamente sua permanência no poder.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.11.19

Os desafios da República

Os 130 anos da proclamação da República são uma ocasião especial para refletir sobre o futuro do Brasil. A mudança de regime ocorrida em 1889 foi o resultado de um amplo movimento cívico, que teve a ousadia de pensar os problemas nacionais, apresentar propostas concretas e lutar por elas. Momento especial dessa trajetória foi o Manifesto Republicano de 1870, que conclamava, juntamente com o fim da monarquia, a ampliação dos direitos políticos, a melhora da educação e a instalação do federalismo.

Com sua história intimamente ligada à proclamação da República – foi fundado em 1875 com o objetivo de propugnar pela abolição da escravidão e pelo fim da monarquia –, o Estado está publicando nesta semana uma série de reportagens sobre os novos desafios da República. Para tanto, o jornal entrevistou 53 lideranças, de diversas áreas, fazendo a todos duas perguntas. Quais promessas da República foram cumpridas? Quais valores deveriam ser reafirmados em um novo manifesto republicano? A resposta mais frequente à segunda pergunta foi o combate à desigualdade.

Nas respostas, também foram muito mencionados os seguintes valores: promoção da democracia, educação, combate aos privilégios, reforma do Estado contra o nepotismo, o clientelismo e o patrimonialismo, igualdade perante a lei, promoção da liberdade, melhora da representatividade, igualdade de oportunidades e liberdade de expressão.

Ao reunir essas respostas, fica evidente que os valores mencionados são complementares. “A democracia e a liberdade exigem um complemento de natureza solidária, que espelhe a importância de lacunas que ainda temos. Igualdade de oportunidades e uma rede de proteção solidária são cruciais”, lembrou o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.

A convicção da complementaridade desses valores esteve muito presente na campanha pela instauração da República na segunda metade do século 19. A luta pelo fim da monarquia não se resumiu a destituir o imperador d. Pedro II ou a instaurar um novo regime de governo. Os dois princípios da República – a igualdade de todos e o governo das leis – eram encarados como os pilares de todo o desenvolvimento político, econômico e social do País.

Decorridos 130 anos são muitos os desafios que ainda não foram devidamente enfrentados. “Colocar a educação como eixo central do projeto de Nação nunca aconteceu”, disse Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação. Diante do muito que o Brasil ainda tem de caminhar para alcançar patamar mínimo de desenvolvimento, é urgente resgatar e revalorizar os dois princípios basilares da República. A igualdade e o regime das leis continuam sendo plenamente atuais e de enorme fecundidade. O que falta é aplicá-los em toda a sua profundidade.

Em artigo recente publicado no Estado (Constituição e a supremacia do governo das leis, 12/11/2019), o professor Celso Lafer lembrou, por exemplo, a rica concepção que os romanos tinham da lei. “Lex é uma palavra que tem como base a ideia de relação, de convenção, que liga os homens entre si e se efetiva, não através de um ato de força, mas sim politicamente através de um arranjo ou acordo mútuo. Daí, em matéria de governo das leis, a convergência republicana entre o consensus juris (o consenso do direito) e a communis utilitatis (a comum utilidade), que deve alcançar o povo como o destinatário do que deve ocorrer na res publica”, escreveu o professor da USP. Ter presente a dimensão relacional da lei e sua direta vinculação com o bem público pode contribuir para um renovado respeito ao Direito vigente, carência ainda tão marcante no Brasil dos dias de hoje.

A causa da República não terminou no dia 15 de novembro de 1889. Persistem no País profundas desigualdades e perversos privilégios. Ao mesmo tempo, é de justiça reconhecer o profundo impacto positivo do ideal republicano na trajetória do País. Muito se fez ao longo desses 130 anos. E ainda hoje os valores republicanos inspiram muitas iniciativas e projetos que trabalham pelo bem público. Que a República continue sendo um ideal capaz de unir todo o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 15.11.19

Como é na democracia – 2

Por Fernão Lara Mesquita

O primeiro artigo desta série mostrou com exemplos da eleição de terça passada (5/11) como os americanos decidem no voto tudo o que afeta a sua vida, num processo permanente de reformas de iniciativa popular.

Como garantem a segurança e a legitimidade desse processo?

A primeira preocupação dos Fundadores, fugitivos de uma Europa onde qualquer um podia ter seus bens confiscados ou até perder a cabeça apenas porque sua majestade acordou de mau humor, foi tornar invulneráveis o cidadão comum e os frutos do seu trabalho com regras tão simples, econômicas e transparentes que pudessem ser compreendidas até pelo menos ilustrado dos mortais.

O resultado é uma obra-prima sem precedentes nem sucessores na História do mundo, tão solidamente amarrada a verdades indestrutíveis por argumentos que desde então só pôde ser desafiada pela violência. Física primeiro, intelectual agora, quando os inimigos da democracia tratam de destruir o próprio conceito de verdade, o que é o reconhecimento último da identificação perfeita que veem entre uma coisa e outra.

As instituições americanas distinguem “direitos negativos” de “direitos positivos” e estabelecem uma hierarquia entre eles. Só os direitos negativos, “naturais e reconhecidos pelos homens de todos tempos”, estão inscritos na Constituição federal, aos quais todos os outros estão subordinados. São eles os que decorrem da inviolabilidade da pessoa e, portanto, exigem que seu beneficiário não seja sujeitado por atos do governo ou de outras pessoas para tê-los satisfeitos: o direito à vida (e à legitima defesa), à propriedade (ao produto do seu trabalho), à liberdade de crença, de pensamento e de expressão, etc.

São direitos positivos (artificiais) os que requerem aportes de recursos de outras pessoas, diretamente ou através do governo, para que o seu beneficiário possa desfrutá-los: o direito a um determinado nível de vida, à educação, à moradia, à estabilidade no emprego, a salários e aposentadorias privilegiados, etc.

Como todo direito positivo viola o direito negativo de todos de não ser expropriado, estes só podem ser instituídos numa democracia mediante o consentimento explícito (no voto) de quem vai pagar por eles. Por isso, lá, tais direitos só podem ser inscritos em leis e Constituições estaduais ou municipais depois da aprovação, no voto, da comunidade interessada.

Para que esse processo pudesse tornar-se operacional numa democracia na qual “todo poder emana do povo”, que, pela extensão do território envolvido, tem de ser necessariamente “exercido por seus representantes eleitos”, definir as regras para tornar essa representação a mais fiel possível é a tarefa mais essencial de todo o conjunto.

Nasce daí o sistema de eleição distrital puro. Nele o tamanho de cada distrito eleitoral é dado pela divisão do número de habitantes pelo número de representantes desejados em cada órgão de representação. A menor célula é o bairro, que elege o conselho diretor da escola pública local. A maior, o distrito federal, que elege um deputado federal. Com 340 milhões de habitantes e 435 deputados, cada distrito federal tem, lá, aproximadamente 780 mil habitantes. Cada distrito federal incorporará um determinado número de distritos estaduais, que incluirão uma soma de distritos municipais, por sua vez resultantes de uma soma de distritos escolares. Todos são desenhados sobre o mapa real de distribuição da população e só podem ser alterados em função do que o censo apurar a cada dez anos.

Como cada candidato só pode se oferecer aos eleitores de um distrito, todo representante eleito sabe exatamente, pelo endereço, quem é cada um dos seus “donos”.

Ao longo do primeiro século depois da Constituição de 1787, com a memória ainda viva do poder dos reis, prevaleceu a preocupação dos Fundadores de blindar os representantes eleitos contra tentativas do Executivo de dominá-los. Foi um erro fatal. Intocáveis enquanto durasse o mandato, não demorou para que se corrompessem a ponto de quase destruírem a jovem democracia.

Na virada do século 19 para o 20, com o país tão podre quanto está o Brasil hoje, eles importaram as ferramentas de controle usadas na Suíça que tornam os representantes eleitos sujeitos à reconfirmação da confiança dos eleitores a qualquer altura do mandato. Os direitos de retomada de mandato, iniciativa legislativa e referendo das leis dos Legislativos foram o “pé de cabra” com que outros direitos foram sendo arrancados ao “Sistema”. Despartidarização das eleições municipais e eleições primárias acabaram com a força dos caciques políticos e eleições de retenção de juízes jogaram por terra a resistência do Judiciário.

O princípio operacional é sempre o mesmo. Como todo representante tem “donos” conhecidos e toda lei tem um alcance determinado, até o nível estadual leis e representantes podem ser desafiados por qualquer cidadão. Se colher o número estipulado de assinaturas no seu distrito (em geral de 5% a 10% dos eleitores), é convocada nova eleição no distrito para retomar um mandato, rejeitar ou aprovar uma lei, propor ou recusar uma obra ou uma despesa pública específica. Tudo direto, preto no branco, com cada cidadão com sua pequena parcela de poder e nenhum indivíduo ou “movimento social” autorizado a decidir pelos outros. Desde então o contribuinte é quem decide que nível de imposto e remuneração dos servidores é justo, a vítima é quem decide qual a punição suficiente para cada crime e assim por diante. Os aperfeiçoamentos são introduzidos dia após dia, voto após voto, como mostraram os exemplos da eleição da semana passada.

Longe dos olhos, longe do coração. A medida da eficácia do sistema é a quantidade de liberdade, dinheiro, saúde, segurança e inovação que sobram por lá e faltam lancinantemente nos países que, isolados pela língua e tolhidos na sua capacidade de visão à distância (tele-visão), são mantidos ignorantes da única versão de democracia que põe o povo de fato no poder, e continuam vivendo numa condição medieval de insalubridade institucional.

Fernão Lara Mesquita, Jornalista, escreve em www.vespeiro. com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 12.11.19

O Brasil precisa de juízo

Uma das últimas visitas que Lula da Silva recebeu na cadeia, em Curitiba, foi a do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Paulo Rodrigues. Foi por Rodrigues que o chefão petista mandou dizer que sairia da prisão “mais à esquerda” do que quando entrou. A mensagem – cujo emissário não podia ser outro, considerando-se que Lula já designou o MST como um “exército” a seu serviço – dá a entender que o ex-presidente está disposto a radicalizar seu discurso.

Faz sentido. Com a imagem arruinada pelos seguidos escândalos de corrupção e pela desastrosa administração da economia no governo de Dilma Rousseff, o PT hoje só existe como contraponto aos radicais de direita que ascenderam ao poder justamente com o discurso de combate ao petismo. Os dois lados dessa porfia nada têm a oferecer ao País senão um antagonismo vazio, que se presta somente a excitar militantes nas redes sociais. Mais tempo e energia serão gastos inutilmente nas barricadas virtuais, com o único propósito de mobilizar a atenção do País para, desse modo, tentar ampliar o capital eleitoral de parte a parte.

Ao se dizer “mais à esquerda” agora do que antes, Lula veste o figurino de “radical” – personagem que não condiz nem um pouco com a do político que, ao longo de quase toda a sua trajetória, não se furtou a negociar com quem quer que fosse, desde que isso o ajudasse a chegar ao poder ou a nele permanecer.

Foi assim, por exemplo, que Lula, quando sindicalista, fazia discursos raivosos para os trabalhadores e, em seguida, confraternizava alegremente com empresários na Fiesp. Foi assim, também, quando Lula se aliou a Paulo Maluf para eleger seu poste Fernando Haddad prefeito de São Paulo em 2012. O denominador comum de toda essa história é apenas Lula da Silva – um “viciado em si mesmo”, como certa feita o classificou, argutamente, o escritor Millôr Fernandes. Assim, o discurso de Lula de radicalização “à esquerda” nada tem a ver com convicção ideológica. É tão somente um truque publicitário.

Do outro lado da trincheira, os bolsonaristas provavelmente desejam que Lula adote mesmo uma retórica incendiária, pois assim imaginam que o movimento em torno do presidente Jair Bolsonaro possa ganhar novo ímpeto, já que só existe por ser o perfeito antípoda do PT. Para o governo, este é o momento ideal para ser desafiado pelo lulopetismo, pois a anunciada agitação do demiurgo de Garanhuns pode ajudar a reunificar o bolsonarismo – que hoje enfrenta escancaradas divisões internas, traduzidas pela implosão do PSL, partido do presidente, e pelas seguidas discórdias causadas pelos filhos de Bolsonaro, quando não pelo próprio.

O resultado disso tudo é a retomada da polarização que tanto mal tem feito ao País nos últimos anos. O entrevero entre lulopetistas e bolsonaristas reduz a política a uma briga de rua, que só faz sentido para os valentões. Nos dois lados, não se discutem problemas reais, e sim mistificações e conspirações, que em nada colaboram para a construção de um País melhor. Ao contrário, interditam qualquer possibilidade de diálogo, única maneira de alcançar consensos mínimos para a adoção bem-sucedida de políticas públicas.

Mais do que nunca, é preciso que os partidos e movimentos que se posicionam mais ao centro consigam se manter vivos no ar rarefeito da radicalização e se façam ouvir em meio à gritaria dos que nada têm a oferecer ao País. É preciso reforçar o discurso da necessidade de entendimento, para que o curso das reformas não seja interrompido. Não se pode pretender superar a crise e recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento quando a verdade dos fatos dá lugar a palavras de ordem e gritos de guerra.

Tampouco se pode esperar que o País chegue a bom porto quando forças extremistas (e oportunistas) fazem pouco das instituições – seja quando Lula se diz vítima de perseguição política por parte da Justiça, seja quando o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, sugere a necessidade de adotar medidas de exceção “se a esquerda radicalizar”. A hora é de serenidade e de convicções democráticas firmes por parte dos brasileiros que não perderam o juízo.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 10.11.19.

O alerta que vem com o aumento da desigualdade

Era de se esperar que a aguda recessão de 2015/2016, legada ao país pelos governos lulopetistas, causasse estragos, alguns de efeito prolongado, como o contingente de desempregados — 12,5 milhões de pessoas em setembro, segundo o IBGE.

Mas este é só um sintoma da deterioração das condições de vida da população. Há outros. Um retrato contundente dessa realidade está exposto na pesquisa Síntese de Indicadores Sociais, divulgada na quarta-feira pelo IBGE.

Segundo o estudo, desde o início da crise econômica, em 2014, 4,5 milhões de brasileiros foram lançados na extrema pobreza, o que representa um aumento de 50% no número de miseráveis em quatro anos.

No ano passado, segundo a pesquisa, 13,5 milhões de brasileiros viviam na extrema pobreza — pelos critérios do Banco Mundial, com menos de R$ 145 por mês. Esse contingente, o maior da série histórica, corresponde a duas vezes a população da cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país.

Entre essas famílias de miseráveis, o rendimento médio no ano passado foi de apenas R$ 69 por mês. De acordo com o estudo, embora em 2018 a economia tenha dado sinais de recuperação, essa ligeira retomada não interrompeu o aumento da miséria.

Não é apenas o quadro atual que preocupa, mas também as projeções para os próximos anos. O diretor da FGV Social, Marcelo Neri, diz que se o Brasil crescer 2,5% ao ano, sem que a desigualdade aumente, somente em 2030 o país retornará ao patamar de extrema pobreza que registrava em 2014 (9 milhões de miseráveis). O que torna difícil cumprir a meta pactuada em 2015 com a ONU, dentro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de erradicar a miséria no país até 2030.

Os números mostram ainda que a desigualdade no país tem se acentuado. Nos últimos quatro anos (2014-2018), a renda do 1% mais rico da população cresceu 9,4%, enquanto a dos 5% mais pobres caiu 40%. Um dos motivos para o declínio é o aumento da informalidade.

Nem mesmo políticas públicas voltadas a essa população, como o Bolsa Família, estão conseguindo mudar o quadro. Os R$ 89 mensais (por pessoa) pagos pelo programa estão abaixo do valor que delimita a pobreza extrema.

É preciso refletir sobre o aumento da desigualdade. Os números mostram o agravamento de uma situação que já era das mais complexas. Obviamente, retomar o crescimento é necessário, mas não suficiente. A desigualdade está se tornando condicionante política relevante para todos, como mostram indicadores e pressões sociais tanto no Brasil quanto no Chile, nos Estados Unidos, na França e no Oriente Médio.

No Chile, um simples aumento de tarifa de transporte deu origem a uma convulsão social que não se via no país há décadas. E expôs mazelas, entre elas a desigualdade, que estavam latentes.

É verdade que o governo tem avançado nas reformas — a da Previdência, por exemplo, tem potencial para reduzir desigualdades históricas. Mas há que se ir além. E o essencial é estancar esse processo que arrasta grandes contingentes para a miséria.

Editorial de O Globo, edição de 11.11.19.

Como é na democracia

Por Fernão Lara Mesquita

Hoje, 5 de novembro, é dia de eleições nos EUA. Nada de muito importante. Alguma coisa está sendo votada pelo povo quase todos os dias lá. Tem as eleições de calendário (de 2 em 2 anos), tem votações para retomar mandatos (recall), desbancar juízes (dois anos atrás West Virginia cassou os cinco da sua suprema corte), aprovar ou reprovar leis ou decidir outras questões pontuais de interesse de um ou mais distritos eleitorais.

Lá cada cidade pode escolher o tipo de governo que quer ter. A maioria nem tem mais prefeito. Tem um CEO e uma espécie de diretoria (council) de profissionais para cuidar de cada área importante, como abastecimento de água, saneamento, segurança, agricultura, zoneamento, etc. Cada cidade é livre para decidir quais quer ter. Cidades e Estados elegem “secretários de Estado” cuja única função é organizar essas eleições, “deseleições” ou votações localizadas convocadas pelos cidadãos.

A de hoje vai eleger governadores e renovar algumas dezenas de cargos executivos em 8 Estados e dezenas de municípios. Tomando carona nas cédulas, como ocorre em toda eleição por lá, 32 leis de iniciativa popular de alcance estadual e 141 de alcance municipal estão qualificadas para pedir um “sim” ou um “não” dos eleitores na de hoje.

Eis alguns exemplos:

Washington convocou o Referendo 88 para modificar a legislação estadual de “ações afirmativas”. É uma rara iniciativa popular para vetar outra iniciativa popular. A I-1000 conseguiu em 2018 assinaturas bastantes para ser submetida ao Legislativo estadual, que a aprovou num processo de Iniciativa Indireta (leis que nascem na rua e acabam aprovadas no Legislativo). Como o eleitor é a fonte suprema do poder, o Referendo 88 quer derrubar, agora no voto direto, o que o Legislativo local aprovou “contra o princípio que proíbe o Estado de discriminar seus empregados ou os destinatários dos seus serviços por raça, gênero ou nacionalidade”. Nada de STF. O povo vai decidir o que quer.

A Iniciativa Popular 976, também de Washington, proíbe a cobrança de taxa superior a US$ 30 (sim, trintinha...) para o licenciamento de veículos de menos de 5 toneladas.

A Proposição CC, no Colorado, quer autorizar o Estado a gastar acima do teto estabelecido para transporte e educação. Hoje o Estado é obrigado a devolver aos contribuintes todos os gastos que ultrapassarem esse teto definido anualmente com base na inflação. Esses limites são estabelecidos na Tabor (Taxpayer Bill of Rights) uma iniciativa pioneira do Colorado que em 1992 instituiu com a aprovação de 19 leis de iniciativa popular limitando drasticamente a liberdade do Estado de criar ou alterar impostos sem consulta no voto a quem vai pagá-los, a primeira “Carta de Direitos dos Contribuintes” do país. Desde então esse pacote foi copiado por dezenas de Estados.

Ainda no Colorado, um dos sete Estados mais sujeitos a seca do país, estará nas cédulas a Proposição DD, que legaliza casas de apostas em esportes cobrando 10% de imposto dedicado a obras contra a seca.

A Pennsylvania vai decidir a adoção ou não do pacote de leis contra o relaxamento de prisão e penas alternativas para criminosos sem a participação das famílias das suas vítimas nas audiências onde são decididas, conhecido como Marsy’s Law. A campanha foi lançada nos anos 90 pelo irmão de uma moça assassinada cuja mãe teve um colapso dentro do tribunal que aliviou a pena do assassino de sua filha após poucos anos de reclusão. Doze Estados já adotaram esse pacote, que está qualificado para subir também às cédulas de Wisconsin na eleição presidencial de 2020.

A Proposição n.º 4 do Texas pretende emendar a Constituição estadual para tornar virtualmente irreversível a proibição de cobrança de imposto de renda sobre pessoas físicas, que já vigora por lá.

No âmbito municipal tem especial interesse a Proposição 205 de Tucson, Arizona, que pode declarar-se Cidade Santuário de Imigrantes, contra a política oficial de Donald Trump (sim, o zé-povinho manda mais também que o presidente). A lei, se aprovada, proíbe a polícia local de interpelar pessoas sobre sua condição de imigração ou que agentes federais ajam nesse sentido em seu território.

A Questão Municipal n.º 1 será apreciada pelos eleitores da cidade de Nova York alterando o sistema local de eleições. Em vez de turnos sucessivos, os eleitores poderão inscrever cinco nomes em ordem de preferência em suas cédulas para diversos cargos de funcionários eleitos. Se aprovado, NY será a jurisdição mais populosa a adotar esse sistema.

São Francisco avaliará a Proposição F, restringindo contribuições de empresas com interesse relacionados a leis de zoneamento para campanhas para prefeito, promotor público e outros cargos. A lei também estabelece novas condições de disclosure (informação ao eleitor) para contribuições de campanha.

Da reforma da escola do bairro ou a construção de uma nova ponte até temas como esses acima, tudo lá é decidido no voto por quem paga a conta. Na virada do século 19 para o 20, saindo de uma guerra civil e enfrentando um amplo processo de disrupção introduzido pela urbanização desordenada e a corrupção desenfreada decorrente do conluio entre donos de ferrovias (a “rede” de então), políticos e empresários corruptos pelo domínio monopolístico de setores estratégicos da economia, os americanos importaram da Suíça as ferramentas de controle dos representantes eleitos com que desinfetaram sua política e domaram os famigerados “robber barons” com uma inteligente legislação antitruste que defendia o consumidor impondo níveis mínimos de concorrência. Vêm, desde então, reformando sua democracia “no voto” um pouco a cada dia, a única maneira possível de gerenciar a vida de um país de diversidade continental num mundo mutante.

Se o seu jornal ou a sua TV nunca lhe contou que isso existe nem mostrou como funciona, atenção: você esta sendo traído.

* No próximo artigo as regras que garantem legitimidade e proteção contra golpes na construção da democracia pelos eleitores.

Fernão Lara Mesquita é jornalista e editor do saite www.ovespeiro. com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.11.19.

Prisão em 2ª instância ou após trânsito em julgado?

Por Modesto Carvalhosa e Gauthama Fornaciari

Em fevereiro de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) igualou o Brasil aos países desenvolvidos e decidiu pelo início do cumprimento da pena criminal após a decisão condenatória de tribunal em segunda instância (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Entendeu a maioria do STF que o início da execução da pena não fere o princípio da presunção de inocência, pois no julgamento da apelação há completo reexame dos fatos e das provas, concluindo-se ser o réu responsável pela conduta criminosa, garantido o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Restará às instâncias superiores somente a apreciação de questões de Direito, sem análise das provas. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderão ser arguidas eventuais ofensas à legislação e ao STF, matérias constitucionais, cuja relevância transcenda os interesses particulares da causa. A condenação em segunda instância esgota a presunção de inocência e o recurso sobre matéria de Direito não tem efeito suspensivo, sendo razoável o início do cumprimento da pena criminal pelo condenado.

Excepcionalmente, em casos de flagrante afronta à jurisprudência do STJ e do STF ou de manifestos erros e constrangimentos ilegais, que poderão ensejar a anulação do processo ou a absolvição do réu, será cabível medida cautelar para suspender a execução da pena ou, ainda, a impetração de habeas corpus, que tem trâmite mais célere. Trata-se, todavia, de exceções, conforme pesquisas de coordenadorias de gestão do STJ e do STF, divulgadas pelo ministro Roberto Barroso (O Globo, 2/2/2018 e 5/4/2018).

No STJ, entre setembro de 2015 e agosto de 2017, a Corte reverteu apenas 0,62% das condenações em segunda instância. No STF, no período de janeiro de 2009 a abril de 2016, as absolvições corresponderam a menos de 0,1% dos recursos.

Em 2016, como referido, o STF reverteu posição firmada em 2009, quando a maioria conferiu caráter absoluto ao princípio da presunção de inocência e admitiu o início do cumprimento da pena criminal somente após o julgamento de recursos pendentes no STJ e no STF (HC 84.078). Essa posição era atípica no plano internacional, não tinha coerência com o sistema normativo e a organização da Justiça estabelecidos pela Constituição, tinha impacto estatisticamente irrelevante no resguardo da liberdade de réus inocentes e ignorava que penas decorrentes de condenações com ilegalidade manifesta podem sempre ser remediadas por meios excepcionais.

Porém o mais importante é que essa posição permitia que os processos perdurassem por longo tempo nas instâncias superiores e motivassem a interposição de sucessivos recursos internos, favorecendo a ocorrência significativa da prescrição de ações penais. Nas mencionadas pesquisas, no período de setembro de 2015 a agosto de 2017, verificou-se que 830 ações penais prescreveram no STJ e 116 no STF. A referida posição favorecia a não punição expressiva de condenados, em prejuízo da efetividade do dever de punir do Estado.

A proteção da liberdade individual não pode ser realizada a ponto de comprometer a finalidade e a efetividade da ordem jurídica na prevenção e repressão de condutas danosas à convivência humana. A prisão somente após trânsito em julgado favorece até mesmo a não punição de crimes contra a ordem econômica e a administração pública, o que, consequentemente, acaba por incentivar a perpetuação dos delitos de corrupção. Isso contribui para a perda de confiança da população no próprio Direito e no Poder Judiciário, desestimulando o respeito à lei e às instituições públicas, que passam a ser vistas como seletivas e complacentes com privilégios oligárquicos. A dignidade humana só é verdadeiramente respeitada num Estado Democrático de Direito quando a lei é seguida e cumprida de forma isonômica e proporcional, de modo a contribuir para a responsabilização de quem descumpre seus deveres e abusa de sua liberdade, assegurando-se o bem comum e a legitimidade da ordem jurídica.

E, mais grave, a posição propicia fator impeditivo do desenvolvimento do País: a corrupção endêmica (cf. Índice de percepção da corrupção em 2018, Transparência Internacional). O principal incentivo ao boom de colaborações premiadas no âmbito da Operação Lava Jato foi exatamente a posição do STF a favor do cumprimento da pena criminal após a condenação em segunda instância.

Hoje, a matéria encontra-se novamente sob análise no plenário do STF – Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54. Discute-se a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja redação foi alterada em 2011 e se limitou a reproduzir a então posição do STF em 2009. Esse dispositivo é inconstitucional, pelos motivos já expostos: o princípio da presunção de inocência não tem caráter absoluto e não pode tornar inviável a efetivação razoável do dever de punir do Estado, a ponto de enfraquecer a legitimidade da ordem jurídica. O exemplo da corrupção, dentre os graves crimes que não podem ficar sem pena, é bastante significativo: o Brasil jamais será um país desenvolvido se não diminuir seus intoleráveis índices de corrupção, cuja não punição incentiva pactos oligárquicos contrários à maioria da população, impondo-lhe condições de vida indignas e perda de confiança nas leis e nas instituições.

Portanto, espera-se que o STF cumpra o seu papel de defender a Constituição e confirme o seu entendimento de prisão após condenação em segunda instância. Trata-se de interpretação imprescindível para a permanência do nosso contrato social democrático, fundado nas leis sempre voltadas para o bem comum, o que é incompatível com a impunidade dos criminosos.

Modesto Carvalhosa é Advogado em São Paulo. Gauthama Fornaciari, também Advogado, é Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas/São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 18.10.19.

Moinhos de vento

Por Vera Magalhães

Uma mancha de óleo turva as águas do mar do Nordeste há mais de 40 dias (na verdade, cientistas estimam que o acidente que levou ao desastre pode ter ocorrido em junho!), sem que o presidente da República se envolva diretamente na adoção de um plano de contingência eficaz para contê-la. A reforma da Previdência, maior feito do governo até aqui e, provavelmente, nos seus quatro anos, está a uma votação de ser concluída, e o mandatário não esboça sequer um comentário a seu respeito, a não ser para lamentar a necessidade de fazê-la. Há quanto tempo não há uma reunião ministerial para coordenar todas as ações do Executivo? A última foi em agosto, e era emergencial para a questão da Amazônia.

Enquanto esses assuntos centrais para o sucesso do governo vão transcorrendo, o presidente duela contra moinhos de vento. Transforma inimigos imaginários em reais e, num prazo de duas semanas, levou à implosão de seu partido, o já fragmentado PSL, sem que se saiba ao certo o porquê da investida inicial e a utilidade de comprar esta briga neste momento, tanto tempo antes da eleição presidencial.

Uma das máximas mais surradas de Brasília é a de que bons presidentes têm a habilidade de tourear crises e fazer com que elas saiam menores do Palácio do Planalto do que entraram. Fernando Henrique Cardoso e Lula eram reconhecidos por esta habilidade, ainda que com diferentes estilos. Fernando Collor e Dilma Rousseff fracassaram na missão.

Bolsonaro, no entanto, também nisso subverte os manuais. É ele o fator gerador de crises absolutamente desnecessárias, supérfluas, grosseiras, de baixíssimo nível. Não raro elas são ocasionadas por sua paranoia, pela sensação, estimulada pelos filhos, de que sempre há alguém querendo sacaneá-lo na esquina seguinte.

Que a principal autoridade de um País com as necessidades prementes do Brasil exiba no trato com aliados (sic) tal nível de insegurança e infantilidade é de causar perplexidade a qualquer um. Mas não surpresa. Bolsonaro fez sua vida parlamentar nessa base do relacionamento miúdo com o baixo clero.

Também a construção de um clã político está na raiz de seu estilo, tanto que colocou um filho de 17 anos para disputar uma eleição contra a mãe e derrotá-la para ocupar uma cadeira numa das casas mais corruptas do Brasil.

O espantoso foi que, pelo curso da campanha, uma parcela significativa da população brasileira tenha enxergado este personagem como um potencial estadista, pelo simples fato de verem nele as credenciais para derrotar o PT.

Portanto, as brigas de botequim que eclodiram no PSL e estão expostas numa aula de anatomia da baixa política aos olhos de cidadãos perplexos nada mais são do que o bolsonarismo em sua essência. Não se sabe o rumo que a crise vai tomar quando os inimigos alimentados pelo estilo belicoso do presidente resolverem dizer o que sabem dos “verões passados” com o intuito de implodi-lo.

Também fica difícil imaginar que base vai surgir a partir dos escombros do PSL. Bolsonaro vai se aproximar finalmente do mainstream, via MDB (que já está chegando para arrumar a bagunça) e DEM? Mesmo isso tem eficácia e prazo de validade mínimos, dado o estilo persecutório e caótico do presidente.

Mais provável é que ele siga como um corpo alheio ao próprio governo, criando tretas inacreditáveis (com correligionários, governadores, prefeitos, presidentes de outros países e quem mais aparecer) enquanto alguns poucos ministros técnicos carregam o piano. Neste caso, só resta torcer para terem êxito, pois o País não aguenta mais quatro anos de crise econômica e desemprego. E esperar que, em 2022, o eleitor saiba enxergar os políticos como eles são, e não como mitos, e faça seu escrutínio em bases mais racionais.

Vera Magalhães é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.10.19

Uma tragicomédia brasileira

Por Ascânio Saleme

Mesmo antes de Dom João VI aportar aqui em 1808, os políticos brasileiros já enfrentavam crises e travavam ásperas discussões em torno de programas e ao redor de ideias. Mas nunca na forma exuberante que se vê hoje. Jamais se desceu a ponto tão baixo, nem mesmo nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos generais de 1964, tampouco com Collor de Mello, e em tempo algum os desacertos provocaram tanto espanto e tantas risadas como agora. Vivemos uma das maiores tragicomédias da nossa história. O Brasil está de ponta-cabeça, de estômago embrulhado, muito mais do que apreensivo, é verdade, mas ainda assim rindo aos borbotões.


As asneiras e sandices que se leem e se ouvem quase diariamente em torno da família do presidente Bolsonaro são tão inusitadas quanto ridículas e engraçadas. Como se conseguiu queimar tantas pontes, arranjar tantos inimigos e desconstruir tantos entendimentos em apenas dez meses de governo? Trata-se de um recorde negativo que deveria ser considerado pelo “Guinness”. O primeiro governo a se desmilinguir em menos de um ano por absoluta inépcia política. E se não bastasse ter afugentado os que votaram nele para se livrar do PT, que são milhões, o presidente agora trata de afastar o maior partido da sua base. Talvez o único que lhe seja inteiramente fiel e tenha a sua cara.

Depois de semanas de bate-boca com o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, ameaçando sair do partido, Bolsonaro vem a público para dizer que não vai se meter no assunto. “Tô calado e vou continuar calado”, disse o homem que jamais se cala, que usa as redes sociais para fazer o que ele acha ser contato direto com seus eleitores e tem um programa semanal em que fala, e fala o que lhe der na telha, sem medir qualquer consequência. E além disso, o mais opaco presidente da História do Brasil diz ser transparente. Só rindo.

Apesar de tantos episódios inacreditáveis, vemos agora esta troca de mensagens de quinta categoria nas redes sociais entre o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Major Olímpio. Não, em nada importa para o país o que esses dois homens escreveram em suas contas no Twitter, mesmo que um seja o filho-problema do presidente da República e outro seja líder do maior partido governista no Senado. Sempre em torno do PSL e das suas contas, Carlos e Olímpio mostraram os dentes. Ambos têm razão. O vereador se acha um príncipe, e o senador se presta ao papel de bobo da corte ao descer para conversar com Carlos em seus termos. Não vale a pena falar de cadela no cio ou de internação psiquiátrica, acusações que fizeram parte da beligerância entre o príncipe e o bobo.

O fato que não consegue ser afastado, contudo, é que o PSL tem que explicar suas contas e seus laranjais. E Bolsonaro também. As investigações, que já vasculharam a casa e o escritório de Luciano Bivar e indiciaram o ministro que não tem sobrenome, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, mostram que os seus métodos não diferem muito do que se viu na política nacional até aqui. O presidente do partido está enrolado. O presidente da República tem um ministro também enrolado que ele teima em manter no posto, apesar do discurso de honestidade feito durante a campanha e reiterado cem vezes ao longo dos últimos dez meses.

O colunista Elio Gaspari tem toda a razão. Ele escreveu aqui, ontem, que Lula pode fazer diferença nessa mediocridade generalizada que tomou conta da política nacional. Com Fernando Henrique Cardoso fora do jogo por opção própria, não resta mesmo ninguém além de Lula com estatura suficiente para fazer sombra a Bolsonaro. Com sua sentença cumprida ou interrompida pelo Supremo, tanto faz, Lula sairá da cadeia muito brevemente. E daí, salve-se quem puder, o circo tem tudo para pegar fogo.

Human Rights Watch

Maria Laura Canineu não parecia abismada. A diretora regional do Human Rights Watch é brasileira e sabe muito bem como a banda toca. Já o presidente da instituição, Kenneth Roth, não conseguia esconder a estupefação. Falava como se estivesse na Guiné Equatorial de Teodoro Obiang, com todo respeito aos guinéus. Numa entrevista concedida ontem em São Paulo, Roth comparou o Brasil a Egito, Turquia e Indonésia, países que endureceram depois de eleger um presidente autoritário. E aos Estados Unidos de Trump.

Ascânio Saleme é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 17.10.19.

Saint Janot

Por Paulo Delgado

“Tem que manter isso, viu?” Foi essa frase, plantada no processo contra o presidente da República, a pólvora do tiro real dado pelo procurador. O papo-furado do outro tiro no ministro do Supremo só Freud e a demagogia calculada explicam. As coisas estão assim. O privilegiado é um confortador de si mesmo. Usufrui com requinte o poder, quando o perde não sabe se comportar e escoa no País resíduos da alma. Só por falar já é um risco para os tolos interessados na imitação dos piores.

O verniz de justo se desfaz e revela que se alimenta dos que acusa. São os santos de vidro quebrado que metem medo, deixando lascas por aí. É impressionante como normalmente homens de paixões frias prosperam no meio das conspirações políticas. O poder não conhece ateus, todos o veneram.

Um ministro tenaz e impopular, alvo de fúria alegórica de um homicida ficcional, um presidente interino e reformador, a vítima política atingida, se encontram no rito secreto de um procurador mal-intencionado, fantasiado de sacerdote do sadomasoquismo da justiça. Nenhum pudor ou aviltamento na consciência. Talvez, atribuindo-se papel importante para alguma causa, tenha se sentido figurante mal pago.

O ostracismo impulsionou sua fragilidade e fez despontar a imagem que projeta: ele é sua própria causa e para compartilhar sem culpa esse horror o revela como crime passional. Os infelizes, quando fazem mal aos outros, só precisam de si mesmos para se ferirem. E, como em romance policial, quem volta ao mesmo caminho é sempre para voltar a ele. Claro que há muito crime de colarinho-branco, mas o desassombro impune do procurador passou da conta. Induzir à violência por imitação, forjar a derrubada de um presidente, expressar o direito de matar – o poder como êxtase, exercê-lo além do ponto, até a obscenidade.

É no mundo dos que se sentem donos do mundo que se compreende o homem em sua totalidade. Quantos eram uns e se tornaram outros com poder! E muitos procuradores, como as crianças para as religiões, decidiram representar para a sociedade o estado de graça original. Mesmo errados, não contabilizam seus atos como maus. Objetos de culto, beneficiam-se da confusão que é a ideia da justiça num país sem valores universais e dominado pelo apetite doentio da publicidade do poder.

Envergonhado, quer envergonhar e, sem perder a ambição de ser santo, informa que consumado o ato dirigiria a sevícia contra si. O autossuplício de quem se sente deus para definir também sua sentença, supondo suprimir o dano. É das meditações de um imperador romano o alerta: “Nada mais digno de pena do que aquele que a tudo faz a volta completa, investigando o âmago da terra e perquirindo, através de ilações, a alma do próximo”.

Não é o primeiro da longa lista de sofrimentos por que passa o nosso país. Podemos chamá-lo de qualquer coisa, classificá-lo, fazer do seu caso objeto de conversa ruim que torna mais áspera a superfície das paredes das casas de família e alimenta o glamour podre dos justiceiros. A política brasileira de uns tempos para cá permanece irregistrada na literatura não engajada, nos filmes e músicas de amor. Talvez porque quem quiser entender o que está acontecendo recebe antes uma avalanche de razões e relatos meio embusteiros que servem como veneno para impulsionar essa espiral sem freio que sobe como mola. É uma luta sem consolação ver o País sempre se dividir quando um fato mostra que não é virtuoso algum guardião da virtude. Verdadeiro flagelo a Justiça brasileira ficar presa na gangorra dessa teia de aranha.

O ambiente civilizado do bom humor e do humanismo desapareceu. O amor quebrado domina tudo. Todos são obrigados a viver o malfeito dos outros como se fôssemos a síntese do erro de nossas autoridades, equivalendo-se a todas elas, tendo de viver a vida confusa de cada um. A reação é pior: virou onda considerar o Brasil um lugar incapaz de se aturar.

Não pense assim, nem suponha que mudar de país vai ajudar. O mal se agrava quando tudo cai no campo da significação política e perdemos a capacidade de analisar sua especificidade. O duopólio esquerda e direita tem-nos levado a essa sobrepolitização de tudo sem espaço para a consciência se abrir a outras explanações, fechada somente no que é exterior a nós. A fúria é até justa, pois em repartições onde ocorrem coisas vulgares grandões autoritários não passam de homenzinhos deseducados. A mesma falta de limites se vê em ambientes ornamentados por crucifixo, a Bíblia, um livro de orações.

A imagem de um poderoso com poder de acusar, julgar ou prender sempre foi impossível olhar sem chorar, ou rir. Os bons, e são muitos, falam por si. O indiciado, o réu, o prisioneiro, esse é contabilizado como mais um dos bens do carcereiro. As decisões das autoridades penais são verdadeiras doenças verbais, inventários morais para serem lidos pela televisão. Muitas vezes é o ódio que os anima, não a busca da verdade. E quando a verdade desemboca na mentira usada para esconder a falta de provas ou nenhuma investigação científica sobre o delito, é impossível deter essa ciranda de erros.

Encontrar um culpado não tem sido, entre nós, esclarecer um crime. O que ecoa da cabeça de um obstinado juiz, procurador ou delegado funciona como um alucinógeno. E, clichê dos clichês, não é errado pensar que depois de fazer o mal a preocupação do injusto seja comer bem e dormir sem ser perturbado. O crime no Brasil é um prato cheio também para extravagantes legais e tratado como um bufê de palácio onde muitos se alimentam do que dizem fazer-lhes mal.

Nós não somos homogêneos e a facilidade e a rapidez com que hoje sabemos dos outros não devem fazer-nos pensar que o mundo é inútil. Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido, esse estereótipo da negatividade que domina o universo mental brasileiro. Sem raiva, nem simpatia, não foi o que desejei.

Paulo Delgado é sociólogo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.10.19.

O Procurador-Geral da República e o STF

Por Geraldo Brindeiro

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como o procurador-geral da República, são nomeados pelo presidente da República, após a aprovação pelo Senado Federal, em conformidade com o sistema de checks and balances, inerente ao regime presidencialista, instituído no Brasil desde o início da República, nos moldes do modelo originário dos Estados Unidos da América. Os justices da Suprema Corte americana, assim como o attorney general e todos os membros do gabinete, são nomeados pelo presidente dos Estados Unidos após advice and consent do Senado.

O procurador-geral da República , antes da Constituição de 1988, era nomeado, como os ministros do Supremo Tribunal Federal, dentre brasileiros natos “maiores de trinta e cinco anos , de notável saber jurídico e reputação ilibada”, o que prevaleceu em todas as Constituições republicanas anteriores. O exame de tais requisitos constitucionais era feito – como ainda é – pelo presidente da República e pelo Senado Federal durante a sabatina. Mas o procurador-geral da República era demissível ad nutum, isto é, livremente destituído do cargo pelo presidente, tal como os ministros de Estado. Na vigência da Constituição de 1891, contudo, o procurador-geral da República era um ministro do próprio Supremo Tribunal designado pelo presidente da República para exercer o cargo.

A Constituição de 1988 manteve o sistema inerente ao regime presidencialista, mas estabeleceu que o procurador-geral da República deve ser nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira do Ministério Público da União maiores de 35 anos, para mandato de dois anos, permitida a recondução, somente podendo ser destituído mediante a autorização prévia da maioria absoluta do Senado Federal. Ao procurador-geral da República e aos demais membros do Ministério Público são asseguradas pela Constituição independência funcional e as mesmas garantias e vedações da magistratura. Nos Estados Unidos, todos os membros do gabinete, incluído o attorney general, podem ser livremente destituídos pelo presidente. No Brasil, os ministros de Estado são livremente nomeados e destituídos pelo presidente da República, mas não o procurador-geral da República.

A escolha dentre integrantes da carreira, porém, não deve excluir o pré-requisito constitucional de “notável saber jurídico e reputação ilibada”, pois, segundo a Constituição, o procurador-geral da República “deve ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos da competência do Supremo Tribunal Federal”. Além disso, a Lei Orgânica do Ministério Público da União estabelece que o procurador-geral da República “terá as mesmas honras e tratamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal”. A indicação pelo presidente da República e a nomeação do procurador-geral da República, após a aprovação do Senado Federal por maioria absoluta, portanto, devem ser fundadas em critérios técnico-jurídicos e éticos, e não político-partidários ou ideológicos.

A legitimidade democrática e política do presidente da República para nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República tem fundamento na sua eleição pelos votos da maioria absoluta do eleitorado nacional e nos votos dos 81 senadores, como representantes dos 26 Estados-membros da Federação e do Distrito Federal.

Sugestões de nomes podem ser apresentadas, sobretudo por intermédio do ministro da Justiça. Mas a competência constitucional é do presidente da República e do Senado.

Os Poderes políticos da República – eleitos pelo voto popular – são o Legislativo e o Executivo. A Constituição estabelece que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido pelos seus representantes eleitos ou diretamente pelo próprio povo. Tal princípio caracteriza, por definição, a democracia e a República. O Poder Judiciário é constituído de magistrados ingressos na carreira mediante concurso público, salvo os ministros dos Tribunais Superiores e os do quinto constitucional. O Ministério Público é definido como instituição permanente, essencial à prestação jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Seus membros ingressam na carreira por concurso público. Sua missão – sobretudo a do procurador-geral da República e a do Supremo Tribunal Federal - é cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País, garantindo o devido respeito aos direitos e liberdades fundamentais. O procurador-geral da República é também o procurador-geral Eleitoral e a defesa do regime democrático realiza-se por meio das funções eleitorais do Ministério Público Federal.

A Constituição veda ao Poder Judiciário e ao Ministério Público o exercício de atividade político-partidária. A militância político-partidária e ideológica no âmbito do Ministério Público viola a Constituição e prejudica a isenção e a independência de seus membros no exercício de suas funções institucionais. Disputas internas pelo poder estimulam a formação de facções políticas ideológicas e corporativas e a violação dos princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional.

A Constituição de 1988 estabeleceu amplo espectro de funções institucionais do Ministério Público. O Ministério Público propõe e opina, mas cabe ao Poder Judiciário decidir. E a Constituição deve ser cumprida. O Ministério Público Federal tem prestado relevantes serviços ao País, sobretudo no combate à corrupção sistêmica, enraizada em órgãos do Estado. A grandiosa missão constitucional do Ministério Público, portanto, deve continuar, com firmeza e equilíbrio, sem abalos e sem arroubos, livre de amarras ideológicas e partidárias, em benefício do Brasil.

Geraldo Brindeiro, doutor em Direito pela Universidade de Yale (Estados Unidos da América) e Professor da UnB, foi Procurador Geral da República (1995-2003). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 27.09.19.

Um choque na administração

Por Gaudêncio Torquato

O brasileiro, a cada dia, demonstra insatisfação com os precários serviços públicos. Segurança? Um desastre. Nunca se viu tanta morte por bala perdida. O Rio que o diga. Educação? Uma piada. Weintraub, aliás, gosta de chiste. Mobilidade urbana? Um atraso. As massas comprimidas nos transportes públicos exibem a estética das carências. Saúde? Um caos. Os corredores de hospitais superlotados de macas testemunham.

Que área mostra boa qualidade? Aponte-se uma sequer. Difícil. O país precisa de um gigantesco choque de gestão. Governadores, prefeitos, a hora é essa: ponham sua administração no estaleiro. Ou na UTI. Convoquem seus secretários. Cobrem mudanças urgentes. Deem carta branca para que possam organizar novos métodos. Mas exijam resultados imediatos. Sob pena de demissão. 2020 vem aí. E o eleitor está de olho nos governos e nas prefeituras, podendo dar o passaporte de ida sem volta aos alcaides. E eleger novos.

Sigam todos o exemplo de Zaratustra, o protagonista que Nietzsche criou para dar unidade moral ao cosmo. O profeta vivia angustiado à procura de novos caminhos, novas falas, novos desafios. Em seus solilóquios, recitava: “Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.” Decifrador de enigmas, arrumou a receita para as grandes aflições: “Juntar e compor em uni­dade o que é fragmento, redimir os passados e transformar o que foi naquilo que poderá vir a ser.”

Assim, escrevia uma “nova tábua”. A imagem do controvertido filósofo alemão, na fábula em que apresenta o famoso conceito de eterno retorno, cai como uma luva no ciclo da atual administração pública no Brasil, assolada por uma avalanche de maus serviços, críticas e denúncias.

Urge compor novos arranjos para a orquestra institucional, construir pontes para o amanhã, reencontrar-se com as massas e resgatar a esperança perdida. Essas são as cores da bandeira a ser desfraldada neste instante em que a sociedade dá as costas para a velha política.

A tarefa, convenhamos, requer arrojo para enfrentar dissabores, a partir das pressões de políticos, chefões e chefetes. Muitos não vão querer eliminar gorduras. Preferem colar os cacos do vaso quebrado e mostrar a prateleira cheia de coisas remendadas. Benesses e apadrinhamento continuarão a proliferar. Afinal, o velho Brasil tem dificuldades de enxergar novos horizontes.

Façam uma varredura para descobrir os pontos de estrangulamento interno. O que pode ser desobstruído? O que pode ser melhorado? Mudar onde e como? Se Vossas Excelências fecharem os olhos, a descrença social só aumentará.

O fato é que os Poderes da República geram um apreciável PIB comandado por compadrio político e que resvala pelo ralo do Custo-Brasil. Numerosos contingentes se aboletam no cobertor pú­blico. As políticas, inclusive as sa­lariais, são disformes. O custo da ineficiência invade as malhas dos Executivos municipais e estaduais, das Câmaras de vereadores e das Assembleias Legislativas.

A gestão de resultados é um resquício quase imperceptível nas plani­lhas. Por isso mesmo, o Estado é visto pela população como um ente paquidérmico e caro. Junte-se à pasmaceira o colchão social do distributivismo para se flagrar a cara de um País que não consegue pegar o trem da história. A imagem da administração pública mais parece uma árvore que não gera frutos. E, quando gera, os frutos não têm sabor.

As estruturas carecem de uma virada de mesa. O cardápio está pronto: viagens de servidores, pro­moção e participação de empresas estatais em eventos, gastos com campanhas publicitárias, cartões corporativos, superlotação de es­paços, nepotismo, enfim, todo e qualquer centavo gasto nas grandes avenidas e nas pequenas veredas do Estado deve ser objeto de varre­dura.

E atenção para a palavra de ordem do momento: transparência total.

Parafraseando Luiz Inácio, “nunca antes na história desse País” se ouviu tanta imprecação contra políticos e governantes. Se é falácia dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo como denunciou Jair Bolsonaro na ONU, é também falácia dizer que as instituições estão sólidas. Ora, as tensões entre os Poderes subiram ao pico da montanha.

Senhores governantes, tenham ousadia e coragem. A gestão pública carece de cirurgia profun­da. Sob pena de a esfera privada (oikos, em grego) continuar a invadir a esfera pública (koinon). E assim deixar que a fome particular conti­nue a devorar o cardápio que pertence ao povo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato - Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Os desafios de Aras na economia

Por Míriam Leitão

Augusto Aras assumiu a Procuradoria-Geral da República nesta quinta-feira e o governo espera que ele consiga destravar obras que puxem o crescimento da economia. Procuradores experientes contam que o PGR não tem essa capacidade.

Na sabatina no Senado, Aras explicou que não quer um Ministério Público atomizado, em que cada procurador toma decisão em diferentes direções. Mas, no MP, cada membro tem poder. O PGR não pode impedir um procurador do Amazonas, por exemplo, de questionar uma usina com uma ação ambiental. Esse é um exemplo. Aras explicou que pretende usar as câmaras de coordenação. O órgão pode convencer o procurador a atuar de outra forma em alguns tipos de casos. As câmaras funcionam melhor se o PGR tiver liderança sobre o Ministério Público. Mas Aras veio de fora da lista tríplice, um modelo que ele acusa de sindicalismo. O novo PGR terá que fazer um esforço maior para liderar o órgão.

A economia será destravada com projetos bem feitos, que não ameacem as comunidades locais, as tribos indígenas e o meio ambiente. É melhor fazer certo para que as obras não dependam do procurador-geral para se concretizarem. Não é o papel do PGR.

Aras foi bem-sucedido em sua estratégia até aqui. Ele fala o que cada um quer ouvir. Recentemente, assinou um documento de juristas evangélicos que definia casamento como a união entre homem e mulher. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que é casado com outro homem, confrontou essa posição e perguntou se Aras o considerava “doente”. O sabatinado disse que assinou sem ler, uma resposta esquisita.

O novo procurador-geral também disse que tem amigos homossexuais e que é contra a “cura gay”. Aras assume compromissos diferentes, dependendo do interlocutor. No Senado, ele ora falava para a corporação, ora acenava para a base do governo. As posições às vezes eram contraditórias.

Míriam Leitão é Jornalista e Escritora. Este artigo foi publicado publicado em https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/

O isolamento de Bolsonaro

Por José Casado

Qual é o plano de Jair Bolsonaro para a Amazônia ou o meio ambiente? Se existe, ninguém sabe, ninguém viu nessas 37 semanas de governo. Até agora, se limitou ao vitimismo, muito conveniente a quem atola mas não quer se responsabilizar pela própria inépcia.

Hoje, na ONU, ele vai constatar a dimensão do seu isolamento, inédito para um chefe de Estado brasileiro. Pode tentar revertê-lo, mas isso, exige competência — mercadoria rarefeita na atmosfera do Palácio do Planalto, onde só florescem intrigas, perfídias e anacronismo.

O presidente começa a descobrir o custo da opção pelo papel de vilão ambiental. Foi Bolsonaro quem se apresentou como alvo no centro de uma renovada forma de ação política global, o ativismo climático.

A obsessão com uma conspiração internacional contra a soberania brasileira na Amazônia diz mais sobre o deserto de ideias do governo do que a respeito dos objetivos de países, ONGs e empresas na região.

A tática de criação de inimigos com interesses ocultos sobre o território amazônico é datada do período da Guerra Fria. Ocupou alguns na Escola do Comando e Estado-Maior do Exército na formatação dos novos subversivos (ambientalistas, índios e estrangeiros) na Rio-92, a primeira conferência mundial sobre meio ambiente.

O Brasil da época importava alimentos, hoje é o terceiro maior exportador. Bolsonaro revigorou o anacronismo. Extirpou a palavra “clima” do Itamaraty, desmontou políticas ambiental, fundiária, indigenista e acabou com o Fundo Amazônia. Também desdenhou da diplomacia com Europa, China e Rússia, optando por ficar refém da Casa Branca de Donald Trump.

O tempo passou e ele não viu. O novo ativismo climático levou 230 fundos de investimentos a perceber nesse negacionismo riscos de reputação, operacionais e regulatórios. Na sequência, 130 bancos — Bradesco e Itaú incluídos— anunciaram pressão conjunta para ação rápida contra “o catastrófico aquecimento global”. E governadores de nove estados que perderam o Fundo Amazônia iniciaram negociações diretas com quem quiser investir na região. O custo Bolsonaro ficou alto demais. Para todos.

José Casado é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 24.09.19.

O caminho do meio é o maior

Por Gaudêncio Torquato

As tendências parecem fortes: a polarização entre direita e esquerda, mais precisamente, entre os polos extremos do arco ideológico, não será atenuada. Ao contrário, a probabilidade é que se expanda sob a hipótese de que é do alto interesse do bolsonarismo manter a chama acesa como forma de manter permanente mobilização de exércitos simpatizantes do capitão.

No contraponto, os enclaves oposicionistas, divididos entre partidos, tentarão integrar suas forças e apostar numa grande frente de combate à escalada direitista no país.

A incógnita gira em torno da liderança capaz de organizar articulação dessa amplitude, havendo quem aposte no nome de Luiz Inácio, hoje preso, mas caminhando para eventual liberação, que até pode ser a prisão domiciliar, situação, ao que se sabe, rejeitada pelo ícone petista.

Lula tem dito que só aceita a liberdade se ela vir com o figurino completo, ou seja, sem adereços para incomodá-lo, caso de uma tornozeleira eletrônica. Ademais, há dúvidas se ele, solto, continuaria a usufruir direitos políticos. A interpretação vigente é a de que o ex-presidente, mesmo libertado, só poderia ser candidato ao completar 89 anos. Mas teria condição legal para liderar uma frente oposicionista?

Enquanto seus advogados lutam por sua liberdade e regate dos direitos políticos, os sinais no horizonte apontam para um jogo recíproco de interesses. Bolsonaro gostaria de ver Lula como alvo preferencial - sob o argumento de que ele é um demônio capaz de vestir o país de vermelho –, enquanto o ex-metalúrgico gostaria de mirar nesse capitão que defende a ditadura, faz loas a torturadores, ameaçando fazer o país regredir aos idos de chumbo.

Ocorre que a política, como água, caminha sinuosa entre as reentrâncias das pedras. Não depende apenas da vontade de seus comandantes. Depende de fatores como satisfação, social, segurança coletiva, sensação de que as coisas estão melhorando. E, que fique claro, a política navega ao sabor das circunstâncias.

Analisemos essa última hipótese. Podemos projetar a continuidade do discurso polarizado entre direita e esquerda, o bolsonarismo e seus contrários. Logo, é possível aduzir que amplos segmentos sociais - particularmente habitantes do meio da pirâmide - não suportarão conviver por muito tempo com lengalenga raivosa, tiroteios recíprocos, como se o país fosse puxado por um cabo de guerra.

Mais cedo ou mais tarde, a saturação da artilharia expressiva chegará ao pensamento racional, afastando milhões de brasileiros dos conjuntos emotivos que se esgoelam. Conhecendo um pouco as motivações que mexem com a índole nacional, pode-se enxergar o início de um processo de esgotamento do discurso sem eira nem beira, apenas focado no ataque recíproco.

A partir dessa óbvia constatação, continua-se a aduzir que não haverá clima para guerras violentas, ataques suicidas, ressurreição da ditadura, como alguns preferem. Os contingentes do meio da pirâmide, como o agrupamento de profissionais liberais, enxergarão a melhor maneira de atravessar o cabo das tormentas: as águas mais calmas que correm no meio do oceano.

A imagem é a de um mar se abrindo para dar passagem aos núcleos racionais, ordeiros, perfilados sob a bandeira do crescimento e dispostos a escolher seus dirigentes entre aqueles que encarnem a ordem, a harmonia, o aperfeiçoamento institucional.

Dito isto, emerge nos horizontes sociais o florescimento de um gigantesco corredor central, onde partidos políticos, organizações não governamentais, associações de todos os tipos e suas lideranças, se darão as mãos em torno de um projeto de união nacional.

Chegar-se-á facilmente à hipótese de que a salvação do país não sairá dos extremos do arco ideológico, mas dos protagonistas do meio. Novos figurantes se mostrarão, com ideias, propostas e visões. Os radicalismos serão naturalmente eliminados ou, em alguns casos, reduzidos a dimensões bem menores e até previsíveis no bojo de uma democracia.

Em suma, sairemos do apartheid social para ingressar num espaço de convivência e ouvir um discurso menos conflituoso. A imagem é utópica? É possível. Mas nossa índole não se acostuma com a beligerância que consome energias e dispersa esforços.

2022 está longe. Veremos, ainda, nuvens pesadas sobre algumas Nações. A vitória de Trump em novembro de 2020 não é mais uma certeza. E se a recessão pegar de chofre os EUA, sentiremos por aqui os reflexos. Demos tempo ao tempo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato. Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Pense um pouco

Por J.R.Guzzo

Previsões sobre o que vai acontecer amanhã sempre ficam melhores quando são feitas depois de amanhã. O que temos na vida real é o hoje, só isso — e o grande problema é chegar a alguma conclusão coerente sobre o que está realmente acontecendo hoje. Há uma sugestão honesta para resolver isso; infelizmente, ela dá trabalho, exige esforço mental e não pode ser encontrada no Google. Como não há o mais remoto acordo sobre o dia de hoje — as coisas estão melhores que ontem, ou nunca estiveram tão horríveis? —, a única ferramenta disponível para ter alguma ideia decente das coisas é pensar. E pensar, como se sabe, é uma das atividades humanas mais odiadas neste país, sobretudo por aqueles que imaginam saber o que estão falando.

No caso, pensar significa olhar com um pouco mais de atenção para onde o Brasil está indo. No fundo, é isso o que importa. O país vai estar melhor daqui a três anos? Depende das decisões que estão sendo tomadas agora. Se você está construindo a cada dia 1 quilômetro de estrada, por exemplo, daqui a 100 dias terá 100 quilômetros de estrada construídos. Não pode ser de outro jeito. Há uma única coisa que importa nisso: se aquele 1 quilômetro por dia está sendo construído mesmo. Se estiver, a realidade do país estará sendo mudada para melhor. Se não estiver, a realidade continuará a mesma. O resto é conversa inútil de sociólogo-politólogo-­intelectuólogo. E então: para onde estamos indo, com base nos fatos que se podem verificar hoje?

É certo, para começar, que há oito meses não se rouba por atacado no governo federal, coisa que jamais ocorreu, na memória de qualquer brasileiro vivo. Não há a mais remota denúncia de nada de errado por aí, apesar da vontade imensa dos adversários do governo de denunciar tudo. Pode haver daqui a meia hora — mas por enquanto não houve. É bobagem ignorar isso, ou achar que não faz diferença — é claro que faz uma tremenda diferença. Também não há dúvida sobre uma realidade raramente mencionada: o ministro da Economia é Paulo Guedes, e Paulo Guedes é o primeiro capitalista de verdade a chefiar a economia brasileira desde Roberto Campos, há mais de cinquenta anos. Guedes é artigo genuíno: não tem compromisso nenhum com a “economia de Estado” e a sua burocracia estúpida, sabe que não pode haver progresso duradouro no Brasil sem o máximo de liberdade econômica e está convencido de que a única função útil de um governo neste mundo é tornar mais cômoda a vida das pessoas. É igualmente óbvio que isso vai mudar o país nos próximos três anos.

É um fato que haverá uma reforma tributária — e, qualquer que ela seja, as coisas não vão ficar como estão, nem a situação atual dos impostos no Brasil vai piorar, pois isso é praticamente uma impossibilidade científica. Não há nenhum motivo concreto para alguém acreditar que o Brasil passará os próximos anos sem fazer privatizações, como passou os treze anos da era Lula-Dilma. Também é uma realidade concreta que não falta capital para ser investido no processo brasileiro de privatização já em andamento: estima-se que existam no exterior, neste momento, entre 15 trilhões e 17 trilhões de dólares aplicados a juros negativos. É possível que nenhum centavo venha para cá? Possível é — mas aí seria preciso demonstrar qual a lógica de uma coisa dessas. Também não há falta do que privatizar. O governo brasileiro é o maior proprietário de imóveis do mundo; boa parte do que tem pode ir para o mercado. O Brasil tem 72 000 torres de telefonia; a China tem 1 milhão. A razão sugere que há alguma coisa a fazer nessa área — ou em saneamento, já que 100 milhões de brasileiros não dispõem hoje de esgotos, por falta de investimento.


A Petrobras tem 12 000 funcionários a menos do que no fim do governo Dilma; mais 10 000 serão dispensados no futuro próximo, e a empresa estará enfim preparada para a privatização — depois de já ter vendido, sem barulho algum, sua distribuidora BR e suas operações de gás, e posto à venda oito de suas refinarias. Um dos resultados disso, pela lógica, será a redução geral dos custos da energia no país. Por causa do monopólio estatal, o preço do metro cúbico de gás no Brasil é de 12 dólares, em comparação com 7,70 na Europa e 2,80 nos Estados Unidos. Sem Petrobras, sem monopólio e com concorrência, por que essa aberração iria continuar? Houve uma queda superior a 20% no número de homicídios neste primeiro semestre, segundo o site G1. A inflação está perto de zero. Os juros são os mais baixos dos últimos trinta anos. A construção cresce.

São fatos. Pense neles, para pensar no amanhã.

José Roberto Guzzo é Jornalista e Escritor. Este foi publicado foi publicado originalmente em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652

A nossa Amazônia

Por Antonio Hamilton Martins Mourão

No contexto de uma campanha internacional movida contra o Brasil, ressurgiu a antiga pretensão de relativizar, ou mesmo neutralizar, a soberania brasileira sobre a parte da Região Amazônica que nos cabe, a nossa Amazônia.

Acusações de maus-tratos a indígenas, uso indevido do solo, desflorestamento descontrolado e inação governamental perante queimadas sazonais compõem o leque da infâmia despejada sobre o País, a que se juntou a nota diplomática do governo francês ofensiva ao presidente da República e aos brasileiros.

O Brasil não mente. E tampouco seu presidente, seu governo e suas instituições.

Em primeiro lugar, porque o Brasil tem a seu lado a História, sobre a qual, em consideração à memória nacional, nos devemos debruçar.

A Amazônia que nos pertence foi conquistada no tempo em que só a ação intimorata garantia direitos. Depois da expulsão dos franceses de São Luís (1615) e da fundação do forte do Presépio, a futura Belém (1616), corsários ingleses e holandeses foram combatidos e expulsos da foz do Rio Amazonas. A União Ibérica (1580-1640) ofereceu oportunidade para que bandeirantes e exploradores rompessem as Tordesilhas, um desenvolvimento histórico que tem na primeira navegação da foz à nascente do Amazonas (1637), façanha cometida por Pedro Teixeira, seu marco definitivo.

Foram fortalezas que prefiguraram a ocupação e a delimitação da Amazônia brasileira. Foi a catequese que aglutinou os indígenas sob a proteção da cruz, favorecendo a miscigenação que fomentou o povoamento da região. A fundação do forte de São José do Rio Negro, na confluência do Rio Negro com o Solimões (1663), reuniu em seu entorno índios barés, baniuas e passés, dando origem à povoação que viria a se transformar na cidade de Manaus.

Após a Independência, em nossa primeira legislatura, quando a pretensão estrangeira de impor um monopólio de navegação no Amazonas ousou atribuir aos brasileiros a pecha de ignorantes, coube ao Senado devolvê-la, lembrando que cabia aos brasileiros a primazia dos descobrimentos sobre a região, conforme atestado pelo próprio Humbolt.

E no início do século 20, enquanto a Europa se dilacerava nos campos de batalha da 1.ª Guerra Mundial, um dos nossos maiores soldados, Cândido Mariano da Silva Rondon, completava sua campanha sertanista (1915-1919) em Mato Grosso levantando cartograficamente os vales do Araguaia e as cabeceiras do Xingu; descobrindo minas de sulfeto de ferro, ouro, diamantes, manganês, gipsita, ferro e mica; e o mais importante, fazendo amigas as nações nhambiquara, barbados, quepi-quepi-uats, pauatês, tacuatés, ipoti-uats, urumis, ariquemes e urupás, que ao final da ciclópica empreitada apontavam para as armas dos exploradores e diziam: “Enombô, paranã! Dorokói pendehê” (“joguem no rio, a guerra acabou”).

Epopeia consumada, mas por concluir, na qual o Brasil jamais prescindiu da cooperação das nações condôminas desse patrimônio reunidas no Pacto Amazônico, que comemorou, no ano passado, 40 anos de sua assinatura, o qual, pela sua finalidade e sua clareza de propósitos, dispensa protagonismos de última hora movidos por interesses inconfessáveis. Se existisse algum protagonismo nacional na Amazônia sul-americana compartilhada por nove países, algo que o Brasil nunca avocou, ele seria, pelos números, pela presença e pela História, brasileiro.

Se a História dá razão ao Brasil em qualquer debate sobre a Amazônia, cabe colocar, em segundo lugar, que ele tem a seu favor os fatos.

Não há país que combine legislação ambiental, produtividade agropecuária, segurança alimentar e preservação dos biomas com mais eficiência, eficácia e efetividade do que o Brasil. Não bastassem todos os dados legais e científicos, sobejamente conhecidos, que comprovam essa assertiva, tomem-se não as palavras, mas os atos do governo brasileiro no sentido de combater queimadas e apurar crimes de toda natureza praticados na Região Amazônica, o que desqualifica as desproporcionais acusações e agressões desferidas contra o País por causa do meio ambiente.

E se não bastassem a História e os fatos, cabe apontar o que se revela nas declarações oficiais, nas confidências mal escondidas, nas entrelinhas dos comunicados e no ecorradicalismo incensado pela imprensa: a velha ambição disfarçada por filantropia de fachada.

É inacreditável que, num momento em que guerras comerciais e protecionismos turvam o horizonte mundial, e são publicamente condenados em todas as instâncias internacionais responsáveis, líderes de países europeus venham, individualmente ou em conjunto, tomar iniciativas contra o livre-comércio, procurando sabotar acordos históricos como o firmado entre a União Europeia e o Mercosul e entre este e os países da Associação Europeia de Livre-Comércio (Efta) – Noruega, Suíça, Islândia e Liechtenstein.

Como é inacreditável que pessoas que até há pouco tempo ocupavam cargos públicos se esqueçam de uma das linhas mestras da diplomacia do Brasil, a de preservar a liberdade de interpretar a realidade do País e de encontrar soluções brasileiras para os problemas brasileiros, conforme colocadas pelo chanceler Horácio Lafer em 1959.

Nada disso prevalecerá. O Brasil não tem tempo a perder. Com trabalho, coragem e determinação ele encontrará o seu destino de grandeza: ser a mais pujante e próspera democracia liberal do Hemisfério Sul.

E por qualquer perspectiva, da preservação ao desenvolvimento, da defesa à segurança, da História ao Direito, a nossa Amazônia continuará a ser brasileira. E nada exprime melhor isso do que a canção do internacionalmente reconhecido Centro de Instrução de Guerra na Selva: À Amazônia inconquistável o nosso preito,/ A nossa vida por tua integridade/ A nossa luta pela força do direito/ Com o direito da força por validade.

Antonio Hamilton Martins Mourão é Vice Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 28.08.19.

Entre intenções e dura realidade

Por Zeina Latif

O ministro Paulo Guedes tem uma capacidade de comunicação pouco vista em chefes da pasta da Economia, o que é importante ingrediente para o debate público avançar. Merece reconhecimento o esforço para explicar temas como privatizações e redução da rigidez orçamentária, e os alertas quanto à necessidade de rever políticas públicas, como o Sistema S e a Zona Franca de Manaus.

Em entrevista ao Valor Econômico, o ministro desabafou: “O Estado brasileiro quebrou”. Melhor mesmo deixar isso claro. É essencial a sociedade compreender que o esforço fiscal comprometerá parte relevante da agenda econômica nos próximos anos. A visão de que a reforma da Previdência resolveria o rombo fiscal é equivocada. A agenda de eliminação de renúncias tributárias e corte de despesas obrigatórias mal começou e não há espaço para redução de impostos.

Guedes (felizmente) reafirma o compromisso com a manutenção da regra do teto – gastos públicos não podem crescer além da taxa de inflação – e demoveu o presidente Bolsonaro da ideia de flexibilizá-la. Uma vez que os gastos com a Previdência, que representam mais da metade do orçamento federal, vão continuar crescendo mais do que a inflação nos próximos anos, mais ações para corte de despesas serão necessárias.

O ministro pretende reduzir a rigidez orçamentária, em linha com os alertas do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, que aponta que 70% do orçamento da União está vinculado ao comportamento da inflação. Isso requer reformas constitucionais, e o governo começou a tocar no assunto ao sinalizar com uma reforma administrativa que, entre outras iniciativas, deverá prever o fim da estabilidade para a maioria dos servidores públicos entrantes. Esse é, sem dúvida, um tema essencial para o debate público.

Sinaliza-se também um programa de privatizações e a venda de ativos como forma de reduzir a dívida pública. No primeiro caso, não é algo para já, até porque depende de aprovação do Congresso. Além disso, não houve detalhamento do que será feito, mas apenas uma lista de intenções. Apesar de Guedes falar em fast-track para privatizações, cada empresa precisará ser analisada isoladamente, por suas especificidades. Há empresas que deveriam ser simplesmente liquidadas. Importante mencionar que a decisão de privatizar deve visar em primeiro lugar a busca de eficiência da economia, ainda que riscos fiscais devam ser considerados.

No segundo caso, de concessões e venda de ativos, a agenda já está em curso, mas o impacto fiscal é limitado às concessões de infraestrutura, que geraram receita de R$ 5 bilhões no acumulado do ano até julho. A venda de ativos das empresas estatais, como o controle da BR Distribuidora pela Petrobrás, não gera receita à União.

Nem tudo são flores. A promessa de zerar o déficit público este ano não vingou e, a julgar pelas últimas notícias, pressões de curto prazo estão também moldando as decisões do ministério. Discute-se artifícios para facilitar o cumprimento da regra do teto, como o fim da multa extra de 10% sobre o FGTS, o que liberaria R$ 5,6 bilhões de gastos, a transferência de R$ 9,3 bilhões do salário-educação para Estados e municípios e a desvinculação de R$ 12 bilhões de fundos específicos do governo federal. Como aponta o analista da XP Victor Scalet, estas não são medidas de ajuste fiscal.

Também chama atenção a demora na definição da reforma tributária, como para sepultar uma nova CPMF. Mais uma fonte de incertezas no quadro econômico. É inevitável a leitura de que se busca algum aumento da carga tributária.

O quadro dramático das contas públicas exige ações concretas com divulgação das propostas de reformas. A da Previdência será em breve página virada e não se pode perder a “janela reformista” do primeiro ano de governo. E não basta enviar as matérias ao Congresso. São necessários o diálogo e a negociação entre vencedores e perdedores de cada reforma proposta. Hora de colocar a bola no chão.

Zeina Latif é Economista-Chefe da XP Investimentos.

O novo PGR pode ser bom para uma nova PGR

Por Mário Rosa

Primeiro, vamos logo desmontando um mito desses tempos de adrenalina, mistificação e polarizações: o que há de absolutamente em comum na indicação de Aristides Junqueira, Sepúlveda Pertence, Rodrigo Janot, Raquel Dodge e o agora novo escolhido Augusto Aras para exercer a chefia da Procuradoria Geral da República?

A única coisa que realmente importa: sua indicação, como a de todos os demais, obedeceu rigorosamente o preceito constitucional de que esse ato é prerrogativa do presidente da República.

Todas as firulas e modismos anteriores –listas tríplices, nomes notáveis, como os de Junqueira e Pertence– são filigranas de cada época. Que são bons argumentos e critérios excelentes de escolhas, reconheça-se. Mas não estão estipulados em lei. E a lei, como se sabe, a lei, ah a lei… a lei é para todos.

No caso específico de Aras, subprocurador-geral e, portanto, no último degrau funcional da carreira, sua escolha se assemelha aos demais e repete o protocolo de obedecer o critério de antiguidade na seleção para a chefia do Ministério Público Federal.

Se já houve um tempo, no início da redemocratização, que os ocupantes dessa instituição fundamental precisavam se valer da força de sua biografia para conferir à escolha a legitimidade fundamental para assumir tamanha responsabilidade, num certo momento os governos de esquerda criaram uma sindicalização indevida do Ministério Público, trazendo para dentro do poder que deve representar os interesses da sociedade a lógica do chão de fábrica.

O ex-presidente Lula passou a patrocinar uma singular eleição sindical para o Ministério Público, sob o pomposo nome de “lista tríplice”. De acordo com esse artificio, os nomes teriam maior credibilidade (?) por serem eleitos diretamente por seus pares, como se o MP fosse –em última análise– uma espécie de sindicato e o procurador-geral da República (e não procurador-geral do MP, frise-se) fosse um líder da categoria e não uma função prevista na Constituição federal.

Pois só por isso, e apenas por isso, a indicação de Augusto Aras é um enorme e positivo passo à frente da História. Não porque a lista tríplice fosse errada. Não porque a escolha de “medalhões” fosse errada, tampouco. Mas simplesmente porque é importante na trajetória de uma instituição e da democracia o arejamento, a flexibilidade, a experimentação de soluções –desde que em obediência absoluta à Constituição, como é o caso.

O fato é que a escolha de alguém como Augusto Aras –e falo alguém, não falo do próprio– aponta uma questão fundamental para o debate de nossos tempos: a Procuradoria Geral da República não pertence aos membros do ministério público. Pertence à sociedade. E a lógica da eleição interna, no futuro, tanto poderá ser lembrada como um avanço perdido como uma excrescência superada. Eis a beleza da democracia. Por isso, experimentar algo diferente só permitirá o aperfeiçoamento, pelo contrate e pela constatação dos resultados positivos ou negativos que advirão.

Já houve dias em que o Brasil sabia de cor o nome do ministro do Exército e a composição do alto comando da Força era uma equação política crucial para inferir os rumos da nação. E isso era péssimo.

Isso era sinal de que o país atravessava os anos de chumbo. Hoje, na democracia, ninguém sabe o nome dos principais generais em posição de comando. E isso é ótimo. Sinal de que nossas liberdades não estão em crise. Já houve dias outros em que o presidente do Banco Central e as principais autoridades econômicas do país eram celebridades nacionalmente conhecidas. E isso era péssimo.

Sinal de que o país estava afundado na crise da hiperinflação e da falência da dívida externa. Hoje, tirando o ministro da Economia, os tecnocratas não tem rosto nem fama. E isso é ótimo. Sinal de que vivemos um período de estabilidade econômica, inflação sob controle e o risco de “pacotes” miraculosos e fadados ao fracasso são coisas do passado.

Pois terá havido também um tempo em que o procurador-geral da República era tão ou mais famoso que o presidente da nação, mais popular que o representante eleito por todos os brasileiros, mais admirado que todos os políticos, de todos os partidos, de todos os Estados.

E esse terá sido um tempo trágico e não um tempo de ventura. A glória terá sido pessoal e efêmera, mas o país terá estado em meio ao pântano ou talvez no abismo de suas instituições. Terá sido a longa noite do Estado policial, do terror, da insegurança jurídica. E um dos símbolos disso terá sido quando todos sabiam o nome do carrasco-mor, do verdugo real, do inquisidor geral, fosse qual fosse o nome que se dava na ocasião.

Que o novo procurador assuma o último degrau de sua carreira e que cumpra a mais importante missão dessa instituição crucial da democracia, que é o Ministério Público: servir e defender a sociedade. Combater a corrupção política é uma prioridade, é fundamental, é importantíssimo. Mas a sociedade, e seus problemas, são muito maiores, mais amplos e complexos do que isso. Não se trata de combater ou não à corrupção. Trata-se de não combater apenas à corrupção. Pois a agenda de problemas do país não é um samba de uma nota só.

Mário Rosa, Jornalista e Escritor, é Consultor de Crises. Este artigo foi publicado originalmente na revista eletrônica Poder360, edição de 06.09.19.

A reforma esquecida

Por Luís Eduardo Assis

O governo federal está na pindaíba. A penúria pode ser vista na recente decisão de suspender o cafezinho e apagar as luzes dos ministérios às 18 horas. À primeira vista, essa lisura pode parecer um sinal de probidade no trato do dinheiro público, mas é muito mais que isso. Reflete, antes, o descuido de não encaminhar uma ampla reforma administrativa que equacione a difícil questão dos gastos obrigatórios. A necessidade de controlar o crescimento da dívida pública sem que tenha sido feita uma revisão nestes gastos forçou uma brutal contração dos investimentos, o que compromete a retomada da economia. O investimento federal em 2019 deve ser algo como 35% menor que no ano passado e pouco mais que um terço do que tivemos em 2010. O secretário do Tesouro já avisou que o que está ruim vai piorar e que em 2020 teremos nova queda.

Ao mesmo tempo, a despesa com pessoal segue firme. Na década, os gastos com este item, incluindo aposentadorias e encargos, saltou de R$ 175,5 bilhões para R$ 304,6 bilhões no ano passado. Considerando todas as situações de vínculo, isso significou que cada um do 1,274 milhão de servidores nos custou, com encargos e benefícios, quase R$ 20 mil por mês. Pelos dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil gasta, em todas as esferas do setor público, 13,1% do Produto Interno Bruto (PIB), ante 4,8% na Colômbia, 6,1% no Peru, 7,5% na Alemanha e 9,2% nos EUA. A má notícia é que este desembolso deve ainda aumentar no curto prazo, mesmo considerando que o governo vai tentar, na marra, não incluir no Orçamento de 2020 um reajuste para o funcionalismo. A boa notícia é que as distorções são tantas que há uma enorme oportunidade para instituir melhorias significativas.

É monótona platitude dizer que o mundo muda cada vez mais rapidamente. Mas no mundo do funcionalismo as coisas ainda se parecem com a vida modorrenta descrita no livro de Cyro dos Anjos de 1937, O Amanuense Belmiro, diário de um burocrata escrevente dado a veleidades líricas. Trabalho recente da consultoria Oliver Wyman, assinado por Ana C. Abrão, Armínio Fraga Neto e Carlos Ari Sundfeld (Reforma do RH do Governo Federal), traça um bom quadro das idiossincrasias que assolam o serviço público. Criamos um sistema disfuncional em que a meritocracia é coibida e trabalhar com afinco passou a ser, para todos os efeitos práticos, apenas uma questão de foro íntimo. Ganharíamos todos se uma reforma administrativa pudesse endereçar alguns temas mais urgentes.

A primeira tarefa é simplificar. Só no governo federal existem mais de 300 carreiras. É urgente rever a estrutura organizacional e reduzir o número de carreiras, alinhando o salário inicial ao do setor privado (muitas vezes, ele é maior). Além disso, é necessário fomentar a meritocracia. A exemplo do que ocorre no setor privado, é fundamental que cada servidor seja avaliado por meio de uma curva de distribuição forçada e que essa avaliação seja o critério básico para a dispensa de funcionários com baixo desempenho. É comum em grandes empresas que 5% dos colaboradores de mais baixo desempenho sejam dispensados todos os anos. Pode ser draconiano para o setor público, mas é preciso caminhar na direção de premiar os mais qualificados – pagando gratificações e acabando com promoções automáticas – e penalizar a pequena minoria que não se empenha. Países como Holanda e Reino Unido têm políticas claras que permitem a demissão por baixo desempenho.

Não seria, certamente, fácil de aprovar no Congresso uma reforma administrativa com essas características. Mas é preciso avançar na consecução de medidas que tragam o serviço público para o século 21. Sem isso, cortar o cafezinho é apenas inútil sovinice.

Luis Eduardo Assis, Economista, foi Diretor de Política Monetária do Banco Central. É Professor de Economia da USP e FGV-SP. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.09.19.

Somos atacados pelo governo

Por Luís Fernando Veríssimo

Nós estamos sendo atacados. Quem somos nós? É difícil nos definir. Temos tipos diferentes. Somos de raças e idades diferentes. Nossos cortes de cabelo, formatos do nariz, formatos de orelhas, gostos musicais, manias, interesses, preocupações, alergias, saldos bancários e cheiros corporais são variados, e torcemos por times diferentes. Mas, no momento, o que deve nos unir é o fato, agora inegável, de que estamos sendo violentamente atacados pelo nosso próprio governo. Temos que esquecer nossas diferenças e nos concentrarmos nesta verdade nua e crua: que isto não é um país, isto é uma zona de guerra. E eles atiraram primeiro.

Cada novo pronunciamento do Bolsonaro é um morteiro que nos atinge. Cada nomeação esdrúxula para o governo mais estranho da nossa História parece ter sido feita especificamente para nos obrigar a usar a palavra “esdrúxula”, o que inibe qualquer reação mais séria. Temos o governo civil mais militar que o país já conheceu, para nos confundir. Aguarda-se a explicação que nosso futuro embaixador em Washington dará para isso, e em que língua.

A campanha mais intensa deles contra nós é a que está começando agora, com um ataque frontal à inteligência brasileira. Verbas para a pesquisa estão sendo cortadas — às gargalhadas, não duvido — e isso é apenas o começo de cortes que virão em todo o sistema educacional, o primeiro sacrificado onde quer que “o mercado” derrote o bom senso. Para ganhar esta guerra pelos cérebros da nação, um lado tem a força e a tesoura; e o outro tem só a indignação estéril — mas que pode surpreender. Os estudantes estão voltando às ruas.

Pelas pesquisas de avaliação, a popularidade do Bolsonaro e a aprovação do seu governo estão caindo. Pesquisas de opinião são enganosas, podem refletir o entusiasmo de um momento e nada mais. De qualquer maneira, nós, mesmo desorganizados, estamos começando a nos mobilizar.

Luís Fernando Veríssimo é escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 05.09.19

No mesmo tom

Por Merval Pereira

A polarização política continua em plena atividade, e as redes sociais trabalham no limite da irresponsabilidade de ambos os lados. Na mesma semana em que surgiu a reprodução de diálogos de alguns procuradores da Lava-Jato em Curitiba ironizando o luto do ex-presidente Lula na morte de dona Marisa, o próprio Lula deu uma entrevista à BBC Brasil colocando em dúvida que o presidente Bolsonaro tenha realmente sido esfaqueado na campanha eleitoral de 2018.

Para os petistas, os comentários dos procuradores denotam ódio a Lula. Para os bolsonaristas, o comentário de Lula sobre a facada em Bolsonaro demonstra que, para o ex-presidente, nada é mais importante que a disputa política.
Os comentários de alguns dos procuradores são lamentáveis, e a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann foi ao Twitter para condenar, afirmando dramaticamente: "Diálogos de procuradores mostram a pior face do ser humano".

Pode ser exagerado, mas sem dúvida a ironia numa hora dessas é descabida, e revela frieza diante de tragédias pessoais que pode chocar almas mais sensíveis como a da presidente do PT.

Tanto que a procuradora Jerusa Viecili, a mais irônica nos diálogos, pediu desculpas ao ex-presidente Lula por ter feito chacota de seu luto: "Errei. E minha consciência me leva a fazer o correto: pedir desculpas à pessoa diretamente afetada, o ex-presidente Lula", disse, também através do Twitter.

As conversas revelam que diversos procuradores fizeram pouco caso das mortes não apenas de dona Marisa, mas do neto Arthur, e do irmão Vavá. "Querem que fique pro enterro?", perguntou, ironicamente, Jerusa, diante da notícia da morte de Marisa. "Preparem para a nova novela ida ao velório", escreveu no Telegram, sobre a morte do neto Arthur.

O Procurador Januário Paludo comenta, se referindo a dona Marisa: “Estão eliminando as testemunhas”. Já Laura Tessler adverte: “Quem for fazer a próxima audiência de Lula, é bom que vá com uma dose extra de paciência para a sessão de vitimização”, escreveu.

Mas há também comentários pertinentes, sobre o temor de que Lula no enterro do irmão causaria muita confusão política. Ou rebatendo a afirmação de Lula de que dona Marisa havia morrido devido ao que a Lava-Jato fez com ela e com os filhos.
Quando o ex-presidente comentou no enterro do neto que ele havia sofrido bullying na escola por ser um Lula da Silva, a procuradora Monique Cheker criticou: “Fez discurso político (travestido de despedida) em pleno enterro do neto, gastos públicos altíssimos para o translado, reclamação do policial que fez a escolta… vão vendo”.

Eduardo Bolsonaro já havia se manifestado nas redes sociais sobre a ida de Lula ao enterro do neto no mesmo tom: :"Lula é preso comum e deveria estar num presídio comum.

Quando o parente de outro preso morrer ele também será escoltado pela PF para o enterro? Absurdo até se cogitar isso, só deixa o larápio em voga posando de coitado".

Os diálogos revelam também que vários procuradores chamaram a atenção dos que estavam ironizando a dor do ex-presidente Lula. Carlos Fernando dos Santos comenta: Vamos ficar em silêncio. Ninguém ganha falando mal de quem morre ou da família. O procurador Luis Carlos Welter adverte: Ninguém pode medir a dor de quem perde a pessoa amada. Fazendo esse discurso político, ele mesmo vai se prejudicar.

Mas, o que dizer do ex-presidente Lula, cujos comentários não foram conseguidos clandestinamente, mas em entrevista à BBC Brasil? Ele insistiu na suspeita, alimentada desde então por petistas de diversos calibres, de que a facada em Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, foi uma fraude.

“Não, eu não disse que não tinha tomado, eu disse que não acreditava (que Bolsonaro levou uma facada). Mas você garante a mim o direito da dúvida? Veja, eu tenho suspeitas (de que não ocorreu). Agora, se aconteceu, aconteceu.”.

Ele continuou: “Eu falei com muita tranquilidade desde o dia que aconteceu aquilo, porque não vi sangue. O Bolsonaro deu uma entrevista assim que chegou no hospital. Ele foi internado, já tinha um senador fazendo uma entrevista.”.

Os petistas como Paulo Pimenta reproduziram em suas redes sociais um documentário apócrifo intitulado “A Facada no Mito”, postado no YouTube. Sem apresentar nenhuma evidência, o documentário destaca o que seriam “dúvidas” ridículas sobre o atentado.

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.08.19.

Bolsonaro não aprende

Por Gustavo Bebianno

Conceito comum entre filósofos e líderes espiritualistas é que nós, seres humanos, evoluímos de duas maneiras, ou pela dor ou pelo amor. Raramente, o processo se dá pela segunda via. A verdade é que somos todos encrenqueiros. Sempre achamos que temos razão em tudo, e é bem fácil criticar, julgar, condenar e atacar. Esse é o nosso perfil médio. Quando melhoramos, episodicamente, é pela via da dor, causada pelas consequências das próprias atitudes. Somos todos “farinha do mesmo saco”, com variações mínimas.

Não obstante, chamam a atenção alguns casos, que se destacam pelo excesso de beligerância, intensidade e constância. O presidente da República parece ser um ponto fora da curva, aparentemente incapaz de aprender por qualquer das duas vias.

Enquanto deputado federal, não filtrava palavras. Usava dessa estratégia para ganhar algum destaque no ambiente que não lhe dava a menor importância. Naquele tempo, as consequências de suas atitudes eram suportadas por ele próprio, exclusivamente. No famigerado atrito com a deputada Maria do Rosário, para mencionar apenas um exemplo, acabou oferecendo à rival, de mão beijada, a munição que a ela interessava. Virou réu em duas ações judiciais, uma cível e outra criminal. De brinde, ainda foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República numa terceira ação. Mais do que isso, angariou contra si a antipatia de milhões de mulheres, as críticas severas da imprensa, mais o rótulo internacional de misógino. Conviveu, durante meses, com a angústia de sofrer condenação criminal antes do pleito e enfrentar teses inimigas de uma suposta inelegibilidade. Parece que nada disso serviu de lição!

Hoje, não é mais um deputado do baixo clero, mas o líder máximo da nação, a oitava economia do planeta. As consequências de seus pronunciamentos impõem a todos os brasileiros uma fatura a pagar. O discurso e a postura do presidente constroem, ou destroem, a imagem do nosso país. A Amazônia desperta diferentes interesses internacionais. Dependemos de habilidade diplomática para manter a cobiça estrangeira à distância e a nossa soberania respeitada. Não será com ofensas, beligerâncias, fanfarronice, bravatas e falta de educação que defenderemos nossos interesses.

Ao atacar os líderes europeus, de forma impulsiva, o presidente compromete a imagem do país e coloca em risco nossos interesses comerciais. Ironias de cunho pessoal não só dificultam as relações, como despertam o rancor entre os chefes de Estado — o que, obviamente, não resultará em nada positivo para o Brasil. Pela evidente incapacidade de aprender, pela dor ou pelo amor, o presidente vem se incumbindo de destruir todas as relações diplomáticas tradicionalmente cultivadas pelo Brasil. Assim como fez com a deputada, insiste em oferecer, gratuita e desnecessariamente, toda a munição que interessa àqueles que têm os olhos voltados para a Amazônia. Muito em breve, o preço será pago por todos nós.

O mínimo que se espera do presidente da República é que tenha discernimento e compreenda o seu atual papel. E, nesse caso particular, que entenda que a Europa não é igual a Maria do Rosário.

Gustavo Bebianno é advogado e foi secretário-geral da Presidência da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 31.08.19.

Popularidade em queda

A nova pesquisa CNT/MDA, divulgada ontem, mostrou que mais da metade dos brasileiros – 54% – desaprova o desempenho pessoal de Jair Bolsonaro. É a primeira vez que esse patamar majoritariamente negativo em relação à atuação do presidente da República é atingido.

A avaliação do governo tampouco é alvissareira. Dobrou o porcentual dos que o classificam como “ruim ou péssimo”, saltando de 19% em fevereiro para 39% em agosto. No início do ano, de acordo com a mesma pesquisa, 39% dos entrevistados consideravam o governo “ótimo ou bom”. O número de satisfeitos caiu para 29% em agosto.

Esses resultados são particularmente preocupantes porque Jair Bolsonaro tem apenas oito meses de mandato e a curva histórica das pesquisas realizadas no período lhe é bastante desfavorável. Em outras palavras: à medida que o tempo passa e o presidente é instado a agir diante das mais variadas questões que lhe são postas, cada vez mais brasileiros parecem se dar conta de que à frente do governo está alguém inapto para apresentar as soluções para os graves problemas nacionais.

Para qualquer governante minimamente sensato e cioso de seu papel numa República democrática, pesquisas de opinião deveriam servir de base para uma reflexão honesta sobre os rumos do governo. Eventuais percepções negativas da sociedade deveriam ser tomadas como sinais de alerta. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro não tem se notabilizado por ser um arguto leitor dos vários sinais emitidos pela população. Ao que parece, optou por fechar-se em suas próprias convicções e preconceitos e fazer deles o critério único para seu processo de tomada de decisão. Não surpreende, portanto, que a opinião pública reaja negativamente.

Se a pesquisa CNT/MDA diz muito sobre o desempenho do presidente Jair Bolsonaro, diz igualmente sobre a abissal distância que separa os fatos e a sua percepção pela sociedade. O levantamento mostrou que 31,3% dos respondentes avaliam que a melhor área de atuação do governo é o combate à corrupção. Ora, se há uma área hoje em que o presidente Jair Bolsonaro tem sido criticado com bastante ênfase é justamente o combate à corrupção. O presidente tem sido pessoalmente acusado de usar o poder do qual está revestido para interferir na administração da Polícia Federal, da Receita Federal e de órgãos de controle como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), agora vinculado ao Banco Central.

Por trás de todas essas ações do governo – particularmente do presidente Jair Bolsonaro – estaria uma tentativa de dificultar a apuração de supostos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros ligados às atividades de milícias no Rio de Janeiro que teriam sido cometidos por membros de seu círculo mais próximo, incluindo membros de sua família.

É curioso ainda que 8% dos respondentes avaliem como uma das melhores práticas do atual governo a política de privatizações, já que são escassas as estatais privatizadas na gestão de Jair Bolsonaro. Ao que parece, intenções ou meros comunicados são tomados como fatos consumados por uma parcela da população. Isso é um perigo porque quanto menor a capacidade da sociedade de discernir o que são fatos – e seus desdobramentos na vida prática da Nação – e o que são versões, mais sujeita à manipulação ela estará.

É improvável que o presidente Jair Bolsonaro receba o resultado da pesquisa CNT/MDA como um sinal de alerta sobre sua forma de governar. Um sinal de que fora eleito não apenas pelo nicho de apoiadores mais aguerridos de sua agenda extremada, mas por uma parcela mais ampla de brasileiros há muito descontentes com os desmandos dos governos do PT e ávidos por um governo que resgatasse os valores republicanos perdidos em nossa história recente. É de esperar que Jair Bolsonaro continue a crer que sua eleição representou tamanha ruptura com a “velha ordem” que a ele é dado governar desconsiderando o conjunto de brasileiros, que nem sempre endossam suas ideias. Resta saber por quanto tempo durará a ilusão.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 27.08.19

Fim da era doente

Por Eliane Cantanhêde

Quem brinca com fogo pode se queimar, além de incendiar a Amazônia. O presidente Jair Bolsonaro tanto fez que acabou atraindo a ira do mundo desenvolvido, jogando o Brasil no centro do debate no G7, provocando protestos mundo afora e ressuscitando os panelaços da era Dilma Rousseff.

Nessa toada, ele pode virar o maior cabo eleitoral da volta das esquerdas, inclusive do combalido PT e até do presidiário Lula. Vocês já notaram que o pau está quebrando, mas o
PT e as esquerdas adotaram um silêncio ensurdecedor?

Bolsonaro defende torturador, desmatador, trabalho infantil, mas não há reação à altura da oposição, que, contundida, decidiu jogar parada, assim: deixa o cara se queimar sozinho que a gente volta depois.

No discurso do governo, só as queimadas na Amazônia, que simplesmente acontecem todos os anos, desde sempre, não justificam protestos, panelaços, críticas da mídia e de cientistas e reações de França, Alemanha, Noruega, Finlândia. Pois o governo tem razão.

Essas reações não são pontuais, só pelas queimadas. Elas são uma resposta a um ataque incessante do governo e do próprio Bolsonaro aos parceiros, ao meio ambiente, aos órgãos do setor e aos ambientalistas. Isso vem desde a campanha, com a história de tirar o Brasil do Acordo de Paris.

Já empossado, Bolsonaro deu pelo menos dois sinais verdes para crimes ambientais. O Ibama não só cancelou a multa contra ele por pesca ilegal em área protegida como puniu o fiscal que aplicara a lei. E, em 13 de abril, o presidente gravou um vídeo pela internet proibindo a destruição de tratores e caminhões usados para desmatar ilegalmente a Amazônia.

Pela lei, eles podem ser destruídos, sim, se houver perigo contra agentes do Estado e se o custo para a guarda e transporte for excessivo, o que ocorre, claro, em locais distantes, em meio a florestas fechadas. Logo, o presidente mandou descumprir a lei ao vivo e em cores. Como isso soou? Como uma licença para o crime. Os desmatadores devem ter comemorado à beça.

O mesmo ocorre nessa guerra com a França. Sair do acordo de Paris e esfregar uma live cortando o cabelo após alegar “problemas de agenda” para não receber o chanceler francês é um gesto infantil e uma agressão grosseira a um país amigo. E o que dizer do indicado para embaixador em Washington xingando o presidente francês de “idiota”? Para que serve esse nível de beligerância? O que o Brasil ganha com isso?

Com as labaredas torrando a Amazônia e a imagem do Brasil no mundo, finalmente Bolsonaro mudou o tom, foi à televisão sem agredir nada e ninguém e tomou duas providências: uma, interna, chamando o Exército para apagar o incêndio; a outra, externa, telefonando para Trump, o espanhol Pedro Sánchez e o japonês Shinzo Abe, além de distribuir uma cartilha sobre a política ambiental para os diplomatas brasileiros.

A crise, porém, continua e ensina uma lição a Bolsonaro: ele não tem o direito de expor o Brasil assim, falando o que quer, fazendo o que quer, na hora que quer, abrindo mil e uma frentes de guerra e causando desgastes inúteis que não apenas prejudicam ele próprio e seu governo, mas o País.

O PT e as esquerdas assistem à tragédia e à sucessão de erros e retrocessos comendo pipoca, se divertindo, curtindo a ideia de que “quem ri por último ri melhor” e aguardando o aviso (ou ameaça?) do ministro Gilmar Mendes de que “devemos ao Lula um julgamento justo”. Já imaginaram? Uma nova guerra entre lulismo e bolsonarismo? Pobre Brasil.

A única forma de conter essa polarização insana é explorar os espaços de centro e trabalhar alternativas, diante da avaliação, ou constatação, de que o que está aí não é o começo de uma nova era saudável, mas o fim de uma era doente.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado em O Estado de São Paulo, edição de 25.08.19

Carga excessiva

A carga tributária recorde de 2018, registrada num período em que a atividade econômica continuou pífia - repetindo o fraco desempenho do ano anterior - e as dificuldades financeiras do setor público continuaram a se agravar, é mais um retrato de um país em profunda crise. Nem mesmo tendo retirado proporcionalmente mais recursos das empresas e das famílias, reduzindo-lhes a capacidade de investir e de consumir e, assim, prolongando as dificuldades econômicas do País, os três níveis de governo conseguiram melhorar suas finanças a ponto de indicar o equilíbrio entre receitas e despesas num prazo tolerável para os contribuintes e para os cidadãos em geral. É urgente a reformulação da estrutura de despesas do setor público, a começar pelos gastos com o sistema de Previdência Social, bem como a melhoria do sistema tributário, para, no mínimo, retirar dele as inconsistências que o tornam “uma loucura”, como o definiu o economista Kleber de Castro.

Castro e José Roberto Afonso são os autores do estudo que aponta para a carga tributária recorde de 35,07% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano passado. Como mostrou reportagem do Estado, no ano passado o setor público arrecadou R$ 2,39 trilhões. Isso significa que, em média, cada habitante do País recolheu o equivalente a R$ 11.494 em tributos. São números que não deixam dúvidas quanto ao peso excessivo sobre os contribuintes que o custo do Estado brasileiro já alcançou e, por isso, precisa ser reduzido.

O aumento da carga tributária em 1,33 ponto porcentual, observado no ano passado, é o maior em 17 anos. É um aumento especialmente penoso para os contribuintes, não apenas por suas dimensões, mas por ter ocorrido num momento de baixo desempenho da atividade econômica (no ano passado, o PIB brasileiro cresceu apenas 1,1%, repetindo o resultado de 2017).

Depois da crise mundial de 2008, a evolução da carga tributária mudou em relação aos anos anteriores. O crescimento constante que se observara até então parecia ter sido interrompido. Houve, nos anos seguintes, oscilações no peso do tributo sobre a economia, mas a comparação entre os dados de 2008 e 2015 mostra um encolhimento da carga tributária equivalente a 1,92% do PIB. Entre 2016 e 2018, porém, houve aumento de 2,23% do PIB.

José Roberto Afonso observou que o aumento verificado em 2016 e 2017 decorreu de fatores não usuais, como o programa de repatriamento de recursos do exterior e as receitas de royalties do petróleo, impulsionadas pela alta do produto no mercado internacional. Já em 2018, a esses fatores extraordinários se somou o aumento da arrecadação de tributos tradicionais como Imposto de Renda, PIS-Cofins e ICMS. É um aumento não comum em períodos de baixa atividade econômica. Na interpretação dos autores do estudo, houve uma combinação de recuperação de alguns setores, aumento de alíquotas e fiscalização mais efetiva.

Com essa realidade tributária, “não dá para ser competitivo”, diz o empresário Ramiro Sanches Palma, do setor têxtil. “Os impostos altos praticamente inviabilizam a evolução dos negócios”, completa Ricardo Gracia, do setor de calçados. No entanto, embora desejável e necessária, a redução da carga tributária tornaria ainda mais difícil o enfrentamento da grave crise fiscal que envolve os três níveis de governo e cujo agravamento poderia afetar ainda mais a economia.

A diminuição do peso dos tributos sobre a economia, sem piorar a já grave situação das finanças públicas, depende da mudança profunda da estrutura de despesas do setor público. Há, como lembrou Afonso, um dos responsáveis pela elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma grande participação de despesas obrigatórias no Orçamento. Qualquer que seja o volume de arrecadação, o governo, em seu vários níveis, é obrigado a arcar com essas despesas, entre as quais estão a folha de pagamento do funcionalismo, os benefícios previdenciários, os programas sociais, os gastos mínimos definidos pela legislação para o custeio de saúde e educação. Boa parte dessas despesas tem crescimento contínuo. É, obviamente, uma situação que o contribuinte não pode continuar sustentando indefinidamente.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 23.08.19

Nova chance a Moro

Por Merval Pereira

A crise com a Polícia Federal, provocada pela tentativa do presidente Jair Bolsonaro de intervir na corporação indicando o novo chefe do Rio de Janeiro, proporcionou ao ministro da Justiça Sérgio Moro retomar, ainda que em parte, o protagonismo que havia perdido na crise das conversas hackeadas, e também no “quem manda sou eu”, rompante do presidente em relação à PF.

Moro e o diretor-geral da Polícia Federal, Mauricio Valeixo mostraram a Bolsonaro que a atitude provocou uma verdadeira comoção na instituição, sendo possível um pedido coletivo de demissão dos chefes operacionais. Bolsonaro voltou atrás, e Moro ganhou a confiança da Polícia Federal.

Entra agora na negociação dos vetos à nova lei de abuso de autoridade com mais poder de convencimento, pois muitos dos que pede são em defesa dos policiais e agentes de segurança pública, os mais atingidos pelas novas normas. Moro terá também um teste decisivo, pois a lei de abuso de autoridade interfere diretamente no combate à corrupção, bandeira que o identifica. Já Bolsonaro está entre manter seu apoio a Moro, e consequentemente, ao combate à corrupção, ou desagradar parte do Congresso.

Para o Ministério da Justiça, "é possível identificar diversos elementos que podem, mesmo sem intenção, inviabilizar tanto a atividade jurisdicional, do Ministério Público (MP) e da polícia, quanto as investigações que lhe precedem". Um veto que parece ser consensual é a proibição de algemar presos se não oferecerem resistência.

Moro e os policiais consideram que a decisão deve ser tomada pelos agentes em serviço, de acordo com o que acontecer no momento da prisão. No entanto, lembra o criminalista João Bernardo Kapen, já existe uma súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal proibindo as algemas.

Sobre o artigo 9º, que prevê detenção de 1 a 4 anos para o magistrado que decretar prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, a análise do Ministério da Justiça e Segurança Pública diz o seguinte: “O artigo em questão elimina a discricionariedade do magistrado na exegese normativa. A limitação ao exercício da função jurisdicional é acentuada em razão de o dispositivo não trazer balizas para o que se poderá considerar desconformidade com as hipóteses legais.”

O criminalista João Bernardo Kappen ressalta que essas “hipóteses legais”, longe de serem subjetivas, estão estabelecidas no Código de Processo Penal ou na lei que define as hipóteses cabíveis de prisão temporária.

Para ele, a nova lei não impedirá prisões preventivas, que só podem ser decretadas se estiverem presentes os requisitos legais previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Além do mais, a nova lei reproduz quase que integralmente o que está previsto no artigo 4º da lei atual.

Já é crime de abuso de autoridade, portanto, decretar prisão sem as formalidades legais, e isso não vem impedindo que prisões preventivas – largamente usadas na Operação Lava-Jato – sejam decretadas.

Moro defende o veto ao artigo 26, que classifica como crime "induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das hipóteses previstas em lei". Para o ministro, o "dispositivo em questão criminaliza o flagrante preparado".

O ministro também sugere o veto ao artigo 30, que prevê até quatro anos de prisão para quem abrir uma investigação sem o devido fundamento, ou seja "proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente". Para Moro, esta regra é desnecessária, "uma vez que é abarcado, em grande parte, pelo crime de denunciação caluniosa já existente no artigo 339 do Código Penal".

Os procuradores de Curitiba consideram que esse tipo penal é um absurdo na parte em que fala “sem justa causa fundamentada”, o que é um conceito vago e indeterminado. No Brasil sequer se discute a qual nível probatório que a expressão “justa causa” corresponde. João Bernardo Kappen considera que as críticas têm razão de ser, pois o termo “justa causa”, sem a devida explicação, é muito vago.

O ministro ainda considera exagerado o artigo 34, que estabelece detenção de até seis meses para autoridade judicial que "deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento". Para Moro, a "hipótese cria uma responsabilidade extremamente ampla ao agente público que é impossível de ser cumprida na prática.

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 18.08.19.

A presença do fígado na vida pública

Por Bolívar Lamounier

Por mais que nos desagrade reconhecê-lo, a raiva é um fator comum na vida pública de muitos países. Suas causas variam – crises econômicas, racismo, imigração, corrupção, autoridades irresponsáveis –, mas o fato é inegável. O fígado é o órgão que processa e transforma tais fatores em pura estupidez.

Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século 19.

Na presente década, a política raivosa espraiou-se por numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet, cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos, vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.

Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou “supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato. Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.

Gravações liberadas poucos anos atrás evidenciaram o linguajar rombudamente racista do presidente Richard Nixon e de Ronald Reagan, este à época governador da Califórnia. Mas Donald Trump deixa os dois no chinelo. Dou um exemplo. No dia 19 de abril de 1989, um grupo de adolescentes pretos e latinos foram acusados de estuprar uma mulher branca que praticava jogging no Central Park. Rápido no gatilho, Trump só precisou de 12 dias para publicar nos quatro principais jornais de Nova York um anúncio no qual afirmava que era mister “fazê-los sofrer” e levá-los à cadeira elétrica. E persistiu em sua campanha até que, em 1990, os rapazes foram condenados por diversas ofensas violentas, inclusive tentativa de homicídio. Finalmente, em 2002, a Justiça inocentou-os com base na prova de DNA e na confissão do verdadeiro estuprador.

Claro, o “fator fígado” não é só racismo. E racismo não é só um sentimento de hostilidade motivado por características físicas das minorias contra as quais se volta. Tem em seu bojo uma insegurança quase inexplicável, uma necessidade profunda de pertencimento a um grupo, e por um anseio de “mesmismo” (sameness, em inglês) e, reciprocamente, por uma rejeição de toda diferença e toda diversidade.

As determinantes do mal-estar global desta década são, como se vê, variadas. E a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade brasileira, como devemos tentar compreendê-la? A reflexão tem de começar pelo bolsonarismo, no qual, porém, não vejo um componente racista. O ponto de partida do bolsonarismo foi a reação suscitada pelas lambanças (recessão, corrupção) perpetradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante três décadas, associada à inapetência política dos partidos de centro. Ele ganhou corpo com o estilo ferrabrás do personagem Jair Bolsonaro, uma macheza em parte genuína e em parte calculada para manter a fidelidade de seu rebanho. Mas decorreu também de fatores objetivos, muito mais sérios e relevantes, entre os quais é imperativo destacar a propensão da casta patrimonialista que habita Brasília a tratar as esferas pública e privada como uma coisa só, privatizando benefícios e socializando prejuízos. É a “velha política” do linguajar bolsonarista, sem esquecer, porém, que o clã Bolsonaro vê o nepotismo como a coisa mais normal do mundo e que o próprio Supremo Tribunal Federal, que não é um órgão “político” no sentido banal do termo, tem se notabilizado por comportamentos igualmente desprovidos de substância republicana.

Sabemos todos que o controle do Estado pela casta patrimonialista é a causa principal de nossa estagnação econômica e de suas sequelas, entre as quais o vertiginoso aumento da violência. Se Bolsonaro der por encerrada a campanha eleitoral e compreender os requisitos do cargo que ocupa, contendo suas inclinações figadais, é possível que o ministro Sergio Moro consiga minorar os males decorrentes da criminalidade e Paulo Guedes possa robustecer a recuperação econômica, cujos sinais são por enquanto tênues. Se não, oremos.

Bolívar Lamounier , cientista político, sócio da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 16.08.19.

Abusos de interpretação

Por Merval Pereira

O projeto de abuso de autoridade aprovado na Câmara, depois de passar pelo Senado, tem como base uma proposta de 2009 feita por membros do STF e do Congresso, apresentado pelo então deputado federal Raul Jungmann, como decorrência do Pacto de Estado por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos Chefes de então dos três Poderes: presidente Lula, presidente do Senado José Sarney, presidente da Câmara Michel Temer e presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.

A Lava-Jato ainda não existia, e a motivação era apenas conter abusos de autoridades. Mas a operação de resgate da proposta, dez anos depois, parece motivada pela vontade de tentar impor limites às investigações, e defender corporativamente os congressistas de maneira geral. O ex-ministro Raul Jungman, no entanto, não vê na legislação aprovada nenhuma alteração profunda que fuja das normas já existentes.

O projeto da Câmara aperfeiçoou o do Senado, e manteve o Ministério Público como receptor das denúncias contra autoridades. Mas ele retira o caráter de proteção geral de cidadãos, transformando-se em instrumento de bloqueio da ação dos órgãos de investigação e acusação, além de constranger juízes.

Levantamento do Ministério Público mostra que, dos 33 crimes tipificados na nova lei, que foi relatada pelo senador Roberto Requião, apenas três têm destinação de parlamentares e seis de autoridades e outros agentes públicos. Juízes são alcançados por 20 deles, promotores e procuradores por 21, agentes policiais e profissionais de segurança pública em 28.

O problema é que criminalização constrange a capacidade de interpretar as leis, e foi nessa interpretação que a Lava-Jato e o mensalão avançaram. Limitar a interpretação, usar a letra fria da lei, ou criminalizar as ações de combate à corrupção deixará temerosos investigadores, juízes, promotores e procuradores, com receio de retaliação, o que na verdade já está acontecendo.

Auditores da Receita Federal foram afastados pelo STF por alegadamente estarem investigando membros do tribunal em “desvio de função”, e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que o ministro Sérgio Moro considerava um instrumento fundamental no combate à corrupção e lavagem de dinheiro, saiu do Ministério da Justiça e foi transferido para o Banco Central.

Praticamente todos os itens da Lei de abuso de autoridade aprovada agora na Câmara já estão no Código Penal ou na lei de abuso de autoridade existente, mas muitos não como crimes. Os procuradores de Curitiba alegam, por exemplo, que o artigo 9º prevê como crime a decretação de prisão em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. O parágrafo coloca que é crime também indeferir habeas corpus “quando manifestamente cabível”.

Consideram os procuradores que o tipo penal estabelece um desincentivo pessoal para a prisão de réus poderosos, e é muito amplo, dependendo de interpretação. O criminalista João Bernardo Kappen lembra, porém, que a lei nova diz expressamente no §2º, do artigo 1º que a divergência na interpretação da lei não é crime de abuso de autoridade.

Uma série de ações do Congresso e do STF está em andamento para controlar essas investigações. Não foi acaso que um projeto de lei para restringir acordos de delação premiada de 2017, de autoria do ex-deputado petista Wadih Damous, foi desengavetado agora. Ele “impõe como condição para a homologação judicial da colaboração premiada a circunstância do acusado ou indiciado estar respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor”.

A nova lei de abuso de autoridade vai na mesma direção no artigo 13, inciso III, que diz que é crime “constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiros.

Na opinião do criminalista João Bernardo Kappen, esse artigo não precisaria nem existir, porque a autoridade que constrange o preso mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro estará praticando crimes previstos no Código Penal – crime de ameaça do artigo 147 do CP, crime lesão corporal do artigo 129 do CP e crime de constrangimento ilegal do artigo 156 do CP. (Amanhã: as novas regras)

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 17.08.19.

Davi contra Golias

Por Joaci Góes

Antes mesmo de ouvir o que tinham a dizer o promotor Deltan Dallagnol e o Ministro Sérgio Moro a respeito do vazamento ilegal da conversa que tiveram, ao tempo em que o atual Ministro era o juiz da Vara Federal em Curitiba, responsável pelos julgamentos dos crimes da Operação Lava Jato, subiu muito significativamente o bom julgamento que se fazia sobre o excelente trabalho de ambos.

De cara, de pronto e de logo, demonstraram, particularmente o destemido e admirado juiz Sérgio Moro, que neles não cabe o anátema de Dante, na Divina Comédia, segundo o qual ”Os lugares mais quentes do inferno estão reservados para aqueles que em momentos de grande crise moral, preferem assumir uma posição de neutralidade”.

Dedicados a denunciar, combater e punir, do modo corajoso como o fizeram, os que organizaram a maior quadrilha para assaltar um país, que se conhece na história do Mundo, Moro e Dallagnol se alçaram muito alto no conceito da sociedade contemporânea, dentro e fora do Brasil, tendo em vista, sobretudo, o gigantismo da estrutura criminosa que defrontam, caracterizando uma versão moderna da desigualdade bíblica de forças entre o colosso filisteu Golias, de três metros de altura, e o jovem e pacífico pastor de ovelhas, o judeu Davi.

Golias confiava em seu tamanho, sua força descomunal e experiência guerreira, apoiado, ainda, por um formidável exército; Davi depositava suas esperanças no valor moral de sua causa e em sua fé em Deus.

Os Davis da boa causa da decência brasileira, da qual tanto dependemos para continuar aspirando ideais de paz e prosperidade, têm como única aliada a majoritária opinião pública nacional, permanentemente acossada por ponderáveis parcelas de uma mídia viciada, por membros de tribunais superiores comprometidos com o crime e por um Congresso sensivelmente prostituído.

Os que se escandalizam com conversas de conteúdo rotineiro entre juízes e as partes são da mesma natureza dos que se insurgiram contra a instalação do Tribunal de Nuremberg, após a Segunda Guerra, amparados no argumento de que a impunidade dos criminosos de guerra estava assegurada pela inexistência de lei que tipificasse e cominasse pena ao genocídio.
Esses mesmos padecentes do distúrbio conhecido como dissonância cognitiva, que os impede de ver que Lula chefiou a mais criminosa quadrilha de que se tem conhecimento na História, comparecem às ruas para vociferar o “Lula livre”, como mecanismo para pôr fim à Operação Lava Jato.

Mais uma vez, o tiro saiu pela culatra! Aturdida, num primeiro instante, pelo que seria a denúncia do fim do mundo, a opinião pública, aí incluída a patuléia ignara, em relativamente pouco tempo, depois de ouvir à saciedade a repetição dos diálogos “condenáveis”, recobrou sua higidez intelectiva e concluiu, tempestivamente, que só um juiz calhorda ou patologicamente burocrático pode manter-se equidistante quando o crime campeia, ostensivamente, contra a honra, a justiça, a miséria e a caridade, lassidão moral que Anatole France vergastou ao denunciar os que obedecem a uma isonomia “que pune o pobre por dormir num banco da praça pública, pedir esmolas ou furtar um pão”.

Para as pessoas inteligentes, o Ministro Luís Roberto Barroso defendeu a legitimidade dos diálogos entre o Procurador e o Juiz, ao sustentar, entre outros motivos, que ninguém pode desconhecer a pilhagem de dimensões inéditas e sesquipedais que desembocou na Lava Jato.

No fundo, o que quer a hipocrisia militante, a serviço da impunidade de crimes que têm o mesmo potencial lesivo do genocídio, é equiparar o juiz a uma máquina destituída de sensibilidade, obrigado a tratar igualmente a desiguais, em conflito com o necessário caráter dialético da desigualdade, como preconizado por Aristóteles e Rui Barbosa.

Nessa visão grotesca, esposada por conveniências ilegítimas, o juiz deveria agir como o padre do clássico filme A tortura do silêncio, de Alfred Hitchcock, que, acusado de um homicídio que não praticara, sente-se impedido de apontar o verdadeiro culpado que lhe confessara o crime.

De um modo geral, as entidades se manifestaram adequadamente sobre como tratar a questão, de momentosidade construída de má-fé, com a exceção da OAB nacional, cuja direção milita, despudoradamente, para abortar a Operação Lava Jato, descomprometida com o seu dever de agir com isenção, liberta dos compromissos de advogada dos que assaltaram o País.

Como estamos mal representados, nós os advogados!

A marcha batida contra o crime organizado para sangrar o Erário não tem volta. Os que lutam para acabar com a Lava Jato flertam com o risco de uma ruptura institucional. Depois não venham chorar sobre o leite derramado.

Joaci Góes é escritor, presidente da Academia de Letras da Bahia, ex-diretor da Tribuna da Bahia. Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia, edição de 13.06.19

E se não?

Por Eliane Cantanhêde

A crença, certeza ou argumento de que a economia salva o governo Jair Bolsonaro recebeu duas pancadas doídas. Uma, de fora: a derrota do liberal Maurício Macri para o kirchnerismo nas prévias da Argentina. Outra, doméstica: o risco de nova recessão.
>
Na guerra ambiental, generais e Bolsonaro substituem o vermelho pelo verde

Macri é aliado fundamental para consolidar tanto a debacle do chavismo na América do Sul quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia, tão festejado, mas tão ameaçado. Mas é improvável que ele consiga tirar 15 pontos de diferença para a chapa populista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner até outubro. Sem Macri na Argentina e com Mario Abdo Benitez em risco no Paraguai, o acordo evapora. Para piorar, Bolsonaro apostou todas as fichas na chapa errada do país vizinho.

E o que dizer da prévia do Banco Central para o PIB do segundo trimestre no Brasil? Desde a eleição de Bolsonaro, a previsão de crescimento vem minguando. Agora, 0,2% de queda no primeiro trimestre e 0,13% no segundo apontam para recessão técnica. É grave para a economia, é gravíssimo para o discurso político do governo.

Bolsonaro vai mal, mas as expectativas econômicas iam bem. O presidente fala uma barbaridade atrás da outra, mas os ministros, por obrigação, e os aliados, por falta de alternativa, têm a mesma resposta na ponta da língua: deixa o homem falar, o importante é Paulo Guedes salvar a economia e recuperar o crescimento. E se não?


Juros e inflação baixos, reformas caminhando, acordo com UE, negociações com os EUA e liberação do FGTS são um alívio para bolsonaristas desencantados, mas apegados às promessas e sonhos da economia. Esquecem-se de que o Estado está engessado pelo déficit crônico, o setor privado continua assustado, as famílias mantêm-se endividadas, a ociosidade do comércio e da indústria persiste, os empregos não aparecem.

A recuperação deve vir, mas vai ser lenta, demorada. Enquanto Bolsonaro faz das suas, mas a crença na economia resiste, tudo bem. Mas desilusão com ele e com a economia ao mesmo tempo pode ser explosiva.

Bolsonaro cria atritos desnecessários e “relativiza” tortura, impessoalidade, armas, radares, cadeirinhas, dados científicos, desmatamento, reservas indígenas. Mas “ele é assim mesmo”. Enquanto isso, o ministro da Economia tem uma boa equipe, o da Infraestrutura aprofunda o plano de privatizações de Temer, a da Agricultura trabalha com pragmatismo, o de Minas e Energia avança. E o Congresso faz sua parte, aprovando a reforma da Previdência sem desidratá-la.

O problema é se Bolsonaro insistir em falar e fazer o que vem na sua cachola, chocando o País e o mundo, e a economia continuar patinando até passar a andar de marcha a ré. A confluência gera pessimismo e preocupação.

Para tornar esse cenário ainda mais turvo, Bolsonaro passou meses provocando a China e ameaçando históricas relações amigáveis com o mundo árabe. Quando se imaginou que recolhia as baterias viu-se que apenas desviava o alvo para Alemanha, França, Noruega, Suécia, deixando o Brasil numa situação desconfortável. Eles têm o discurso do “bem”, o Brasil assume a posição do “mal” justamente no meio ambiente. E é isso que fica na imprensa internacional.

Bolsonaro afugenta quem votou nele “só contra o PT”, reabre feridas da ditadura militar, escanteia o Coaf em favor da própria família e abre flancos na área externa – Europa, Ásia e Oriente Médio. Assim, ele se apega a dois fatores para manter o poder: sucesso na economia e inexistência de um opositor real.

Pelo andar da carruagem, só falta surgir o opositor, o antibolsonaro. Não da esquerda, mas da centro-direita. João Dória é mais afoito, mas não é o único. Quanto mais Bolsonaro balançar, mais Dórias vão surgir.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Sempre foi Jornalista. E para todo o sempre será sempre Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 14.08.19.

Lição de casa

Por Demétrio Magnoli

Os profetas convencionais erraram na previsão de que a guerra comercial entre EUA e China se dissolveria numa paz administrada por sucessivos acordos parciais. A China dobrou a aposta, permitindo a flutuação do renminbi, uma paliçada destinada a proteger sua economia num confronto de longa duração. Frustrado, Donald Trump rumina a ideia explosiva de intervir nos mercados de moedas, deflagrando uma guerra cambial. Nesse cenário, Jair Bolsonaro precisaria fazer a lição de casa, revisitando a política externa conduzida por Getúlio Vargas na década de 1930.

Naquele intervalo dramático, entre o crash de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, EUA e Alemanha protagonizaram uma disputa global por esferas de influência econômica. Vargas definiu como sua prioridade o programa de arrancada industrial e a política externa apropriada: uma estratégia de equidistância ativa e pragmática. O Brasil navegaria a tormenta incrementando o intercâmbio com as duas grandes potências.

Assinamos Acordos de Compensação com a Alemanha, em 1934 e 1936, que facilitavam o comércio direto, sem uso de divisas internacionais. As importações de bens alemães saltaram de 9% do total, em 1932, para 25%, em 1938. Paralelamente, em 1935, o Brasil firmou um Tratado de Comércio com os EUA, o que suavizou a redução no fluxo de intercâmbios bilaterais. Os produtos americanos, que representavam 30% das nossas importações em 1932, ainda contribuíam com 24% do total em 1938.

O jogo pendular propiciou contratos de modernização militar com a Krupp e outras empresas alemãs, numa ponta, e concessões americanas no pagamento da dívida brasileira, além de ajuda técnica para a criação da Sumoc, berço de nosso Banco Central, na outra. A equidistância perdurou até o início da guerra, quando Vargas inclinou-se aos poucos para o campo dos Aliados. O lance final foi a barganha da declaração de guerra ao Eixo em troca do financiamento americano para a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional.

A Grande Depressão devastou o sistema de comércio internacional e destruiu o padrão ouro, delineando a paisagem tumultuosa na qual desenrolou-se a disputa geopolítica entre EUA e Alemanha. Hoje, nove décadas depois, a rivalidade entre EUA, a potência estabelecida, e China, a potência ascendente, ameaça romper o intrincado tecido da economia globalizada.

Sob o neonacionalismo trumpiano, os EUA estão muito perto de ceder à tentação da guerra cambial. No horizonte de curto prazo, a estratégia de manipulação do dólar provocaria violentas ondas especulativas nos mercados financeiros, sem reduzir o déficit geral na conta-corrente dos EUA. Num prazo mais longo, a aventura abalaria o reinado do dólar, fragmentando a economia mundial em esferas regionais concorrentes. A tormenta que se avizinha atingirá um Brasil singularmente despreparado para enfrentá-la.

Vargas equilibrou-se entre as pressões conflitantes de seus principais assessores, utilizando-as como ferramentas táticas. Oswaldo Aranha, um convicto pan-americanista que defendia o alinhamento com os EUA, serviu como ministro da Fazenda, embaixador em Washington e, na conclusão do jogo pendular, ministro do Exterior. Já os generais Góes Monteiro e Gaspar Dutra, que se sucederam no Ministério da Guerra, operavam pela aproximação com a Alemanha. Mão firme no timão, Vargas identificou o interesse nacional, colocando-o acima da polêmica que crepitava no núcleo do governo.

Nada indica que Bolsonaro se debruçará sobre a lição de casa. Vargas tinha, ao seu lado, lideranças com luz própria que descortinavam alternativas políticas contrastantes. Bolsonaro, pelo contrário, cerca-se de figuras deploráveis, bufões imersos numa lagoa de misticismo ideológico, que rezam todos os dias no altar do “Deus de Trump”. De Ernesto Araújo a Eduardo Bolsonaro, passando por Olavo de Carvalho, os conselheiros do presidente em política externa cantam, em uníssono, o hino da direita nacionalista americana.

Há um preço a pagar quando se fazem escolhas eleitorais apocalípticas. Trump prepara-se para inflacioná-lo.

Demétrio Magnoli é historiador. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 12.08.19.

Bolsonaro e o Caliban

Por Ricardo Rangel

‘A aversão do século XIX pelo Realismo é a ira de Caliban por ver seu rosto no espelho; a aversão do século XIX pelo Romantismo é a ira de Caliban por não ver seu rosto no espelho”, escreveu Oscar Wilde no prefácio a seu romance “O retrato de Dorian Gray”.

O Realismo tentava retratar a realidade tal como ela é; o Romantismo idealizava a realidade; Caliban é uma personagem bestial de “A tempestade”, de Shakespeare. Wilde quer dizer que existe uma parcela tosca da sociedade que sempre odiará a arte, a cultura, a civilização, ou porque estas revelam seus defeitos e insuficiências, ou porque, ao contrário, descortinam um mundo belo e elevado ao qual ela jamais poderia pertencer.

As armas do Caliban contra a civilização são a inveja, o rancor, o ressentimento, o ódio, o preconceito, o anti-intelectualismo, a intolerância, a mentira, a intimidação, a violência. Assim como Próspero, protagonista de “A tempestade”, mantém Caliban cativo para garantir a segurança de sua filha Miranda, a sociedade precisa manter o Caliban sob controle para garantir a segurança da civilização: quando ele se liberta, as consequências são graves.

Exemplos extremos do Caliban são a fase final da Revolução Francesa; os camisas negras na Itália; a SA e a SS na Alemanha; a Guarda Vermelha na China da Revolução Cultural; o Khmer Vermelho no Camboja; os porões das ditaduras militares sul-americanas. A mais perfeita tradução do Caliban está no brado lúgubre, e contraditório, da Falange Espanhola na guerra civil: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!”.

Para se libertar, o Caliban precisa de um ambiente propício, como este que temos hoje no Brasil: devastação econômica; polarização política; frustração, ressentimento e ódio (constantemente alimentados pelos dois lados); a percepção de que o Legislativo é composto de corruptos e o STF é um obstáculo à luta contra a corrupção; deterioração institucional. E um representante do Caliban capaz de galvanizar tudo isso — com o beneplácito de muitos que deveriam temê-lo.

Estamos vendo agressões diárias à imprensa, à academia, à ciência, à arte, à cultura, ao meio ambiente, a países amigos, às minorias, à lei, à lógica, ao bom senso, às boas maneiras — enfim, à democracia e à civilização. Quem ousa discordar é descartado e, se isso não é possível, linchado nas redes. Seria de se esperar que a sociedade— ou, ao menos, sua parcela mais preparada, que compreende a importância da democracia e dos valores ocidentais — reagisse com vigor. Em que pesem os muitos protestos, é assustadora a quantidade de pessoas preparadas que releva, relativiza, minimiza, justifica ou abertamente defende as infâmias de Bolsonaro. Essa complacência se explica pela revolta contra o PT e pelo raciocínio “vamos consertar a economia, o resto a gente vê depois”.

A complacência não se justifica. A revolta contra o PT perdeu o objeto: derrotado na eleição, fora do poder há três anos, com seu chefe e dono preso, o partido está fora da equação. A discussão não é mais sobre se Bolsonaro é melhor do que Haddad, mas sobre se sua conduta é aceitável em uma sociedade democrática.

O “raciocínio” também está errado: para consertar a economia, não é preciso destruir o resto e, dependendo do que for destruído, “consertar depois” pode não ser possível. E, por melhor que seja a equipe econômica, ela não basta. Crescimento sustentável exige investimento em educação, ciência e cultura; respeito ao meio ambiente; segurança jurídica; boas relações exteriores. Exige também investimento privado, coisa difícil em clima permanente de confronto e incerteza. O Caliban não é inimigo apenas da civilização: é inimigo do crescimento econômico, também.

Por fim, vale lembrar àqueles que supõem ser possível controlar o Caliban que a história mostra que ele sempre devora quem o alimenta.

Ricardo Rangel é empresário. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 13.08.19.

Estratégia e momento

Por William Waack

Jair Bolsonaro é um personagem transparente. Assegura que pensa o que diz. Assim, em relação à sequência de frases revoltantes que insiste em pronunciar, não há razão para duvidar quando ele afirma “eu sou assim, não tenho estratégia”.
De fato, aparentemente Bolsonaro deixou o Exército antes de frequentar as aulas de Estado-Maior sobre o que é estratégia. Na acepção clássica, adotada por militares, políticos e empresários, estratégia é a adequação dos meios aos fins levando em consideração tempo e espaço.

Esse ajuste dos meios (sempre finitos) aos fins (às vezes infinitos) funcionou muito bem na vitória eleitoral de 2018. Estava bem delineado o que ele queria (ganhar o pleito), quem era o principal adversário (o lulopetismo), o horizonte de tempo (o calendário eleitoral), qual comportamento tático (conteúdos políticos e estilo) funcionaria, quais recursos estavam ao alcance (redes sociais).

Mas, acima de tudo, o personagem político Bolsonaro atendia exatamente à demanda do eleitorado naquele momento de um ano atrás: alguém que convencesse milhões de indignados de ser capaz de chutar o pau da barraca do “sistema” (político, midiático, econômico). Tinha a seu favor uma onda popular muito maior do que ele – e foi ajudado pelo imponderável (a facada).

Ocorre que governar um país que se deteriora à espera da arrancada para sair da mais profunda recessão da memória viva é outra grandeza na ordem das coisas. Quando diz que não possui estratégia, o transparente Bolsonaro apenas torna evidente, com as próprias palavras, que neste momento não sabe aonde quer chegar – excetuando, talvez, permanecer onde está além de 2022. Portanto, não sabe também como quer chegar.

Mudar o Brasil com Deus acima de todos é um fim infinito, mesmo que louvável. Para alcançá-lo, o comportamento presidencial da xingação, do disparate das declarações, da ofensa a grupos diversos e desprezo pelos postulados (incluindo a articulação política) que o presidente entende como contrários aos fins surge como meio cada vez menos adequado. Bolsonaro tem mesmo razão quando diz que não possui uma estratégia.

Além disso, dois fatores importantes mudaram desde as eleições. O Legislativo e as diversas forças políticas ali representadas têm tido êxito em limitar o poder da caneta Bic do presidente. O ímpeto da Lava Jato – entendido aqui como a capacidade de um grupo organizado de exercer controle externo ao mundo da política – refluiu mesmo considerando a enorme popularidade de Sérgio Moro. A insegurança jurídica e suas consequências políticas permanecem fortes, e fogem ao controle do presidente.

Parece que Bolsonaro não entende assim os dados da realidade, ou acha que vai dobrá-la ao seu gosto. A “política institucionalizada”, por meio de chefes de partidos, legislativos, governadores, grupos corporativistas, interesses econômicos e sociais, está engolindo a falta de estratégia do presidente. A questão é saber até onde o levará o tipo de comportamento que insiste em exibir. Por enquanto, a fragmentação das correntes políticas e a inexistência de uma oposição com credibilidade e respeito tornam muito reduzido o perigo de ser apeado no meio do caminho.

Goste-se disso ou não, o sistema de governo brasileiro sob o qual Bolsonaro opera obriga o presidente a agregar forças políticas e o presidente está obtendo o efeito contrário ao gastar energia política em embates irrelevantes frente aos gigantescos desafios sociais e econômicos que precisa resolver. Estagnação econômica e frustração com o ritmo de mudanças acabarão alterando mais ainda o clima político, que está se degradando para o presidente.

Até surgir, como foi Bolsonaro em 2018, alguém com uma estratégia para o momento.

William Waak é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 01.08.19

Muito acima do tom

Embora muitos críticos não reconheçam, especialmente aqueles mais à esquerda, o governo Jair Bolsonaro apresenta algumas conquistas significativas nestes primeiros sete meses. A aprovação em primeiro turno de uma reforma da Previdência na casa do trilhão de reais, a MP da Liberdade Econômica, uma possibilidade de acordo com a União Europeia e um início de entendimento comercial com os Estados Unidos são, sem dúvida, destaques de uma administração com uma grande ambição: revolucionar a economia brasileira. Goste-se ou não do seu estilo, da sua falta de profundidade em assuntos importantes, o atual presidente concedeu o nihil obstat para que essas transformações saíssem do papel. Vale destacar que essas mudanças, ao lado de uma agenda liberal já em andamento, são fundamentais para colocar o país numa rota de crescimento sustentado.

É lamentável, no entanto, que o presidente não consiga enxergar o potencial destrutivo de suas desastradas declarações para a pavimentação desse caminho. Tais comentários não apenas servem como combustível para seus opositores, mas ajudam a minar apoio também entre aqueles que simpatizam com as ideias do governo. Alguém, por exemplo, acha que todos os deputados nordestinos de direita estão felizes em saber a opinião de Bolsonaro sobre quem nasce na região? Será que a falta de humanidade em abordar a morte do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, não incomodou nenhum de seus eleitores de formação cristã? São perguntas sobre as quais o presidente não reflete antes de disparar sua metralhadora.

Para piorar, a perda do capital político de Bolsonaro e suas consequências econômicas não são o único risco da incontinência verbal do líder máximo da nação. Muitas de suas falas resvalam num comportamento autoritário, sem filtros, que parece desprezar as instituições e os valores democráticos. A cada comentário estapafúrdio, Bolsonaro dá a impressão de testar os limites daquilo que pode ou não pode ser feito na Presidência. Trata-se de uma postura perigosa. A democracia brasileira é relativamente recente e nossas instituições não são tão sólidas quanto as americanas, eventualmente assediadas pela grande inspiração de Bolsonaro, Donald Trump.

Em defesa desse comportamento de Bolsonaro, alguns de seus auxiliares dizem que ele ainda reage como deputado, apoiando interesses do eleitorado que ajudou sua ascensão ao poder. Pois está na hora de o ex-capitão entender que ele agora é o presidente de todos os brasileiros. Que precisa respeitar negros, índios, nordestinos, mulheres, jornalistas, políticos de todas as correntes, o STF, as regras e a Constituição. A quebra permanente do decoro presidencial, assunto de outras quatro capas de VEJA desde sua posse, tumultua o ambiente político, a economia, e pode ser uma ameaça desnecessária à democracia. Insistir nesse tipo de confronto, sendo o porta-voz de um nicho da população, priva o país da figura do líder, o estadista com a missão de conduzir o crescimento da nossa economia, e afasta a discussão daquilo que realmente importa: os benefícios que este governo pode trazer à população brasileira.
----------------------------------------
Durante quatro semanas, a repórter Jennifer Ann Thomas e o fotógrafo Jonne Roriz acompanharam a jornada de refugiados venezuelanos desde o seu país, passando pelos abrigos em Roraima e por voos da FAB, até o recomeço de vida em cidades brasileiras. Entre outros diferenciais, este é o tipo de reportagem que caracteriza a excelência do jornalismo de VEJA — sério, investigativo, analítico e comprometido com a veracidade dos fatos. Leia o relato da dupla nesta edição.

Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646

Ufa! Um gol do Jair

Por Eliane Cantanhêde

Depois de tantas declarações absurdas, posições surpreendentes e bolas fora na política externa, o governo Jair Bolsonaro fez um gol na solução da crise do vizinho Paraguai. O novo acordo de Itaipu era justo, mas o Brasil cedeu e reabriu as negociações por um objetivo maior: a questão política, que neste caso se sobrepõe à questão técnica, econômica.

O Paraguai é um país particularmente aliado, quase dependente do Brasil, e os dois atuais presidentes, Bolsonaro e Mario Abdo Benítez, são não apenas pragmaticamente parceiros, como ideologicamente identificados. Os dois, aliás, vêm da mesma Arma do Exército: são paraquedistas.

Logo, há a aproximação histórica, a questão de oportunidade e vários interesses conjunturais e estratégicos. Além das incontáveis empresas brasileiras que se instalam no Paraguai – graças às condições muito mais camaradas para os negócios – o Paraguai é, nada mais, nada menos, o país que mais cresce na América do Sul nos últimos 15 anos. O Brasil patina e passou por dois anos de recessão, enquanto o vizinho cresce à base de 4,5% ao ano.

Jair Bolsonaro
O presidente da Republica Jair Bolsonaro, durante lançamento do programa Medicos pelo Brasil, no Palacio do Planalto Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO
Para completar, o Mercosul, que acaba de fechar um acordo histórico com a União Europeia, é formado por quatro membros plenos e, em três deles, há obstáculos, reais ou possíveis, para a implementação das medidas.

No Brasil, Bolsonaro não para de criar atritos desnecessários com os europeus, a ponto de desmarcar de última hora a audiência com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drien. Pior: alegou problemas de agenda e na mesma hora gravou um vídeo cortando o cabelo. Na diplomacia, isso é um tapa na cara.

Na Argentina, o presidente Maurício Macri vai enfrentar uma eleição difícil em outubro. E se ele não for eleito e o peronismo voltar? O Uruguai navega com mais facilidade, mas o Paraguai ganhou força e poder de negociação pelo pragmatismo, política econômica bem-sucedida e estabilidade política. Já imaginaram se Benítez passa por um processo de impeachment e cai? Seria uma tragédia para o pequeno país, má notícia para o Mercosul e um tranco nas negociações com a UE.

Com o país crescendo e a demanda de energia obviamente aumentando, os paraguaios simplesmente usam todo o excedente de Itaipu Binacional e ainda abocanham uma parte da cota garantida do Brasil – e com o mesmo preço camarada do excedente. Assim, o Brasil poderia ter batido o pé e exigido seus direitos, mas foi sensível à complexidade envolvida.

O acordo anulado ontem era justo e tanto o Brasil exigiu quanto o Paraguai admitiu, por saber disso. E por que o acordo foi secreto? Porque o governo Benítez cometeu o grave erro de esconder a negociação para tentar fugir da velha pressão de parte da sociedade paraguaia, especialmente da esquerda, que acusa o Brasil de “imperialista” e insiste há décadas que os paraguaios são sempre lesados. Nada mais falso. Não estavam, não estão.

Diante da decisão do Brasil de ceder, da anulação do acordo e da reabertura das negociações, ganham o governo Benítez, Itaipu, o Paraguai, o Brasil, os “brasilguaios”, o Mercosul e a implementação do acordo com a UE. É melhor para todos manter Benítez no governo.

Aqui vai, porém, uma advertência: isso não significa que o Brasil vá ceder em tudo e voltar ao que era. O que foi prometido pelo governo, e será exercitado, é “flexibilidade nas propostas, mas firmeza nos argumentos”. Ou seja, o Brasil cedeu para ajudar Benítez, mas nem por isso abdica de defender seus interesses.

Não seria nada mal se essa postura pragmática e de bom senso se repetisse nas relações com o resto do mundo e, principalmente, nas declarações do presidente Bolsonaro. Mas, aí, já é pedir demais...

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 02.18.19.

A política da raiva

O destampatório de Jair Bolsonaro nos últimos dias – especialmente virulento mesmo para os padrões do presidente – contribui para ampliar o seu isolamento político. Afinal, grande parte do eleitorado que sufragou o nome de Bolsonaro nas urnas no ano passado não o fez para que ele, uma vez na Presidência, passasse seus dias a alimentar violentos antagonismos com diversos setores da sociedade, dificultando consideravelmente a governabilidade. Mesmo entre os políticos que se elegeram na onda do bolsonarismo já há os que procuram manter uma distância prudente do presidente, pois temem ser identificados com a irresponsabilidade que tem caracterizado o comportamento de Bolsonaro.

Se entusiasmam os devotos mais fiéis da seita bolsonarista, as diatribes do presidente colaboram para anuviar ainda mais o sombrio horizonte político e econômico do País. O homem encarregado pelas urnas de dirigir os destinos nacionais choca diariamente a maioria dos brasileiros com declarações absurdas, baseadas em nada além de devaneios e despejadas sem qualquer respeito pelas normas da democracia e mesmo da civilidade. Tal comportamento irrefletido torna imprevisível tudo o que emana do gabinete presidencial. Hoje, sob esse comando irracional, é impossível dizer para onde vai o País.

Não à toa, as forças políticas no Congresso há algum tempo parecem se organizar para fazer avançar as reformas das quais o Brasil depende para evitar o colapso fiscal e ter alguma chance de retomar o crescimento econômico. Para o setor produtivo, o mais importante no momento é que o País reencontre o caminho da recuperação, colocando em segundo plano o destempero do presidente Bolsonaro, por mais infame que seja em algumas ocasiões.

Não é possível conceber, contudo, que um governo possa continuar indefinidamente na dependência dos humores do Congresso e, muito menos, da instabilidade emocional do presidente, que a cada dia se mostra menos preparado para o cargo que exerce. E esse despreparo não se manifesta apenas por sua patente e muitas vezes assumida ignorância a respeito dos principais desafios da administração do País. O maior sinal de que Bolsonaro não é vocacionado para a Presidência da República é sua incapacidade de aceitar os limites institucionais do regime democrático.

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro agiu como se sua vontade pessoal fosse superior à Constituição, assinando decretos e medidas provisórias eivadas de ilegalidades. O presidente parece considerar que sua eleição transformou automaticamente em lei suas promessas de campanha e seus arroubos retóricos, bastando somente traduzi-los em linguagem jurídica.

Os bolsonaristas mais radicais, contudo, acreditam que Bolsonaro foi eleito justamente para questionar os pilares do sistema democrático, que para eles está inteiramente corrompido. Nessa campanha de saneamento nacional vale tudo, inclusive fraudar o passado, como fez recentemente o presidente ao atribuir a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, um dissidente do regime militar, ao grupo de esquerda do qual ele fazia parte, embora o próprio Estado brasileiro admita, em documentos oficiais, que esse dissidente desapareceu depois de ter sido preso pela polícia política.

Para Bolsonaro, contudo, esses documentos são, simplesmente, “balela”. O presidente segue assim o padrão de duvidar de tudo o que contraria sua visão de mundo, mesmo que tenha sido produzido por autoridades de dentro de seu próprio governo ou por especialistas sem qualquer vinculação partidária.

Assim, o presidente Bolsonaro tenta usar sua autoridade de chefe de Estado para transformar em letra morta a base factual da história brasileira, o que tornaria legítima qualquer opinião acerca do passado, mesmo as mais estapafúrdias e aquelas que se prestam a alimentar laivos liberticidas. Esse lamentável episódio não foi apenas um ataque isolado à memória de um dissidente político, mas uma demonstração cabal de que Bolsonaro não se sente constrangido por nenhuma das normas de convivência democrática. Um governo com esse espírito, que não respeita o passado, não anuncia um bom futuro.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 31.07.19

Presidência subversiva

Por Roberto Romano

O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.

“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

A disciplina define a honra do soldado, na ordem e na promoção. Esta última responde à capacidade de um militar para ser movido pela ordem. Em cada ordem obedecida fica nele um espinho. Se é soldado raso, não pode desfazer-se dos espinhos. Para sair desse estado espera a promoção. No plano superior ele se desfaz - nos outros - dos espinhos/ordens. O alto comando é o que menos ordens recebe, mas é submetido à máxima autoridade estatal. É absurdo para o soldado que chega ao posto de general imaginar que suas próprias ordens não serão acatadas. Se o chefe supremo tolera ataques contra generais (mesmo os que deixaram a ativa), a instituição desliza para a indisciplina. Em prazo curto as Forças Armadas sentem que a dissolução da autoridade as leva ao ponto zero. Perde-se o controle do monopólio da força pelo Estado. A subversão vinda de cima cumpre o seu papel desagregador.

No relativo à norma jurídica, o presidente assume atitude subversora. Ao proclamar como seu candidato ao STF um “terrível evangélico”, ele põe abaixo a disciplina republicana. Esta exige dos candidatos aos postos oficiais “os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (Constituição, artigo 37). Em nenhum desses itens lemos “crença religiosa”. Ao optar por um candidato pela sua fé, algo subjetivo, o presidente objetivamente subtrai de todos os não evangélicos o direito de exercer cargos públicos. A subversão em favor de seitas leva os Estados às guerras civis, ao ódio desagregador.

Subversão da ordem pública vem na escolha de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador. Os mandamentos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência são estraçalhados num só golpe. Como as Forças Armadas, o Itamaraty segue a disciplina em ritos e regras de acesso à carreira e à promoção. Quebrado o comando surge a anomia em setor estratégico do Estado. Aristóteles indica a família como um passo na constituição política. Com o presidente do Brasil, a sua família paira sobre o Estado, gerando subversão. Nem o regime Vargas e menos ainda o de 1964 ousaram tal façanha.

No caso dos generais, poucos apoios notamos a eles quando humilhados pelos fiéis do presidente, dirigidos por seu filho vereador. No STF a ordem é agredida em detrimento da cidadania. A proclamação do candidato evangélico foi efetivada em culto religioso no edifício do Legislativo. Uso contrário à lei, próprio de subversivos. No Itamaraty o feito mostra que a disciplina desaparece. Recordemos: foram tão lenientes os senadores de Roma diante dos abusos subversivos de César, que eles foram eliminados sem respeito algum, apesar de suas alvas togas. O mesmo acontece com as nossas togas verde-oliva ou negras.

Para finalizar, o presidente subverte o pacto federativo ao dizer que certos dirigentes de Estado devem ser excluídos dos benefício s a que têm direito. Juízes, militares, governadores, universidades: instituições fundadas na hierarquia e na autoridade. Se quem deve preservar tais valores os corrói, surge o caos. E do caos ninguém retorna.

Roberto Romano, Professor de Universidade de Campinas - UNICAMP, é autor do livro "Razões de Estado e Outros Estados da Razão", (Editora Perspectiva). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.07.19.

O Poder Invisível

Por Gaudêncio Torquato

Levar 39 kg de cocaína na bagagem para o Exterior e, mais, dentro de um avião da frota presidencial, é coisa para deixar perplexo qualquer cidadão. O sargento da Aeronáutica, Manoel Silva Rodrigues, flagrado em Sevilha, na Espanha, onde aguardava a comitiva do presidente Bolsonaro de volta da reunião do G-20, em Osaka, no Japão, pode desvendar o mistério: como a droga usa “mulas” das Forças Armadas para sair do país?

O lamaçal está em todas as partes, até nos santuários considerados sagrados e invioláveis, como deveriam ser o Judiciário e as Forças Armadas. Norberto Bobbio, o filósofo italiano, em seu clássico O Futuro da Democracia, aponta a eliminação do poder invisível como uma das promessas não cumpridas pela democracia.

Esse poder consiste em ações criminosas de grupos que agem nas entranhas da administração pública, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a “peitar” a estrutura formal de mando. Exemplo desse fenômeno é o crime perpetrado dentro do sistema de segurança do próprio presidente da República. Imagine-se o que poderia ocorrer se na equipe houvesse um terrorista, alguém capaz de realizar um atentado mortal.

O fato é que há uma máfia agindo nas sombras da administração, não mapeada pelos órgãos de controle e segurança, como o Gabinete de Segurança Institucional.

Pensemos. Um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, a liberdade de expressão, instrumentos do poder estatuído. Já nos regimes ditatoriais, o Estado pode agasalhar ilícitos e que ferem os direitos dos cidadãos. As democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e a expansão de redes invisíveis de poder.

É assim que no seio das democracias vicejam novas formas de ilegalidade, teias aéticas nas relações políticas, clientelismo, voto fisiológico, manutenção de feudos, etc. Nessa esteira, as massas passam a desacreditar na política e em seus atores. A apatia se instala. As taxas de credibilidade nos governantes decrescem, como se observa hoje por aqui, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam. O resultado de tudo isso é o atraso no processo de modernização política e social.

As reformas que se pretendem promover – a partir dessa complicada e polêmica reforma tributária – não ensejariam, sob essa ótica, a eliminação das deformações da democracia, senão um lento avanço no caminho do aperfeiçoamento democrático.

Portanto, sejamos realistas: teremos de conviver, por muito tempo ainda com o poder invisível e suas nefastas consequências. Apurar se políticos, empresários e organizações têm ou não dinheiro no Exterior, se fizeram parte de esquemas de corrupção, se arrombaram os cofres da Petrobras e do BNDES, investigar quem passa informações sigilosas para a Intercept Brasil, ou, ainda, verificar as ligações entre procuradores e juízes, são questões que não matam o vírus da corrupção.

Funcionarão como agulha lancetando um tumor, mas este pode aparecer, a qualquer momento, em outra parte do corpo, caso não seja atacada a origem da doença. E qual é a causa? Há muitas, mas o estágio civilizatório de um povo é, em última análise, o fator determinante a balizar a trajetória de um país. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem ser da preferência dos governantes, enquanto a democracia necessita de cidadãos ativos, conscientes, participativos.

A cidadania ativa é fruto da educação. Não adianta fazer reforma política - mudar sistema de voto, exigir fidelidade partidária, - se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim.

A promessa da democracia - de educar os cidadãos - é, por isso mesmo, compromisso prioritário para que o Brasil possa sair do estágio pré-civilizatório que se encontra em matéria de cidadania política.

Quando todos os brasileiros estiverem repartindo o mesmo prato cultural, inseridos no banquete da consciência cidadã, nossas doenças culturais poderão ser curadas com simples vitaminas.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Os Inimigos do Povo

Por Carlos Eduardo Lins e Silva

Governo não gosta de imprensa. Exceto se ele for totalitário e/ou ela for incompetente, vendida ou parceira ideológica.

O governo soviético não tinha problemas com o grande diário do país: o Pravda (A Verdade, em tempos que ainda não eram chamados de pós-verdade, embora a imagem de Trotsky já fosse sistematicamente apagada das fotos oficiais). Nem o regime nazista reclamava do Völkischer Beobachter (Observador Popular). Stalin e Hitler nunca chamaram esses jornais de “inimigos do povo”, como Donald Trump designa os veículos de imprensa de seu país que mantêm independência editorial.

Já nas democracias todos os governos sempre se queixaram do jornalismo independente: nos EUA, os de Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush, Clinton, W. Bush, Obama; no Brasil, os de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Rousseff, Temer. Só para citar os mais recentes.

O diferente agora em relação a esse passado é que regimes populistas expressam hostilidade ostensiva contra o jornalismo e agem para intimidá-lo ou manietá-lo, instigam seus seguidores a agredi-lo, impõem limites à sua ação, dificultam a cobertura de veículos que consideram perigosos demais, propõem alterações na legislação para endurecê-la, mentem de forma sistemática, põem jornalistas na cadeia sempre que podem.

Isso ocorre na esquerda e na direita, em todos os continentes: López Obrador no México, Ortega na Nicarágua, Maduro na Venezuela, Duterte nas Filipinas, Al-Sisi no Egito, Zeman na República Checa, Fico na Eslováquia, Orbán na Hungria. Sem falar em China, Rússia e Coreia do Norte. E, claro, nem em Trump e Bolsonaro.

Mas o fenômeno não começou com esses déspotas. Desde o advento da internet e das redes sociais, não só o jornalismo, mas diversas instituições têm sofrido. A tecnologia permitiu às pessoas prescindirem de intermediários para obter o que desejam e deu-lhes instrumentos para desprezar, rejeitar ou contestar o conhecimento de especialistas. Assim como todo brasileiro sempre se achou o melhor técnico de futebol do País, muitas pessoas acham que podem substituir médicos, advogados, professores, pelo dr. Google. Rejeita-se o conhecimento institucionalizado. Negar o expert afirma a autonomia e o poder da pessoa comum.

Não é preciso mais pagar por hotéis para se hospedar, abre-se mão de táxis em troca do Uber, o Congresso é desnecessário, não se confia nos tribunais, prefere-se a democracia direta. Basta de intermediários: eu no poder.

O jornalismo também passa a ser desprezado, embora tal desprezo não seja fenômeno tão novo. Há muito tempo a imprensa é alvo do descontentamento de grande parte da sociedade e muito dessa antipatia deriva da atitude e do comportamento de jornalistas, que, com frequência, são arrogantes, julgam-se mais bem informados e, portanto, superiores ao público, não conhecem de fato quais são os problemas e aspirações da audiência, não reconhecem seus próprios erros, embora acusem à exaustão os dos outros.

Pesquisas de opinião mostram que tanto nos EUA quanto no Brasil a credibilidade do jornalismo profissional é tão baixa quanto a das redes sociais: segundo o Datafolha, apenas 5% dos brasileiros acham confiáveis todas as notícias tanto de um quanto de outras.

Conservadores e corporativistas por natureza, jornalistas se horrorizam com seu leitor do século 21. O público digital tem blogs, tuíta e posta no Facebook incansavelmente, deixou de ser mero receptor e passou a emitir também, não é mais cativo, passivo.

Apesar dessa má vontade recíproca, sociedade e jornalismo nunca precisaram tanto uma do outro para sobreviverem na democracia. O ambiente tóxico de sectarismo identitário que dividiu as pessoas em bolhas nas quais se retroalimentam pode destruir a vida em comum.

É imprescindível haver um espaço em que opiniões e ideias diversas circulem livremente e em confiança. Essas bolhas precisam ser perfuradas para se criar um espaço de diálogo construtivo, por exemplo, o da imprensa, que possibilitou a formação de nações nos séculos 18 e 19, como mostrou Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas. Para isso jornalistas terão de mudar muito. Têm de evitar ao máximo cometer erros factuais e, quando os cometerem, precisam reconhecê-los rápida e transparentemente. E para diminuírem a ocorrência de erros factuais têm de perder a obsessão por levar ao público informações antes dos concorrentes e nunca divulgar nada antes de estarem absolutamente seguros de sua correção total.

Não podem deixar-se manipular por demagogos que atraem sua atenção com declarações ultrajantes e os afastam da tarefa essencial que é questionar a incompetência desses demagogos que estão no poder. Não devem engajar-se no combate ideológico contra os que os chamam de “inimigos do povo”, expressão inicialmente utilizada por Ibsen numa peça de teatro de 1882 e depois vulgarizada por Stalin na União Soviética e agora por Trump nos EUA – e marginalmente por Bolsonaro no Brasil. Como disse o jornalista Paul Farhi, do Washington Post, em recente evento promovido pelo programa de pós-graduação em jornalismo do Insper, a imprensa americana não se deve engajar numa guerra contra Trump, deve apenas trabalhar – “we are nota at war (against Trump), we are at work”.

Se os jornalistas se dedicarem diligentemente ao trabalho fiel a seus cânones, se reconhecerem que os tempos são outros e a prepotência com que muitos deles se comportavam não é mais admissível, se estiverem abertos à crítica e dispostos à autocrítica, eles estarão sendo mais eficientes na defesa da democracia do que com avalanches de palavras indignadas. O combate ao populismo autoritário só será efetivo se estiver baseado em fatos bem apurados, em substantivos, não em adjetivos e advérbios explosivos.

Descobrir e mostrar ao público com transparência e rigor os fatos provarão a ele quem são os inimigos do povo.

Carlos Eduardo Lins e Silva é Professor do INSPER. Foi ombudsman da Folha de São Paulo. Este artigo foi publicado originariamente em O Estado de S. Paulo, edição de 17.07.19.

Perigos de uma campanha precoce

Por Fernando Gabeira

A reforma da Previdência e o acordo comercial com a União Europeia são dois temas que podem animar a economia. Mas não se pode superestimá-los. Um trabalho de reconstrução demanda um trabalho diuturno.

O clima de campanha política não é o melhor para desenvolver essas tarefas. Bolsonaro falou duas vezes em concorrer de novo em 2022. Espera entregar um País melhor em 2026, mas parece ignorar que passará pelo grande julgamento no final do primeiro mandato.

O vazamento entrou na campanha. Moro decidiu por uma saída política, contando com a ambiguidade: os diálogos podem ou não ser verdadeiros. Bolsonaro abraçou a Lava Jato com o mesmo entusiasmo com que levantou a taça da Copa América.

Duas estratégias podem ser desenhadas. A de Bolsonaro, manter o apoio, independentemente do que digam a Justiça e a opinião pública no fim do processo. Sabe que uma independe da outra e que a fidelidade popular à Lava Jato se tem mantido a ponto de ainda ser a melhor escolha eleitoral. Já a estratégia da esquerda, que recusou uma autocrítica, conta com o desgaste da Lava Jato para consagrar a sua tese de que a operação foi uma grande manobra para derrotá-la.

Mas o Brasil não se resume a esses dois grandes blocos. No caso específico da Lava Jato, nem todos os que a apoiam compartilham as teses ultrapassadas de Bolsonaro. Assim como nem todos os que questionam Moro necessariamente acreditam na inocência da esquerda.

Ainda haverá uma decisão da Justiça baseada nesses vazamentos. Andará alguns passos. Um deles é verificar a autenticidade do material. O outro, creio, é examinar todas as frases dentro do seu contexto. Isso se for vencida a etapa inicial: reconhecer ou não as provas obtidas ilegalmente.

A Lava Jato é, de longe, a mais importante operação contra o desvio de dinheiro público no Brasil. Pelo número e pela importância dos condenados, pelo dinheiro devolvido, pela repercussão continental na política.

Outro dia viajei com um motorista peruano. Contei que cobri a eleição de Ollanta Humala contra Keiko Fujimori. “Pois é, ambos presos”, comentou.

A operação dispôs-se a realizar seu trabalho sob a legalidade e submeteu seus principais passos ao Supremo. Passou por esse teste. Mas agora se vê diante de um novo desafio. Seus documentos públicos e oficiais não são escrutinados, mas, sim, as conversas pessoais colhidas num aplicativo.

Era uma operação para desmontar uma organização criminosa, conforme definiu o próprio ministro Celso de Mello. Depois de algumas vitórias e alguns embates, não me surpreende que houvesse um vínculo entre juiz e promotores conscientes de que estavam lutando contra algo muito forte.

Diante de uma organização criminosa só seria eficaz um enfoque sistemático. Não se pode ignorar que era composta de indivíduos com seus direitos. Nesse caso, haveria um desvio autoritário. Mas ignorar que existia uma quadrilha e que eram mais do que indivíduos vulneráveis diante do Estado, no meu entender, é uma visão romântica .

Os sucessivos fracassos das operações anteriores à Lava Jato esbarraram em procedimentos legais. Trata-se de operações realizadas no universo político, em que o filtro é mais rigoroso. Colocam o problema básico: como combater uma organização criminosa dentro desse universo, no qual a grande barreira são o rigor e as filigranas jurídicas?

Fora do crime político não há grande inquietação. Os processos contra o PCC, o Comando Vermelho ou a Família do Norte são desconhecidos nos detalhes, no seu curso legal, quanto mais nas trocas de mensagens pessoais dos seus agentes. Pouco sabemos dos juízes forçados a viver com escolta armada.

Como as coisas aconteceram num mundo mais sofisticado, o debate é sobre o Estado de Direito em sua visão mais rigorosa. Num primeiro e cauteloso artigo sobre o material vazado afirmei que, na minha opinião de leigo, o juiz poderia indicar provas, sobretudo quando estivesse diante de uma organização criminosa e sua omissão a favorecesse.

O material da Veja traz uma frase em que Moro lembra ao procurador a necessidade de inclusão de um cheque nas provas. No artigo, escrevi também: o juiz precisa ter serenidade para avaliar a prova, mesmo tendo pedido a sua inclusão. Pode rejeitá-la no contexto da sentença.

No caso mencionado pela Veja, Moro, um especialista em crimes financeiros, teria pedido a prova e depois absolvido o réu. O que era apenas uma hipótese no artigo, escrito muito antes de o caso vir à tona, parecia confirmar-se ali. No entanto, Moro desmentiu o diálogo vazado e afirmou que seria esquizofrênico incluir provas e absolver a pessoa em seguida.

Em síntese, para não repetir o adjetivo de Moro, meu argumento parece estapafúrdio. Ou, então, apenas fora de lugar numa batalha marcada pelo cálculo político que aciona as paixões nas redes.

Não acredito que no final desse episódio as conquistas da Lava Jato sejam anuladas. No entanto, está em jogo também um modelo de combate ao crime organizado.

O núcleo combatido pela Lava Jato teve a assistência de talentosos advogados, que produziram um cipoal de interpelações e recursos. Nunca se viram tantas táticas na Justiça comum. Nenhum outro processo atual foi tão discutido em instâncias superiores.

A Lava Jato sobreviveu e tem sobrevivido no STF e na gratidão pública, apesar dos vazamentos envoltos em suspense e de uma dose de sensacionalismo. Sua vulnerabilidade atual é aparecer como aliada de Bolsonaro. É um instrumento do Estado e deveria ter seus métodos próprios de defesa.

Todos sabemos o que é uma campanha política no Brasil. Uma campanha precoce, então, leva para as profundezas o nível do debate.

Fernando Gabeira é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 12.07.19.

Covardes! Covardes! Covardes!

Por Fernão Lara Mesquita

O que mais choca ao ver as tais “instituições funcionando” é constatar o completo abandono em que vai o brasileiro plebeu.

O desarmamento mecânico foi só uma das consequências do outro. O pior é o absoluto desarmamento institucional a que estamos reduzidos. Vem vindo de longe e num crescendo há tanto tempo que anestesiou o povo e fez do brasileiro uma massa inerte. Já não se defende nem das mordidas que leva de frente. Reduzido à sobrevivência até a próxima refeição, foi devolvido à lei da selva. Está muito aquém do nível em que gestos de dignidade humana podem ser cobrados.

O grau de alienação da outra ponta é inversamente proporcional. Os predadores-alfa, com suas lagostas, seus vinhos tetracampeões e seus decretos de 16,32% no Ano da Grande Fome, rebaixaram Maria Antonieta a um símbolo de austeridade e promoveram o xerife de Nottingham a um quase mecenas. Para o Brasil de Brasília o luxo não é só constitutivo, é antes “constitucional”. Exigível por ordem judicial, é função do Estado impô-lo à favela pela força.

Quando a sessão de tortura termina, a volta à cela torna-se motivo de comemoração. Mas esse trilhão, se sobrar tanto, não é desmame. É só um sopro no pulmão do morto. Está mais para a bruxa engordando o dedinho de Joãozinho e Maria. Quando a reforma da Previdência foi entregue ao Congresso, em fevereiro, já os militares, “no poder” após 33 anos de ostracismo, tinham sido (indiretamente) desembarcados dela. Morto o critério de igualdade, o arbítrio, de que nascem as privilegiaturas, ganhou salvo-conduto para o futuro do Brasil com o endosso presidencial à exclusão do sistema de capitalização logo nos primeiros dias dos dois meses até a CCJ mais 68 dias de Comissão Especial fazerem das palavras dele lei. No último minuto a agroteta, o alter ego do agronegócio que salva a Pátria, mordeu os seus 89 bi só pra ninguém esquecer que o privilégio não tem preconceito de classe. E então lançaram-se ao leilão os Estados e os municípios, onde se fará o ajuste fino do que sobrar após os dois turnos, no mínimo, em cada Casa do Congresso, que estão na agenda do “pra já” das nossas depressões futuras.

Não há “rachas” na privilegiatura. Só o que continua em disputa é a quem serão atirados os ossos a cada troca de turno no poder. Aos “movimentos sociais” de laboratório, à protomilícia da fase terminal das quase democracias, ou às polícias que já engatilham aquelas “greves” que consistem em sinalizar para o crime quando estará liberado o próximo comedio em que poderá “tocar o terror” impunemente. Será, portanto, disputada com o argumento de sempre a questão filosófica sobre se são ou não são privilégios as vantagens que as polícias têm: “E então, governador, a quantos plebeus trucidados vosselência resiste?”.

Mortas sem choro nem vela de tantos observadores da imprensa e seus “especialistas” das universidades públicas as pretensões revolucionárias da reforma, nada mais restava “fora da ordem”. Seguiu-se a tradicional disputa dos lobbies, alguns, como é de lei, patrocinados pelo presidente da República em pessoa, pois, da “direita” ou da “esquerda”, é de bom tom que eles não se esqueçam “dos seus” nesta nossa democracia cordial.

A plebe do favelão nacional foi, como sempre, a única “parte” em prol da qual ninguém pediu “vantagens”, com exceção do “politicamente inábil” ministro da Economia que as privilegiaturas “de direita” e “de esquerda” que se substituem no poder, igualmente virgens de qualquer experiência com as maçantes obrigações da economia não parasitária, acabam constrangidas a importar do Brasil Real.

Já é outra vez possível até atacar de frente o combate à corrupção e propor de peito aberto o restabelecimento da impunidade. Com a promoção dos hackers de aluguel e do jornalismo de banqueiro “campeão nacional” a interlocutores legítimos do processo político brasileiro, os “ganchos” para o bombardeio de saturação estão garantidos. As redações herdadas, com “autonomia” garantida pela sólida alienação dos seus patrocinadores, podem recuar do primeiro plano e concentrar-se por um tempo apenas em “repercutir” os ataques de que mesmo “fatiados” ninguém desconfia, enquanto mantêm a censura para as alternativas que funcionam no mundo que funciona. Quem, na privilegiatura “de direita” ou “de esquerda”, “ganhou” ou “perdeu” cada round?

O resumo é que foi mais uma vez anunciado aos quatro ventos que quem tem lobby monta em quem não tem, e a polícia, os paladinos dos direitos humanos e os santos de pau oco montam juntos.

Covardes! Covardes! Covardes!

É a hora mais escura do Brasil. Ilusão de noiva acreditar que qualquer coisa vai mudar antes que o poder mude de mãos. Enquanto não impusermos ao País Oficial o deslocamento do seu eixo de referências e do ponto de ancoragem dos empregos públicos, as lealdades continuarão sendo as de hoje, as iniciativas para “melhorar” isto ou aquilo não passarão de paliativos e qualquer debate em torno delas, apenas dados de uma autópsia que contribuirão mais para alienar que para esclarecer o País.

O mundo está aí para quem quiser conferir. Manda na própria vida e livra-se da miséria quem tem o poder de contratar E DE DEMITIR políticos (os funcionários tornam-se demissíveis por consequência) e de dar a última palavra na escolha das leis sob as quais concorda viver. Só não é escravo quem tem a garantia de que é seu o resultado do seu trabalho e que só ele tem o poder de dispor sobre o que será feito dele. Eleições distritais puras com direito a retomada de mandatos, iniciativa de propor leis combinada com direito de referendo do que vier dos legislativos e eleições periódicas de retenção de juízes põem você como referência obrigatória dos políticos, a sua satisfação como única garantia do emprego deles e, ao mesmo tempo, blinda o País contra golpes e manipulações.

A deus o que é de deus, portanto. O Brasil não precisa mais que de políticos tementes ao patrão.

E viva o 9 de julho, que era disso que se tratava desde muito antes de 1932!

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 09.07.19.

Esquerda em estado de choque. Feridas abertas

Por Ricardo Noblat

Nem nos seus piores pesadelos, os partidos de esquerda sonharam com uma derrota tão acachapante como a que colheram na Câmara dos Deputados com a votação da reforma da Previdência.

Seus líderes sabiam que o texto seria aprovado, mas por uma margem apertada de votos. Admitiam poucas deserções em suas fileiras, mas jamais o que acabou por acontecer.

Somente o PT, PSOL e PC do B votaram em bloco contra a reforma. O PSB, que fechara questão contra a reforma, rachou e feio. Dos seus 32 deputados, 11 votaram a favor.

Dos 27 deputados do PDT, 8 desobedeceram à orientação do partido e votaram a favor da reforma – inclusive a estrela da bancada, Tabata Amaral, cogitada para disputar a prefeitura de São Paulo.

Ciro Gomes, ex-candidato do PDT a presidente da República, anunciou que pedirá a expulsão dos infiéis. A direção do PSB pensa em promover o expurgo dos seus desobedientes.

É difícil que tais ameaçam se concretizem dado ao pequeno tamanho da esquerda na Câmara. Em jogo, a sobrevivência das legendas. O barulho interno cessará com o passar do tempo.

A fatia mais à esquerda da esquerda é que pode sair eleitoralmente fortalecida. Entregou pelo menos o que prometera – todos os seus votos para derrotar a reforma.

Ricardo Noblat é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em Veja.com (edição de 11.07.19)

Bolsonaro nos passos do PT

Ao vetar a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras (Lei 13.848/19) que estabelecia a indicação de diretores a partir de uma lista tríplice, o presidente Jair Bolsonaro mostrou sintonia com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em vez de proteger a autonomia das agências, a preocupação comum dos dois presidentes foi manter a ingerência política sobre elas.

Dias antes do veto, Bolsonaro afirmou que “as agências travam os Ministérios. Você fica sem ação. Você tem que negociar com agência, é um poder paralelo”. Foi precisamente essa a visão sobre as agências que imperou durante as administrações petistas e que tantos prejuízos gerou. Com a diminuição da relevância e da funcionalidade das agências reguladoras, importantes serviços públicos ficaram sem a devida regulamentação e sem o devido controle. O preço de tal descaso foi pago pela população.

Mas não é apenas com Lula da Silva que o presidente Jair Bolsonaro vem se identificando quando o tema são as agências reguladoras. Ele segue também os passos da presidente Dilma Rousseff, que ficou conhecida pelo atraso na indicação das diretorias das agências. Por falta de iniciativa da presidente, cargos ficaram vagos durante meses. Houve casos de vacância de mais de ano. Além disso, verbas cortadas prejudicaram o funcionamento das agências.

Segundo levantamento feito pelo Estado e pela União Nacional dos Servidores de Carreira das Agências Reguladoras Federais (UnaReg), até dezembro Bolsonaro terá de preencher 14 vagas. Até o momento, ele indicou apenas 3 nomes. A demora poderá levar à mesma situação ocorrida na gestão de Dilma, com diretorias vagas inviabilizando o trabalho das agências, sem quórum mínimo para as votações. Para que um cargo não fique vago, é preciso indicar os nomes antes do término do mandato dos diretores.

Das 14 vagas, 4 já estão abertas e apenas 2 nomes de substitutos foram enviados pelo Executivo ao Senado. Outros cinco postos ficarão vagos até o início de agosto, quando vencem os mandatos dos atuais dirigentes. Apenas para um deles já há um indicado.

Foi tão grave o problema da vacância nas diretorias das agências durante o governo de Dilma Rousseff que o Congresso estabeleceu uma medida corretiva para a inércia presidencial. A Lei 13.848/19 previu que, “ocorrendo vacância no cargo de Presidente, Diretor-Presidente, Diretor-Geral, Diretor ou Conselheiro no curso do mandato, este será completado por sucessor investido na forma prevista no caput e exercido pelo prazo remanescente, admitida a recondução se tal prazo for igual ou inferior a dois anos” (art. 5.º, § 7.º).

O atraso de Bolsonaro na indicação de nomes para as agências reguladoras é contraditório com o veto aplicado à Lei 13.848/19. O presidente se insurgiu contra a lista tríplice, querendo liberdade total para indicar candidato, mas ao mesmo tempo não fez as indicações que deveria fazer. A contradição, no entanto, é apenas aparente. As duas atitudes manifestam profunda incompreensão a respeito do papel das agências, a mesma incompreensão vista durante os 13 anos de PT na administração federal.

A confirmar seu desapreço pelas agências, o presidente também vetou uma importante garantia contra a “captura regulatória”, que é a utilização das agências por parte de agentes políticos ou empresariais para fazer valer seus próprios interesses. O Congresso proibiu a indicação de quem tivesse, nos últimos 12 meses, algum vínculo, como sócio, diretor ou empregado, com empresa que explora atividade regulada pela agência. O presidente vetou essa restrição, alegando que era exagerada. Ora, para realizar sua missão de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos, a agência precisa ter independência tanto da esfera política como do setor privado.

O Congresso tentou corrigir um problema, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou a solução. Como se vê, a origem dos problemas nem sempre está no Legislativo. Provém muitas vezes do inquilino do Palácio do Planalto.

Publicado originalmente em O Estado de São Paulo na coluna Notas e Informações, edição de 02.07.19.

A qualidade do debate político

Os norte-americanos estão profundamente insatisfeitos com a qualidade do debate político no seu país, revela o Pew Research Center. Para muitos deles as próprias conversas sobre política tornaram-se experiências estressantes a ponto de preferirem evitá-las. Ainda que a pesquisa se refira especificamente aos Estados Unidos, ela traça um panorama de deterioração do debate político não muito distante do que se observa em outros países, entre eles, o Brasil.

Para a grande maioria dos entrevistados (85%), o tom e o conteúdo do debate político nos Estados Unidos tornaram-se mais negativos nos últimos anos. Apenas 3% consideram que o debate se tornou mais positivo. Para a maioria dos americanos (55%), Donald Trump contribuiu para essa piora do debate político no seu país. Apenas 24% dos entrevistados afirmaram que Trump melhorou o debate político e 20% disseram que ele teve pouca influência.

A pesquisa avaliou também os sentimentos despertados pelos comentários de Donald Trump: 76% afirmaram ficar preocupados; 70%, confusos; 69%, envergonhados; 67%, exaustos; e 54%, entretidos. Apenas 7% disseram que se sentiam felizes com os comentários do presidente e 10%, esperançosos. Diante desses números, a impressão é de que Donald Trump faz tais comentários precisamente para gerar esse tipo de reação.

O levantamento também mediu a percepção sobre as conversas cotidianas sobre política e outros assuntos sensíveis. Em geral, os entrevistados relataram que esses diálogos são frequentemente tensos e difíceis. Metade das pessoas afirmou que falar sobre política com quem tem opinião diferente é “estressante e frustrante”. Diante disso, os entrevistados relataram que preferem falar sobre clima, esportes e até mesmo religião com as pessoas que não conhecem muito bem a conversar sobre política.

Segundo o Pew Research Center, as pessoas que hoje em dia estão propensas a falar de política e a se envolver com política são aquelas que se sentem à vontade com conflitos interpessoais, inclusive para discutir com outras pessoas. É uma situação preocupante. A política passa a ser encarada como um tema especialmente sensível, que deve ficar restrito a um determinado tipo de pessoas. Numa democracia, deveria ocorrer precisamente o oposto – que ninguém se sentisse excluído ou incomodado para falar de política.

Outro dado, que pode ajudar a explicar os conflitos que surgem de conversas sobre política, é que as pessoas são mais exigentes com quem pensa diferente do que com quem pensa como elas. Majoritariamente, tanto democratas como republicanos disseram que os políticos eleitos devem tratar seus oponentes com respeito. Mas os números mudam sensivelmente quando se referem ao partido que não é o seu. Para 78% dos democratas, os políticos republicanos devem tratar os outros com respeito, mas apenas 47% disseram que as lideranças democratas devem tratar os republicanos com respeito. Fenômeno similar ocorreu entre os republicanos: 75% disseram que os democratas devem respeitar os oponentes, mas apenas 49% disseram que os políticos republicanos devem tratar os democratas com respeito.

Os resultados da enquete devem servir de alerta. A política tem sempre um caráter de antagonismo, mas esse natural enfrentamento não deve impedir o respeito e o diálogo. Recentemente, pesquisa do Instituto Ipsos revelou que um terço dos brasileiros (32%) considera que não vale a pena conversar com quem tem visão política diferente da sua. A diversidade de opiniões políticas é um importante ativo para a sociedade, sendo, assim, uma característica a ser cultivada, e não tolhida.

Para que o pluralismo seja realidade, o ambiente público deve estimular o diálogo aberto entre todos os cidadãos, das mais variadas correntes e opiniões. É urgente reverter essa tendência de restringir o debate de ideias políticas a círculos fechados e homogêneos. Não há democracia quando falar de política se torna um tabu.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 1º de julho de 2019.

A fogueira do ativismo judiciário

Por Fábio Prieto de Souza

O Brasil não tem boa classificação nos rankings sobre segurança jurídica. Profusão de leis e normas administrativas redigidas em linguagem equívoca ou deliberadamente contraditória. Sobreposição de instâncias administrativas e judiciárias. Procedimentos de controle e fiscalização caros, que deveriam ser baratos; ou baratos, quando deveriam ser caros. Quebra constante e imotivada de contratos privados. Falta de efetividade das sanções, insignificantes ou draconianas, raramente ponderadas.

É preciso elevar os valores da previsibilidade e da confiança, duas variáveis necessárias para a fruição do progresso contemporâneo.

Nos estudos nacionais e internacionais, o grave problema da insegurança jurídica, com custos econômicos e sociais expressivos, tem capítulo de destaque para a insegurança judiciária. O sistema de justiça dá relevante contribuição para o ambiente normativo turvo e labiríntico.

A estrutura de justiça – não apenas o Poder Judiciário – é cara, gigantesca e, o mais danoso, ferozmente intervencionista. Como muitas das instituições do País, diante da falta de controle cívico e social, as do sistema de justiça também têm a possibilidade de funcionar para si, por si e para os seus.

Premido pelas influências históricas da cultura geral, o sistema de justiça contribui para o adiamento infinito rumo ao país do futuro, que poderíamos ser, com democracia, livre iniciativa e valor social do trabalho, tudo selado pela lei votada por Parlamento escolhido em eleição módica e disputada por partidos políticos orgânicos.

Mas, para além dos problemas gerais, comuns a todas as instituições, o sistema de justiça está enredado numa crise particular: a da usurpação da democracia representativa, da intervenção desabrida na prerrogativa do povo de fazer escolhas entre várias políticas públicas.

No desejo de contemplar todos, a Constituição de 1988 projetou a mais libertária e rica das nações. É uma espécie de retomada do País dos bacharéis.

O governo de 64 conviveu com altas taxas de crescimento econômico. Mas a ordem jurídica tinha muito subproduto de atos institucionais, para o desprestígio dos bacharéis. Os economistas ganharam o protagonismo da liderança.

As crises do petróleo e a hiperinflação permitiram a virada. Depois de marcar os economistas com o epíteto de tecnocratas – não raro quando cobravam racionalidade e responsabilidade com o dinheiro público –, os bacharéis inscreveram na Constituição de 1988 as mais belas promessas.

Pouco depois, a queda do Muro de Berlim veio lembrar que os fatos da realidade cobrariam o seu preço. Só conseguimos alguma recuperação quando economistas notáveis puseram o Plano Real de pé e refundaram a ordem econômica. Isso sob o fogo cerrado de violenta guerrilha judiciária. O ministro da Fazenda Pedro Malan chegou a ser instado a pagar dezenas de bilhões de reais, só pelo fato de implementar o Plano Real. A URV, espinha dorsal do plano, foi julgada depois de 25 anos de sua criação.

Esses incidentes, independentemente do seu desfecho, demonstram que o sistema de justiça disfuncional tem a possibilidade de atacar, pesadamente, a autoridade de outro Poder de Estado, apenas pela execução de política pública afiançada pelo povo, no sistema democrático, e manter sob suspeição, por décadas, a iniciativa.

Mas a obstrução judiciária de políticas públicas definidas pela democracia é só parte do problema.

O sistema de justiça resolveu legislar abertamente. Não há mais nenhuma cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores. Por intermédio das mais variadas modalidades de ações judiciais, certa “hermenêutica dos novos tempos” propõe e executa todo tipo de política pública. Faz “leis judiciárias” para todos os assuntos. Agora, à beira do precipício, vem o convite para o passo fatal: a criação de lei penal, por analogia, pelos juízes.

Centenas de milhares de brasileiros foram vítimas do genocídio das últimas décadas – negros e pardos, jovens e pobres, a maioria. Nem sequer a mais antiga das leis penais, a que sanciona o homicídio, foi aplicada com mínima eficiência. O Código Penal autoriza a pena máxima de 30 anos. Pouco importam o sexo, a raça, a cor da vítima. Portanto, não faltava, nem falta, lei punitiva com alto grau de severidade.

Todavia, estamos na iminência de cometer grave erro civilizatório, para regredir ao que Nelson Hungria chamou de a “mística hitleriana”. Depois de lembrar que o Código Penal comunista permitia ao juiz condenar por analogia – “se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se acha especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga” –, Hungria registrou que “esta pura e simples substituição do legislador pelo juiz criminal era incomparável com a essência do Estado totalitário, corporificado no Führer”.

Hitler desejava mais, segundo Nelson Hungria: “Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo, depreendidos e filtrados, não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui é que o leão mostra a garra...) segundo a revelação do Führer”.

A lançar um dos mais simbólicos direitos fundamentais na fogueira da insegurança jurídica alimentada pelo ativismo judiciário, será preciso saber quem vai incorporar a mística hitleriana, para revelar a nós, os juízes, os crimes do novo direito penal da analogia.

O vanguardismo messiânico, presente na Revolução Russa e no nazismo, tentou refundar o mundo sem passar pela ordem do direito burguês, liberal. Não deu certo. Nem dará. A barbárie nunca civilizou a barbárie.

Fábio Prieto de Souza, Desembargador Federal, foi Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. É Diretor Conselheiro da International Association of Tax Judges. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 27.06.19.

Mundo de treva

Por JR Guzzo

O que você pode esperar de um país em que pelo menos um em cada três membros do Congresso Nacional (algumas contas, mais pessimistas, estimam que o total possa passar dos 40%) responde a algum tipo de processo criminal perante a Justiça — um caso sem similar no resto do planeta? Isso é só uma parte do problema. Roubava-se tanto na Odebrecht, nos governos dos ex-­presidentes Lula e Dilma Rous­seff, que a empresa achou necessário criar um departamento inteiro destinado unicamente a cuidar da corrupção de políticos e peixes graúdos da administração pública — com diretores, gerentes, secretárias, sistemas de TI e tudo o mais que se precisa para tocar um negócio de prioridade máxima. Não é apenas o Congresso. Há, nesse mundo de treva, o resto dos políticos — no nível federal, nos estados e municípios. Há também outras empreiteiras de obras, empresários escroques, bancos com problemas junto a delatores e mais um montão de gente. Só se pode esperar disso tudo, na verdade, uma coisa: os mais extraordinários esforços, por parte dos criminosos, para manter as coisas o mais próximo possível da situação em que sempre estiveram.

Até uma criança com 10 anos de idade percebe que ninguém, aí, quer ir para a cadeia. Todos, se pudessem, gostariam de voltar a roubar em paz. E sabem, é claro, que não vai ser fácil. Juridicamente não existe a menor possibilidade de “zerar tudo” — quer dizer, anular os processos por corrupção já decididos ou em andamento na Justiça, ou eliminar as provas materiais colhidas contra condenados, réus à espera de sentença e suspeitos de ações futuras. Que diabo se faz, por exemplo, com as confissões que foram colocadas no papel? E com as “delações premiadas” ora em andamento? Também não é possível, simplesmente, fazer com que se evaporem os resultados físicos dos procedimentos judiciais de combate à corrupção já executados até agora. Em números redondos, são cerca de 250 condenações, num total superior a 2 000 anos de prisão. Mais de 150 criminosos de primeira linha foram para a cadeia. Bilhões de reais foram devolvidos ao Tesouro Nacional. Para ficar no caso mais vistoso: o ex-presidente Lula, após apresentar mais de 100 recursos de todos os tipos, já está condenado em terceira instância — julgado, até agora, por 21 juízes (possivelmente não exista na história do direito penal brasileiro outro caso em que o direito de defesa tenha sido tão utilizado por um réu).

É um problema e tanto. Na impossibilidade de sumir com o passado, o esforço, agora, é para armar um futuro menos complicado para todos. Uma das esperanças mais caras do mundo político em geral é que prevaleça, uma vez mais, o ponto de vista dominante na elite brasileira — que, como sabemos, tem um código moral perfeito, mas gosta muito mais do código que da moral. Essa elite, ou as classes que definem a virtude nacional, está tentando construir uma espécie de trégua — a trégua que for possível, baseada em decisões que de alguma forma possam ser vinculadas à interpretação das leis. Segundo os devotos do código, talvez seja uma pena para a visão comum que se tem da ideia de justiça — mas se a majestade da lei exigir que a moral vá para o diabo que a carregue, paciência. Como tem objeções à vacina, há gente que acaba, na prática, ficando a favor da bactéria.


É positivo anotar, de qualquer forma, que o roubo do Erário, no Brasil de hoje, está mais difícil do que jamais foi ao longo de seus 500 anos de existência. Em consequência da ação da Justiça, jamais foi tão arriscado ser corrupto como no Brasil de hoje — e jamais os corruptos tiveram tanto medo de agir como têm agora. Talvez nada mostre melhor a calamidade que impuseram ao país que o pedido de recuperação judicial da própria Odebrecht, aceito na semana passada — após a destruição, em cinco anos, de quase 130 000 empregos na empresa campeã de corrupção nos governos de Lula e Dilma. No setor de obras públicas como um todo, incluindo o restante das empresas envolvidas em atividades criminosas, há estimativas de que até 600 000 empregos tenham sido perdidos em todo o Brasil desde que o aparato da ladroagem começou a ruir. Quem é culpado: os presidentes que roubaram, ou deixaram roubar, ou o sistema judicial que puniu o roubo?

Você sabe. Mas não vai ser fácil continuar esse combate.

José Roberto Guzzo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em VEJA, edição 2640 - Ano 52 - nº 26, de 26 de junho de 2019.

Um presidente para todos

Idealmente, Jair Bolsonaro deveria comportar-se como o presidente de todos os brasileiros desde o dia 1.º de janeiro. Mais do que isso, deveria ver a si mesmo como tal e, a partir da compreensão de seu novo papel na República, orientar suas ações de governo. Uma vez superadas as rivalidades que marcaram a campanha eleitoral, esperava-se que sua expressiva vitória, com quase 58 milhões de votos, pusesse fim à cisão da sociedade ou ao menos oferecesse uma trégua por sua mão estendida.

No entanto, a esperança de que seria essa a alvorada do novo governo logo se esvaneceu. Já nos discursos de posse no plenário do Congresso Nacional e no parlatório, Jair Bolsonaro mostrou que seus pés ainda estavam fincados no palanque e a cabeça, em algum lugar bem distante dos problemas reais do País.

A prometida pacificação nacional e a união em torno de uma agenda de reconstrução após a terra arrasada deixada pelos governos petistas - uma continuação do árduo trabalho iniciado pelo ex-presidente Michel Temer - ainda não se materializaram desde a ascensão de Bolsonaro à Presidência. Em boa medida, isso não ocorreu porque, desde a posse, Jair Bolsonaro tem insistido em manter viva a polarização da sociedade que tão mal tem feito ao País há tanto tempo. Em seu benefício, deve-se dizer que agora se inicia apenas o sexto mês de um governo que tem mais 42 pela frente. Há tempo, pois, para corrigir rumos. Há tempo para que o presidente Bolsonaro faça uma profunda reflexão acerca de seu papel institucional. Mas ele precisa, antes de tudo, perceber que há o que mudar. Segundo, ele precisa querer. Não há sinais, até o momento, nem de uma coisa nem de outra.

Jair Bolsonaro transforma suas convicções pessoais, suas crenças, suas opiniões sobre os mais variados assuntos em políticas de Estado. Evidente que não se espera que alguém haveria de abandonar as bases de formação de suas ideias no momento em que assume uma posição de liderança pública, como é a Presidência. Mas ao verdadeiro estadista impõe-se em todos os dias de seu mandato o reexame de suas convicções em contraposição aos interesses do Estado, o que, em outras palavras, significa estabelecer um constante balanço entre aquelas e os interesses da coletividade brasileira.

O presidente parece governar para os seus. Erra ao supor que os milhões de votos que recebeu nas urnas lhe servem como uma espécie de atestado de anuência irrestrita às suas crenças particulares ou como carta branca para a implementação de medidas que têm boa aceitação apenas em um nicho mais sectário dos eleitores que o levaram ao cargo mais alto do Executivo nacional.

Tome-se, por exemplo, a questão da posse e do porte de armas de fogo, tema dos mais caros à agenda bolsonarista. Uma pesquisa realizada pelo Ibope, cujo resultado foi antecipado pelo jornal O Globo, mostrou que 61% dos entrevistados são contrários ao afrouxamento dos critérios para a posse de armas de fogo. A rejeição aumenta substancialmente quando se trata da flexibilização das regras para o porte, ou seja, a possibilidade de cidadãos comuns carregarem suas armas pelas ruas. Sete em cada dez brasileiros - 73%, segundo a pesquisa do Ibope - desaprovam a medida.

Não surpreende que a taxa de desaprovação do governo só tenha crescido desde a posse de Bolsonaro, notadamente entre os eleitores que optaram por ele no segundo turno. É o que revelou uma pesquisa feita pelo instituto Idea Big Data publicada pelo Estado. A série de pesquisas feitas por este instituto desde a posse de Bolsonaro mostra que o presidente perdeu 18% de aprovação de janeiro até agora. Deste porcentual, 10% são compostos por eleitores que votaram em Bolsonaro apenas no segundo turno, ou seja, os que o escolheram para evitar a volta do PT ao poder.

Jair Bolsonaro deveria prescindir desses números para se ver - e agir - como presidente de todos os brasileiros, e não de seu núcleo de apoiadores mais aferrados, cuja agenda nem sempre se coaduna com o interesse nacional. O País está ansioso à espera de seu gesto de concórdia.

Editorial de O Estado de S. Paulo. Edição de 23.06.19.

Moro ganhou um palanque no Senado

Por Ascânio Seleme

Sergio Moro saiu praticamente ileso da audiência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado em que prestou contas dos vazamentos de diálogos seus com o procurador Deltan Dallagnol. Apesar de ter sido colocado nas cordas com socos e murros de alguns senadores da oposição, foi socorrido com afagos e tapinhas nas costas por outros que apoiam o governo ou apenas se opõem ao PT. O que se viu foi um embate político, e nele o ministro saiu ganhando. Mesmo que restem dúvidas sobre a correção das mensagens que trocou com Dallagnol, Moro saiu do Senado politicamente protegido.

O debate que se viu foi mais uma vez entre parlamentares do PT, ou próximos ao PT e ao escândalo da Petrobras, e os demais. Além daqueles ligados a partidos tradicionais de centro e centro direita, estiveram ao lado de Moro os senadores dos novos tempos. E esses abusaram da gentileza. O fato é que houve tempo e espaço para cada um atacar ou defender a Lava-Jato. Embora os que atacaram dissessem estar mirando na conduta do juiz, o que se viu foi um fogo sem trégua contra a operação que prendeu políticos e empresários, como Lula e Marcelo Odebrecht.

Talvez por isso, o embate tenha pendido a favor de Moro. O que se sabe, e o que não mudou e não mudará mesmo que se consiga comprovar a veracidade dos diálogos hackeados, é que os governos do PT foram corruptos. Não há qualquer dúvida de que o PT e partidos aliados assaltaram os cofres da Petrobras durante a gestão de Lula. Nenhuma dúvida também de que esses assaltos prosseguiram sob Dilma e só foram interrompidos pela operação Lava-Jato. Esse é um dado irrefutável. Por isso, foi difícil aos senadores encontrar caminho para mostrar que Moro agiu de maneira a prejudicar o PT ou afastá-lo do poder.

Não se conseguiu solidificar a acusação de que houve conluio entre Moro e os procuradores contra Lula ou o PT, mesmo que alguns senadores tivessem adotado um bom caminho e uma retórica poderosa. As respostas de Moro, ecoadas pelos seus aliados no plenário, encaminhavam a questão sempre para outro lado. E foi impossível impedi-lo. O ex-juiz chegou a indagar de um senador se ele estava sugerindo soltar todos os presos e devolver o dinheiro confiscado das contas dos corruptos, citando Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, que teve 2,7 milhões de dólares e 20,5 milhões de euros recuperados pela operação em um banco de Mônaco.

A sessão foi comedida, apesar de alguns momentos mais agressivos. Em um deles, Moro chegou a se negar a responder, dada a hostilidade da assertiva do senador Humberto Costa (PT-PE). Mesmo nas poucas ocasiões em que esteve mais acuado, Moro se comportou com gentileza. Frustraram-se os que esperavam respostas mais duras e contundentes do ex-juiz. Em nenhum momento ele colocou na mesma frase as palavras Lula e corrupção. Ou PT e corrupção. Pelo que me recordo, aliás, ele mencionou o Partido dos Trabalhadores apenas uma vez. E não desqualificou o partido nem mesmo quando um senador do PT tentou envolver a sua mulher no caso, perguntando se ela trabalhou para alguma empresa de petróleo.

Oito dos 54 senadores membros da CCJ, titulares ou suplentes, foram citados pela Lava-Jato. Mas nem esses conseguiram constranger o ex-juiz. Alguns foram até favoráveis ao ministro. Renan Calheiros (MDB-AL), que não é da CCJ mas participou da audiência, tampouco teve êxito ao tentar tirar Moro do seu ponto de equilíbrio. Renan, que responde a 11 inquéritos no Supremo Tribunal Federal, sendo que oito deles dizem respeito à operação Lava-Jato, extrapolou seu tempo, passou por cima da autoridade da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que presidia a sessão, mas não conseguiu encurralar Moro.

Moro insistiu em chamar a divulgação dos diálogos de “sensacionalista”, repetiu inúmeras vezes que as conversas que manteve com Dallagnol foram corretas e que não julgou com parcialidade. Não respondeu, ou se escusou de responder, quando perguntado se também suas ações na Lava-Jato não foram sensacionalistas. Moro saiu-se bem, nenhuma dúvida. A audiência serviu para ele como um palanque, de onde saiu maior do que entrou. Mas é cedo para dizer que “a montanha pariu um rato”, como sugeriu. Ainda vai se ouvir muito barulho em torno desta questão. A próxima etapa será na Câmara.

Ascânio Seleme é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 20.06.19

Aspectos éticos da Lava-Jato

Por Luciano Benetti Timm

A ética tem várias escolas. Analisaremos a questão sob o ponto de vista do pragmatismo e de como ele se diferencia do idealismo. O pragmatismo é uma escola de pensamento com raízes diretas, entre outros, no pensamento do filósofo americano Peirce, mas que pode encontrar suas origens na filosofia grega representada pela seguinte frase de Demóstenes: “Toda vantagem obtida antes é julgada à luz do resultado final.”

Na tradição de pensamento pragmático, não há sentido fazer distinção no plano das ideias, se ele não corresponde à prática. Foi uma escola bastante crítica do abstracionismo teórico, de modo que seria difícil se defender que a ética fosse encontrada em algum lugar da razão humana distante dos acontecimentos reais. Afinal, seria realmente ético, no exemplo idealista, delatar o amigo que praticou um crime?

Já no pensamento idealista, o comportamento correto poderia ser encontrado em algum local ideal, na razão pura, em um “imperativo categórico” que não admitiria ponderação alguma das circunstâncias concretas.

A neurociência e a psicologia comportamental vêm contribuindo bastante para esse debate ético entre pragmatismo e idealismo ao pesquisar a tomada de decisões no cérebro humano, demonstrando que a decisão humana é tomada no cérebro a partir de dois sistemas distintos, mas não absolutamente separados: o sistema 1 (intuitivo e rápido) e o sistema 2 (lento e racional). As convicções e princípios deliberativos estariam estocados em nosso sistema intuitivo e rápido, a permitir decisões rápidas do dia a dia nele baseadas; o sistema 2 refletiria mais detidamente as aplicações daquelas convicções em casos concretos, normalmente ponderando as consequências práticas.

E o que tem a ver isso com a Lava-Jato?

O filósofo Ortega Y Gasset cunhou a expressão: “O homem é o homem e a sua circunstância”.

Logo, não há como separar as decisões tomadas no âmbito da Lava-Jato das circunstâncias que a circundavam. Estava-se diante do maior escândalo de corrupção da história do mundo, ao que se tem notícia. Estavam envolvidos todos os partidos que representavam a coalizão que administrava o país há mais de dez anos e com todas as implicações que isso significa, justamente depois do que já se sabia do mensalão.

Mais do que isso, houve sinais divulgados ao público de inúmeras tentativas de se tentar barrar a operação.

Não estávamos na ocasião, como não estamos hoje, em um ambiente de normalidade institucional. Basta lembrarmos de Raymundo Faoro e sua obra “Os donos do poder”. O Brasil sempre foi dirigido por uma pequena elite tomadora de decisão, que está no poder há gerações e que age baseada numa lógica que não permitiu o desenvolvimento do país.

Se o bem maior era a República e o bem da nação, eticamente não se exigiria outra coisa de um virtuoso que não a de proteger o resultado da Operação Lava-Jato, dentro das regras vigentes; a punição dos envolvidos e sua retirada da vida pública, após o devido processo legal. Que, aliás, foi o que ocorreu, com a prisão de empreiteiros e políticos de diferentes partidos, que, ao que parece, ainda lutam para reverter esse resultado e voltar às velhas práticas no poder.

Alguns dirão que isso é pragmatismo, o que, diga-se de passagem, tem fundamentos filosóficos relevantes e não menos importantes nos dias de hoje do que o idealismo moral. Mas, justamente por isso, idealistas têm efetivamente o argumento de que as consequências não importam para a tomada de uma decisão moral e que o resultado não deveria importar. Provavelmente, estaríamos à beira do abismo da corrupção e dos desmandos que nos levaram infelizmente ao impeachment. Todavia, se autêntica, é uma crítica aceitável por um pragmático.

Mas o mais reprovável moralmente é observar pragmáticos — movidos apenas por interesses pessoais, profissionais ou políticos —agirem como se idealistas fossem, bradando pelo “estado democrático de direito” e suas “garantias fundamentais”, mas descurando que não há democracia sem respeito à privacidade e à intimidade. E tal atitude é condenável moralmente tanto para um pragmático, como para um idealista.

Luciano Benetti Timm é professor da FGV-SP. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, RJ, edição de 19.06.19.

A Justiça cega

Por Gil Castello Branco

A Justiça é representada pela estátua de uma mulher, de olhos vendados, segurando em uma das mãos a balança e, na outra, a espada. A balança pesa o Direito que cabe às partes, enquanto a espada é um sinal de força para expressar que a decisão judicial tem que ser cumprida. A venda nos olhos é o símbolo da imparcialidade.

Diante da repercussão do episódio das trocas de mensagens entre procuradores e o então juiz Sergio Moro — que devem ser esclarecidas —, refleti sobre a real imparcialidade da Justiça.

Em abril deste ano, na argumentação para a criação da CPI das Cortes Superiores, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) cita fatos aparentemente gravíssimos. Dentre os 13 itens do requerimento destaco trechos dos quatro primeiros, embora os demais também sejam contundentes.

1. Recebimento por parte de ministros do Tribunal Superior do Trabalho — tais como João Batista Brito Pereira, Antonio José de Barros Levenhagen, Guilherme Augusto Caputo Barros e Márcio Eurico Vitral Amaro — de pagamentos por palestras proferidas aos advogados e escritórios de advocacia do Bradesco, apontado por pesquisas do Judiciário como um dos maiores litigantes do país, sem que, sucessivamente, se declarassem impedidos de julgar processos e recursos impetrados pelo banco contra decisões nas instâncias inferiores da Justiça do Trabalho.

2. Entre 2011 e 2017, o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que possui como sócio-fundador o ministro Gilmar Mendes, recebeu empréstimos do Bradesco que totalizam R$ 36,4 milhões. Neste período, o banco aceitou prorrogar cobranças, reduzir taxas e “renunciou” a aproximadamente R$ 2,2 milhões de juros. Os documentos bancários relativos às operações mostram oito contratos e alterações firmadas entre o IDP e o Bradesco, todas com a assinatura do ministro como avalista. Desde que o IDP pediu o primeiro empréstimo, em 2011, o ministro Gilmar Mendes já atuou em cerca de 120 decisões do Supremo Tribunal Federal envolvendo o Bradesco (dados do STF).

3. Atuação como julgador do ministro Dias Toffoli em processos em que uma das partes era sua credora, sem que se tenha declarado suspeito, em inobservância à Lei Orgânica da Magistratura e ao Código de Processo Civil de 2015. Em setembro de 2011, foi contratada pelo ministro Dias Toffoli operação de crédito junto ao Banco Mercantil do Brasil S/A, no valor histórico de R$ 931.196,51, garantida por imóvel de sua propriedade, por meio da qual se comprometeu a pagar parcela mensal correspondente a 47,20% dos subsídios de ministro do STF vigentes à época, aos juros de 1,35% ao mês. Em abril de 2013, a dívida foi repactuada, tendo sido o valor das parcelas reduzido em 17,72%, aos juros de 1% ao mês, situação incomum para a maioria dos mutuários do país.

4. Participação de ministros em julgamentos para os quais se encontrariam impedidos, como casos de decisões do ministro Gilmar Mendes, no Tribunal Superior Eleitoral, em causas em que uma das partes tem como advogado Guilherme Regueira Pitta, membro do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes, do qual a mulher do ministro, Guiomar Feitosa Lima Mendes, é sócia.

Amanhã, Moro será sabatinado no Senado sobre as mensagens do Telegram. No dia 25, o STF decidirá se o juiz foi ou não imparcial ao julgar Lula na denúncia do tríplex. É curioso observar que diversas autoridades contrárias à instalação da CPI, inclusive senadores e ministros do STF, estão, agora, escandalizadas com supostos diálogos, hackeados ilegalmente. Alguns chegam a defender a anulação de processos da Lava-Jato — com decisões já confirmadas em instâncias superiores —, operação que em cinco anos gerou 285 condenações, 600 réus, mais de três mil anos de penas e o ressarcimento de R$ 13 bilhões!

No Brasil, a imagem da Justiça mais conhecida é a de Alfredo Ceschiatti. A escultura, no Supremo Tribunal Federal, mostra uma mulher sentada, com a espada sobre as pernas, sem a balança e com os olhos vendados. Sinceramente, prefiro a imagem grega, em que a Justiça está ereta, com a espada, a balança e os olhos bem abertos.

Gil Castello Branco, economista, é fundador da ONG Contas Abertas. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 18.06.19.

Desinteligência generalizada

Não são apenas os devotos das seitas extremistas, à esquerda e à direita, que limitam sua visão de mundo às mentiras, distorções e meias-verdades cínicas que leem nas redes sociais. A histeria irresponsável parece ter capturado também aqueles dos quais se esperam equilíbrio e sobriedade na formação de opinião pública.

Quase todos aparentemente estão se deixando pautar pela gritaria que tão bem notabiliza essa forma de comunicação instantânea, que na prática dispensa a reflexão. Nas redes, mesmo bem preparados formadores de opinião vêm tomando como expressão da verdade tudo aquilo que para eles faz sentido, sem se perguntarem se, afinal, aquilo que se informa é um fato ou uma rematada mentira.

A verdade, portanto, vem perdendo importância até para quem vive dela. Um exemplo é a imprensa, que não raro repercute de maneira irrefletida os debates produzidos a partir de informações distorcidas ou simplesmente falsas. É natural que, algumas vezes, as publicações, no afã de registrar tudo o que pareça ter caráter noticioso, acabem por dar guarida a versões dos fatos que, com o tempo, se provam mentirosas.

O que tem acontecido, porém, é que os fatos se tornaram quase irreconhecíveis ante as certezas ideológicas alimentadas pela acachapante onipresença das redes sociais na vida de quase todos os brasileiros. Num cenário desses, todo aquele que ousar questionar as convicções cristalizadas de parte a parte, mesmo munido de fatos incontestáveis e de argumentos racionais – ou até por causa disso –, será tratado como um ser exótico, uma espécie de rebelde deslocado no mundo dos que, orgulhosamente, se julgam do “lado certo”.

Assim, a influência das redes sociais, que é inegavelmente grande, tornou-se uma explicação mágica para tudo – e para muita gente supostamente bem pensante nada do que acontece fora delas parece ter valor. Baseando-se mais em palpite do que em elementos concretos, muitos atribuem, por exemplo, a surpreendente eleição do presidente Jair Bolsonaro ao seu domínio dessas redes, nas quais teria construído sua candidatura muito antes de a campanha começar. Também se creditam às redes sociais as mobilizações contra o governo da presidente Dilma Rousseff, que acabaram resultando em seu impeachment. Com toda essa suposta capacidade, quase sobrenatural, de entronizar e decapitar reis, as redes sociais tornaram-se uma espécie de fetiche dos formadores de opinião, que há algum tempo veem nelas a grande arena onde se disputa o poder de determinar o que é a verdade.

As redes sociais, até onde é possível concluir, são o lugar onde narrativas se chocam não em busca do esclarecimento, como acontece em sociedades maduras, mas para fazer triunfar a mistificação que favoreça este ou aquele ponto de vista, e onde o consenso só ocorre entre os que já estão de acordo entre si, por razões ideológicas.

É claro que nada do que deriva desse ambiente de franca hostilidade pode ser tomado como base para orientar políticas públicas e muito menos para consolidar as opiniões a partir das quais a sociedade se posiciona acerca dos grandes problemas nacionais. Ao contrário, o debate nacional naturalmente descamba para o terreno da ficção, quando não para o da mais vulgar briga de rua, na qual tem razão aquele que termina a refrega em pé.

No livro O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima diz que o jornalismo, sempre que “envenena a opinião pública, fanatiza-a ou a informa mal, está falhando à sua finalidade”. O autor, que escreveu em 1958, decerto não imaginava a revolução da comunicação digital que ora se atravessa, mas o princípio ali exposto está mais atual do que nunca.

O jornalismo que se deixa submeter à balbúrdia irracional das redes sociais não cumpre sua função, que é a de dar aos cidadãos condições de refletir de maneira efetiva sobre o mundo que os cerca e sobre os problemas que os afetam. Ao contrário, os formadores de opinião que tomam como legítima e digna de consideração a gritaria dos fanáticos, conferindo-lhe ares de autenticidade, estimulam a consolidação do facciosismo que, no limite, inviabiliza os consensos, sem os quais a democracia simplesmente não se realiza.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 17.06.19

Dos heróis e das leis

Quando – e se – deixarmos de ser uma sociedade carente de heróis e nos tornarmos uma sociedade devotada às leis, à Constituição e aos primados do Estado Democrático de Direito, o País terá dado um dos mais significativos saltos civilizatórios de sua história.

Parece, no entanto, que aqui há um pendor atávico ao sebastianismo, como se a Nação estivesse permanentemente à espera da volta de um personagem messiânico para dar cabo das agruras de turno. Como é sabido, o retorno do rei português, desaparecido durante a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, foi ansiosamente aguardado pelos súditos como única forma de salvação diante da crise que se instalou após a sua partida.

As reações à divulgação do conteúdo de conversas atribuídas a integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato e a Sergio Moro, havidas quando o atual ministro da Justiça era o juiz responsável pelos processos relativos à operação na primeira instância, revelam que ainda transcorrerá muito tempo até que aquele virtuoso salto seja dado. A dicotomia “heróis x vilões” vicia o debate público.

A lei parece estar sempre em segundo plano no debate entre aqueles que veem Sergio Moro e alguns procuradores da força-tarefa da Lava Jato – em especial Deltan Dallagnol – como heróis nacionais e os que neles apenas enxergam parcialidade, ardis e dissimulação. Evidente que nada de aproveitável pode sair de discussões em que os interlocutores nem sequer admitem a hipótese de rever suas convicções ante a irrefutabilidade dos fatos e tampouco ao comando da lei.

Nas sociedades civilizadas, o mínimo denominador comum em debates desse tipo são precisamente os fatos, as leis, a Constituição. Não se quer afirmar com isso que, no caso concreto envolvendo a troca de mensagens entre o ex-juiz e ministro da Justiça e um procurador da República, tenha havido ilegalidades. Por ora, pode-se dizer que as conversas foram, no mínimo, inapropriadas para as posições públicas que os interlocutores ocupavam.

Em geral, tal dissociação objetiva – a saber, entre pessoas e suas funções públicas, cuja atuação há de ser delimitada pela lei – não é feita porque viceja nesta porção de mundo um tipo de culto à personalidade. E, em alguns casos, personalidades pairam acima das leis ao sabor da paixão de seus seguidores. Isto pode funcionar muito bem no campo das artes e dos espetáculos, mas é desastroso para a vida política e institucional de um país.

Num país que se pretende sério, não há lugar para “super-heróis”, “salvadores da pátria”, “mitos”, “pais” e “mães da Pátria”. A vida política e institucional republicana, como aquela que todos os que não têm o pensamento aprisionado desejam para o Brasil, não há de ser construída por heróis, por salvadores da pátria. Ela é feita de homens e mulheres imbuídos de elevado espírito público que veem em seu serviço uma parcela de contribuição para o crescimento do País. O fato de haver parcela expressiva da sociedade que põe presidentes da República acima das leis ou classifique como “heróis” servidores que se sobressaem no cumprimento de suas obrigações institucionais diz sobre o nosso grau de amadurecimento político.

São claros os avanços trazidos pela Operação Lava Jato ao combate à corrupção e, principalmente, ao resgate da confiança dos brasileiros no primado democrático da igualdade de todos perante a lei. Os benfazejos resultados do trabalho de membros da força-tarefa, no entanto, não os colocam acima das mesmas leis que devem fazer cumprir.

Compreende-se que, diante de uma longa história de leniência no combate à corrupção e da impunidade crônica que marcou a resposta do Estado aos crimes cometidos por poderosos, políticos ou econômicos, a coragem dos que ousaram romper o status quo foi premiada com a admiração e o respeito da sociedade. Mas isto nem de longe autoriza quem quer que seja a se desviar das leis e da Constituição para dar andamento a seus desígnios, por mais virtuosos que sejam.

A primazia das regras que pautam um Estado Democrático de Direito não é um luxo, é um imperativo para que o País construa no presente o futuro que deseja viver.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 12.06.19

Ouvindo o outro lado

Por Luciano Huck

Pense num país tomado pela corrupção, com parte da população vivendo em favelas, baixos índices de desenvolvimento humano e de educação, sem compromisso com a sustentabilidade, refém da violência urbana e do subdesenvolvido. Errou quem pensou no Brasil. Estamos falando da Coreia do Sul.

Na década de 1980, porém, enquanto por aqui o Chacrinha balançava a pança e animava as massas, do outro lado do planeta começava uma verdadeira revolução silenciosa. Em menos de 40 anos a Coreia do Sul transformou-se numa democracia pujante e num país desenvolvido. Erradicou a pobreza, reduziu os abismos de desigualdades, criou oportunidades, virou sinônimo de inovação e vanguarda tecnológica, reconstruiu seu patrimônio histórico, galgou o topo das listas de desenvolvimento humano, ganhou voz na geopolítica global e, de quebra, fez jovens de todo o planeta se encantarem com a sua música, o K-pop. Como? Simples... Fazendo da educação prioridade de Estado.

Por total obra do destino, eu estava em Seul exatamente na semana em que o Brasil saiu às ruas para protestar contra os cortes dos investimentos em educação. Inspirado pela curiosidade, e no contexto da caminhada a que me propus, em que aprender é mais importante do que ter certezas, resolvi mergulhar no sistema público de ensino sul-coreano, visitar escolas, conversar com alunos, ouvir professores e dialogar com autoridades. Foi inspirador.

No Brasil, quando o tema são políticas públicas, para qualquer direção que olharmos existem demandas e necessidades de enorme complexidade. Na educação, porém, não precisamos reinventar a roda.

Além de já termos avançado de forma relevante nessa área, temos bons exemplos de políticas regionais que colheram expressivos resultados. Como o da cidade de Sobral (CE), as escolas em tempo integral de Pernambuco ou o salto qualitativo do Espírito Santo. A sociedade civil brasileira já produziu material suficiente e de qualidade para alicerçar o desenvolvimento de políticas educacionais viáveis e de alto impacto. Se no Brasil também queremos mirar a redução das desigualdades, a eliminação da pobreza extrema, endereçar soluções urbanas, transformar investimento em produtividade e criar oportunidades, a educação tem de ser a prioridade número um, o centro das atenções.

Há 40 anos o PIB per capita da Coreia do Sul era menor que o do Brasil. Hoje é três vezes maior. Por lá, de um lado, ser professor é ser “sagrado”, admirado e respeitado. O Estado capacita, recicla, mas também avalia. E investe num corpo docente jovem. Apenas 23,5% do total tem mais de 50 anos e boa parte do meio milhão de professores da rede pública foi recrutada entre os 20% melhores alunos do ensino médio. Bons alunos viram bons professores.

De outro, ser aluno é um direito que pode e deve ser exercido. Absorver os ensinamentos disponíveis é sinônimo de direito de escolha e mobilidade social. Estar sentando na sala de aula não significa necessariamente estar aprendendo. Assim como o Brasil vem discutindo a implementação da sua base curricular comum, por lá eles entenderam que a receita implementada na década de 80 já não respondia a todas as demandas contemporâneas.

O século 21 trouxe novos desafios, menos programáticos e mais existenciais. E a Coreia do Sul ensaia mais um salto qualitativo, um novo sistema de ensino conectado a essas novas demandas. Considerando o histórico patriarcal das sociedades orientais, a disciplina familiar rígida e a excessiva competitividade natural do povo coreano, derrubar as barreiras igualando homens e mulheres no sistema educacional, abrindo diálogo entre professor e aluno e dissociando esforço de exagero, esses são sinais claros da evolução da sociedade.

É fato que o país lida com altos índices de suicídio entre os jovens. Mas é importante refletir sobre esse dado. Realmente, o sucesso acadêmico virou obsessão familiar, o que transformou o dia a dia do estudante sul-coreano numa maratona sem fim, com a inacreditável média de mais de 15 horas diárias dedicadas aos estudos. E como, evidentemente, nem todos conseguem um lugar no alto do pódio, o grau de frustração é enorme.

Ao mesmo tempo, entender que o índice de suicídios na Coreia seja um dado exorbitante depende da referência. Como praticamente não existe violência no país, o atentado à própria vida acabou encabeçando a lista dos problemas nacionais. Para ter uma ideia, enquanto o Brasil lida com o estarrecedor número anual de 63 mil mortes violentas, a Coreia do Sul teve menos de 10 mortes de civis por arma de fogo no último ano.

Nas últimas décadas as políticas públicas educacionais sul-coreanas conviveram com líderes autoritários, eleições democráticas, governos de direita e esquerda, escândalos de corrupção e mandatários encarcerados, mas jamais foram postas em xeque. Interessante registrar que desde 2007 os secretários de Educação são escolhidos pela população em eleições diretas.

Retornei ao Brasil poucos dias atrás. Quase 30 horas de voo separam Songdo, minha última parada na Coreia do Sul, do Rio de Janeiro, onde moro. Enquanto por lá toda a água da cidade é reciclada, o lixo doméstico de 130 mil moradores viaja por dutos de sucção até usinas de reciclagem e retorna em forma de energia, o índice de violência é zero e para cada grupo de 10 mil habitantes existe uma escola pública, por aqui não consigo sequer chegar em casa. As vias que ligam a zona sul à zona oeste estão obstruídas, professores morrem abatidos a tiros a caminho do trabalho, mães desesperam-se diante da própria impotência e nem os voos para a outrora Cidade Maravilhosa aterrissam mais por aqui.

Nas ruas, professores, pais e alunos levantam suas vozes em defesa da educação. Sinceramente, espero que esses gritos ecoem, porque só ela transforma de verdade.

Não é rápido, não é simples, não é fácil.

Mas é o único caminho.

Luciano Huck é empresário e apresentador de TV. Este artigo foi publicado originalmente em o Estado de São Paulo, edição de 24.05.19.

Hostilidade como método

Jair Bolsonaro tem agido cada vez mais como líder de facção, e não como presidente da República. Invocando sempre a necessidade de satisfazer seus eleitores, malgrado o fato de que foi eleito para governar para todos, Bolsonaro tem contribuído para transformar debates importantes em briga de rua. É a reedição do ominoso “nós” contra “eles” que tanto mal fez ao País durante os desastrosos anos do lulopetismo.

Nesse ambiente crispado, temas cruciais para o futuro, como a reforma da Previdência, ou mesmo questões mais imediatas, como a necessidade de contingenciamento orçamentário, são desvirtuados pelo alarido dos radicais, o que nada tem a ver com um saudável debate democrático. E o presidente, que deveria, pelo cargo que ocupa, ser o condutor político desse debate, parece mais empenhado em hostilizar todos os que não lhe prestam obsequiosa vassalagem – e isso inclui não apenas seus adversários naturais, mas também, por absurdo, aqueles que desejam colaborar com o governo.

Com isso, Bolsonaro isola-se, num momento em que o País precisa de liderança e inteligência política para construir as soluções para a gravíssima crise ora em curso. São cada vez mais preocupantes os sinais de que o presidente não tem os votos necessários para aprovar no Congresso nem mesmo projetos de lei banais. As derrotas na Câmara se sucedem em quantidade inusitada para um presidente que teve 57,8 milhões de votos, elegeu-se como a grande estrela de uma formidável onda de renovação da política e deveria estar gozando a tradicional lua de mel com o Congresso e com os eleitores, reservada a todo governante em início de mandato.

Ao contrário, Bolsonaro viu despencar sua popularidade em um par de meses, resultado da paralisia de seu governo ante a aceleração da crise econômica, traduzida pelo aumento do desemprego e pela perspectiva cada vez mais concreta de uma nova recessão. Cresce a sensação – a esta altura quase uma certeza – de que o presidente não sabe o que fazer para reverter o quadro. Pior: as palavras e os atos do presidente e de alguns de seus ministros, quase sempre destinados apenas a excitar a militância bolsonarista nas redes sociais, contribuem para dificultar ainda mais qualquer entendimento político em torno de soluções viáveis para o País.

“São uns idiotas úteis”, disse o presidente ao se referir aos manifestantes que foram às ruas na quarta-feira para protestar contra o contingenciamento de verbas na área de educação. No mesmo dia, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, destratou deputados que o haviam convocado para uma sabatina na Câmara, preferindo a pesporrência ao diálogo. Tudo isso pode ter feito a alegria da seita bolsonarista no Twitter, mas o fato é que o governo começa a encarar nas ruas, precocemente, as mesmas dificuldades que já enfrenta há algum tempo no Congresso – situação que, como mostra a história recente do País, ninguém sabe como começa, mas todos sabem como termina.

A prudência recomenda, portanto, que Bolsonaro reveja urgentemente seu método de governo. O problema é que o presidente não tem demonstrado a necessária sensatez para a difícil missão que as urnas lhe conferiram. Ao contrário: sempre que pode, Bolsonaro acentua sua antipatia pelos parlamentares, tratando as adversidades da vida política – que ele agrava ao invés de amenizar – como sabotagem a seu governo. E ontem ele dobrou a aposta: disse que não vai ceder “a pressão nenhuma” em nome da “tal governabilidade”, mesmo que isso lhe custe o cargo. “É isso que querem? Um presidente vaselina para agradar todo mundo? Não vai (sic) ser eu. O que vai acontecer comigo? O povo que decida, pô, o Parlamento decida, eu vou fazer minha parte. Eu não vou sucumbir”, desafiou.

É nesse clima de antagonismo que o governo pretende encaminhar a reforma da Previdência e outras mudanças importantes para o País – e a desculpa bolsonarista para um eventual fracasso em qualquer dessas etapas cairá na conta daquilo que o presidente e seus seguidores chamam de “velha política”.

Diante disso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse ontem que o Congresso vai “fazer a reforma da Previdência, com o governo ajudando ou atrapalhando”. Seria melhor se, pelo menos, não atrapalhasse.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 17.05.19

Não foi essa a promessa

Na campanha eleitoral, Jair Bolsonaro prometeu adotar uma nova atitude contra a corrupção e a criminalidade na vida pública. Ao tomar posse, o presidente reiterou, perante o Congresso Nacional, o compromisso de “restaurar e reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”.

Pois bem, diante da notícia do avanço das investigações relativas às movimentações financeiras do seu filho Flávio e do ex-funcionário do gabinete dele na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) Fabrício Queiroz, o presidente Jair Bolsonaro esqueceu o que havia prometido e reagiu ao modo antigo – aquele rejeitado contundentemente pela população. Em vez de apoiar o trabalho das instituições e facilitar o esclarecimento dos fatos, o presidente optou por denunciar espúrias alianças que estariam confabulando contra ele.

“Estão fazendo esculacho em cima do meu filho”, disse Jair Bolsonaro, em tom exaltado. Não soube apontar, no entanto, nenhum elemento que pudesse desabonar o trabalho investigativo feito até agora. Além do mais, caso Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz entendam que houve algum excesso por parte das autoridades investigativas, eles têm, como todo cidadão num Estado Democrático de Direito, caminhos legais para fazer valer seus direitos e, se estiverem dispostos, apresentar suas versões do que teria ocorrido.

Ao ser questionado sobre as investigações envolvendo seu filho mais velho, o presidente Jair Bolsonaro ainda disparou críticas aos governos do PT e à imprensa, como se as investigações fossem apenas intrigas da oposição, real ou imaginária. De acordo com o Ministério Público (MP), foram encontrados “indícios de subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas” de imóveis feitas por Flávio Bolsonaro durante seu mandato como deputado na Alerj. Entre 2010 e 2017, o parlamentar teria lucrado R$ 3,08 milhões com as transações imobiliárias, que envolveram 19 apartamentos e salas comerciais. O MP ainda constatou o “constante uso de recursos em espécie nos pagamentos”.

Foram precisamente essas suspeitas de lavagem de dinheiro que embasaram a quebra de sigilo bancário e fiscal de 95 pessoas e empresas deferida, no fim de abril, pela Justiça do Rio. Entre as pessoas investigadas, oito trabalharam no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.

As explicações até agora foram pouco convincentes. Na defesa técnica apresentada ao MP, Fabrício Queiroz alegou que recolhia os salários dos colegas e os distribuía a um número maior de assessores, para ampliar a rede de colaboradores de Flávio Bolsonaro. Esse esquema informal contraria a própria natureza do salário, que é remuneração personalíssima. Não é da competência de assessor remanejar destino de salário dos outros funcionários de gabinete.

Além disso, desde 2011, a Alerj dispunha de procedimento específico para ampliar a rede de colaboradores de um parlamentar, sendo possível destinar formalmente a verba referente a funcionários de gabinete a até 63 pessoas. Assim, a própria defesa de Queiroz afirmou que, no gabinete de Flávio Bolsonaro, não se seguia o procedimento previsto pela Alerj – e isso é de responsabilidade direta do parlamentar.

Não foi o PT quem disse isso, e muito menos a imprensa. Foi o próprio Fabrício Queiroz, cuja proximidade com a família do presidente é admitida amplamente. Questionado se Queiroz tinha confiança do seu pai, Flávio Bolsonaro disse: “Com certeza, ou não teria vindo trabalhar comigo. Ele convivia mais comigo. Mais de dez anos trabalhando comigo quase todo dia. Eu estava mais junto com o Queiroz algumas vezes do que com a minha família”.

Só os outros – só os “inimigos” – é que podem ser investigados? Aqueles que são próximos da corte presidencial estariam imunes a tais inconvenientes? O ministro da Justiça, Sergio Moro, poderia ajudar a esclarecer ao presidente Bolsonaro como a lei deve funcionar. Igualmente, para todos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 20.05.19.

O homem da cadeira de rodas

Por Denis Lerrer Rosenfield

O homem da cadeira de rodas fez o Brasil caminhar para a frente em momentos delicados da História recente. Soube enfrentar várias crises, sempre preocupado com o destino do País, enquanto bem maior a ser preservado. Nos últimos anos, o general Eduardo Villas Bôas foi acometido de doença degenerativa que o destinou a uma cadeira de rodas, sem que por isso tenha perdido sua mente de estrategista nem sua dignidade moral.

Já o vi, numa ocasião, falando em sua casa com o ex-presidente da República acerca da sucessão no Ministério da Defesa, defendendo com fidalguia a posição do Exército e das Forças Armadas em geral, com toda a sua dificuldade de locomoção. Nada disso afetava sua capacidade analítica. A janta transcorria normalmente, com sua mulher, dona Cida, dando-lhe de comer na boca. Fui tomado por um sentimento intenso de beleza moral, se posso utilizar tal expressão. A doença desaparecia pelo ato de amor dela e de sua filha. A conversa transcorria normalmente, como se isso fosse – como foi – um mero acidente.

Trago aqui o testemunho da amizade para melhor expressar a minha indignação com os ataques de que Villas Bôas foi objeto, vindos do ideólogo do presidente e de sua família. Recorrer à condição física do general como meio de insulto é abjeto. Que o digam outros deficientes físicos do País. E isso porque ousou tomar posição contra ataques que as Forças Armadas, e o Exército em particular, têm sofrido.

A situação é propriamente surrealista: um ideólogo que mora por decisão própria nos EUA tutela o grupo ideológico presidencial, criando conflitos intermináveis, enquanto o governo não consegue enfrentar os problemas mais básicos do País, como crescimento econômico, desemprego, investimentos e distribuição de renda. O Brasil tornou-se refém de posições ideológicas que nos impedem de andar para a frente. Sentado, em sua cadeira de rodas, o general caminha melhor do que aqueles que o atacam.

Nada disso é aleatório. Os militares vieram a participar do atual governo por iniciativa individual, pois acreditaram ter uma missão a cumprir. Apesar das aparências, não agem como um grupo. Não se encontram nem se reúnem regularmente. Muitas vezes nem se falam. Os seus opositores, porém, têm estrutura, constituem um grupo organizado com coordenação, ideologia, operadores digitais, e uma estratégia de considerar todos os que com eles não se identificam como inimigos.

E os inimigos escolhidos por esse grupo são atualmente os militares. Curiosamente, a narrativa política deslocou-se do PT para esses indivíduos fardados, como se eles o ameaçassem verdadeiramente. O vice-presidente Hamilton Mourão foi alvo dos maiores impropérios, que, de tão baixos, nem merecem ser reproduzidos. Atentam contra a sua honra pessoal e a farda que sempre vestiu. Mourão teve conduta exemplar no Exército, sendo um homem de convicções. O secretário de Governo, general Santos Cruz, tornou-se recentemente alvo de ataques do mesmo tipo. Santos Cruz foi um exemplo para seus companheiros de farda, com carreira ímpar de combatente, pessoa também da maior retidão moral. Não se pode senão qualificar de torpeza ética o que está acontecendo com eles.

Talvez o presidente da República não tenha atentado convenientemente para o fato de ser constitucionalmente comandante-chefe das Forças Armadas. Não é mais deputado, tampouco capitão. Ele se situa acima dos generais e, como tal, tem o dever de defender a instituição militar e os membros que a compõem. Não poderia, como fez, afagar o detrator-mor das Forças Armadas, até mesmo com a medalha da Ordem de Rio Branco, quando mais não seja, pelo fato de ser tal gesto contraditório com a função que exerce. Ou seja, o próprio presidente é atacado quando a instituição militar é dessa forma denegrida.

Para melhor compreendermos o que está acontecendo em termos de composição política e de ideias, não basta caracterizarmos o atual governo como formado por conservadores e liberais, pois algo falta aí. O grupo dito de conservadores é constituído por um conservadorismo de tipo ideológico, alicerçado na concepção do político enquanto distinção amigo/inimigo; por um conservadorismo, digamos, institucional, composto por militares e uma ala evangélica, que os apoia, e pelos liberais.

Os primeiros procuram criar uma situação de instabilidade permanente, sempre atacando e procurando um inimigo, contanto que haja um, por mais imaginário que eventualmente seja. Nada têm a propor além desses ataques sistemáticos, como se estivessem à frente de uma revolução, constituindo a sua vanguarda. Quando não consideram o outro como espelho de si mesmos, tomam-no por alguém perigoso. A insegurança deles se traduz pela instabilidade de sua ação política.

Os segundos têm como objetivo assegurar a prosperidade do País via conservação de suas instituições e de seus valores. Caracterizam-se pela preservação da ordem democrática, atentos a desvios que possam afetar o seu curso. O seu conservadorismo, nesse sentido, poderia ser qualificado como essencialmente institucional, colocando-se como liberais do ponto de vista da economia. A pergunta que deveria ser feita é: o que procuram os que os atacam? Qual seria o seu objetivo?

Os liberais estão, sobretudo, voltados para as necessárias reformas econômicas, não entraram na refrega política. Sabem que tal grau de confronto só prejudica o projeto reformista, sem o qual o País rumará para um futuro sombrio, com risco até mesmo institucional. Estão dando como pressuposto o liberalismo político que caracteriza as instituições democráticas brasileiras, embora se possa perguntar por sua capacidade de resiliência se a reforma da Previdência não for aprovada ou se o seu desfecho for pífio.Que o Brasil

Denis Lerrer Rosefield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Inventando problemas inúteis

Desde que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro comentou mais de uma vez sua inadequação para o cargo que ocupa. No mês passado, por exemplo, ele disse: “Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. Diante dessa sua percepção, seria muito oportuno que, ao menos, o presidente Bolsonaro se esforçasse para não criar novas dificuldades para o País e para o governo – e, por que não dizer, para si mesmo. No entanto, ele parece indiferente a essa preocupação, fazendo afirmações que geram problemas adicionais e, consequentemente, mais desgastes, novas perdas de energia e necessidade de contínuos esclarecimentos.

Em entrevista à Rádio Bandeirantes no domingo passado, o presidente Bolsonaro deu a entender que, no momento em que convidou o então juiz de primeira instância Sergio Moro para ser ministro da Justiça, teria feito um acerto a respeito de uma futura indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Eu fiz um compromisso com o Moro, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura (para assumir o Ministério). Eu falei ‘a primeira vaga que tiver lá (no Supremo) está à sua disposição’”, disse o presidente Jair Bolsonaro.

É absolutamente extemporânea a discussão sobre quem será o próximo indicado ao STF. A princípio, a próxima vaga estará disponível apenas em novembro de 2020, com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello, em razão da idade.

Como se não houvesse outros problemas a serem enfrentados, o presidente Jair Bolsonaro adiantou uma questão que exigirá uma decisão sua apenas daqui a um ano e meio. Além disso, o comentário deixou o ministro Sergio Moro em situação delicada, pois o presidente Bolsonaro deu clara indicação de que houve uma relação de troca com o futuro ministro da Justiça: ele abandonava um capital – inclusive financeiro – de 22 anos em troca de uma futura indicação por vaga no Supremo. Coisas assim foram examinadas, à farta, na Operação Lava Jato.

No dia seguinte à entrevista do presidente Bolsonaro, durante palestra em Curitiba, Sergio Moro falou sobre o convite para o Ministério da Justiça. “Ele (Jair Bolsonaro) foi eleito, fez o convite, fui até a casa dele no Rio de Janeiro. Nós conversamos e nós, mais uma vez publicamente, eu não estabeleci nenhuma condição. Não vou receber convite para ser ministro e estabelecer condições sobre circunstâncias do futuro que não se pode controlar”, disse o ministro da Justiça. E assim, para o bem da República, esperamos que tenha sido.

Sergio Moro ainda declarou: “Quando surgir a vaga (para o STF), isso vai ser discutido, antes não”. Seria muito conveniente para o País que o presidente Bolsonaro tivesse essa mesma disposição de respeitar os tempos de cada decisão, sem adiantar problemas. Como se fosse um assunto a ser debatido na semana que vem, Jair Bolsonaro disse na entrevista de domingo: “Eu vou honrar esse compromisso com ele (Sergio Moro) e, caso ele queira ir para lá, será um grande aliado, não do governo, mas dos interesses do nosso Brasil dentro do STF”.

Quando age assim, o presidente Bolsonaro não prestigia o ministro Sergio Moro e tampouco o fortalece no cargo. A rigor, ele desgasta um importante integrante do primeiro escalão do seu governo, dando a entender que, com o convite, havia também a promessa de um benefício futuro. Há menos de um mês, o ministro Sergio Moro declarou que “ir para o STF seria como ganhar na loteria”.

Além de desgastar o ministro Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro deteriora sua própria imagem como governante. Com urgentes problemas a serem enfrentados – a reforma da Previdência, sendo o mais importante e decisivo agora, é apenas um destes desafios –, o presidente Jair Bolsonaro revela ter frágil percepção das prioridades do País. Quem tem visão clara das metas da administração pública e sabe das dificuldades que terá de enfrentar para realizá-las não inventa extemporaneamente problemas que consumirão suas já escassas energias.

A fala de Jair Bolsonaro ainda alimenta inquietações no restante de sua equipe, que certamente subtrairão muito da já pequena eficácia de seu governo: se o presidente Bolsonaro trata assim, gratuitamente, o seu “superministro” Sergio Moro, o que será capaz de fazer com os outros?

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 14.05.19

Partido não é só um nome

Uma reportagem publicada no domingo passado pelo Estado mostrou que, nos últimos anos, cinco dos dez maiores partidos do Congresso já mudaram ou estudam mudar de nome. Em alguns casos, trata-se de tentar fazer o eleitor esquecer os escândalos de corrupção nos quais algumas dessas legendas se envolveram; em outros, é uma forma de buscar se reconectar com os cidadãos, em meio ao descrédito generalizado de que padece a política.

De uma forma ou de outra, é o reconhecimento, na prática, de que os partidos em geral há muito tempo não conseguem oferecer-se como representantes dos anseios e das demandas dos brasileiros. Em resumo, salvo raríssimas exceções, já não são partidos, com perfil ideológico e programático facilmente identificável, mas sim amontoados de interesses particulares – e cujos caciques só enxergam o poder como oportunidade de bons negócios para si e para os seus.

Já há até mesmo quem diga que os partidos – entendidos como entidades que representam ideias políticas abrangentes – estão com os dias contados. “O mundo exige outra forma de organização. Os partidos vão deixar de existir”, disse o ex-deputado Roberto Freire, fundador e líder do Cidadania, ex-Partido Popular Socialista, que um dia já foi Partido Comunista Brasileiro. “A comunicação direta com o eleitor é uma nova realidade. Hoje é só pelas redes. Ninguém espera mais uma articulação partidária por células em sindicatos de base”, disse o experiente político – cujo partido tirou o “socialista” do nome para conseguir atrair movimentos de renovação política, como o Agora, o Livres e o Acredito, todos de viés liberal.

Raciocínio semelhante desenvolveu a deputada federal Renata Abreu (SP), presidente do antigo Partido Trabalhista Nacional, rebatizado de Podemos: “Somos cidadãos do século 21, mas lidamos com instituições concebidas no século 18. O que mobiliza hoje a sociedade não é mais a ideologia de esquerda ou direita, mas as causas, que são muito dinâmicas”. A ser verdadeira essa análise, estamos caminhando para a formação de partidos políticos à la carte, que defenderão “causas” à medida que surjam, e não princípios gerais, que não variam ao sabor das circunstâncias.

Parece óbvio que nem todas as legendas que trocaram de nome o fizeram em razão dessa suposta revolução na representação política. Algumas delas tinham problemas bem menos teóricos para resolver, como, por exemplo, o desgaste de imagem causado por desmandos, corrupção ou completo descaso pelo eleitor. Em todos os casos, porém, os partidos trocaram ou trocarão de nome na esperança de reduzir a rejeição a seus antigos rótulos – mas é improvável que o eleitor “compre” esse velho produto que tenta se fazer passar por novo, pois, por trás da aparência de rejuvenescimento, seus antigos defeitos continuam evidentes.

Quando o MDB estuda trocar de nome pela segunda vez em menos de dois anos (era PMDB até 2017 e agora pode se tornar apenas “Movimento”), o partido serve de exemplo eloquente de que um nome, por melhor que seja, não mudará a natureza de uma legenda que há muito tempo deixou de ter princípios e ideias discerníveis – a tal ponto que já se perdeu na memória o passado do MDB como representante da oposição durante o regime militar e como vanguarda da luta pela redemocratização.

O mesmo se pode dizer do PSDB, partido que há anos não é mais nem sombra da agremiação cuja plataforma social-democrata conquistou uma parte considerável da classe média. Ao discutir uma troca de nome e de identidade partidária para superar a sequência de fiascos eleitorais e dar novo rumo à legenda, os tucanos podem perder o pouco que resta de seu patrimônio político, sem ter nenhuma garantia de que conquistarão novos eleitores.

Mesmo dentro do PT cogitou-se uma mudança de nome. Embora prontamente descartada, a mera hipótese indica que até o partido mais sólido do ponto de vista programático sofreu a tentação de troca de identidade como paliativo para sua crise.

De tudo isso fica a certeza de que o sistema partidário do País está sendo triturado – resultado de décadas de alheamento da elite política em relação às verdadeiras necessidades dos eleitores.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 08.05.19

Quatro meses de Jair Bolsonaro

Por Bolívar Lamounier

Decorridos 120 dias da posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República, já dá para fazer um balanço razoável. É o que me proponho a fazer neste artigo.

O fato mais importante da eleição foi, a meu ver, a derrota do PT. Mesmo com um candidato “manso” como Fernando Haddad, mais quatro ou mais oito anos de PT na Presidência seriam um desastre. O Brasil ficaria muito perto de um ponto de não retorno, uma vez que a política econômica petista insistiria nos desatinos a que o partido sempre se devotou. A miríade de “movimentos” que o integram ou apoiam manteria o País num permanente clima de ameaça às instituições, afugentando investidores e impedindo a retomada do crescimento. O futuro seria a quase total estagnação que temos tido desde que a exportação de commodities para a China perdeu seu poder de arrastre.

Por intermédio principalmente dos ministros Paulo Guedes e Sergio Moro, o presidente tem condições de colocar as políticas econômica e de segurança no rumo certo. De efeitos práticos, por enquanto, há pouco a mostrar, mas pelo menos a reforma da Previdência parece bem encaminhada. Sem ela o Brasil simplesmente não tem futuro. Já passa da hora de os que a ela se opõem caírem na real. Reformar a Previdência é o primeiro passo, outras reformas cedo ou tarde terão de entrar na agenda; reformas duras, que finalmente nos permitam superar a “armadilha” (melhor seria dizer a “maldição”) da “renda média”. Com a renda por habitante crescendo no ritmo medíocre dos últimos tempos - na faixa de 2% a 3% ao ano -, levaremos algo entre 25 e 30 anos para dobrá-la, um resultado que beira o impensável. O que se requer é, portanto, uma reforma abrangente do Estado e do gasto público, a energização do setor privado e uma forte injeção de ânimo para a sociedade encarar a montanha de problemas que se acumularam nas últimas décadas.

Embora os efeitos práticos ainda sejam modestos, é preciso reconhecer a importância dos sinais que Bolsonaro e seus principais auxiliares emitiram no 1.º de Maio. Em vez da tradicional exaltação do getulismo - nossa conhecida combinação de nacionalismo estatizante e paternalismo trabalhista -, ouvimos uma afirmação enfática dos novos caminhos que o País precisa trilhar. Caminhos essencialmente liberais. Sim, liberais, porque a aspiração social-democrata que compartilhamos e a Constituição de 1988 consagrou é apenas isto, uma aspiração, vale dizer, um ideal desprovido de meios práticos. Um Estado quebrado, que mal e parcamente consegue cumprir seu papel na educação, na saúde e no saneamento, obviamente não tem como sustentar o papel economicamente ativo que o antigo conceito de social-democracia pressupunha.

E foi justamente esse o ponto fulcral do discurso de 1.º de Maio: um “compromisso (...) com a plena liberdade econômica, única maneira de proporcionar, por mérito próprio e sem interferência do Estado, o engrandecimento de cada cidadão”.

Mas em dois aspectos, pelo menos, há severas restrições a fazer. O primeiro diz respeito à “fala” do governo, vale dizer, ao que se diz ou se insinua, ou, mais amplamente, à liturgia das funções públicas. O presidente precisa urgentemente controlar a cacofonia que se manifesta quase diariamente em seu governo, para a qual ele mesmo volta e meia contribui. Era razoável esperar que o açodado anúncio da mudança da embaixada em Israel para Jerusalém e o envergonhado recuo que se lhe seguiu tivessem deixado um benfazejo rastro de sobriedade, mas esse decididamente não é o caso. Bolsonaro e vários ocupantes do primeiro escalão têm-se esmerado em falar pelos cotovelos, com prejuízo para a estabilização das expectativas entre os agentes econômicos. O pedido de Bolsonaro (“pura brincadeira”, segundo disse) ao presidente do Banco do Brasil para pensar com o coração e baixar um “pouquinho” os juros para os ruralistas dá uma boa ideia dos estragos que podem advir por esse caminho.

A área mais difícil, não direi de elogiar, mas simplesmente de compreender, é a da educação. A primeira indicação para a pasta, a do sociólogo Ricardo Vélez Rodriguez, mostrou-se assaz inadequada. Consta que seu sucessor, o ministro Abraham Weintraub, merece um crédito de confiança, tendo em vista suas aptidões no campo administrativo e a experiência da vida prática adquirida no mercado financeiro. Fato é, porém, que até o momento ele nada nos proporcionou que nos permita crer que tenha um pensamento consistente a respeito do sistema educacional brasileiro e das opções para reformá-lo. A reformulação da base curricular efetivada em 2017 pode ser considerada um passo na direção certa, mas é pouco, muito pouco, tendo em vista o caráter absolutamente prioritário da área educacional. Para piorar as coisas, o ministro, talvez inspirado pelo guru da Virgínia, parece inclinado a atacar moinhos de vento, leia-se o “marxismo cultural”, e mais precisamente as ciências humanas. Ora, a última coisa que um governo pressionado por uma agenda econômica urgente e inexorável deve fazer é se imiscuir em questões culturais ou em pautas valorativas e comportamentais. Nessa área, nosso país é manifestamente diversificado e conflituoso. Equacionar os pontos de atrito que aí surjam e eventualmente ganhem corpo é função da sociedade ou, em casos mais difíceis, do Congresso Nacional, no limite mediante convocação de plebiscito.

Seria um alívio ver o ministro Weintraub se debruçar sobre os problemas realmente críticos do setor. Não me refiro ao gasto público. Como proporção do PIB, o gasto educacional brasileiro é bastante alto. Mas os resultados permanecem pífios. O ponto nevrálgico, que requer ação sistemática e urgente, é a formação dos professores, notadamente para o segundo grau. Melhorá-la muito, rapidamente e a baixo custo: eis o desafio sobre o qual o ministro já deveria estar refletindo.

Bolívar Lamounier é cientista político. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Autor do livro "Liberais e Antiliberais: A Luta Ideológica deNosso Tempo (Cia. das Letras). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 11.05.19.

À espera da virada. Que ninguém vê.

Por Celso Ming

Nestes quatro meses de governo Bolsonaro, a quantidade de intrigas, de distribuição de sopapos verbais, até mesmo de baixo calão, e de puro desgoverno não tem precedentes e, decididamente, não ajuda a recuperação do País.

A política econômica é declaradamente neoliberal, mas enfrenta o jogo protecionista e antiglobalizante da chancelaria.

Os filhos do presidente, também conhecidos, respectivamente, por agentes 01, 02 e 03, mais o suposto guru filosófico trocam insultos com os generais que fazem parte do governo.

O Executivo ignora o Legislativo, não sabe se adere a alguma forma de presidencialismo de coalizão – o que implica alguma forma de partilha de poder e de benesses – ou se parte para uma forma descolada de governo, seja lá o que isso signifique.

A sociedade espera com ansiedade um clarão no horizonte que ilumine tudo e vire o jogo modorrento e perdedor de agora.

A principal iniciativa é o projeto de reforma da Previdência e, no entanto, o presidente não parece engajado na empreitada, o que sugere que ele pode não acreditar no que está propondo.

Há quatro meses, ainda havia a expectativa de que as reformas mudariam o jogo. Agora, espraia-se a noção de que também aí não há milagre.

A pergunta à espera de resposta é se a economia real se move como nos Estados Unidos, apesar de Donald Trump e de suas trumpadas. A percepção geral é a de que se move sim, mas para trás.

O desemprego atinge 13,4 milhões de pessoas, as novas projeções do PIB não são mais de avanço perto de 3,0% ao ano, mas de, no máximo, 1,49%, como se viu na última pesquisa Focus, do Banco Central.

Com a demanda muito perto da estagnação e a indústria asfixiada, seria de esperar que a inflação resvalasse para a altura dos 3,5% em 12 meses, mas voltou a subir, para acima dos 4,0%. A economia argentina, terceiro maior parceiro comercial do Brasil, está mergulhada na crise.

E, agora, a ameaça de guerra comercial entre Estados Unidos e China ficou ainda mais forte, situação que multiplica as incertezas.

Um olhar atento ainda enxerga sinais de vitalidade. O agronegócio, por exemplo, embora tenha perdido alguma renda com a queda dos preços internacionais das commodities, segue com forte dinamismo.

As contas externas, área que, no passado, foi a mais vulnerável, seguem robustas. Também se esperam bons resultados do setor do petróleo, sob pressão dos governadores, que não tiram os olhos das promessas com royalties: a produção nacional de óleo e gás aproxima-se dos 3 milhões de barris diários, mais que a dos Emirados Árabes, sétimo maior fornecedor do mundo.

Os leilões de serviços públicos não caminham na velocidade desejada, mas caminham.

Não se sabe ainda o quanto esse lado encorajador está sendo contaminado pela onda de desalento. Qualquer pessoa sabe que um doente se recupera mais facilmente se estiver animado e engajado na cura da sua enfermidade. Com a economia também é assim, porque o desânimo tende a arrastar os investidores para a retranca, adia o consumo e segura o crédito.

A sociedade espera com ansiedade um clarão no horizonte que ilumine tudo e vire o jogo modorrento e perdedor de agora. Mas, para isso, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro comece a governar.

Confira. Sem mudança nos juros

Também desta vez, a reunião do Copom não trouxe novidades. Foram mantidos os juros de 6,5% ao ano, como mostra o gráfico. O Banco Central reconhece que a evolução do PIB está mais lenta do que o esperado, mas não se mostrou, por conta da baixa demanda, nem um pouco inclinado a reduzir os juros.

Ao contrário, apontou que as incertezas quanto ao destino das reformas pode puxar a inflação na direção oposta. Não há indícios de que, na reunião de 19 de junho, o Copom possa reduzir os juros.

Celso Ming é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 09.05.19

Uma nova guerra nas estrelas?

Por Paulo Roberto da Silva Gomes Filho

No dia 27 de março, um evento causou surpresa e chamou a atenção para uma corrida silenciosa que está sendo travada pelas maiores potências militares do planeta: a disputa pelo domínio militar na última fronteira da humanidade, o espaço. A Índia anunciou ao mundo o sucesso no lançamento de um míssil que tinha por alvo um satélite do próprio país.

O alvo, que estava a altitude aproximada de 300 km, foi atingido e destruído. Assim a potência hindu se juntou ao seletíssimo grupo de três países, EUA, Rússia e China, capazes desse extraordinário feito militar.

O primeiro-ministro Narendra Modi comemorou: “A Índia obteve uma conquista inédita hoje. O país gravou seu nome dentre as potências espaciais”.

Os satélites desempenham papel fundamental na guerra moderna. Por eles transitam os fluxos de comunicações e dados. Guiam as famosas “armas de precisão cirúrgica” e as aeronaves remotamente pilotadas, os drones. São responsáveis pelo imageamento do campo de batalha, desempenhando papel decisivo na obtenção e difusão de dados de inteligência. Compõem as constelações responsáveis pelos sistemas GPS e similares, onipresentes em aplicações militares e em diversos e muito populares aplicativos em uso pela moderna sociedade civil.

Mas o sucesso da Missão Shakti, como foi batizada, não está somente na constatação de que agora os indianos podem destruir satélites inimigos. Como os avanços tecnológicos são na maioria das vezes de uso dual, o êxito também significa que o país atingiu invejável avanço na tecnologia que permite a fabricação de mísseis capazes de interceptar mísseis inimigos.

As reações internacionais foram imediatas. A mais veemente veio do Paquistão, país que está envolvido em disputa militar com a Índia pela posse da região da Caxemira, há décadas. O ministro das Relações Exteriores declarou que “o espaço é uma herança comum da humanidade e toda nação tem a responsabilidade de evitar ações que possam levar à sua militarização”.

A China, que na década de 1960 travou conflito armado com a Índia pela região do Tibete do Sul, reagiu cautelosamente. Expressou sua esperança de que “todos os países possam promover a paz e a tranquilidade no espaço”. Interessante notar que a China já tinha efetuado teste semelhante em 2007.

O secretário de Defesa dos EUA, Patrick Shanahan, alertou para os riscos causados pelos detritos produzidos por esse tipo de teste. O general David D. Thompson, subcomandante do Comando Espacial da Força Aérea dos EUA, expressou-se na mesma direção. Questionado por repórteres, declarou que esse tipo de teste preocupa não só pelo risco para os satélites dos EUA, “mas também pela produção de detritos que podem permanecer no espaço por longo tempo, o que pode causar danos em efeito cascata”.

Apesar da reação internacional, parece ser tarde para impedir a militarização do ambiente espacial. Embora até hoje nunca tenha havido uma ação militar àquela altitude, as potências militares do planeta preparam-se a passos largos para essa realidade. A Estratégia de Defesa dos EUA reconhece que a competição entre as grandes potências é o principal desafio à sua segurança e que o espaço é um dos domínios onde essa competição se travará. Reconhece, ainda, que China e Rússia têm capacidade de atuar militarmente no espaço, reduzindo gravemente a efetividade militar do país e de seus aliados. Para se contrapor a isso, em 2018, o presidente Trump declarou a intenção de criar a United States Space Forces (USSF), Força Espacial dos EUA, uma nova Força Armada. Em março deste ano o Ministério da Defesa americano encaminhou a proposta de criação da nova Força ao Congresso. Caso o Congresso aprove, a nova Força será criada em 2020.

Em 2015 a China promoveu uma grande reestruturação de suas Forças Armadas. Foram criadas duas novas Forças, a Força de Foguetes e a Força Estratégica de Apoio, esta para atuar nos domínios cibernético e espacial. Apesar da pouca informação disponível, parece claro que essas Forças foram criadas, dentre outras finalidades, com o foco no domínio espacial.

A Rússia, a exemplo da China, também reorganizou recentemente suas Forças militares. Em 2015 as capacidades espaciais dispersas pelas Forças Armadas foram reunidas numa nova Força, batizada como Força Aeroespacial de Defesa. A doutrina russa de defesa, de 2010, assim como a norte-americana, atribui ao espaço uma função essencial, afirmando que “assegurar a supremacia na terra, no mar, no ar e no espaço será fator decisivo para que os objetivos sejam atingidos”.

A década de 1940 assistiu ao nascimento das Forças Aéreas. O lançamento das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki mostrou a um mundo estarrecido a capacidade destruidora do armamento transportado e lançado por aviões bombardeiros. Foi o auge da teoria geopolítica do poder aéreo, cujo maior expoente, Alexander Seversky, em sua obra A Vitória Pela Força Aérea, já destacava a importância estratégica dos vetores aéreos de combate e do domínio do espaço aéreo. Setenta anos se passaram e agora assistimos ao surgimento das Forças Espaciais. Mas, diferentemente das Forças Aéreas, que foram criadas em praticamente todos os países soberanos, a criação das Forças Espaciais exige tecnologias ainda muito restritas, sem falar de uma reserva de capitais indisponível para a grande maioria das nações.

Se é certo que o mundo ainda é castigado pela guerra, que neste momento assola muitos países, ceifando a vida de soldados e civis, também é correto afirmar que o equilíbrio obtido pela ameaça de destruição mútua assegurada dos tempos da guerra fria impediu que se deflagrasse uma guerra nuclear entre as superpotências do planeta. Resta saber se esse equilíbrio será mantido também no ambiente espacial.

Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Filho é Coronel de Cavalaria do Exército Nacional. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.05.19.

O importante e o irrelevante

Não são poucos nem simples os desafios que o presidente Jair Bolsonaro tem pela frente. Sua energia e a de seu governo devem, portanto, ser concentradas no urgente encaminhamento das soluções para os graves problemas nacionais. É tarefa do presidente evitar que assuntos menores ou insignificantes causem desgaste desnecessário e desviem a atenção do que realmente importa para o País.

Assim, fez muito bem o presidente ao desvincular-se publicamente do burburinho criado nas redes sociais pelo escritor Olavo de Carvalho contra integrantes de seu governo. Bolsonaro viu-se obrigado a reagir particularmente a um vídeo em que Carvalho ofende os militares que assessoram a Presidência, com termos de baixo calão.

A opinião de Olavo de Carvalho sobre este ou qualquer outro assunto não deveria merecer a atenção do presidente da República, por sua natural irrelevância. No entanto, o escritor, que também é professor de um curso de filosofia online, foi adotado pela militância mais aguerrida do bolsonarismo como seu “guru”, com o apoio dos filhos do presidente, em especial o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador carioca Carlos Bolsonaro. Assim, tudo o que aquele escritor diz acaba sendo interpretado por esses seguidores como uma espécie de “doutrina” bolsonarista, com potencial para inspirar decisões do governo.

À influência de Olavo de Carvalho, por exemplo, atribuem-se as nomeações dos ministros da Educação – o atual, Abraham Weintraub, e o anterior, Ricardo Vélez Rodríguez – e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Não por acaso, são esses os Ministérios que têm causado mais contratempos ao presidente, com disputas internas e atuação voltada exclusivamente ao combate do que Olavo de Carvalho chama de “marxismo cultural” – objetivo tão obscuro quanto irrelevante.

Já não era sem tempo, portanto, que o presidente demarcasse claramente os limites, especialmente os institucionais, que o separam daquele personagem – que, insista-se, não teria a atenção que recebe não fosse pelo fato de que os filhos e alguns ministros de Bolsonaro o têm em alta conta.

A bem da verdade, o próprio presidente já demonstrou publicamente respeito por Olavo de Carvalho, não raro de modo excessivo – como na visita aos Estados Unidos, quando Bolsonaro colocou o escritor em lugar de honra num jantar para expoentes da direita norte-americana e prestou-lhe homenagem, ao dizer que “em grande parte devemos a ele a revolução que estamos vivendo”.

Mesmo na nota em que repreende o “guru”, o presidente Bolsonaro trata de dizer, logo na abertura, que “o professor Olavo de Carvalho tem um papel considerável na exposição das ideias conservadoras que se contrapuseram à mensagem anacrônica cultuada pela esquerda e que tanto mal fez ao nosso país”. E conclui o texto declarando que tem “convicção de que o professor, pelo seu espírito patriótico, está tentando contribuir com a mudança e o futuro do Brasil”.

O presidente deve ter suas razões para demonstrar tamanha reverência por alguém que agride seus ministros e assessores com inadmissível grosseria. Também deve ter suas razões para permitir que seus canais oficiais nas redes sociais disseminem as mensagens de Olavo de Carvalho – como aconteceu com o vídeo que aborreceu os militares – e para não repreender os filhos quando estes ajudam a impulsionar essas mensagens que intoxicam o ambiente do governo.

Para o País, o que importa é que o presidente Bolsonaro foi capaz de dizer, com todas as letras, que as “recentes declarações” de Olavo de Carvalho “contra integrantes dos Poderes da República não contribuem para a unicidade de esforços e o consequente atingimento dos objetivos propostos pelo nosso projeto de governo”.

Com tal manifestação, cristalina, espera-se que o governo daqui em diante não seja mais importunado por opiniões francamente desimportantes, cuja motivação nada tem a ver com o interesse nacional – que deve ser a única e verdadeira preocupação do presidente Bolsonaro e de seus auxiliares. Há muito trabalho a fazer.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.04.19

Nova política, velha e inepta

Desorganizado, acuado e forçado a negociar antes da hora detalhes da reforma da Previdência, o governo do presidente Jair Bolsonaro falhou até hoje na execução de novas políticas de alguma relevância. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já admitiu antecipar a Estados até R$ 6 bilhões do leilão do pré-sal previsto para outubro. Objetivo: garantir apoio de governadores à mudança das aposentadorias. Seu chefe, encastelado no Palácio do Planalto, interveio na gestão da Petrobrás, forçou o adiamento de um reajuste do diesel e acabou conseguindo um aumento menor. Resumindo: 1) votos continuam sendo comprados, sem escândalos como o do mensalão, mas o troca-troca inegavelmente permanece em vigor; 2) ao mesmo tempo, o intervencionismo é reeditado e, pior que isso, praticado de forma voluntarista, numa ação de varejo, sem ser sequer disfarçado como parte de um projeto econômico. É isso a nova política?

As figuras mais sérias do Executivo nem mesmo tentam negar a confusão dominante no governo por mais de três meses. Tentam, no entanto, dar boas notícias. Apesar de ruídos políticos, tem melhorado o diálogo dentro do Executivo e entre o Executivo e o Legislativo, disse em São Paulo, num evento da Câmara de Comércio França-Brasil, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida. O secretário, remanescente da gestão do presidente Michel Temer, é, dentro da equipe, uma rara figura com experiência de governo.

Seu chefe, o ministro da Economia, com reputação formada como economista e como empresário do setor financeiro, foi chamado para comandar, com sua experiência acadêmica e profissional, uma área crucial para o sucesso do governo. Mas acabou forçado a entrar em negociações políticas, porque figuras do Executivo escaladas para a função falharam de forma indisfarçável.

Sem coordenação, o grupo apontado como base parlamentar fracassou desde os primeiros dias e foi incapaz de garantir sucesso na primeira e mais simples etapa de tramitação da reforma da Previdência, a passagem pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Não se conseguiu levar a voto o texto do relator antes da Páscoa nem evitar a discussão, nessa fase, de questões de mérito, próprias da etapa seguinte. O ministro da Economia atribuiu esses tropeços à inexperiência de parte da base. O distinto público deve aceitar essa explicação e achar tudo certo?

Mas a equipe do Executivo também falhou mais de uma vez, sem coordenação e sem clara definição de prioridades. O ministro Paulo Guedes poderia ter-se concentrado no encaminhamento e na defesa da reforma da Previdência, mas embaralhou o debate falando antes da hora sobre o projeto de um regime de capitalização. Ao mesmo tempo, a equipe abriu a discussão sobre a reforma tributária, sem explicar com clareza os objetivos e o significado econômico da proposta. A mudança, supõe-se, deve ter fins mais amplos que a simplificação, mas pouco se informou além desse ponto.

Enquanto o governo tomava um baile da oposição e do “Centrão” na Comissão de Constituição e Justiça, o presidente da República assustava o mercado forçando a suspensão de um reajuste de preço do diesel. Depois de anunciada, a mudança ficou suspensa por vários dias, enquanto o presidente discutia o assunto com ministros e dirigentes da estatal. Anunciado uma semana depois, o aumento foi revisto de 5,7% para 4,8%.

O presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, tentou explicar tecnicamente a decisão recauchutada e reafirmar a independência administrativa da empresa. Mas o recuo era um fato escancarado e, além disso, ele foi incapaz de dizer com clareza como ficaria a política de preços da empresa. Pessoas de muito boa vontade podem ter acreditado nas explicações – e ninguém mais.

Ao cuidar do diesel, o presidente Bolsonaro mostrou-se receptivo às pressões de caminhoneiros e à manutenção do cartel do frete, motivo de reclamações bem fundadas da ministra da Agricultura. Viva o cartel, dane-se a agricultura?

Passados quase quatro meses de governo, o quadro da nova política teria de incluir também os bem conhecidos desastres na educação e na diplomacia. Terá o presidente percebido esses fatos? Essa é a pergunta mais inquietante.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.04.19

A odisseia do voto

Por Mário César Flores

Pode parecer um tanto bizarro que estes comentários sejam expressos por pessoa de formação e carreira militar, mas militar é também cidadão, com o direito de qualquer cidadão – se não com o dever – de se preocupar com os tropeços no funcionamento de nosso sistema político. Mas vamos ao assunto.

O cenário confuso da reforma da Previdência sugere alguns comentários sobre uma prática que contamina nossa democracia há decênios, agravada nos mais recentes pelo populismo. Refiro-me à odisseia que costuma pautar a tomada da decisão em temas da responsabilidade política. Em particular, no caso referência deste artigo (a reforma da Previdência), da responsabilidade protagônica do Congresso Nacional, ainda que não exclusiva, em seu atual estágio de tramitação.

O correto é ser o voto de qualquer matéria condicionado pela análise e pela avaliação do seu mérito, sensata, competente e objetiva. Análise e avaliação do mérito sob a perspectiva da adequação da matéria à conveniência do País ou da região e do setor temático a que se refere especificamente o projeto, desde que essa conveniência seletiva não colida contra a do País, feitas pelos partidos ou, dependendo das características do tema, pelas bancadas regionais, temáticas ou até mesmo pelo congressista individual. Essa lógica, alicerce da democracia, vem sendo menoscabada no Brasil, onde o voto (favor ou contra) tem sido frequentemente definido por interesses partidários, regionais ou temáticos, quando não pessoais (em realce os reflexos eleitorais da posição assumida), nem sempre convergentes com o interesse público nacional, quando não divergentes, na contramão do bom senso democrático.

A odisseia da Previdência tem vivido reflexos dessa lógica equivocada. Evidentemente, qualquer projeto formulado por equipe técnica do Poder Executivo pode ser visto (o projeto ou tópicos dele) por partido ou congressista como não atendendo ao interesse nacional ou como prejudicial a ele e a interesses setoriais ou regionais que devem ser considerados. Se a convicção da inadequação decorre realmente de análise honesta e imune a interesses econômicos e/ou sociais questionáveis, a posição contrária é compatível com a moldura democrática do processo.

Mas excetuada essa hipótese – repetindo, o entendimento honesto e convicto de que o projeto, ou tópicos dele, de fato não respondem ao interesse público ou colidem com ele –, resistir ou se opor em razão de interesses de toda ordem é desrespeito ao mandato, cujo exercício correto pressupõe (ou deve pressupor...) a precedência do interesse público. Pior, ainda, quando a posição contrária resulta tão somente, ou principalmente, da mera oposição política ou de dogmas político-ideológicos, sem respaldo em análise objetiva e competente.

A mídia tem noticiado com frequência que partidos e congressistas, individualmente, se dizem propensos a rever suas posições simpáticas ao projeto porque não têm tido do governo a atenção que entendem como lhes sendo devida – em particular, a participação na máquina administrativa do Estado e recursos de interesse de seus redutos eleitorais. Essas notícias levam a um raciocínio tétrico: se havia antes a disposição de apoiar o projeto, é de supor (?) que ele tenha sido analisado e avaliado como adequado. O fato de não terem – partidos e/ou congressistas – tido do governo a consideração pretendida e por eles entendida como merecida pode ser aceito com razão para que o projeto, ou tópicos específicos dele, deixem de ser adequados...?

Em suma: a lógica em curso rotineiro em setores políticos de peso no Brasil permite que o sim ou o não congressual que definirá o futuro de um projeto cuja origem é o governo não dependa do mérito objetivo da matéria, mas do afago do governo! A palavra “negociação” tem sido usada com frequência. O que exatamente ela significa, nesse contexto...? A razão da substituição da simpatia pelo projeto da Previdência, pela ameaça de objeção total ou parcial, indica que a avaliação da adequação do projeto ao atendimento do interesse público (se houve tal avaliação) não havia sido o único fator da posição anterior, favorável. A esperança de afago havia contribuído, talvez até ponderavelmente.

Enfim e resumindo: o fato de que a aprovação ou rejeição de projeto da importância do referenciado dependeria, no Brasil, de acertos (?) entre o governo e partidos ou congressistas, não seguramente convergentes (qualificação condescendente...) com o interesse público, sugere que alguns meandros do funcionamento de nossa democracia – no caso, a odisseia da lógica do voto – a fragilizam como capaz de encaminhar a solução dos grandes problemas nacionais sem admitir concessões de duvidosa virtude.

Pensamento lúgubre, coerente com a propensão mundial no século 21 e compatível com o passado político brasileiro: se uma democracia funciona aos tropeços, convém ajustá-la à realidade nacional – o que pode incluir ajustes não politicamente virtuosos, “flertes” sutis com o autoritarismo não radical. Convém que os agentes políticos eleitos entendam que a prática do voto condicionado pelo alheio ao interesse público estimula o desapreço pela lógica que deve regular a democracia, é um convite para tais ajustes.

O eleitor deve ficar atento: se as posições de quem mereceu o seu voto na eleição forem de fato condicionadas por razão que não a convicção honesta e sincera sobre o mérito dos projetos, convicção que faz compreensível e legitima posições divergentes do projeto, e se, ao contrário, forem condicionadas pelo atendimento de pretensões partidárias, setoriais ou pessoais de duvidosa convergência com o interesse público ou de importância secundária, não torne a votar nele.

Mário César Flores é Almirante. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.04.19.

O Estado Democrático de Direito

Por Michel Temer

O Brasil tem dificuldade para conviver com a democracia. Historicamente, períodos democráticos e autoritários se alternam. Por formação e convicção, sempre trabalhei por ela. Na advocacia, na Procuradoria, no ensino universitário, nas secretarias de Estado, nos livros publicados e na Assembleia Constituinte, minha pregação sempre foi a mesma: o sistema jurídico democrático deve ser rigorosamente cumprido.

No escrito deu certo. A Constituição federal de 1988 rotulou o nosso Estado como Democrático de Direito. Listou em 77 incisos do artigo 5.º os direitos individuais. Estabeleceu a separação de Poderes determinando a harmonia entre eles, mas cada qual com sua função, sem interferência do outro. Elevou ao nível constitucional “a dignidade da pessoa humana”. Por que me detenho nesse tema? Para revelar a disparidade entre a Constituição formal (o que está escrito) e o que se passa no cotidiano do Estado.

Vamos aos fatos atuais. Refiro-me à minha detenção por determinação de um juiz do Rio de Janeiro e aos episódios em que fui inserido.

Sempre vem a indagação: devo tratar dessa matéria apenas em juízo? Ou devo manifestar-me publicamente? Vi e vivi, leitoras e leitores, tantas imprecações, tantas inverdades, tantas ilações, tantas conclusões que partem do “parece que”, “tudo indica que”, “ a prova é superficial”... e a imprensa, com legitimidade, reverbera essas questões ditas nos autos dando a impressão de que sou perigoso marginal.

É verdade que tenho recebido de pessoas sérias, como editorialistas, colunistas e juristas, entre outros, gestos de apoio e solidariedade. Resumidamente (o mais será feito no Judiciário) explico o que se passa. Veja-se o caso da JBS. Trata-se da trama de um empresário orientado por um procurador da confiança do procurador-geral para que me gravasse, entregasse a gravação e saísse, livre e solto, do País sem nenhuma espécie de punição. Ou seja: “Incrimine o presidente da República que nós te perdoamos por todas as irregularidades que você e seu grupo cometeram”. Criaram frase falsa que não consta da gravação, nem poderia constar, porque nunca existiu. O procurador-geral fez essa versão para o veículo que a divulgou e que depois, ouvido o áudio, foi desmentida por outros meios de comunicação.

Os envolvidos nessa questão sabem disso e não terão condição de me desmentir, ou terão vergonha de fazê-lo depois do que me revelaram. Veja-se o caso da mala. O portador apanhou um táxi e, monitorado como se achava, não foi seguido. Sabem os leitores por quê? Porque a valise estava “chipada” e se esperava que ela viesse a ser entregue a mim, o que nunca aconteceu. Portanto, a mala não veio a mim, retornou com o dinheiro, e ainda assim fui denunciado como autor de um crime que jamais me poderia ter sido imputado. Fala-se que o empresário queria um benefício do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Não obteve! Estou dando breves exemplos para revelar o despropósito de todas as acusações. Aliás, o tal empresário e seus cúmplices foram presos em razão de gravação que equivocadamente mandaram à Procuradoria.

Não tendo sucesso nessa estratégia suja, procuraram outros argumentos: quadrilhão, jantar com diretor da Odebrecht, decreto dos portos, contrato da Alumi com uma empresa... Como se tudo o que empresas fizeram, uma delas com 30 anos de existência, fosse em meu benefício. Mas o exagero maior deu-se nos últimos dias. Num caso que estava no STF (Supremo Tribunal Federal), pendentes de julgamento três recursos interpostos pelos meus advogados, copiaram-se peças e a partir delas formou-se representação fantasiosa, que tratou de objeto de vários outros procedimentos, decretando-se minha prisão preventiva. Nem mesmo se instaurou um inquérito ou investigação pelo MPF (Ministério Público Federal): um “catado” de alguns inquéritos foi pretexto para prisão ilegal, numa evidente manifestação de arbitrariedade.

O que se quis foi o espetáculo e foi o que se viu, em clara violação da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Pessoas que não se honram imaginam ser normal a desonra. Foi o que fizeram com a arbitrária prisão. Ao ser liberado por habeas corpus, os procuradores cuidaram velozmente de apresentar denúncia. E depois convocaram coletiva para divulgá-la, como haviam feito no dia da prisão, quando tiveram a desfaçatez de dizer que eu devia mesmo ser encarcerado como resultado de uma vida toda dedicada ao crime. Mais um espetáculo circense, pois o correto é falar nos autos. Mas eles querem ganhar a causa, não promover justiça. Juntam as mesmas questões em todos os inquéritos e processos num insuportável bis in idem. Em nenhum caso há materialidade justificadora deles. E agora denunciam, indevidamente, a mim e à minha filha por reforma da casa. Ela já depôs esclarecendo essa matéria. Antes era dinheiro dos portos, depois da JBS, depois da construção de Angra. Esses senhores não sabem o que fazem! Apenas sabem que é preciso, em busca do poder, obter um troféu: a minha cabeça. E é incrível a velocidade do MPF depois do insucesso da medida tentada no Rio de Janeiro.

Não vou me deter neles, pois o farei no Judiciário. O descumprimento das regras jurídicas, especialmente as atinentes aos direitos e garantias individuais, apenas servem para desorganizar a sociedade. Certamente, estes dizeres farão crescer a sanha daqueles que querem incriminar-me (veja-se a velocidade que imprimem aos casos em que mencionam o meu nome). Esta manifestação é para conhecimento dos milhares que me conhecem e me apoiam. Mais ainda, para preservar a ordem jurídica e impedir o desmonte do Estado Democrático de Direito. Ela se impõe como resistência, já que não é demais relembrar: “No primeiro dia roubaram a rosa do meu jardim e eu não disse nada...”

Michel Temer, Advogado e Professor de Direito Constitucional, foi Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 04.04.19.

A sobrecarga do STJ

Mais importante corte de Justiça do País depois do Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vive uma situação paradoxal. Com um estoque de 322,2 mil processos à espera de julgamento, seus 33 ministros têm de lidar com os complexos conflitos que afetam a economia, relativos a questões contratuais e tributárias, e com os litígios triviais da vida cotidiana dos cidadãos, como disputas entre vizinhos e pedidos de indenização por danos morais feitos por consumidores que compraram caixa de bombons com larvas.

Esse é um exemplo das dificuldades que o Judiciário vem enfrentando para se tornar uma instituição eficiente, rápida e capaz de propiciar segurança jurídica à vida econômica e social do País. Só no caso das caixas de bombons, o STJ já julgou cerca de 15 processos com pequenas variações. Em alguns, as partes discutiram se os consumidores comeram ou não os bombons, o que afetaria o cálculo da indenização moral. Em outros, debateram se esses bombons foram comidos quando as caixas estavam no prazo de validade. Houve ainda o caso do dono de um cão que comeu ração estragada, o que levou o proprietário a pleitear indenização por aumento de pressão arterial. Em matéria de cães, o STJ também já julgou o caso de dois rottweilers que mataram papagaios da residência vizinha e dois cachorros que pularam uma cerca de 1,8 metro e mataram as aves da casa ao lado.

A heterogeneidade dos processos que o STJ tem de julgar decorre do fato de que ele foi incumbido pela Constituição de lidar com os litígios relacionados à aplicação de leis federais, como, por exemplo, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Tributário Nacional. O problema é que, apesar de ser uma corte superior, a Corte não possui um filtro para barrar a entrada de recursos relativos a casos de menor relevância, que poderiam ser encerrados na segunda instância.

O problema foi agravado pelo excesso de leis federais, estimadas em 180 mil, e pela tendência de partidos e movimentos sociais de judicializar decisões da administração pública. Além disso, há a estratégia dos advogados de criar teses sobre um mesmo assunto, mas com roupagem diferente, como lembra a professora Cecília Asperti, da Fundação Getúlio Vargas. Por todos esses motivos, as inovações processuais concebidas nos últimos anos para permitir que só subissem para os tribunais superiores as questões mais relevantes acabaram não trazendo os resultados esperados. É o caso da Emenda Constitucional n.° 45, que promoveu a reforma do Judiciário e criou a súmula vinculante. Em 2016, entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, cujas alterações, apesar de importantes, também não foram capazes de reduzir o número de recursos levados ao STJ.

Com isso, em vez de receber apenas recursos de causas que tivessem impacto social e de atuar como um “tribunal de precedentes”, uniformizando a interpretação das leis federais e formando jurisprudência uniforme, o STJ passou a agir como um “tribunal da cidadania”, convertendo-se numa terceira instância. “Precisamos mudar. Não temos de entrar numa briga de inquilino com locador se ela não tiver repercussão social, se a decisão que formos proferir não for além do interesse das partes”, diz o presidente da Corte, ministro João Otávio de Noronha.

Em 2018, o STJ recebeu 346,3 mil processos e julgou 524 mil, o que dá a dimensão de sua produtividade. Mesmo assim, como o estoque continua alto, seus ministros querem adotar o princípio da repercussão geral, nos moldes do que já ocorre no STF. Mas isso depende da aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional que tramita desde 2012 e que, depois de ter sido aprovada pela Câmara, se encontra desde dezembro de 2018 na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Enquanto ela não for aprovada, o STJ continuará sobrecarregado, perdendo tempo com processos de baixa relevância, quando deveria se concentrar em casos mais importantes para a sociedade.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.02.2019.

A harmonia entre os Poderes

Para voltar aos trilhos do desenvolvimento econômico e social, o País tem claras e imediatas necessidades Para voltar aos trilhos do desenvolvimento econômico e social, o País tem claras e imediatas necessidades. É preciso realizar reformas estruturantes, a começar pela reforma da Previdência. É preciso restabelecer um ambiente de normalidade e estabilidade jurídico-institucional. Há ainda um longo caminho no combate à criminalidade e à impunidade, mas nem tudo é corrupção ou podridão, e tratar o cenário nacional como terra devastada, além de injusto, significa pôr a perder muitas coisas boas construídas ao longo do tempo. É preciso também amenizar a polarização político-ideológica. Compreensível numa campanha eleitoral, o clima de conflito, se estendido ao longo do tempo, esgarça as relações sociais e gera danos em todas as esferas da vida nacional.

Se as atuais necessidades do País são evidentes, está claro também que os Três Poderes têm sido incapazes – ao menos, até o momento – de atender a contento a essas demandas. Na semana passada, houve um almoço em Brasília que reuniu a cúpula dos Três Poderes a respeito dos possíveis caminhos para, diminuindo as tensões entre Executivo, Judiciário e Legislativo, torná-los mais funcionais. É preciso, por exemplo, trabalhar coordenadamente para que a reforma da Previdência, prioridade nacional, seja de fato aprovada pelo Congresso.

“Há um intuito de todos de construir uma nova agenda e de aprovar a reforma da Previdência. Este encontro é um sinal importante, estamos construindo um pacto para governar o Brasil”, afirmou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, anfitrião do almoço.

Nessa trajetória de união e cooperação entre os Poderes é indispensável que o Executivo cumpra o seu papel. Desde a posse, tem causado perplexidade o fato de o presidente Jair Bolsonaro, em vez de buscar a união nacional, continuar alimentando polêmicas e fissuras, num clima de guerrilha eleitoral. No dia anterior ao almoço, por exemplo, o presidente da República compartilhou em sua conta no Twitter vídeo em que seu filho Carlos criticava a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da competência da Justiça Eleitoral. Não é disso que o País precisa.

Nesse reequilíbrio institucional em busca de maior funcionalidade, é também evidente a necessidade de o Ministério Público (MP) adequar-se às suas competências institucionais, sem que alguns de seus membros invadam outras searas ou agravem desnecessariamente as tensões.

A Suprema Corte tem sido alvo de ataques, nas redes sociais, de grupos que desmerecem, desautorizam e ridicularizam todos aqueles que ousam ter opiniões divergentes das suas. É surpreendente, no entanto, que alguns desses ataques venham de membros do MP, cuja função é defender a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito.

Para diminuir as tensões, é preciso também uma atitude de cooperação e de menos protagonismo dos ministros do STF. Não poucas vezes, são os próprios integrantes da Corte que alimentam divisões, promovem embates e, mais grave, ferem o caráter colegiado do Supremo. É urgente a promoção de uma nova cultura no STF, mais disposta a aceitar a posição majoritária, a conferir estabilidade à jurisprudência ao longo do tempo, a restringir as decisões monocráticas para os casos imprescindíveis, a defender e a aplicar a Constituição e as leis, sem imiscuir-se com tanta frequência em trajetórias alternativas.

O Congresso tem também papel especial na busca da funcionalidade institucional. É ele quem deve processar com diligência as reformas de que tanto o País precisa. A renovação ocorrida nas eleições passadas deve servir para banir velhos costumes que são absolutamente deletérios para o interesse nacional. No entanto, tanto os antigos parlamentares como os novos não podem se furtar de fazer política, na melhor acepção da palavra. A decisiva contribuição do Congresso para o País decorre precisamente dessa busca por encontrar os consensos e propostas possíveis para os problemas nacionais. Não é no grito, na intolerância e, muito menos, na violência, física ou verbal, que o Legislativo cumprirá o seu papel.

É essencial o diálogo entre Executivo, Judiciário e Legislativo. Mas o principal fruto que se espera desse diálogo é que cada um dos Poderes cumpra seu dever. Essa é a harmonia institucional de que o País precisa.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.03.19.

Tempo perdido em Alcântara

A conclusão do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos, que permite o uso comercial da base de Alcântara, no Maranhão, mostra como uma falsa polêmica pode gerar prejuízos ao interesse nacional. Em 2001, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, um acordo semelhante foi assinado, mas a oposição vendeu o discurso de que os termos do tratado feriam a soberania nacional e, no ano seguinte, o Congresso acabou por rejeitá-lo.

Desde então, o Brasil tentou reabrir as negociações com os Estados Unidos, mas as rodadas de conversa sobre o tema intensificaram-se em maio do ano passado. Agora, quase 20 anos depois, os dois países chegaram a um consenso sobre a nova redação do acordo. A previsão é de que seja assinado pelos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump em Washington, no próximo dia 19 de março. Como se vê, trata-se de mais um tema que ficou atravancado durante os governos petistas e que o governo de Michel Temer conseguiu com êxito destravar.

O AST refere-se à proteção de conteúdo com tecnologia americana usado no lançamento de foguetes e mísseis a partir da base de Alcântara. Tendo em vista que 80% do mercado espacial usa tecnologia americana, o uso da base brasileira, sem o acordo, estava muito limitado. O texto inclui também o compromisso de não proliferação de tecnologias de uso dual - aquelas que podem ser usadas tanto para fins civis como militares.

Ao ampliar o uso da base de Alcântara e promover investimentos no setor, o AST possibilita uma série de parcerias empresariais e insere o País no âmbito da cooperação espacial. “Essa negociação encerra quase 20 anos em que estamos tentando lançar da base de Alcântara mísseis de maior capacidade, de maior porte e que podem ser utilizados no uso comercial, sobretudo de lançamento de satélite”, afirmou Sérgio Amaral, embaixador do Brasil nos EUA, ao Estado.

O AST deixa claro que não haverá segregação de uma área da base de Alcântara em favor dos Estados Unidos, como se o Brasil estivesse cedendo soberania sobre o território nacional. A previsão é de restrição de acesso. “Teremos em Alcântara um espaço para proteção de tecnologia americana, mas continua sendo espaço de jurisdição brasileira. Não é cessão de território para ninguém, é um espaço que foi transformado em área de acesso restrito”, explicou Sérgio Amaral.

O acordo prevê que a área ficará restrita a pessoas credenciadas pelos dois governos ou sob consulta pelo governo americano ao brasileiro. A nova redação também limitou o escopo do tratado. Antes, a proteção recaía sobre toda a tecnologia utilizada. Agora, ela está restrita a mísseis, foguetes, artefatos e satélites que utilizem tecnologia americana.

Cada vez mais, o aproveitamento do potencial de um país em muitas áreas exige estabelecer acordos e parcerias com outras nações. O desenvolvimento tecnológico envolve integração internacional. Por sua localização geográfica, a base de Alcântara possibilita, por exemplo, uma economia de até 30% de combustível no lançamento de satélites. Essa vantagem competitiva era desperdiçada, no entanto, pela ausência de acordo, e o tema ficou parado por quase 20 anos também por limitações ideológicas do PT. Afinal, era o mesmo partido que fez oposição ao acordo durante o governo FHC.

Um país fechado, encerrado numa ideia equivocada de soberania, desperdiça muitas oportunidades. É fundamental que questões ideológicas não limitem a atuação internacional do País. Seja para exportar, seja para realizar parcerias em projetos de vanguarda tecnológica e em tantas outras possíveis áreas de cooperação, não faz sentido que o Brasil restrinja opções por suposta falta de sintonia ideológica. Esse modo de atuar - tão presente nos anos petistas e que, agora, com sinal trocado, se vê em algumas manifestações do governo Bolsonaro - causa enorme prejuízo para o País. O critério a reger os acordos internacionais deve ser sempre o interesse nacional, não as limitações ideológicas de quem está no poder.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 16.03.19

Vamos salvar a previdência

Por Nizan Guanaes

Um cara entrou no elevador outro dia e me disse: “Bom dia”. Eu respondi: “Se aprovarmos a Previdência, será um bom dia”.

Peguei um táxi no aeroporto, e o motorista me perguntou: “Para onde vamos?”. Eu respondi: “Se não aprovarmos a Previdência, vamos para o brejo”.

Enfim, nos próximos meses, no elevador, no táxi, no artigo da Folha, na reunião de condomínio, no bar com os amigos, eu, você e qualquer pessoa de direita, centro e esquerda, mas com juízo, deve lutar para aprovar a reforma da Previdência.

O governo já enviou sua proposta ao Congresso Nacional, e agora cabe o debate democrático em torno dela. Só não cabe mais, no meu entender, aquele papo de dizer que é a favor da reforma, mas não desta, e aí acabamos sem reforma alguma.

Não há mais tempo para isso.

A reforma é decisiva para a economia decolar. Já se calcula que US$ 100 bilhões estão para serem investidos no Brasil, mas esperam a aprovação das mudanças. Ninguém quer investir num país que pode quebrar mais à frente.

O Estado brasileiro está sufocado por déficits monstruosos. Os governos de turno não conseguem investir onde deveriam, como saúde, educação, segurança pública, saneamento básico, habitação...

Os dados não são novos e são bem conhecidos. Todo o mundo que chega ao governo é a favor da reforma, mas, quando está na oposição, fica tentado a fazer proselitismo com o eleitorado, brincando com fogo.

Eu inclusive acho errado o tema ser reforma da Previdência. O professor Lavareda disse algo que nunca esqueci —não se trata de reformar a Previdência, mas de salvar a Previdência.

Sem salvar a Previdência, não vamos conseguir pagar aos aposentados. Estados liderados por governadores de todos os partidos sabem disso. Estão quebrados ou a caminho de quebrar e não conseguirão custear obrigações básicas se seguirmos desse jeito.

Não é uma medida fria, liberal. É uma medida humana, difícil às vezes de entender, embora as pesquisas mostrem que a população cada vez mais entende a reforma.

Os empresários, em vez de comodamente jogarem a reforma no colo e na conta do governo e do Congresso, precisam ajudar a mobilizar o país para a importância desta hora.

Os veículos de comunicação, da forma crítica que lhes é habitual e fundamental, têm o papel de mostrar a realidade e o perigo dos números. Não é questão de ideologia, mas de matemática. A conta não fecha.

Sem salvar a Previdência, quem trabalhou duro não vai ter proventos. E os jovens terão um futuro pior.

Não cabe a nós, formadores de opinião, líderes empresariais, influenciadores, ficarmos em cima do muro.

O celular é o microfone que a tecnologia deu a todos. Temos nos nossos grupos de WhatsApp a oportunidade de propagar essa mobilização.

Tenho amigos e parentes que são contra a reforma. Respeito todos eles, e que também façam a campanha pelo que acreditam. Mas os que concordam comigo precisam se mobilizar e ajudar a aprovação no Congresso.

Não é questão de apoiar ou não este governo. Só maluco torce para que o avião em que se está viajando caia. E o Brasil sem a reforma não vai voar.

É aritmética, não é ideologia. As pessoas vivem cada vez mais no mundo todo, e a conta atual não fecha.

Com todo o respeito às pessoas que pensam diferente de mim, eu convido aqueles que pensam como eu a repetirmos juntos esse mantra: Previdência, Previdência, Previdência.

Vamos salvar a Previdência.

Nizan Guanaes é Publicitário, fundador do Grupo ABC. Este artigo artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição de 26.02.19.

O pacote do ministro Moro

Com notáveis avanços em relação às Dez Medidas Anticorrupção, apresentadas em 2016 por membro do Ministério Público Federal, o Projeto de Lei Anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, pode contribuir para consolidar alguns importantes progressos no combate ao crime e à impunidade. Há pontos que merecem maior atenção, mas o conjunto de propostas do ministro Moro pode ser um bom início de diálogo com o Congresso a respeito de possíveis melhorias na legislação penal.

O projeto de Moro consolida a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância, trazendo, assim, maior segurança jurídica a tema de especial relevância.

O ministro Moro propõe o endurecimento do cumprimento das penas – por exemplo, que seja fechado o regime inicial da pena para condenado reincidente – e a criminalização do caixa dois. Sobre este ponto, é importante que o novo crime venha acompanhado de rigor probatório. Nos últimos anos, tornou-se praxe o uso amplo do conceito de propina, o que dá, na seara penal, especial margem a abusos.

O projeto prevê também endurecer penas relativas aos crimes com arma de fogo, por exemplo, o porte ilegal de arma, bem como do crime de resistência quando “resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro”, com pena de reclusão de 6 a 30 anos.

Há medidas relativas ao combate das facções criminosas. Amplia-se, por exemplo, a definição de organização criminosa, incluindo grupos que “se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica”.

A respeito das prescrições, o projeto de Moro é mais equilibrado que o pacote das Dez Medidas Anticorrupção. Não procura invalidar o instituto da prescrição, especialmente importante para coibir abusos de um sistema judicial cujos processos, não raro, duram mais de década. O texto estabelece que a prescrição não corre na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores.

A previsão de redução de pena de policiais que causarem morte durante sua atividade é controversa, já que incorpora elementos imprecisos na definição dos casos de excesso na atuação policial. A proposta permite ao juiz reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O policial é um profissional que recebeu o devido treinamento e foi avaliado como apto para exercer essa atividade. A rigor, não cabe falar em “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” para um policial em serviço. Se ele reage assim às circunstâncias de sua profissão, é certo que lhe faltam condições para exercê-la. O policial, em hipótese alguma, pode ter carta branca para cometer crimes contra a pessoa.

O Congresso também deve ter cuidado com as medidas relativas ao perdimento de produto do crime. A redação é ampla, propiciando uma discricionariedade que faz inverter o ônus da prova. Não é boa regra presumir ilícito. Também cuidado deve-se ter com a proposta de permissão do uso de bens apreendidos pelos órgãos de segurança pública – os direitos da vítima parecem relegados a segundo plano. A identificação obrigatória do perfil genético dos condenados por crimes dolosos é outro ponto polêmico.

A previsão do acordo de não persecução penal para investigados que confessarem o crime pode ajudar a desafogar o sistema judicial, mas não é panaceia geral. As soluções negociadas estão reservadas para crimes com pena inferior a quatro anos. E a novidade tem riscos, dando ocasião a pressões indevidas sobre investigados.

Há boas medidas no projeto anticrime do ministro Moro, mas é uma ilusão achar que a aprovação de novas leis causará por si só uma diminuição da criminalidade. Se fosse assim, fácil seria resolver o problema da segurança pública. Bastava que o Congresso produzisse de tempos em tempos novidades legislativas em matéria penal. O combate ao crime exige uma atuação coordenada do Estado, com polícias treinadas, Judiciário diligente e absoluto respeito aos direitos e garantias de todos os cidadãos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 07.02.19.

Ineficiência e corrupção

“Máquina de ineficiência e corrupção” foi como o secretário de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia, Salim Mattar, se referiu à estatal Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Correios), cuja privatização defendeu com veemência.

A expressão poderia ser aplicada a outras empresas ainda controladas pelo poder público federal e que, a depender do governo do presidente Jair Bolsonaro - e do secretário de Desestatização, em particular -, com raríssimas exceções, terão seu controle transferido para o setor privado.

Exemplos recentes, como os crimes investigados pela Operação Lava Jato no relacionamento de dirigentes dessas empresas e outros agentes públicos com representantes do setor privado, não deixam dúvida sobre o péssimo uso que governantes fizeram das estatais em benefício próprio ou de seus apadrinhados.

Só isso bastaria para justificar a necessidade de limpar o governo, em todos os níveis, dessa fonte de desvio de recursos públicos para o enriquecimento de um grupo de criminosos. Mas há outras razões para a privatização de empresas estatais, talvez tão fortes do ponto administrativo e financeiro quanto o combate à corrupção.

Livrar o setor público de empresas estatais que cresceram demais, sobretudo em termos de pessoal e de campo de atuação, é retirar dos contribuintes a obrigação de manter estruturas pesadas e caras.

Para o governo, a privatização representa grande alívio financeiro, pois a maioria das estatais é deficitária. Isso assegura mais recursos para áreas essenciais, como educação, saúde e segurança, e dá maior eficiência à atuação do poder público.

O Brasil se perdeu com o número de estatais que foram sendo criadas ao longo dos últimos anos, observou o secretário de Desestatização, para observar que o País precisa fazer um mea culpa, porque todos foram coniventes com a política estatista que durou décadas - e foi reforçada na gestão lulopetista.

Desde a década de 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso, o número de estatais vinha sendo reduzido por meio de programas de privatização. Mas, na era lulopetista, como lembrou Mattar, foram criadas 48 estatais. No governo de Michel Temer, 20 empresas foram privatizadas.

O quadro ainda mostra forte presença do Estado na economia. Continuam em operação 134 empresas estatais federais, que empregam cerca de 500 mil funcionários.

Dessas, 18 são chamadas de “estatais dependentes”, pois não geram recursos próprios suficientes para sustentar suas atividades - e por isso dependem do Tesouro -, e custam R$ 15 bilhões por ano ao governo. Atuam em áreas que, em geral, o governo não deveria ter participação.

Mattar lembrou, durante evento organizado por uma instituição financeira em São Paulo, que não há explicação para o fato de o governo ter participação na fabricação de chips de orelha de gado, em empresas de tecnologia, de refino de petróleo ou de seguro e na atividade de correio.

“O governo não pode continuar sendo empresário, mas precisa cuidar de coisas que fazem sentido para a população, como saúde e educação”, disse, para completar: “Queremos o povo rico e o Estado mais enxuto”.

A venda de todas as estatais poderia reduzir a dívida pública federal em cerca de R$ 3 trilhões, estima o secretário de Desestatização. Com realismo, porém, ele considera que uma de suas tarefas é convencer os Ministérios aos quais estão vinculadas as estatais da necessidade de vendê-las, em nome da redução da estrutura do Estado, do reconhecimento do papel da iniciativa privada e da busca de maior eficiência do setor público e da economia brasileira em geral.

Mattar disse que Petrobrás, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil devem ser as únicas a permanecer como estatais - mas “bem magrinhas” - e citou a Eletrobrás entre as primeiras a serem privatizadas, o que provocou boa reação dos aplicadores em ações.

Ele também observou que o BNDESPar, braço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para participação no capital de empresas privadas, precisa ser liquidado com rapidez, por meio de venda das ações que possui.

Segundo Mattar, os ativos do BNDESPar somam R$ 110 bilhões. Eles incluem, por exemplo, ações da JBS, a empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 30.01.19

O que falta para salvar a Pátria

Por Fernão Lara Mesquita

Não há quem no serviço público brasileiro não tenha sido tocado ao menos pela corrupção institucionalizada, aquela que oficialmente não é tida como o que é porque a lei é o seu instrumento de ação. Nem mesmo os militares passaram incólumes por essas três décadas de elevação da cultura do privilégio à força em torno da qual tudo o mais gravita no País oficial desde a Constituição de 88. Mas se havia qualquer dúvida sobre o valor da reserva moral que lhes restou, ela acabou com os fatos que se seguiram ao primeiro embate de 2019 entre Brasília e o Brasil.

Como acontece sempre na formação de qualquer governo, a “área econômica” é a única que chega ao dia da posse com todas as suas referências fincadas exclusivamente no País real. Brasília, de onde, com as regras eleitorais vigentes, obrigatoriamente sai o núcleo dos grupos que se substituem no poder, não sente o Brasil. Lá os salários sobem e as carreiras progridem por decurso de prazo tão certo quanto que o sol nascerá amanhã. Nunca aconteceu com seus familiares, nunca aconteceu com seus amigos, nunca aconteceu com seus colegas de trabalho, nunca aconteceu com eles próprios: a figura do “andar para trás” simplesmente não existe no modelo cognitivo do típico cortesão de Brasília nem como exercício abstrato de antecipação de uma possibilidade, simplesmente porque essa possibilidade não existe.

Não é de surpreender, portanto, que para todos quantos a cada nova conta a ser paga corresponde um novo “auxílio” arrancado ao favelão nacional o “modelo de capitalização” na Previdência – que em português plebeu quer dizer pagar por aquilo que se vai consumir – pareça uma inominável maldade. Essa relação, para eles, nunca foi obrigatória.

Mas agora a realidade está aí nua e crua. Financiar os 30-40 anos de ócio que o brasiliense aposentado típico vem colhendo sem nunca ter plantado custou ao Brasil passar da economia que mais crescia para a economia que mais decresce no mundo hoje, mas Brasília nem percebeu. Brasília “cresce” sempre, chova ou faça sol, por “pétrea” determinação constitucional. E, na dúvida, lá vem o cala-boca: “A Constituição não se discute, a Constituição cumpre-se”.

Só que não.

Agora, à beira do precipício, até Brasília já sente a vertigem. O inchaço do funcionalismo nos 13 anos de PT transbordando em progressão geométrica para as aposentadorias na flor da idade que congelam os salários públicos no tope de cada carreira por quase meio século mergulhou essa previdência sem poupança num processo de metástase. Com quase 40% do PIB entrando, já não sobra sequer para pagar aos aposentados mais os seus substitutos com o salário de entrada. E como quando falta dinheiro para pagar a funcionário no Brasil é porque já faltou antes para tudo o mais – hospitais, escolas, segurança pública, infraestrutura –, não há mais como não agir.

Velhos hábitos demoram para morrer, mas os embates da primeira semana de governo deram indicações animadoras da força da humildade de Jair Bolsonaro. Ele vacilou quando se calou diante do sindicalista Lewandowski infiltrado no STF. Ele vacilou quando recusou vetar o aumento dos incentivos para a Sudam e a Sudene. Ele tem vacilado diante dos “quiéquiéisso companheiro” dos amigos da vida inteira das corporações militar e política, de que faz parte. Ele vacilou, até, diante do “fogo amigo” contra Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um homem de contas. A transição e os primeiros dias de governo têm sido uma avalanche de números. E com números não se discute. Assim que Guedes se decidiu a dar o limite dos “bailes” que estava disposto a levar de Brasília parece ter caído a ficha e o presidente teve a nobreza de rever sua posição. Realinhou o governo inteiro à Prioridade Zero de deter a hemorragia previdenciária e o Brasil entrou em festa para deixar bem clara a fundamental importância que essa atitude teve.

Brasília pode reagir a Onix Lorenzoni, mas o Brasil reage a Paulo Guedes. E se confundir essas prioridades o governo comete suicídio e nos leva junto. Não haverá segunda chance. Não há tempo. Privatizações e descomplicações liberalizantes da vida produtiva poderão acelerar o processo. Mas o que dirá se haverá ou não processo a ser acelerado é o desenho da reforma da Previdência. E o lucro ou o prejuízo serão colhidos inteiros a partir do momento em que esse desenho for conhecido.

Tudo isso parece ter-se tornado subitamente claro para o governo. Tocados nos brios, os militares, que estão longe de desfrutar os maiores entre os privilégios do Brasil com privilégios, embora vivam no que para o País real não entra nem em sonho, declaram-se dispostos a puxar a fila dos sacrifícios para dar o exemplo. É um gesto inédito na História do Brasil e absolutamente decisivo. Se confirmado, cala para todo o sempre a boca dos detratores da instituição. Já o campo do Legislativo reflete, para bem e para mal, a diversidade do País. Mas quando chamado ao sacrifício com o devido empenho, no governo Temer, prontificou-se a responder majoritariamente a favor do Brasil. Foi detido pelo golpe Janot-Joesley que abortou a votação decisiva na véspera de acontecer. Desde então, sentindo espaço, suas piores figuras voltaram a dominar a cena. Mas um novo Congresso vem aí e, no extremo, Poder eleito que é, ele sempre faz o que o Brasil diz que quer que ele faça.

Falta, agora, o movimento da inefável Versailles da privilegiatura que tem sido o Poder Judiciário. Não haverá avanço na segurança pública se não houver avanço na economia. E não haverá avanço na economia se não houver avanço na Previdência. Sem ambos, não haverá pacote de leis nem articulação de forças de repressão capaz de deter a quase guerra civil contra o crime organizado que vivemos. Mas se o ministro Sergio Moro e seus fiéis escudeiros do Ministério Público, seguindo o exemplo dos militares, liderassem o movimento de devolução de privilégios que suas corporações há muito devem ao Brasil, a pátria com toda a certeza estaria salva.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 15.01.19

Quando a impunidade mata

O Brasil parece incapaz de punir quem age de maneira irresponsável e coloca em risco a vida de terceiros. Se o fizesse, conforme mandam a lei e os imperativos morais, quase com certeza tragédias como a ocorrida em Brumadinho (MG) não ocorreriam.

Em meio à comoção geral que esses terríveis eventos suscitam, autoridades se apressam a prometer rigor na investigação dos fatos, na identificação dos culpados e na edição de medidas para impedir que os desastres se repitam. As empresas envolvidas pedem desculpas e se comprometem a renovar seus protocolos de segurança, e o Ministério Público promete caçada implacável aos criminosos. O País já viu esse filme incontáveis vezes, sempre com o resultado da impunidade geral.

Espera-se que, ante as centenas de vítimas soterradas sob 12 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de mineração, nesse desastre de proporções inéditas que cobriu o País de vergonha e indignação, os responsáveis sejam devidamente castigados, à altura do crime cometido. Pois é de crime que se trata.

Mas o fato é que, passados alguns dias da ruptura da barragem da mineradora Vale, tudo se repete como nas tragédias anteriores. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, pediu “desculpas a todos os atingidos, à sociedade brasileira”, embora considere o desastre “indesculpável”. Em seguida, porém, assegurou que a Vale, “uma empresa muito séria”, “fez um esforço imenso” e tomou “uma lista infindável de ações” para “deixar nossas barragens na melhor condição possível” – tudo isso, disse o executivo, “especialmente depois de Mariana”.

A cidade mineira de Mariana virou sinônimo de tragédia ambiental em novembro de 2015, quando houve ali a ruptura de uma barragem de rejeitos de mineração, soterrando sob 43 milhões de metros cúbicos de lama vários distritos da região, matando 19 pessoas e causando o que até agora era considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil. A barragem era de responsabilidade da mineradora Samarco, controlada por uma joint venture entre a Vale e a mineradora anglo-australiana BHP Billiton. Na ocasião, a direção da Samarco também garantiu ter cumprido todas as exigências de segurança para prevenir acidentes como aquele.

Ou as empresas envolvidas nessas tragédias faltam com a verdade quando dizem ter seguido todos os procedimentos de segurança, ou esses procedimentos são evidentemente insuficientes. Tanto em Mariana como em Brumadinho, as barragens eram consideradas de “baixo risco” de acidente pelas autoridades responsáveis pela fiscalização. Não é preciso ser especialista para concluir que há algo de errado nessas avaliações, até porque, nos dois casos, não houve acidente natural. O que houve foi a escolha deliberada de tipos de barragem de baixo custo e alto risco, acrescida de fiscalização e controle no mínimo desidiosos.

Depois do que aconteceu em Mariana, esperava-se que a comoção nacional gerasse ações concretas para impedir sua repetição. Na ocasião, constatada a insuficiência da fiscalização, foram feitas promessas de maior rigor na manutenção das barragens e garantiu-se que haveria reparação para as famílias atingidas. Três anos depois, a fiscalização continua insuficiente, poucas famílias receberam indenização e nenhum executivo ou autoridade respondeu por seus atos ou omissões.

O governo montou um “gabinete de crise” para acompanhar os desdobramentos do desastre de Brumadinho, mas a maior crise a ser administrada é moral, e isso “gabinete de crise” nenhum será capaz de fazer.

A tragédia de Mariana, os deslizamentos de terra que mataram centenas de pessoas em morros do Rio de Janeiro, o incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas há cinco anos, e outras catástrofes que revoltaram os brasileiros nos últimos tempos têm algo em comum entre elas, além do grande número de vítimas: em nenhum dos casos, os responsáveis foram punidos. E a sequência dos casos sinistros é a evidência de que “fiscalização”, para o poder público, é um amontoado de letras sem qualquer significado.

Agora, no caso de Brumadinho, urge que o Estado aja com firmeza para que os culpados realmente paguem pelo que fizeram – dos empresários que, além de arriscar seus capitais, colocaram vidas em perigo, até os funcionários públicos, que se omitiram criminosamente. Aí está a chave para evitar que tais desastres se repitam.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 29.01.19.

A tragédia do ensino médio

Recente estudo sobre a evolução do acesso ao sistema de ensino e sobre sua qualidade, promovido pelo movimento Todos pela Educação, uma entidade sem fins lucrativos integrada por pedagogos, gestores escolares e representantes da iniciativa privada, mostra como a crise educacional do País vem sacrificando o futuro das novas gerações.

Em 2018, segundo a pesquisa, quase 4 em cada 10 jovens na faixa etária de 19 anos não concluíram o ensino médio na idade considerada para esse ciclo educacional. E, do total de brasileiros nessa faixa etária, 62% já estão fora da escola e 55% pararam de estudar ainda no ensino fundamental. O estudo foi promovido com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Todos pela Educação definiu uma lista de cinco metas para o crescimento e modernização da educação brasileira até 2022 e, na pesquisa de 2018, constatou que o País continua longe de alcançá-las.

Uma das metas era fazer com que o Brasil tivesse, até o ano passado, mais de 90% dos jovens de 19 anos com o ensino médio completo. Em 2018, só 63,5% atingiram esse objetivo. E, como a qualidade desse ciclo educacional é ruim, entre os alunos que conseguem concluí-lo muitos apresentam conhecimento insuficiente em leitura, ciências e matemática, enfrentando problemas para ler palavras com mais de uma sílaba, identificar o assunto de um texto, reconhecer figuras geométricas e contar objetos. Na Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2017, o ensino médio alcançou o nível 2 de proficiência, numa escala de 0 a 9 – quanto mais baixo é o número, pior é a avaliação.

Com excesso de matérias, currículo desconectado da realidade socioeconômica e conteúdos ultrapassados, o ensino médio é considerado o mais problemático de todos os ciclos do sistema educacional. E é justamente por isso que ele se destaca por altas taxas de abandono e de reprovação.

“Falta muito para avançarmos e há um desafio para a educação básica como um todo. Muitos jovens estão fora da escola ou não se formam por causa da qualidade do ensino. Se o aluno avança de etapa sem uma base sólida e chega ao ensino médio com déficit, ele é quase induzido a sair do sistema de ensino”, afirma o diretor de políticas educacionais do Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho.

O desinteresse dos estudantes pode ser visto já na primeira das três séries do ensino médio, onde 23% dos alunos abandonam as salas de aula. E é justamente por isso que a taxa de crescimento de concluintes das três séries não tem a velocidade necessária para atingir a meta prevista para 2022, lembram os técnicos do Todos pela Educação.

Entre 2012 e 2018, o número de concluintes na faixa etária de 19 anos cresceu apenas 1,9% por ano, em média, quando seria necessário que aumentasse 7,2% anualmente, para que a meta pudesse ser atingida. “O crescimento é muito lento. Ainda estamos muito distantes para dizer que o País está a caminho da universalização do ensino básico”, diz o gerente de políticas educacionais da entidade, Gabriel Corrêa.

Na realidade, os problemas estruturais do ensino médio são antigos e a saída é conhecida. Em vez de concessões a modismos pedagógicos e políticas demagógicas, é preciso reduzir o número de matérias, rever os currículos e tornar os gastos no setor mais produtivos, mediante programas de aprimoramento da formação de professores, por exemplo. E tudo isso exige maior articulação entre o governo federal e as áreas educacionais dos Estados e municípios.

Sem fortalecer o ensino de disciplinas essenciais e sem motivar os alunos do ensino médio a concluir esse ciclo educacional, o Brasil continuará incapaz de formar mão de obra tão produtiva quanto a de outras economias emergentes. Não conseguirá formar o capital humano de que necessita para voltar a crescer de modo sustentado. E perpetuará as condições do atraso, da desigualdade e da pobreza, impedindo que as novas gerações se emancipem intelectual, social e economicamente.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.01.19

A alma militar do político

Por Gaudêncio Torquato

Jair Bolsonaro, em sua peroração inicial como mandatário-mor da Nação, fez questão de exibir o manto verde-amarelo que expressa a estética de sua identidade desde os tempos em que adentrou o território da política. Ao puxar a bandeira brasileira do bolso e acenar com ela para a multidão, no discurso de posse no Parlatório do Palácio do Planalto, o presidente procurou enaltecer compromissos que permearam sua campanha: o verde-amarelismo abriga coisas como o ânimo cívico, o nacionalismo, a soberania nacional, o combate à ideologia de esquerda. O fecho de suas mensagens aponta a linha divisória que separa seu eleitorado de contingentes abarcados pelo lulopetismo e entorno: “essa bandeira jamais será vermelha”.

A expressão soma mais força em função da origem militar de Bolsonaro. Mais que outros segmentos, os militares encarnam de maneira intensa a simbologia nacionalista. De pronto, a primeira fala do presidente definiu o Brasil, sob seu mando, como enclave poderoso no sul do continente a lutar contra o ideário da foice e o martelo (o comunismo) e, por tabela o socialismo, mesmo sabendo que as cores deste foram suavizadas em nossos tempos com a incorporação de elementos do liberalismo, como a livre iniciativa, formando a social-democracia, como pode se ver na Europa.

Ocorre que a vertente esquerdista tem se enfraquecido nos países social-democratas, casos de Alemanha, Itália, Espanha, Hungria, Polônia e até Suécia, onde entes mais à esquerda têm amargado derrotas. O fato é que a crise da democracia representativa tem fragilizado seus vetores, implicando arrefecimento ideológico, declínio de partidos, desânimo das bases, fragmentação das oposições. Em contraposição, novos polos de poder se multiplicam – particularmente os núcleos formados no âmbito da sociedade organizada – sob os fenômenos que hoje agitam a política: a globalização, a imigração e o nacionalismo.

A globalização rompeu as fronteiras nacionais, instalando interdependência entre as Nações. A livre circulação de ideias e a troca de mercadorias contribuem para a formação de uma homogeneidade sócio-cultural, arrefecendo valores próprios dos territórios e certo prejuízo para os conceitos de soberania, independência, autonomia. A explosão demográfica, por outro lado, e as carências das margens sociais, a par dos conflitos armados em algumas regiões (as guerras modernas), aceleraram processos migratórios. Na Europa, emerge o temor de que as correntes de imigração não apenas contribuam para a perda de emprego da população nativa, como resultem mais adiante em impactos culturais de monta, descaracterizando signos e símbolos das Nações.

Nos Estados Unidos, esses fenômenos têm sido tratados de maneira dura por Donald Trump, com sua insistência para construir um muro na fronteira com o México. O cabeludo presidente desfralda a bandeira do nacionalismo sob o discurso de proteger empregos e melhorar as condições de vida de populações ameaçadas pelo fluxo migratório. Daí o posicionamento do governo americano ante a globalização, os compromissos das Nações com o Acordo de Paris sobre Mudança Climática e o Pacto Mundial sobre Migração, sob a égide da ONU; a situação de países como Venezuela, Cuba e Nicarágua e a política de defesa de direitos transgêneros. Os EUA marcam posição nessas frentes.

Nessa encruzilhada, Bolsonaro e Trump marcam um encontro. O pano de fundo da articulação mostra a integração de esforços para combater ideologias de esquerda, fortalecer vínculos com entes comprometidos com um ideário conservador, dar impulso ao liberalismo. No Brasil, o foco será a privatização. Deixar o Estado com o tamanho adequado para cumprir suas tarefas. E manter o cobertor social do tamanho que os recursos permitam. Nem lá nem cá. Mais: sem apoio a núcleos que batalham por direitos. (A indicação de Bolsonaro de que devemos combater o “politicamente correto” não seria, por exemplo, o arrefecimento a ideologia de gêneros?).

Em suma, com o resguardo militar, um programa arrojado de alavancagem da economia, ações na área do campo, forte combate à corrupção, disposição de cortar as fontes que alimentam a bandidagem, desfralde dos valores da família, sob as bênçãos de Deus, o novo governo quer “consertar” as coisas erradas. P.S. Com direito da população de acompanhar tudo isso pela linguagem de Libras. Com a simpática Michelle, ao lado do marido, abrindo seu cativante sorriso.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Confusão

Chacrinha, o velho guerreiro, pode ser um modelo para qualquer presidente da República, principalmente por sua competência, por sua imaginação e por seu empenho, nunca pelo mais notável de seus bordões: “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir”. O presidente Jair Bolsonaro nunca deveria esquecer essa restrição. Se um governante é levado a sério, suas palavras têm peso e produzem consequências. Até seus gestos, expressões faciais e poses podem ser interpretados e convertidos em mensagens, voluntárias ou involuntárias. Pode alguém surpreender-se quando seus comentários sobre a reforma da Previdência, inesperados e mal explicados, geram confusão, dúvidas e inquietação no mercado financeiro, como ocorreu na manhã de sexta-feira? Modéstia pode ser uma virtude, mas qualquer figura de grande responsabilidade, especialmente num alto posto da República, tem de reconhecer o valor das próprias palavras.

A confusão começou quando o presidente, numa entrevista ao SBT, defendeu idade mínima de 62 anos para homens e de 57 para mulheres como uma das condições para aposentadoria. No projeto em exame no Congresso as idades são 65 e 62, com longos períodos de transição. O governo, imaginava-se até aquele momento, aproveitaria o texto já em tramitação, com poucas alterações, para ganhar tempo. Não se esperavam novidades importantes no fim de semana. A proposta oficial seria conhecida em alguns dias, quando fosse encaminhada à Presidência pela equipe econômica.

A entrevista ao canal de TV foi na quinta-feira à noite. Na manhã seguinte as palavras do presidente foram o grande assunto das primeiras páginas dos jornais mais importantes e de todos os noticiários de rádio e televisão. Horas antes da abertura do mercado já se especulava sobre como reagiriam os investidores. Como o presidente havia falado sem esclarecer os detalhes, abriu-se espaço para comentários sombrios. Alguns exemplos:

1) a fala presidencial mostra descompasso com a equipe econômica. Qual será a influência real de um ministro da Economia assim desprestigiado?

2) o presidente resolveu propor mudanças mais brandas que as previstas no projeto em exame no Congresso (Essa interpretação foi reforçada por uma explicação apresentada por aliados: a ambição foi reduzida como estratégia, porque o ótimo é inimigo do bom);

3) um dos efeitos dessa atitude será a redução do poder de barganha do Executivo. Os negociadores entrarão em campo já em desvantagem;

4) o presidente está pouco interessado na reforma da Previdência, aceita resultados pobres e quer livrar-se rapidamente do assunto.

Todos esses comentários foram lidos ou ouvidos na manhã de sexta-feira. A interpretação menos sombria, e aparentemente mais tranquila, surgiu num breve comentário do presidente da Câmara, Rodrigo Maia: se essa proposta de idade mínima for para valer, só terá sentido se for sem período de transição.

Palavras do presidente Bolsonaro sobre os efeitos da reforma já em seu governo pareceram dar fundamento a essa interpretação. Ele voltou a falar sobre o assunto ontem, reiterando a proposta das idades mínimas de 62 e 57 anos, mas de novo sem esclarecer como o esquema seria implantado e como ficaria o conjunto da reforma.

A reforma da Previdência tem sido apontada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como o primeiro e mais importante desafio do novo governo. O presidente Jair Bolsonaro parecia, até a entrevista de quinta-feira, concordar com esse ponto de vista, partilhado por analistas nacionais e estrangeiros de alta de reputação profissional. Essa ainda é, espera-se, a sua posição. Nesse caso, falta apenas agir de acordo com a importância dessa reforma, essencial para o sucesso da nova administração.

A disposição do presidente de se comunicar com o público é muito bem-vinda. Aqui vale a pena recordar outra lição de Chacrinha: quem não se comunica se trumbica. Mas a comunicação de um governante é um ato funcional. Deve ser destinado a explicar, jamais a confundir.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 05.01.19

Temer, missão cumprida

Por Antonio Delfim Neto

Quando os tempos se acalmarem, pesquisadores honestos concentrarão suas teses de doutoramento nos incríveis quase 14 anos de governo do PT.

O presidente Michel Temer em encontro com correspondentes em Brasília.

Sob Lula, registrou-se o único surto de crescimento dos últimos 20 anos. Ajudado por uma extraordinária melhoria das “relações de troca”, soube aproveitá-la para melhorar a distribuição de renda.

Tudo foi destruído pela ação voluntarista de Dilma, que produziu uma dramática recessão. Entre 2012 e 2016, o PIB per capita caiu 7%, a produção industrial voltou ao nível de 2003 e os PACs deixaram mais de 7.000 obras inacabadas. A tragédia fiscal foi escondida pela destruição dos registros contábeis que levaram ao impeachment.

Essa foi a herança de Temer. Ele soube organizar uma espécie de “parlamentarismo de ocasião” e cercar-se do que há de mais competente na administração pública do país.

Não tenho a menor dúvida. Quando Temer sofrer o mesmo julgamento, ele será classificado como um presidente inovador e reformista: a densidade de medidas corretivas dos desvios da boa administração econômica por unidade de tempo foi a maior desde a Constituição de 1988!

É tempo de registrar com tristeza que a reforma da Previdência, sem a qual não há a menor esperança de voltarmos a um equilíbrio fiscal, foi frustrada por uma armação de Janot, acompanhada por um “principismo” do STF, que poderia ter agido postergando o início do processo para 2 de janeiro de 2019.

Ninguém propunha ignorar os fatos, mas apurá-los com honestidade de propósito e ampla liberdade de defesa, depois que o mandato se esgotasse. O que se sugeria era, apenas, manter funcionando o “parlamentarismo de ocasião” que, praticamente, já havia assegurado a aprovação daquela reforma.

O governo de Temer sai consagrado pela qualidade dos técnicos que escolheu. Paulo Guedes, inteligentemente, aproveitou o “crème de la crème” do funcionalismo competente e honesto com o qual ele governou. Novos governos estaduais disputaram a colaboração de vários de seus ministros e dos que saíram. Outros sofrem intenso namoro do setor privado.

Temer sempre recusou remover um auxiliar por ter servido, como bom profissional, aos governos do PT. A intriga (os palácios são ninhos de jararacas) nunca o levou a julgar um auxiliar competente “porque era petista de carteirinha”.

Hoje as insídias transcendem o palácio. O mais competente profissional é sujeito, na mídia social irresponsável, ao ataque dos que pretendem a sua posição sem ter a mesma qualificação. Esse é um aviso para o governo Bolsonaro.

Presidente Temer, V. Excelência cumpriu sua nobre missão: “Perfer et obdura”. Vá em paz!
Antonio Delfim Netto, economista, foi Ministro da Fazenda e Deputado Federal Constituinte por São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 26.12.18.

Benefícios repulsivos

Insensíveis à crise orçamentária do Estado e insaciáveis na tentativa de aumentar salários e multiplicar penduricalhos à custa dos contribuintes, vários tribunais não estão medindo esforços para criar novos penduricalhos. A ideia é repor as perdas financeiras causadas em seus holerites pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender o pagamento indiscriminado do auxílio-moradia a toda a magistratura, limitando-o apenas aos juízes que tiverem de atuar fora da comarca de origem e que não têm casa própria no local ou residência oficial à disposição.

Uma dessas cortes é o Tribunal de Justiça do Maranhão, cujos juízes e desembargadores foram autorizados pelo corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, que também é ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a receber R$ 3.546 por mês, a título de auxílio-alimentação. Esse penduricalho foi criado por lei estadual aprovada há 11 anos pela Assembleia Legislativa, com o valor de R$ 726 mensais. Apesar da imoralidade do benefício, a corporação justificou o aumento de quase 500% em nome do princípio da isonomia, uma vez que os promotores e procuradores do Ministério Público estadual já vinham recebendo R$ 3.546 de auxílio-alimentação.

O antecessor de Humberto Martins na chefia da Corregedoria Nacional de Justiça, ministro João Otávio Noronha, havia vetado esse aumento, mantendo-o em R$ 726. Todavia, sob a justificativa de que a Corregedoria Nacional de Justiça não pode interferir na autonomia administrativa e financeira dos tribunais, Martins autorizou sua elevação. Independentemente das limitações orçamentárias da corte, os beneficiários querem que os novos valores comecem a ser pagos em janeiro. A estimativa é de que o aumento custará cerca de R$ 11 milhões por ano para os contribuintes maranhenses.

Na mesma semana e na mesma linha do Tribunal de Justiça do Maranhão, o Tribunal de Justiça do Estado do Acre fixou o valor do auxílio-alimentação de seus juízes e desembargadores em 10% de seus vencimentos.

Outra corte envolvida na criação de penduricalhos é o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, cujos membros pressionaram a Assembleia Legislativa a aprovar projeto que instituiu o auxílio-transporte no valor de até R$ 7,2 mil. Esse valor equivale a 20% dos vencimentos da magistratura estadual. Como a lei ainda precisa ser sancionada, os juízes e desembargadores de Mato Grosso do Sul agora estão pressionando o governador Reinaldo Azambuja, que foi reeleito no pleito de outubro. Pelo preço da gasolina no Estado, se Azambuja ceder, cada magistrado poderá comprar cerca de 10,5 mil litros por mês. Esse auxílio é tão absurdo que o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, determinou a abertura de um procedimento para apurar o caso e anunciou que não permitirá sua concessão.

Além de seu pagamento ser imoral, o auxílio-alimentação e o auxílio-transporte dão margem a outro expediente que vem sendo usado em larga escala pela magistratura para aumentar seus vencimentos líquidos. Alegando que esses dois penduricalhos têm o que chamam de “natureza indenizatória”, não constituindo remuneração e sendo pagos sob a justificativa de que são essenciais às “condições funcionais de trabalho” de juízes e desembargadores, seus valores não são levados em conta nem para o cálculo do Imposto de Renda nem para o cálculo do teto do funcionalismo público. Ou seja, os magistrados que juraram cumprir a Constituição quando entraram para o Poder Judiciário recorrem a subterfúgios para contornar as determinações desse texto legal e não terem, desse modo, de arcar com as obrigações que atingem todos os cidadãos prestantes do País. Por meio de suas associações corporativas, a magistratura – que sempre esteve entre as categorias mais bem remuneradas da administração pública – justifica seus privilégios em nome da “dignidade do cargo”. O argumento é risível, pois quanto mais a corporação é beneficiada por penduricalhos, menor é sua autoridade moral e mais comprometida é sua credibilidade.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 26.12.18

Ministros têm de defender a imagem do STF

Sabe-se qual a relevância de um Poder Judiciário respeitado ao se dar um balanço do protagonismo da Justiça nestes 30 anos de redemocratização, destacando-se o papel-chave, junto com o Ministério Público, que tem exercido neste ciclo histórico de enfrentamento pelo Estado brasileiro da corrupção instalada nas altas esferas públicas, por empresários e políticos poderosos.

Isso tem dado uma essencial segurança jurídica ao país. Daí ser deplorável que se volte a testemunhar a ação de ministros do Supremo, valendo-se do início do recesso da Justiça, para tomar decisões individuais, ou monocráticas, no jargão togado, em assuntos controvertidos que necessitariam ser levados ao escrutínio do plenário da Corte.

Esta pegadinha jurídica — sem discutir que tipo de interesse se move por trás de cada liminar solitária concedida — visa a tornar fato consumado veredictos no mínimo polêmicos, salvo recursos impetrados no plantão da Corte, que pode ser exercido pelo seu presidente.

No caso, Antonio Dias Toffoli, responsável por atender ao pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e derrubar deliberação de Marco Aurélio Mello para que fossem soltos todos os presos em cumprimento de pena confirmada na segunda instância, a não ser os que se encontravam em prisão preventiva.

O ministro assinou a determinação na quarta, pouco antes do início do recesso, depois de almoço de confraternização dos magistrados do Supremo, durante o qual não tocou no assunto. Não merece comentários.

A magnanimidade de Marco Aurélio beneficiaria 169 mil presos sem sentença definitiva e, entre eles, o ex-presidente Lula. Um golpe não apenas na Lava-Jato, mas na esperança que a sociedade passou a ter na possibilidade de afinal o Brasil virar uma República de fato, em que a lei vale mesmo para todos. Sabe-se que há tempos o ministro tenta que a Corte rediscuta esta jurisprudência, aprovada em 2016, depois de ter sido aplicada de 1941 a 1973, quando a ditadura militar aprovou no Congresso a “Lei Fleury", que permitia a réu primário e de bons antecedentes recorrer em liberdade.

Foi para beneficiar o policial Sérgio Paranhos Fleury, listado como torturador, processado e condenado por fazer parte de um esquadrão da morte. Depois, a Constituição de 1988 restabeleceu o correto princípio de 1941.

É certo que Marco Aurélio deveria esperar a sessão de 10 de abril, quando, segundo agenda definida por Dias Toffoli, o plenário da Corte enfrentará a questão.

Importa ficar claro para todos os ministros — como Ricardo Lewandowski, que acaba de usar o mesmo artifício para garantir um aumento aos servidores federais no ano que vem, apesar da crise fiscal — que estas atitudes solapam a legitimidade do Judiciário. O que não deve interessar a ninguém em um momento de divisões na sociedade, causa de conflitos a serem levados ao Judiciário. Chega a ser antidemocrático.

Editorial de O Globo, RJ, edição de 21.12.18

Danem-se os cidadãos

Por Carlos Alberto Sardenberg

Medidas provisórias são editadas pelo presidente da República e têm de ser votadas pelo Congresso Nacional, ao qual cabe a palavra final. Para Lewandowski, essa tramitação é bobagem. Basta sua caneta.

Nem é de se estranhar. Em dezembro do ano passado, o ministro fez a mesma jogada, garantindo para 2018 o aumento que o governo queria adiar para 2019.

Em tese, a liminar de Lewandowski pode ser derrubada pelo plenário do STF ou pela votação final da medida provisória pelo Congresso.

Mas apenas se Supremo e Congresso fizerem isso antes de 31 de dezembro. Isso porque o reajuste salarial entra em vigor em 1º de janeiro, embora só vá ser pago no final do mês. E como salário do funcionalismo não pode ser reduzido — outra das tantas vantagens exclusivas — está definitivamente elevado no início de 2019.

A menos que alguém — o presidente Temer ou a procuradora-geral — entre com recurso contra a liminar e esse recurso seja recebido pelo ministro Dias Tofolli, presidente do STF de plantão, tudo antes de 31 de dezembro.

Será? Não esquecer que o STF acaba de conceder a todos os juízes um reajuste de 16%, extensivo ao Ministério Público. O que esperar de um Supremo (Supremo!) que decide conforme os interesses pessoais de seus integrantes?

O terceiro golpe, talvez ainda mais grave do ponto de vista da moral e da política, foi praticado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O Congresso Nacional havia aprovado uma lei afrouxando a Lei de Responsabilidade Fiscal, determinando, para resumir, que estariam isentos de punição os municípios que estourassem os gastos com pessoal.

A lei estava na mesa do presidente da República esperando a sanção ou o veto. Temer, a pedido de sua área econômica, pretendia vetar. Pelas normas institucionais, o veto voltaria ao Congresso, que poderia mantê-lo ou não. Tudo republicano.

Ocorre que, na última terça, Temer foi ao Uruguai para a reunião do Mercosul. Nessas circunstâncias, e por uma regra antiga que hoje não faz mais sentido, o presidente tem de ser substituído interinamente. Como Temer não tem vice, assumiu Rodrigo Maia, que foi lá na gaveta, pegou o projeto de lei, assinou e mandou para publicação. Tudo na calada da noite.

Ontem, Temer deu uma nota admitindo que foi surpreendido. Maia não falou nada. Nem precisava. Ele está em campanha para se reeleger presidente da Câmara e buscou apoio de prefeitos e seus deputados.

Há um ponto em comum nesses dois casos, a defesa dos vencimentos do funcionalismo. Na sua liminar, Lewandowski, lá pelas tantas, diz que os servidores federais não podem ser prejudicados só porque ganham os salários mais altos.

E então devem ser beneficiados por isso?

Quanto aos municípios, eis os dados: de 2010 a 2017, as despesas de pessoal passaram de 46% para 49% dos gastos totais; já a despesa com serviços prestados à população caiu de 35% para 30%.

Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, quando as prefeituras estouram os gastos com pessoal, ficam impedidas de receber repasses, empréstimos e ainda têm que fazer ajustes, como cortar despesas com salários.

Quer dizer, teriam que fazer isso, se Rodrigo Maia não precisasse de uns votos.

Quando a gente pensa que a avacalhação da República chegou ao limite, eles dão mais uns passos.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Este artigo foi publicado originariamente em O Globo, RJ, edição de 20.12.18.

Só pode ser pilhéria

Há dias, a Coluna do Estadão informou que a presidência do Conselho de Ética do Senado tem sido usada como moeda de troca nas articulações políticas com vistas à eleição para o comando da Casa a partir do ano que vem, quando começa a nova legislatura. Nada de novo sob o céu de Brasília não fosse a desfaçatez inaudita dos envolvidos na transação.

Reeleito senador, Renan Calheiros (MDB-AL) pretende voltar ao comando do Senado e para isso estaria articulando o apoio da bancada do PT – com seis senadores a partir de 2019, três a menos do que a composição atual – à sua candidatura. Em troca, Renan daria ao partido a presidência de um dos órgãos mais importantes da Casa, o Conselho de Ética, responsável por analisar e processar as representações ou denúncias oferecidas contra os senadores, que podem resultar em medidas disciplinares – como advertência, censura verbal ou escrita –, em suspensão temporária do exercício do mandato e cassação.

O senador Renan Calheiros é o arquétipo da velha política, mas é seu direito tentar voltar à presidência do Senado pelo mandato que lhe foi outorgado pelo povo de Alagoas. Escárnio será receber o apoio de seus pares para a realização do intento. A desmoralização do Senado perante a sociedade, caso Renan Calheiros volte a ocupar a cadeira de presidente da Casa, atingiria um patamar inimaginável, com consequências imprevisíveis para o bom andamento dos trabalhos do Poder Legislativo.

Se a eventual eleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado seria uma lástima por representar o triunfo da velha política – que a bem da verdade não é má porque “velha”, mas porque resume práticas condenáveis, alheias ao interesse público –, dar ao PT a presidência do Conselho de Ética da Casa equivaleria a dizer que, ao fim e ao cabo, o exercício do mandato pautado pela ética é o que menos importa para os senadores.

Não há outra conclusão possível quando o que se cogita é dar ao mesmo partido político que legou ao Brasil o mensalão e o petrolão – e disso não se arrepende –, apenas para ficar nos maiores escândalos de corrupção que engendrou, a responsabilidade de zelar pelo decoro parlamentar, condição mínima para o exercício do mandato de senador da República. Só pode ser pilhéria.

A desfaçatez é tal que, como informou a Coluna do Estadão, os petistas avaliam se devem ou não prosseguir com a barganha, mas não pelas razões corretas. Um grupo sustenta que o Conselho de Ética pode ser uma “batata quente”, mirando a poderosa primeira-secretaria do Senado, que administra os recursos financeiros da Casa.

O resultado das eleições de 2018 foi uma lufada de renovação no Senado, a maior desde o fim da ditadura militar. Das 81 cadeiras na Câmara Alta, 54 estiveram em disputa. Destas, 46 serão ocupadas por novos nomes a partir do ano que vem. É esperado que o comando do Senado traduza esse espírito, não necessariamente nas mãos de um neófito, pois o novo por si só não diz muita coisa, mas sob a liderança de um senador ou uma senadora que olhe para o Senado com as lentes do interesse público, da ética, da boa política, valores que vêm sendo clamados pela sociedade com mais vigor há pelo menos cinco anos, na esteira das manifestações de junho de 2013.

Não faltam nomes à altura dos cargos de presidente do Senado e do Conselho de Ética da Casa. Não há justificativa plausível para a escolha de pessoas ou partidos associados a tudo o que os homens de bem repudiam.

O povo brasileiro optou por olhar para o futuro, o que implica o imediato abandono de práticas e negociações que remetem ao atraso. O Senado não pode ficar alheio a esse desejo manifestado nas urnas e chancelar o absurdo representado pela presidência da Casa nas mãos de uma figura como Renan Calheiros ou por um senador do PT como bom zelador da ética de seus pares. Isso seria uma provocação desnecessária à maioria do povo brasileiro, que já disse o que pensa sobre o partido nas urnas, em 2016 e agora em 2018.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 17.12.18

Ouvir para liderar

Por Eurico Teles

Vivemos no Brasil um momento ainda desafiador para as grandes companhias, seus líderes e seus investidores.Um dos maiores exemplos disso é que o número de empresas que entraram com pedido de recuperação judicial em 2018 continua expressivo: somente de janeiro a setembro, foram 985, quase 10% a mais do que em 2017. O uso desse instrumento legal, que tem sido vital para a continuidade das operações das companhias, evidencia que os efeitos da crise econômica persistem. Tive a oportunidade de estar à frente do maior desafio nesse sentido no mercado brasileiro, conduzindo a Oi na aprovação do seu plano de recuperação judicial. Uma missão que me foi entregue um ano atrás, ao assumir a presidência de uma das maiores empresas de telecomunicações da América Latina.

Comecei como estagiário na companhia há 37 anos. Num período tão longo, muito se vê, se ouve e se aprende, seja com acertos, mas, principalmente, com os erros. Uma das questões fundamentais em participar de um momento tão relevante como o da Recuperação Judicial – crítico, mas, ao mesmo tempo, cheio de oportunidades – é enxergar a melhor forma de exercer a liderança. Ao longo de nossas vidas corporativas, somos empurrados degrau a degrau para cima. Alguns correspondem e sobrevivem, mas muitos ficam pelo caminho. Tornar-se um alto executivo é uma metamorfose que nem sempre respeita o tempo de cada um.

 Por isso, é tão importante ter a humildade para o aprendizado, principalmente ouvindo e compreendendo as reais necessidades da companhia, de seus colegas, de seus colaboradores e do mercado. E não basta colocar os ouvidos à disposição, tem que de fato absorver. Entender a fala do outro. E é importante ouvir também as vozes que divergem. Tem que ir a campo, acolher as os diferentes tons de dentro da organização e de todo seu ecossistema. Porque essa escuta ativa fornece ao CEO subsídios importantes e necessários para tomar decisões, buscar soluções e construir a direção que avaliar mais correta. 

 A escuta também dá embasamento para outra condição que julgo essencial a qualquer CEO: uma atitude conciliadora. Tenho convicção de que a maior contribuição que um presidente pode dar é a iniciativa de ir até as pessoas e trabalhar para conciliar as diferentes visões e pensamentos em busca do melhor pela companhia.

 Isso traz resultados claros e palpáveis. No nosso caso, desde a mudança no comando da Oi, vi nossa equipe trabalhar incansavelmente para ajudar a empresa a dar passos muito importantes: o plano de recuperação judicial com mais de 55 mil credores foi aprovado; a dívida financeira foi reduzida de R$ 49 bilhões para R$ 15 bilhões; houve conversão de parte da dívida em ações e a eleição de um novo conselho de administração independente. E agora estamos prestes a concluir outra etapa fundamental, que é o aumento de capital da empresa. Nada disso seria possível sem um time engajado, que confia na sua liderança, e sem um comando que ouve e acredita na sua equipe.

 Numa empresa de prestação de serviço, esse trabalho estaria incompleto se não houvesse disposição de ouvir a parte principal do nosso negócio: o cliente. Tentar entender e ajudar o consumidor é um compromisso sagrado. É primordial criar chances de se aproximar dele – como, por exemplo, tive a oportunidade de vestir literalmente o uniforme de técnico e ir à casa de uma cliente para acompanhar uma instalação e, lógico, conversar. Sem me identificar, pude ouvir muito sinceramente a avaliação dela do serviço e questionar o que poderia ser feito para melhorar. É um trabalho que parece tão básico, porém, traz um retorno muito concreto, ao aproximar líderes corporativos das reais necessidades de entrega.

Creio que vivências como essas agregam à liderança tanto quanto as diversas técnicas que os executivos dominam, pois nos sensibilizam pela empatia e trazem a gestão para a escala humana. Mas é claro que nada disso adianta se não soubermos ouvir de verdade – estando abertos a sermos, de fato, transformados pelo outro, seja por aqueles com quem trabalhamos, seja para quem trabalhamos – e assim atuar como conciliador em prol da organização.

Eurico Teles, advogado, é presidente da OI. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 18.12.18

Prudência e temperança

Jair Bolsonaro ainda não assumiu a Presidência da República, mas é natural que tudo o que ele e seus principais assessores digam ou façam no período de transição tenha considerável repercussão. Assim, o presidente eleito e aqueles que se apresentam ou são tidos como seus porta-vozes precisam ter em mente que suas palavras e atos, mesmo que não sejam propriamente decisões de governo, pois em sua maioria não passam de intenções, servem para criar ou frustrar expectativas em toda a sociedade brasileira e, dado o peso econômico do Brasil, mesmo na comunidade internacional.

Sendo assim, o recomendável seria que todos os envolvidos na transição fossem mais prudentes, evitando, como se tem visto até aqui, atropelos, desorganização e voluntarismo – que, em alguns casos, pode irrefletidamente atar o País a compromissos de caráter ideológico ou religioso que atenderiam a supostos desejos dos eleitores de Bolsonaro, mas claramente prejudicam o interesse nacional.

Foi assim, por exemplo, que Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente eleito, foi aos Estados Unidos para, na condição de enviado especial do pai, oferecer, sem esperar contrapartida, o apoio integral do Brasil à agenda do presidente norte-americano, Donald Trump. Deputado federal mais votado nas últimas eleições e fortemente identificado com o presidente eleito, Eduardo Bolsonaro parece ter esquecido que suas palavras e atos têm consequências, seja para si mesmo, seja para seu partido, para o próximo governo e para o País.

Tamanha temeridade foi coroada com a imagem de Eduardo Bolsonaro com um boné da campanha de Trump à reeleição, em 2020. Com isso, sugeriu que o futuro governo Bolsonaro torce pela vitória eleitoral do atual presidente norte-americano, quando o bom senso manda manter-se neutro nas disputas eleitorais alheias, já que o governo terá de lidar com quem quer que seja eleito em 2020 nos Estados Unidos.

O tour de Eduardo Bolsonaro é apenas um dos vários episódios desse período de transição que mostram preocupante prevalência de algo parecido com ideologia sobre a sensatez. Além da aproximação aparentemente incondicional com os Estados Unidos, o futuro governo Bolsonaro, mimetizando Trump, ameaça retirar o Brasil do Acordo de Paris, compromisso firmado por 195 países para conter o aquecimento global. Ao informar que ele mesmo pediu ao governo de Michel Temer para que desistisse de oferecer o Brasil como sede da próxima Conferência do Clima, em 2019, Bolsonaro deixou claro que o motivo era justamente evitar a saia-justa de "anunciar uma possível ruptura (do acordo) dentro do Brasil". Não parece ter havido reflexão suficiente, por parte do futuro governo, para que se tomasse tão drástica decisão.

Do mesmo modo, quase todo o noticiário sobre a transição indica preocupante desorientação sobre o que realmente pretende o presidente eleito. Depois de prometer um Ministério enxuto, com 15 pastas, Bolsonaro deverá tomar posse com mais de 20, em razão de uma aparente confusão de objetivos. Bolsonaro e sua equipe já anunciaram Ministérios que mais tarde foram cancelados, e depois anunciaram a extinção de Ministérios que foram ressuscitados. O presidente eleito já teve que desmentir declarações de seus futuros ministros e comunica decisões com potencial gravidade em entrevistas coletivas confusas e improvisadas.

Sinalizações ambíguas são especialmente alarmantes quando se referem aos maiores desafios da próxima gestão. Quando Eduardo Bolsonaro diz a investidores norte-americanos que "talvez não consigamos" fazer a reforma da Previdência, e seu pai é obrigado a vir a público para dizer que "pode ser que ele tenha se equivocado, o garoto, né?", revela-se inquietante desordem, até porque a frase seguinte põe em dúvida a tramitação do projeto que está no Congresso.

Alguns assessores de Bolsonaro, e talvez o próprio presidente eleito, parecem acreditar que tudo afinal se organizará simplesmente a partir de suas certezas ideológicas. Como escreveu o futuro chanceler, Ernesto Araújo, Bolsonaro foi eleito para promover nada menos que a "regeneração nacional" e, para isso, deve-se destruir tudo o que está aí. O problema é que Bolsonaro parece não saber exatamente o que remover e o que colocar naquele lugar.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 02.12.18

Bolsonaro - a caminho do futuro

Por Ives Gandra Martins

Indiscutivelmente, a vitória do candidato Jair Bolsonaro e de alguns governadores foi a demonstração inequívoca de que o brasileiro se cansou dos governos demagógicos, do aparelhamento do Estado pro domo sua e, principalmente, da corrupção que vicejou na era Lula-Dilma, por mais de dez anos. Sem recursos financeiros, sem alianças partidárias de expressão, sem tempo de televisão e com uma imprensa hostil, venceu candidatos poderosos, partidos dominantes e toda espécie de ataques ideológicos e de grupos enquistados no poder, cujo preconceito ostensivo não abalou os eleitores.

Seus adversários erraram o alvo. O candidato do PT, por não reconhecer que seu partido proporcionou o maior assalto às contas públicas, nos 13 anos em que governou o País; o candidato do PSDB, por ter atirado no inimigo errado (Bolsonaro, e não Haddad); o candidato no MDB, por ter um discurso mais acadêmico que popular; o candidato do PDT, por ter mostrado instabilidade, navegando da esquerda para a direita na busca de apoio e atacando, com seu estilo às vezes grosseiro, quem não o apoiava; e a candidata da Rede, por continuar, no estilo de Tom Jobim, a lembrar o samba de uma nota só. Apenas Amoêdo, que procurou estabelecer inovadora vertente eleitoral, surpreendeu, superando candidatos de expressão.

Votação semelhante à população de Portugal – 11 milhões de votos – separou Bolsonaro de Fernando Haddad e mostrou que o povo não mais suporta promessas não cumpridas e a corrupção desventrada. Lembro o velho e saudoso amigo Roberto Campos, que dizia que as promessas dos políticos comprometem apenas as pessoas que as ouvem.

Colocar a Federação dentro do PIB, desaparelhar o Estado, combater a corrupção, ofertar segurança pública e inserir o Brasil no cenário mundial, criando parcerias principalmente com países desenvolvidos – e não países como Cuba, Venezuela e outros vocacionados à ditadura –, esse foi o mote da campanha vitoriosa que elegeu Bolsonaro e alguns governadores que o apoiaram, como João Doria. Todos os candidatos que adotaram o discurso “politicamente correto” para a conquista de eleitores de todos os matizes ficaram a meio do caminho.

Os desafios, agora, são grandes. As primeiras escolhas de seu Ministério parecem acertadas. Um cientista para Ciência e Tecnologia, mundialmente conhecido. Um juiz para o Ministério da Justiça, ícone do combate à corrupção. Quatro economistas altamente qualificados para a Economia, para o BNDES, o Banco Central e o Tesouro. Uma empresária bem-sucedida e parlamentar para a Agricultura. Um diplomata de carreira para o Itamaraty, livre de teses marxistas ultrapassadas; além de abrir, de imediato, diálogo com os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário).

Nada obstante a crítica dos derrotados e o preconceito dos ideólogos, parece que os primeiros passos do presidente eleito são corretos, convergindo para a formação de uma equipe eficiente.

O certo é que a eficiência – que não foi a marca dos governos passados – é que determina, hoje, o progresso das nações. Os autodenominados “progressistas” têm suas ideologias ultrapassadas, porque o futuro prometido se coloca a séculos de distância do presente sacrificado.

Assim é que entre as 20 maiores democracias do mundo não há um país “progressista”. China e Rússia renderam-se aos caminhos capitalistas, para se desenvolverem. As denominadas economias “conservadoras” são todas elas vitoriosas e as “progressistas”, um rotundo fracasso. Venezuela e Cuba talvez sejam os exemplos mais agudos dessa ineficiência.

Aspecto, entretanto, relevante reside em que a democracia está em constante perigo entre os governos de esquerda, mais preocupados em aparelhar o governo e se manter no poder do que em preservá-la, tendendo, à semelhança de Maduro, Ortega e dos Castros, para a ditadura.

É de lembrar que os governos “progressistas” dos séculos 20 e 21 provocaram um profundo recuo no desenvolvimento de seus países, sendo, pois, “regressistas”; e todos os governos “conservadores”, por adotarem a economia de mercado, foram “progressistas”, já que provocaram a inserção dos países na realidade do século 21, que exige eficiência.

A corrupção, por outro lado, tem sido uma constante desses governos “regressistas”.

Não por outra razão, o casal Ceausescu, na Romênia, vivia nababescamente. Lenin tinha, segundo consta, uma coleção de carros Rolls-Royce e os Castros, ilhas particulares para seu gáudio e bem-estar, enquanto seu povo patinava em salários miseráveis. E o que não dizer do líder endeusado pela presidente do PT, Nicolás Maduro, talvez o maior símbolo da incompetência administrativa, que implantou cruel ditadura para o povo venezuelano.

Todas essas considerações eu as faço porque estou convencido de que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, está trilhando, apesar das críticas costumeiras dos desalojados do poder, o caminho correto, tendo, a meu ver, a seu favor a disciplina que aprendeu nas Agulhas Negras, hoje gerando oficiais comprometidos com a democracia, com a luta contra a corrupção e, principalmente, com o estrito cumprimento da Constituição. É uma nova geração de militares, cuja formação transcende de muito o conhecimento das artes marciais, para o conhecimento em profundidade da realidade brasileira e mundial. Tal percepção, como velho professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército há 29 anos, posso atestar, pois sei que são todos os militares escravos da Carta da República.

Para o bem do Brasil, que Deus abençoe o novo presidente.

Ives Gandra Martins é Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFEIO, UNIFUMU, do CIEE- O Estado de S. Paulo, da Escola Superior de Guerra e da Magistratura do TRF-1. É fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária (CEU) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 24.11.18.

Bombas contra desempregados

Cerca de 12 milhões de brasileiros passarão um fim de ano apertado, mal conseguindo pagar as despesas mais simples, e muitos ainda estarão em sérias dificuldades no fim de 2019, se a irresponsabilidade política ainda travar a criação de empregos. Nesse caso, o estrondo de pautas-bomba – projetos com aumentos de custos para o governo – ainda será mais forte que o dos foguetes e rojões típicos das festas.

Sem dinheiro para festejar, esses desempregados ainda pagarão impostos sobre seus gastos, mínimos e indispensáveis, e assim financiarão os benefícios concedidos a pessoas e a setores empresariais imensamente mais aquinhoados.

Quase metade dos trabalhadores em busca de uma vaga está desocupada há mais de um ano. Mais de um quarto, há mais de dois, segundo os últimos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O levantamento é realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os cidadãos à procura de trabalho há mais de um ano eram 5,05 milhões no terceiro trimestre, de acordo com a Pnad. Eram cerca de 40% dos 12,5 milhões de desocupados. O grupo há mais tempo desempregado – sem ocupação há dois anos ou mais – correspondia a 3,2 milhões de pessoas, 25% do total de desocupados.

Esse contingente é quase tão numeroso quanto a população do Uruguai (3,46 milhões de habitantes em 2017), incluídos bebês, crianças da escola básica e velhinhos há muito aposentados, e corresponde a 17,18% da população chilena.

Quando se pensa em tanta gente fora das folhas de pagamento há tanto tempo, fica difícil levar a sério o argumento invocado a favor do reajuste de salários para os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Incluído o enorme efeito cascata, esse reajuste deve impor ao setor público uma despesa adicional estimada em R$ 6 bilhões por ano.

O mesmo tipo de comparação serve para avaliar qualquer outro mimo fiscal ou financeiro concedido a indivíduos e a empresas. Pouco ou nenhum avanço em termos de inovação, crescimento econômico e criação de empregos decorreu da maior parte dos incentivos custeados pelo contribuinte nos últimos dez anos.

Exemplos de enorme desperdício custeado pelos contribuintes – empregados e desempregados – são o Programa de Sustentação do Investimento (instituído em 2009) e a desoneração da folha de pagamento de dezenas de setores, como foi claramente mostrado em recente análise produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O estudo mostrou, entre outros fatos escandalosos, o aumento de demissões, a redução de admissões e o medíocre desempenho produtivo de várias das indústrias mais beneficiadas pela desoneração da folha. Apesar da evidente distribuição de benefícios sem a mínima cobrança de contrapartida, congressistas evitaram cortar as desonerações.

Quando, finalmente, o fizeram, numa negociação com o Executivo, ainda mantiveram a vantagem para vários setores.

O mesmo desinteresse em relação a custos e benefícios vinculados ao uso de recursos públicos foi exibido, há pouco tempo, na aprovação de um novo programa de incentivos fiscais ao setor automobilístico. Neste caso, a iniciativa foi do Executivo, contra a orientação do Ministério da Fazenda. No Congresso, as vantagens fiscais propostas pelo governo ainda foram ampliadas.

Cada real adicionado aos custos do governo tornará mais difícil e mais demorada a solução da crise das contas públicas, exceto se a despesa – ou facilidade fiscal – produzir efeitos de curtíssimo prazo em termos de crescimento econômico e de criação de empregos. Não é o caso da série recente de mimos aprovados no Congresso. Muito mais provável é o surgimento de novas pautas-bomba.

O presidente eleito e sua equipe têm razões para tentar, neste fim de ano, evitar o aumento de encargos para o governo. Muitos congressistas falharam na tentativa de reeleição e isso poderá dificultar negociações. Mas o esforço é necessário, especialmente porque, explícita ou implicitamente, será feito em nome de uns 12 milhões de desempregados.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 15.11.18

Bom sinal

Uma parte considerável das desventuras nacionais tem origem no chamado presidencialismo de coalizão, que vigora no País, com maior ou menor força, há cerca de três décadas. Esse sistema, como se sabe, é consequência do fato de que nenhum partido, nem mesmo o do presidente da República, consegue eleger mais do que 20% do Congresso, obrigando o chefe do Executivo a construir maioria por meio de negociações com os muitos partidos e, não raro, diretamente com deputados e senadores. Essa combinação frequentemente se dá não em termos de propostas ou ideias para o País, e sim no simples toma lá dá cá de cargos e verbas.

Nos últimos anos, o País assistiu, entre o atônito e o enojado, ao mais desbragado loteamento da máquina pública entre os partidos e políticos que – diga-se em português claro – venderam seus votos em troca de vagas no governo. No mandarinato lulopetista, o presidencialismo de coalizão atingiu o estado da arte, sendo mais bem definido como presidencialismo de cooptação – em que o Executivo pagou por apoio no Congresso e franqueou aos partidos de sua base o acesso aos cofres de empresas estatais e a negociatas em geral, num amplo esquema de corrupção que começou como mensalão e terminou como petrolão.

O impeachment da presidente Dilma Rousseff interrompeu esse festim, em grande medida por pressão irresistível da opinião pública, conforme se viu em imensas manifestações de rua contra a corrupção. Não à toa, o candidato à Presidência que defendeu com maior vigor o fim desse sistema político, conforme demandava a maioria dos cidadãos cansados da roubalheira e da avacalhação do Congresso, acabou vencendo a eleição de outubro. Desde então, Jair Bolsonaro, o presidente eleito, tem demonstrado, na montagem de seu Ministério, que está mesmo disposto a acabar com o presidencialismo de coalizão.

Dos escolhidos por Bolsonaro para o primeiro escalão do governo até ontem, apenas três são parlamentares – os deputados Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Henrique Mandetta (Saúde). O fato de os três serem do DEM, segundo o presidente eleito, não significa que a indicação tenha como objetivo obter o apoio daquele partido. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), confirmou que “as indicações não são do DEM”. Bolsonaro explicou que Onyx Lorenzoni já estava em sua equipe desde a campanha, enquanto Tereza Cristina e Henrique Mandetta foram indicações das frentes parlamentares da Agricultura e da Saúde, respectivamente.

Assim, Bolsonaro sinaliza que sua intenção é articular apoio não de partidos, mas dos agrupamentos suprapartidários no Congresso, que seriam mais coesos que as bancadas partidárias por defenderem interesses específicos de setores da sociedade e por não se submeterem a este ou àquele cacique partidário. A lógica sugere que, nesses termos, a coalizão se dará por meio da negociação de uma agenda política e administrativa comum, e não como consequência da distribuição de vagas no governo e nas estatais.

O sistema vigente, é claro, reagiu. Os partidos do chamado “centrão”, que se julgam preteridos por Bolsonaro na formação do Ministério, já mandaram avisar, segundo informa o Estado, que vão sabotar o futuro governo na votação da reforma da Previdência. Tal ameaça, mesmo que dê em nada, serve para confirmar a natureza deletéria do presidencialismo de coalizão e o acerto do presidente eleito em tentar desmontar esse mecanismo.

Para a turma acostumada ao fisiologismo desbragado, pouco importa se a reforma da Previdência é inadiável diante do iminente colapso das contas públicas. O que interessa é tentar manter o governo como refém de suas demandas, quase sempre relacionadas a interesses escusos que fazem da atividade parlamentar um lucrativo ramo de negócios.

Não se sabe se o esforço do futuro governo em dar um basta no presidencialismo de coalizão será bem-sucedido, pois se trata de tarefa espinhosa e apenas iniciada, mas é preciso louvar a tentativa de demonstrar que, ao contrário do que parece, é possível governar o País sem o recurso ao contubérnio com os lambazes do Congresso.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 22.11.18

O plano de Lula para o Lulil

Por Fernão Lara Mesquita

Programa de governo é como termo de uso de aplicativo. Ninguém lê. Mas esse “O Brasil feliz de novo” é uma declaração à praça que não pode passar em branco. Embora políticos, intelectuais, artistas e até a maior parte dos jornalistas se mostrem firmemente decididos a não acreditar no que ele diz, Lula nunca escondeu o que quer ser quando crescer. Depois da esfrega do 1.º turno ele ordenou ao candidato laranja que se faça de bonzinho e renegue tudo, mas a coisa já está registrada no TSE como o programa oficial do governo ... de quem mesmo? É a terceira vez que eles tentam cravar esse punhal nas costas da democracia brasileira. A primeira foi na véspera do Natal de 2009, no apagar das luzes do governo Lula, quando ela foi batizada de “Plano Nacional de Direitos Humanos”; depois em 2014, na véspera da Copa e de um recesso extraordinariamente longo do Congresso quando Dilma o rebatizou de “Decreto 8.243”. Não vão desistir nunca. Essa é a receita oficial de golpe do Foro de São Paulo que fez o seu début mundial com Hugo Chávez “tomando o poder” na Venezuela com ele, à la José Dirceu.

“O Brasil feliz de novo” não especifica se manterá o Congresso aberto, mas é certo que ele deixaria de ter qualquer função, pois tudo passaria a ser decidido por “plebiscitos convocados pelo presidente da República” e decididos por “novos mecanismos deliberativos” a cargo de “movimentos sociais” e “representantes da sociedade civil organizada”. “Todos os poderes da União e do Ministério Publico”, assim como os do Judiciário, estariam submetidos a esse tipo de “controle social”. Todos os instrumentos da Lava Jato (delações premiadas, prisão na 2.ª instância, etc.) seriam revogados e o “controle da mídia” se faria “com a atuação da Anatel e da Polícia Federal para impedir perseguições”. Todas as “reformas do golpe” aprovadas pelo Congresso seriam revogadas. Haveria um “novo pacto federativo” em que literalmente todas as entidades municipais e estaduais passariam a ser subordinadas a entidades nacionais. Todos os insumos, indústrias e estruturas básicas seriam estatais, ficando para o “empreendedorismo” apenas o que é “micro”. O “grande agronegócio” passaria por reforma agrária. A política externa seria “altiva e ativa” significando privilegiar, inclusive com financiamentos, países da América Latina, do Caribe, da África e do Oriente Médio.

“A juventude” seria objeto de “direitos universais, geracionais e singulares que buscarão permanentemente a autonomia”. Quer dizer, da escolha dos banheiros na primeira escola dos seus filhos à reeducação dos professores, da água da bica ao petróleo, dos povos das florestas aos povos das metrópoles, da polícia única prendendo menos às penitenciárias soltando mais, do esporte à programação de shows, da contenção de encostas aos furacões do Caribe (!), para tudo e para cada coisa, para todos os brasileiros e para cada um, e não só para eles (a lista acima é literal, mas está longe de ser completa), haverá um “plano nacional”, acoplado a um “sistema único” e a um “novo marco regulatório” aprovado por gente que não elegemos que terá por referência “transversal” “o privilégio dos povos da floresta, dos quilombolas, dos negros e das negras, e o combate à LGTBIfobia”, em nome dos quais toda violência moral ou institucional será justificada.

Todo esse discurso delirantemente sinistro começa com a frase “Lula é uma ideia e agora um programa”, e repete 150 vezes que, nesse Lulil que já não seria Brasil, ele cuidaria pessoalmente de tudo.

E, no entanto, o País atravessou o 1.º turno inteiro assombrado pela ameaça à democracia encerrada na candidatura Bolsonaro sem que ninguém interrogasse o candidato laranja sobre essa preciosidade. Mas como o Brasil é bem melhor que suas elites, a decisão do 1.º turno deu-se totalmente à revelia dos debates. Eles simplesmente deixaram de interessar porque todo mundo - menos o intuitivo Jair Bolsonaro - fingia que a natureza do regime é uma questão resolvida, quando absolutamente não é.

Planos de gestão da economia e da administração pública, mesmo os sérios, são luxos para quem já tem o principal resolvido, e aqui, como no resto do planeta, é meio grau mais para a direita ou meio grau mais para a esquerda ou você cai no caos, como nós caímos. Por isso nem os mais patéticos entre os candidatos patéticos que tomaram nosso tempo nos debates conseguiram inventar coisa muito diferente nessa matéria.

Na falta de melhor tudo passou, então, a girar em torno da corrupção. Mas também o combate à corrupção está corrompido. Todo mundo sabe que existe uma diferença e todo mundo sabe que diferença é essa, mas é impossível traduzi-la numa tipificação jurídica. É por isso que nas democracias dignas do nome só quem elege tem o poder de deseleger e, então, entregar o ladrão à Justiça comum, que é igual para todos. Se for só juiz - e ainda por cima intocável - a controlar essa porteira, mais bandido municiando a imprensa para atingir outro bandido em disputas pelo controle de “bocas”, vira o Brasil...

O 2.º turno permitirá que o País se interrogue sobre onde é que vai parar o governo que promete começar revogando todo o Poder Judiciário que prende ladrão que resta, soltando Lula da cadeia, para ficarmos só com aquele que só solta, criado por ele, e que já vive anulando “monocraticamente” votações do Congresso Nacional inteiro.

Como faremos para que cada Poder da República volte aos seus limites? Que limites são esses, que nós já nem lembramos? Quem poderá restabelecê-los depois do estrago feito pelo lulismo? E como fazer isso com o próximo governo instalando-se à sombra do vulcão de um déficit explosivo por baixo da espada do crime de responsabilidade e sob a sede de vingança da seita que pediu impeachment de todos os governos desde a redemocratização, menos o seu próprio?

Tirar o lulismo do caminho é a condição para essa conversa começar. Mas o Brasil que sangra vai precisar da união de todo o campo democrático - o da esquerda inclusive - para sair dessa enrascada.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 10.10.18.

Para crescer com segurança

Os desafios para o novo governo contêm pelo menos um dado animador: o controle da inflação e o crescimento econômico de longo prazo dependem das mesmas políticas. Um Brasil mais eficiente será também um país com preços mais estáveis e com juros mais próximos dos padrões internacionais. Será, portanto, uma economia mais competitiva e com maior potencial de criação de empregos. Esta é uma das mensagens mais importantes incluídas na ata da última reunião do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC). Embora mais discreta e menos explícita, a linguagem oficial é bastante clara. Segundo o relatório, os membros do comitê destacaram a importância de iniciativas voltadas para “aumento de produtividade, ganhos de eficiência, maior flexibilidade da economia e melhoria do ambiente de negócios”.

Há espaço para intensificação dos negócios, a curto prazo, sem grandes pressões inflacionárias. Muita mão de obra está disponível, por causa do desemprego elevado e da subutilização da força de trabalho. Além disso, há ampla ociosidade de máquinas, equipamentos e instalações em boa parte do sistema produtivo.

Com inflação ainda contida, este cenário torna recomendável, segundo a ata do Copom, a manutenção de uma política monetária estimulante, com juros básicos mantidos em 6,50% e crédito sem maiores entraves. Estas condições podem facilitar o aumento da atividade, no próximo ano, se empresários e consumidores tiverem confiança para movimentar os negócios. Com maior utilização da força de trabalho e do parque produtivo, no entanto, os preços serão mais pressionados. Não parece haver risco de inflação fora dos limites fixados pela política nos próximos dois anos, pelos cálculos do BC e do mercado. Mas como garantir crescimento econômico mais veloz e sustentável por um longo período?

A resposta indicada pelo Copom - e por muitos economistas respeitados - envolve dois conjuntos de ações. O avanço no ajuste fiscal e em reformas básicas permitirá o controle da dívida pública, dará sustentabilidade às finanças oficiais e permitirá a manutenção de juros civilizados. Essas mudanças darão oxigênio ao governo e ao setor privado.

O outro conjunto inclui medidas voltadas diretamente para os ganhos de eficiência. A mobilização de recursos públicos e principalmente privados para investimentos na infraestrutura é um requisito óbvio. Do lado empresarial, os investimentos tenderão naturalmente a crescer, se os dirigentes puderem apostar com alguma segurança no futuro do País.

Mudanças na administração pública também contribuirão para ganhos de eficiência, tornando mais simples e mais fluida a relação entre empresas e governo e aumentando a segurança das transações. Estas condições, como todas as demais do conjunto voltado para a eficiência, são itens normalmente considerados nas avaliações de competitividade. As notas do Brasil têm sido baixas na maior parte desses quesitos.

Mas ganhos de produtividade envolvem mais que investimentos em capital físico, financiamento acessível e ambiente propício a negócios. Para se tornar mais eficiente, o Brasil dependerá também de uma oferta muito maior de mão de obra qualificada. A parcela menos qualificada deverá, no mínimo, ser capaz de receber treinamento para atuar em sistemas modernos de produção.

Qualquer plano decente de governo terá de incluir maior atenção aos níveis fundamental e médio de ensino, desastrosamente negligenciados por muitos anos. Também deverá valorizar a educação profissional. Boas iniciativas têm ocorrido, nesta área, em escolas do chamado Sistema S (Senai, Senac, etc.), com preparação de pessoal para trabalhar com tecnologia atualizada. Além de carências enormes, há exemplos promissores. O presidente eleito parece desconhecer os desafios e as propostas mais interessantes. Ao falar de educação, exibe preocupações basicamente ideológicas e com tintura religiosa. Esse é um péssimo sinal para quem deseja viver num país moderno, competitivo e com relevância global.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 07.11.18.

A lava jato e a política

Entre os vários riscos envolvidos na anunciada ida do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça do futuro governo Bolsonaro está uma possível confusão entre o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba e a Operação Lava Jato. Quem vai para o Ministério da Justiça é o juiz Sergio Moro, não a Lava Jato.

A Lava Jato é uma operação investigativa e judicial - e foi dentro do respeito a esse âmbito que ela conseguiu produzir seus melhores resultados. Ao longo dos últimos anos, o juiz Sergio Moro foi um árduo defensor do caráter judicial, e não político, da Lava Jato. Reconhecendo as limitações do trabalho da Justiça - “toda justiça humana é imperfeita”, disse no ano passado -, Sergio Moro frisava que a eficácia da função judicial está justamente em respeitar os limites legais. Admitindo a possibilidade de divergências, a resposta do juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba a eventuais críticas era sempre relembrar o fundamento legal de suas decisões.

Não poucas vezes, as manifestações públicas de Moro foram em sentido contrário às pretensões de membros do Ministério Público, que queriam converter a Lava Jato num movimento político. No ano passado, por exemplo, o procurador Deltan Dallagnol, ao comentar a proposta das Dez Medidas Anticorrupção, disse que “a estratégia agora não é mais coletar assinaturas, mas escolher senadores e deputados que tenham passado limpo, espírito democrático, e apoiem o combate à corrupção”. Sergio Moro manteve-se noutra esfera de atuação.

Não há motivo para que, agora, as coisas sejam diferentes. Sergio Moro anunciou uma mudança de posição - sua saída do Judiciário para assumir um cargo do Executivo -, mas a Lava Jato continua sendo uma operação investigativa e judicial, que, como toda outra operação dessa natureza, deve ter início, meio e fim. É necessário que Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário deem o devido encaminhamento à operação, arquivando o que deve ser arquivado, oferecendo denúncia quando for o caso e julgando os processos em tempo hábil, como era a praxe do juiz Sergio Moro.

Ao assumir o Ministério da Justiça, Sergio Moro deixa a Lava Jato. A Lava Jato não o acompanha. Caso isso ocorresse, haveria uma nefasta confusão de esferas institucionais, desmerecendo o trabalho da força-tarefa, como se fosse atividade exclusivamente pessoal de um juiz.

O Estado informou que Sergio Moro pretenderia levar alguns integrantes da força-tarefa da Lava Jato para o Ministério da Justiça. Estudaria convidar funcionários da Polícia Federal e da Receita Federal para compor sua futura equipe. Vale lembrar que, precisamente para respeitar os âmbitos institucionais de cada Poder, muitos desses funcionários, especialmente os procuradores, teriam de pedir, antes, a exoneração de suas funções para que possam trabalhar no Ministério da Justiça.

Longe de ser mero trâmite burocrático, essa medida é exigência do Estado Democrático de Direito, que delimita as esferas de atuação e estabelece competências específicas para cada função. Por isso, o juiz Sergio Moro tem também de se desligar definitivamente da função judicial para que possa assumir o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro.

Não se pode confundir a “agenda anticorrupção e anticrime”, prometida por Moro após ter aceitado o convite do presidente eleito Jair Bolsonaro, com uma próxima etapa da Lava Jato. São coisas essencialmente diferentes, cada uma com suas regras, procedimentos, objetivos e prazos específicos. Misturá-las seria roubar a eficiência que, cada uma, no seu âmbito, pode e deve ter. No caso da Lava Jato, isso representaria também adiar indefinidamente a sua conclusão - o que, para qualquer operação investigativa, é sinônimo de falta de foco, condução inábil e desvio de objetivos.

O trabalho de qualquer ministro da Justiça em prol de um ambiente público com menos corrupção e impunidade é muito diferente do ofício de titular de uma Vara Federal. No Judiciário, Moro exerceu com exímia competência e diligência seu trabalho, mas agora terá uma tarefa completamente diferente. Para ser bem-sucedido na empreitada, é essencial reconhecer essa abissal diferença, começando por não trazer a Lava Jato para o mundo da política partidária, pois é bom não esquecer que o titular de qualquer pasta será representante de um governo eleito e composto por partidos.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 06.11.18.

Efeito benéfico da democracia sobre os candidatos

O momento em que transcorre a oitava eleição presidencial consecutiva, pelo voto popular, algo inédito na República brasileira, é repleto de contingências que a tornam especial.

É translúcido como água limpa que muito do futuro da nação está em jogo no domingo 28, de que também depende a consolidação de avanços já ocorridos. Em que se destaca a própria democracia representativa, com o rito clássico da rotatividade no poder entre os diversos grupos políticos organizados na sociedade, sempre respeitada a Constituição.

Tem destaque na agenda nacional a própria estabilidade da economia, a ser obtida, ou não, a depender do que fará o próximo presidente com as contas públicas, que se mantêm em elevado déficit. E 2019 será o sexto ano consecutivo de saldo negativo, mantendo-se, nos últimos exercícios, acima dos R$ 100 bilhões. Não é possível continuar assim.

No campo político, começa a vigorar uma tímida cláusula de barreira para os partidos: exigência de um mínimo de 1,5% dos votos totais dados na Câmara, bem menos que os 5% estabelecidos para o pleito de 2007, infelizmente vetados pelo Supremo. Sem isso, o partido perde prerrogativas no Legislativo, acesso ao Fundo Partidário e ao programa político dito gratuito. Ao menos, é um início, para que acabe a excessiva pulverização de siglas no Congresso, forte incentivo à corrupção na montagem de bases que permitam ao presidente e a aliados governarem.

Um aspecto positivo nesta jornada eleitoral é a capacidade de instituições democráticas resistirem a pressões do autoritarismo, de esquerda ou de direita. Como as exercidas pelo lulopetismo sobre o Judiciário, o Ministério Público e o Legislativo para revogarem, na prática, a Lei da Ficha Limpa, a fim de permitir a um condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro disputar as eleições. Lula continua preso em Curitiba, e o estado democrático de direito se mantém de pé.

No transcorrer da campanha, os dois candidatos que estão na reta final da disputa, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), representantes da direita e da esquerda, vão eles mesmos moderando o discurso, em busca do centro.

Está sendo colocado em prova, com êxito até aqui, o mecanismo democrático pelo qual pressões legítimas da sociedade exercidas sobre candidatos e partidos conduzem os políticos para a zona de conforto ideológico do centro.

Há diversos exemplos. Ambos os candidatos afastaram a ideia golpista de uma Constituinte, sempre cultivada pelo PT; Bolsonaro recuou na homofobia e Haddad, no indulto a Lula; Bolsonaro rejeitou a ideia do “autogolpe” do seu vice, general Mourão; e Haddad disse discordar da “tomada do poder”, a que se referiu o ex-ministro José Dirceu, condenado por corrupção, mas em liberdade. Merece registro.

Editorial de O Globo, RJ, edição de 17.10.18

A hora das consequências

Por Merval Pereira

A manutenção da distância entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, confirmada pelo Datafolha, leva à conclusão de que, com mais uma semana passada sem que o candidato do PT conseguisse se aproximar do adversário, sua vitória parece inexorável. A diferença continua sendo de cerca de 18 milhões de votos, e o tempo está se reduzindo, apenas 10 dias separam a pesquisa mais recente das urnas.

Bolsonaro, temerário, já anunciou que está com uma mão na faixa presidencial, e no seu entorno já se discutem nomes para um futuro ministério. Mas o clima de já ganhou ontem passou a assustar os próprios assessores, que decidiram adotar um tom mais cauteloso, inclusive o próprio Bolsonaro.

Já começa a se solidificar a sensação de que somente uma “bala de prata”, um fato chocante contra Bolsonaro, seria capaz de alterar o resultado. A proximidade da derrota fez com que o PT ontem tentasse armar um escândalo com a suposta guerra de WhatsApp que seu adversário estaria comandando na clandestinidade.

Há muito pouco, porém, na reportagem de denúncia da Folha de S. Paulo para basear o pedido, feito ontem no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de anulação da eleição e convocação do terceiro colocado, no caso Ciro Gomes, para a disputa do segundo turno. O PDT também resolveu entrar na disputa, já que seria beneficiado.

É interessante ver que o PT que quer anular a eleição devido a abuso de poder econômico é o mesmo que foi acusado de crime semelhante na eleição de Dilma em 2014. Apesar do “excesso de provas”, como definiu relator Herman Benjamim, a chapa Dilma/Temer foi absolvida no TSE, e é difícil imaginar que agora, a poucos dias da eleição, o tribunal vá tomar alguma decisão que altere a disputa presidencial.

O que vai acontecer é que o PT fará a mesma coisa que o PSDB fez, isto é, continuar com o processo no TSE pedindo a anulação da eleição depois das eleições. Quando o PSDB fez isso, foi acusado de não ter aceitado o resultado, uma atitude antidemocrática. Agora, que está se aproximando a hora das urnas, e as pesquisas mostram uma grande vantagem de Bolsonaro, os petistas tentam criar uma onda de indignação sobre um assunto que precisa de uma ampla investigação antes de qualquer atitude do TSE.

Inclusive porque o PT também é acusado de usar fake news contra o adversário, nesta eleição e em outras anteriores. Ainda no primeiro turno, quando disputava com a candidata Marina Silva a ida para o segundo turno contra Dilma, o candidato tucano Aécio Neve anunciou que o partido acionaria o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o PT por abuso de poder político, em razão das denúncias divulgadas pelo jornal “O Estado de S. Paulo” de suposto favorecimento dos Correios à campanha de Dilma Rousseff em Minas e ao candidato petista a governador do Estado, Fernando Pimentel.

"Vários cidadãos disseram nas ultimas 24 horas que não receberam material de campanha. O PT ultrapassa todos os limites na utilização do Estado em benefício do seu projeto de poder. É crime o que aconteceu em Minas Gerais", afirmou. Houve também denúncias de abuso do poder econômico, uso de caixa 2, contratação de empresas fantasmas.

As pesquisas estaduais também não mostraram mudanças nos resultados do segundo turno, e tudo indica que também em Minas e no Rio o tempo é curto para impedir a vitória de Romeu Zema sobre o tucano Anastasia e do juiz Wilson Witzel sobre Eduardo Paes. Os dois ganharam força na última semana da eleição no segundo turno, ao se ligarem a Bolsonaro, e somente agora seus adversários, surpresos com o resultado inesperado, começam a tentar desconstruí-los. Não parece haver mais tempo.

O fato é que esse tsunami eleitoral alterou o jogo de forças em Brasília e nos Estados, e não necessariamente o novo que substituiu a velha política é uma transformação positiva. O que parece claro é que o que moveu o voto da maioria foi a vontade de mudar “tudo isso que está aí”.

Agora, resta saber no que vai dar essa renovação. Como disse o poeta Pablo Neruda, “você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das conseqüências”. Ou então, na frase famosa do Conselheiro Acácio, " as consequências vêm sempre depois".

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 19.10.18.

O papel da universidade

É urgente desvencilhar o meio acadêmico, especialmente o das universidades públicas, das amarras com o lulopetismo.

São estranhos esses tempos. Clamando por maior moralidade na vida pública, a população tem manifestado forte e decisivo apoio à Operação Lava Jato, que se tornou o principal símbolo do combate à corrupção. Ao mesmo tempo, o ex-presidente Lula da Silva, mesmo cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, exerce significativa influência na campanha eleitoral. Por exemplo, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que não conseguiu chegar ao segundo turno nas eleições municipais de 2016 e agora é o preposto de Lula na campanha presidencial, aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.

Apesar do envolvimento de muitas lideranças do PT e do próprio Lula da Silva em crimes, como já apontou a Justiça, o lulismo continua arraigado em parcela significativa da população brasileira. “O Lula é uma liderança daquilo que impropriamente se chama de esquerda. Negar isso é negar os fatos. Estamos falando de um homem condenado, na cadeia, tendo seu partido praticado uma série de irregularidades, que ele endossou, numa posição de líder de um partido que tem reais possibilidades de chegar à Presidência. Não é pouca coisa. Ninguém mata essa jararaca”, disse o historiador e cientista político Boris Fausto, em entrevista ao jornal Valor.

São várias as causas para a persistência do lulismo. O tempo de Lula da Silva no Palácio do Planalto coincidiu com um período de prosperidade econômica do País. Além de uma situação internacional favorável, os dois governos de Lula usufruíram das condições de crescimento proporcionadas pelas reformas estruturais feitas nos governos de Fernando Henrique Cardoso.

A lembrança do ambiente econômico de 2003 a 2010 não é capaz, no entanto, de explicar inteiramente como uma pessoa envolvida em tantos casos de corrupção continua sendo vista como uma liderança política por boa parte da população. A esse respeito, Boris Fausto lembrou um ponto importante na entrevista mencionada. “A canonização de Lula em meios universitários é impressionante. As pessoas abrem mão de pensar neste momento”, disse o professor da USP.

Para a construção dessa imagem de Lula da Silva absolutamente desconectada dos fatos, o meio acadêmico, com raras e honrosas exceções, teve uma importante parcela de responsabilidade. Para favorecer suas posições políticas e ideológicas, muitos professores e pesquisadores abdicaram de ver os fatos. Ou - igualmente grave - viram os fatos, mas entenderam que os fins justificariam os meios e absolveram antecipadamente todas as ações criminosas e de lesa-pátria praticadas por quem estava à frente do projeto de poder lulopetista.

É extremamente prejudicial ao País, sobretudo para a formação das novas gerações, que o meio acadêmico continue “canonizando” Lula da Silva mesmo depois de ter sido condenado, em duas instâncias, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. É ressuscitar a absurda e anacrônica mensagem do “rouba, mas faz”. Nessa estranha lógica, os erros de Lula da Silva seriam insignificantes diante do suposto bem que ele gerou para o País. O caso é que os benefícios foram fugazes e os malefícios são perenes.

Além de essa tese ser pura invencionice - o País amarga uma profunda crise moral, política, social e econômica, herança maldita dos anos do PT no governo -, é estranho que o ambiente acadêmico, que deveria se notabilizar pela liberdade de pensamento e, portanto, expressar e defender o pluralismo de ideias, seja assim subjugado por uma ideologia político-partidária, com tão baixa densidade intelectual e sem compromisso com os fatos.

Não há verdadeira universidade sem liberdade. Por isso, é urgente desvencilhar o meio acadêmico, especialmente o das universidades públicas, de suas amarras com o lulopetismo. A captura da universidade por uma corrente ideológico-partidária é sinal de emburrecimento, justo onde a inteligência deveria vicejar - e de grave desvio de finalidade, pois o dinheiro público destinado à educação está financiando as trincheiras acadêmicas de um retrógrado partido político.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 04.10.18

O cacoete do velho PT

Por Gaudêncio Torquato

“Pau que nasce torto não tem jeito, morre torto”.

O popular ditado cai bem nesse momento sobre a cúpula do PT. O novo governo nem começou e o partido volta ácido e mal humorado, a confirmar o lema que o distingue há três décadas – “se hay gobierno, soy contra”. Assim pensa: “o único governo que prestou e deve ser reconhecido como o melhor do país em todos os tempos foi o nosso”.

Não há como argumentar com mentes empedernidas, que continuam a se orgulhar das “vestes imaculadas” de um corpo enlameado pelo mensalão e pelo petrolão.

O PT não desce do pedestal. Na noite da derrota, Fernando Haddad inverteu a aritmética, elevou aos píncaros da glória seus 47 milhões de votos, convocou a militância para resistir e não ter medo, avocando-se como o professor-guerreiro “que não foge à luta, nem teme quem adora a liberdade à própria morte”. A ferocidade voltou à garganta de Gleisi Hoffmann ao destilar a raiva do “Nós e Eles”.

A democracia pressupõe jogo dos contrários. O embate de ideias é salutar para um sistema que preza a liberdade. Esse é o cerne da nossa Constituição que, aliás, o PT se recusou a assinar. Convém lembrar: no início da redemocratização o partido não votou em Tancredo Neves para presidente, não apoiou Itamar Franco na transição nem o Plano Real, que estabilizou a moeda.

Uma viseira histórica estreitou o olhar petista: no Brasil há uma banda sadia, a deles, e uma banda podre, o resto. O feitiço virou contra o feiticeiro, vítima da dualidade que cultivou. E voltará a semear com a disposição já manifesta de fazer “oposição por oposição”. Ocorre que boa parte dos partidos de centro-esquerda não mais perfilará ao lado do PT, caso do PDT de Ciro Gomes.

O petismo poderá adensar a oposição, caso o governo Bolsonaro seja um fracasso. A recíproca é verdadeira. Se ganhar aplausos, a administração Bolsonaro queimará o estoque de força do PT. Voltar às ruas com mobilizações e discurso crítico, sem esperar resultados, é um risco. Que pode ser evitado caso o partido faça uma reflexão capaz de apontar erros cometidos e definir rumos a seguir. Alas do PT disputarão a condição de interlocutores do amanhã. Se a verborragia azeda dos petistas persistir, sob a bandeira do “Lula livre”, é possível prever o acirramento dos ânimos.

O país precisa de horizontes claros. Do novo governante, espera-se também uma palavra moderada, acolhedora, de respeito à Constituição. A linha divisória será mais forte ou mais tênue se os extremos contiverem suas agressões recíprocas. O Brasil não merece a eterna campanha de luta pelo poder. Demandas prementes podem ser atendidas, como nas áreas da saúde, segurança pública, educação e mobilidade.

Enxugar a máquina administrativa, promover reformas fundamentais, criar empregos, adotar a meritocracia, melhorar a autoestima dos brasileiros, enfim, expandir o Produto Interno Bruto da Felicidade – são desafios que devem receber o apoio de todos. Ser contra apenas para voltar ao poder é politicagem.

É hora de lembrar a lição do Barão do Barão do Amazonas, vencedor da Batalha Naval de Riachuelo: "O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever".

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Mais análises no blog www.observatoriodaeleicao.com

Superar o anacronismo

Por José Roberto Nalini

O Brasil precisa acordar e ter coragem de enfrentar problemas que, aparentemente menores, contribuem para afligir a Nação e seus sacrificados habitantes. Nem todos a fruir o status civitatis, ou seja, não conseguem ser cidadãos, ter o direito a exercer direitos, diante de estruturas arcaicas e inertes.

Um dos cenários evidentes para quem está fora do Brasil é a fragílima situação do sistema de Justiça. O Brasil judicializou a vida. Mais de uma centena de milhões de processos infernizam a rotina de outros milhões de brasileiros. Tudo é levado à apreciação de um juiz, que depois de decidir verá a sua decisão ser aferida por um tribunal de segunda instância. Mas não para aí a peregrinação de quem precisa da Justiça: o processo pode chegar à terceira instância, em geral o Superior Tribunal de Justiça e, não raro, atingir a quarta instância, o Supremo Tribunal Federal.

Esse percurso tortuoso se submete a várias dezenas de possibilidades de reapreciação do mesmo tema, pois imerso num caótico sistema recursal. O processo passou a ser a grande chave para que algo chegue a uma definição ou, muitas vezes, deixe de ser examinada a substância da controvérsia.

É óbvio que a cultura jurídica é uma causa eficiente desse fenômeno. Quando Pedro I quis produzir uma burocracia tupiniquim e cortar o cordão umbilical com a Faculdade de Direito de Coimbra, ele foi buscar naquela fonte o modelo até hoje vigente. O ensino coimbrão já contava em 1827 com experiência quase milenar, pois inspirado em Bolonha, uma das mais antigas universidades do continente europeu.

Transplantado para o Brasil, com a gloriosa São Francisco e a Faculdade de Olinda, logo depois transferida para o Recife, replicou o padrão que se manteve inalterado, salvo exceções, até o século 21. O ensino é compartimentado, cada disciplina merece toda a atenção do titular e do departamento, em regra uma não conversa com a outra. Insiste-se na memorização, prevalece o magister dixit: alguém detém o conhecimento e o transmite ao aluno, “tábula rasa” que nada sabe e vai se abeberar na fonte de saber, o catedrático.

Duas coisas apenas mudaram. Primeira, o milagre da criação de Faculdades de Direito. Hoje o Brasil tem, sozinho, um número de escolas para o ensino da ciência jurídica em escala superior à soma de todas as outras que existem no planeta. Os Estados Unidos, por exemplo, continuam com suas 330 faculdades. Nós já chegamos a 1.300.

Segunda alteração: o processo ganhou autonomia científica. Houve um tempo em que ele era denominado um direito “adjetivo”: servia como instrumento para que a substância, o “direito substantivo”, chegasse às mãos e à consciência do juiz. Tanto lutaram os processualistas que de instrumento ele passou a ser essência. Hoje o processo e o procedimento são mais importantes que o mérito. Perscrute-se a porcentagem de lides que terminam apenas processualmente e não veem analisada a questão de fundo que levou a parte a procurar o socorro judicial.

Foi esse desenvolvimento que causou o paroxismo do “quádruplo grau de jurisdição”, quando o mundo inteiro se satisfaz com o “duplo grau de jurisdição”, hoje tão menosprezado.

O ensino jurídico precisa se atualizar. Afinal, a 4.ª Revolução Industrial sacrifica profissões, cerca de 701 delas tendem a desaparecer. A automação substituirá milhões de funções. A inteligência artificial compete e pode ganhar da inteligência humana, como já aconteceu com o Watson, vencedor de várias partidas de xadrez com os mais festejados xadrezistas. A internet de todas as coisas, a computação quântica, a robótica, tudo é diferente. O Direito precisa voltar a ser a fórmula de tornar o ser humano feliz. Ou de reduzir a carga de atribulações a que ele está submetido nesta efêmera e frágil passagem pelo planeta.

Missão quase impossível é convencer os educadores da ciência do Direito de que hoje as habilidades cognitivas não são tão importantes, pois o conhecimento está disponível para todos e nunca foi tão acessível. O que importam são as competências socioemocionais, como a empatia, a flexibilidade, a capacidade de comunicação e de readaptar-se continuamente, o talento para a harmonização, a busca da paz, da concórdia e do diálogo. Temas que nem sequer são cogitados por um sistema que ainda enxerga o processo como a mais adequada estratégia de solucionar um problema.

Enquanto não se atinge a maturidade cívica e a lucidez não orientar os que podem proceder às mudanças, pelo menos os concursos públicos para as carreiras jurídicas poderiam merecer adequação. Qual o significado de se exigir de um futuro juiz, promotor, defensor, procurador, delegado de polícia ou delegatário de serviço extrajudicial a memorização e o domínio mnemônico de um acervo enciclopédico de informações? Para que decorar toda a legislação, toda a doutrina e toda a jurisprudência, se a tríade pode ser localizada em segundos mediante utilização do Google?

O Brasil precisa mais é de pessoas sensíveis, equilibradas, prontas para o inesperado. Capazes de se reformular. Tolerantes. Compassivas. Atentas às vulnerabilidades dos semelhantes. Emotivas. Caridosas. Compreensivas.

A erudição arrogante pode fazer a sua parte. Decidir e pôr fim ao processo. Nem sempre – ou quase nunca – encerrar o conflito. Denunciar, ainda que às vezes de forma temerária. Assim por diante, replicando a praxe tecnicista, intensificando a nefasta influência da burocracia, afligindo ainda mais o aflito que necessita dos préstimos da Justiça.

Os concursos públicos precisam aprender com a iniciativa privada, que nunca entregaria a uma comissão ad hoc, sem experiência em recrutamento, a grave missão de renovar os quadros de que necessita para atender às finalidades para as quais ela é preordenada.

Quem ousaria pensar nisso?

José Roberto Nalini, Professor de Direito e Desembargador aposentado, é ex-Presidente da Academia Paulista de Letras e autor de "Ética Geral e Profissional" (em 13ª edição, RT-Thomson. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.10.18.

Pela desordem

Por JR Guzzo

Está sendo executado já há algum tempo no Brasil, de forma cada vez mais agressiva, um conjunto de ações que têm tido um efeito prático muito claro: tumultuar, desmoralizar e, no fim das contas, sabotar as eleições para escolher o novo presidente da República. O cidadão é alarmado, de cinco em cinco minutos, por bulas de advertência que afirmam que a eleição, a democracia e a Constituição estão sendo ameaçadas. Mas, por trás das notas oficiais e das outras mentiras prontas que são normalmente utilizadas para enganar o brasileiro comum, quem está realmente querendo destruir as eleições de outubro? Uma coisa é certa, segundo se pode verificar pelos fatos à vista do público: não são os generais do Exército, sejam eles da reserva ou da ativa, ou os oficiais de quaisquer das três Armas. A turma que quer virar a mesa, hoje, está exatamente do outro lado. Eles gritam “cuidado com o golpe”, com a “pregação do ódio”, com o “discurso totalitário” etc. etc. Mas parecem cada vez mais com o batedor de carteira que, para disfarçar o que fez, sai gritando “pega ladrão”.

É impossível cometer uma violência tão espetacular numa campanha eleitoral quanto a tentativa de assassinato praticada contra o candidato Jair Bolsonaro — mais que isso, só matando. O homem perdeu quase metade do sangue do próprio corpo. A faca do criminoso rasgou seus intestinos, o cólon, artérias vitais. Bolsonaro sofreu cirurgia extensa, demorada e altamente arriscada, e passará por outras. Só está vivo por um capricho da fortuna. Foi posto para fora da campanha eleitoral justo no momento mais decisivo. Poderia haver alguma agressão maior ou pior do que essa contra um candidato? É claro que não. O fato é que a tentativa de homicídio, cometida por um cidadão que foi militante durante sete anos da extrema esquerda, como membro do PSOL, desarrumou todo o programa contra a boa ordem da eleição presidencial. O roteiro, desde sempre, prevê que a esquerda fique no papel de vítima e Lula no de mártir, “proibido” de se candidatar e “perseguido” pela Justiça. Deu o contrário: a vítima acabou sendo justamente quem estava escalado para o papel de carrasco.

A opção da esquerda para enfrentar a nova realidade parece estar sendo “dobrar a meta”. Nada representa com tanta clareza essa radicalização quanto o esforço para fazer com que as pessoas acreditem que a tentativa de matar Bolsonaro foi apenas um incidente de campanha, “um atentado a mais”, coisa de um doidão que podia fazer o mesmo com “qualquer um” — na verdade uma coisa até natural, diante da “pregação da violência” na campanha. Ninguém foi tão longe nessa trilha quanto a responsável por uma “Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão”, repartição pública que você sustenta na Procuradoria-Geral da República. Depois de demorar quatro dias inteiros para abrir a boca sobre o crime, a procuradora Deborah Duprat soltou uma nota encampando a história de que houve “mais um ataque”. E quais foram os outros? Segundo a procuradora, o “tiro” que teria sido disparado meses atrás na lataria inferior de um ônibus no qual Lula circulava tentando fazer campanha no Paraná, escorraçado de um lado para outro pelos paranaenses.

Que tiro foi esse? Tudo o que se tem até agora a respeito, em termos de provas materiais, é um buraco na carroceria do ônibus — não há arma, não há autor, não há testemunha, não há nada. Mas a procuradora acha que isso é a mesma coisa que a agressão que quase matou Jair Bolsonaro. Acha também que a história se “conecta” com o assassinato da ve­readora carioca Marielle Franco — vítima, possivelmente, de um acerto de contas entre criminosos. Enfim, joga a culpa da facada no próprio Bolsonaro, por elogiar “o passado ditatorial” do Bra­sil e ser contra as “políticas de direitos humanos”. Não chega nem a ser uma boa mentira — é apenas má-­fé, como a “ordem da ONU” para o Brasil deixar Lula ser candidato, ressuscitada mais uma vez. Se há um país que está em dia com as suas obrigações junto à ONU, esse país é o Brasil. Acaba de cumprir, entre 2004 e 2017, treze anos de missão de paz no Haiti, em que participaram 38 000 militares brasileiros — dos quais 25 morreram. Seu desempenho foi aplaudido como exemplar; não houve um único caso de violência ou desrespeito aos direitos humanos de ninguém, do começo ao fim da operação. Mas o Complexo Lula-PT-esquerda prega que o Brasil é um país “fora da lei” internacional, por não obedecer a dois consultores de um comitê da ONU que decidiram anular a Lei da Ficha Limpa. Estão, realmente, apostando tudo na desordem.

José Roberto Guzzo é Escritor e Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600

Entre a industria da escavação e a 4ª República

Por Francisco Gaetani

Vivemos tempos inéditos, sem padrões facilmente associáveis a outros momentos da nossa História republicana. Estamos no limiar da Quarta República - que sucede à República Velha (1889-1930), à República Nova (1946-1964) e à Nova República (1985-2018). A repactuação da democracia encontra-se bloqueada por uma neblina que tem entre seus ingredientes a histeria coletiva em que o País se viciou.

Fenômenos sem precedentes estão se multiplicando. Na administração pública federal surge uma nova onda: o florescimento da indústria das escavações. O medo está fazendo as burocracias se dedicarem a escarafunchar o que veio antes. Todos querem distanciar-se do passado. Parte da energia que resta na burocracia federal, que o governo utiliza para suas últimas entregas e para a transição, vem sendo canalizada para exumação de processos antigos, por motivações resumíveis a uma palavra: medo.

Casos do atual governo e anteriores - apresentando evidências de problemas ou apenas suspeitas de irregularidades, não importa - passaram a ser exumados. O País precisa ser passado a limpo. Desde quando? Onde está a linha divisória? Rompeu-se. Nada disso importa mais. Critérios, bom senso e discernimento não são argumentos audíveis nesta conjuntura. Soam como cumplicidade com práticas de corrupção presumivelmente disseminadas por todo o Estado brasileiro e impossíveis de ser combatidas salvo via guerra total. Como se esta fosse uma guerra com começo, meio e fim.

Há uma novidade: não existe mais necessidade de uma provocação de agente externo, como o Tribunal de Contas da União ou o Ministério Público Federal. Os funcionários públicos estão de moto-próprio se dedicando à escavação. As atenções não se direcionam para o presente ou para o futuro, mas para o passado. Alguns desenvolveram uma visão dupla: para cada problema abrem novo processo para responsabilizar quem quer que seja por não ter resolvido o problema original. A burocracia passa a dedicar-se ao passado, a despeito dos esforços que o governo, coordenado pela Casa Civil, pelo Ministério do Planejamento e pelo Ministério da Fazenda, tem desenvolvido para manter o País funcionando.

A explosão punitivista, realimentada pela mídia, produziu uma nova normalidade na esfera pública: todos contra todos. Todos ansiosos para se distanciarem de quaisquer suspeitas sobre práticas passadas. Todos demonstrando um zelo inaudito pelo interesse público. Todos evitando riscos que possam levar à incompreensão quanto a julgamentos, opções e atos anteriores.

Discute-se a questão dos excessos praticados na atual quadra de nossa História contemporânea. A poeira está longe de assentar. Aqui e ali, vozes começam a se manifestar publicamente por reflexões mais ponderadas, comportamentos mais contidos e formação de convicções mais temperadas pelo tempo e pela razão - em contraponto ao imediatismo e à emoção. Estrangeiros irredutíveis no seu otimismo em relação ao Brasil se perguntam como um país com tantas coisas a seu favor, que depende de seus próprios resultados para se desenvolver, é capaz de infligir a si mesmo tantos problemas.

O próximo governo terá de lidar com as múltiplas forças e os comportamentos que têm contribuído para o agravamento da crise nacional e que não param de cavar - seja em benefício próprio, seja por visões equivocadas sobre seu papel. Os eleitos precisarão trabalhar na cicatrização de feridas institucionais profundas e no processamento de pendências inadiáveis que contribuíram para que chegássemos ao atual estado de coisas. Terão de lidar com o fato de que grande parte dos atores - no Congresso, nos tribunais, nos órgãos de controle, no Ministério Público e na burocracia estatal federal, nos três Poderes - serão os mesmos.

Os próximos meses são importantes para o mapeamento de minas, desarmamento de bombas, criação de ambientes de diálogo, incubação de propostas, organização de menus, calibragem de expectativas e início de um longo e penoso processo de reconstrução da confiança do País em si mesmo.

O fomento da indústria da exumação é a consagração da premissa de que todos serão doravante culpados por serem suspeitos e caberá a eles provar sua inocência. Premissas como presunção de inocência, ônus da prova, impedimento à retroatividade de leis, in dubio pro reo, freios e contrapesos, trânsito em julgado são temas postos em xeque pela dinâmica política recente.

O processo de profissionalização da administração pública brasileira é um negócio inacabado. Move-se espasmodicamente, dependendo de aspectos conjunturais. Canalizar o precário capital institucional do Estado para um mergulho nas profundezas do passado em função de apelos midiáticos significa deixar de lado os desafios nacionais para uma expedição errática, cujos resultados prometem infinitas causas judiciais. Este quadro é reversível. Não estamos condenados nem a uma permanente caça às bruxas, nem a este estado de sobressaltos sem fim.

A Controladoria-Geral da União tem trabalhado para introduzir lucidez, clareza, medida e razoabilidade neste contexto. O TCU tem procurado atuar de forma mais ponderada e construtiva. É preciso um esforço maior dos dirigentes e dos quadros permanentes da burocracia para que a racionalidade seja restabelecida. Priorização estratégica, cortes temporais e análises dos custos e benefícios são devem balizar o combate à corrupção.

O País está próximo das eleições e é tempo de virar a chave. A Nova República esgotou-se. É hora de dialogar com o futuro - construir a Quarta República. Do contrário, nós nos perderemos buscando reescrever um passado imprevisível, com a finalidade de proporcionar uma nova acomodação de interesses que não guarda relações com o interesse público.

Francisco Gaetani é Doutor em Governo pela London School of Economics and Political Science. É Presidente da Escola Nacional de Admiistração Pública. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.09.18.

A democracia no chão

Por JR Guzzo

A democracia no Brasil, se quisermos dizer a verdade em voz alta e sem perder tempo com muito palavrório, está valendo cada vez menos hoje em dia. Esqueça essa conversa de que “as instituições estão funcionando”, ou que a democracia brasileira já “está adulta”, ou que “não há mais lugar para aventuras autoritárias” no mundo do século XXI. As instituições não estão funcionando coisa nenhuma. A democracia no Brasil pode estar adulta, mas sua idade mental no momento é de 3 anos. Quanto à falta de espaço para regimes não democráticos no mundo de hoje — bom, aí já dá vontade de rir. Se há alguma coisa que existe de sobra neste planeta, nos dias que correm, é terreno para montar qualquer espécie de ditadura — ditadura sob medida, até, em vários modelos e estilos, de classe econômica a première platinum plus. E o que sobrou de democracia no Brasil — quanto tempo ainda dura até ir para o espaço? É difícil dizer. Pode demorar um tanto mais, um tanto menos. Para a maioria dos brasileiros, tanto faz — estão pouco ligando para o assunto, e quando ligam é para torcer contra. Mas parece certo que os demais, os que se dizem democratas ou ganham a vida nos cargos, funções e atividades que a democracia fornece, estão contribuindo o máximo que podem para que tudo vá o mais breve possível para o raio que o parta.

É claro que estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, e isso precisa de uma ordem democrática para existir. Você pode tomar um ônibus de São Paulo a Goiânia, por exemplo, sem pedir licença a ninguém. Pode falar mal do governo quanto quiser. Pode ir à igreja da sua preferência, ou não ir. A polícia não pode prender uma pessoa sem mandado judicial e é obrigada a fazer um boletim de ocorrência se lhe roubarem alguma coisa. Para tirar um cidadão da casa onde mora, é preciso uma sentença de despejo. Você tem o direito (e a obrigação) de votar, de chamar a ambulância do SUS e de assistir às sessões da Câmara de Deputados, no espaço reservado ao público. Você é dono da Petrobras, do Banco do Brasil e da empresa criada em 2012 para construir o trem-bala, sem contar os canais de transposição das águas do São Francisco, a TV Brasil e a Esplanada dos Ministérios. Mas não são essas coisas que estão faltando na democracia brasileira. O que lhe falta, e põe sua existência cada vez mais em risco, é a lógica comum. A democracia neste país, hoje, é uma geringonça sem pé nem cabeça — e coisas sem pé nem cabeça raramente têm um grande futuro pela frente.

Honestamente: como é possível o país ter democracia e, ao mesmo tempo, ter o ministro Edson Fachin, um dos onze monarcas que hoje se sentam no Supremo Tribunal Federal? Ou se tem uma coisa ou a outra. Todo mundo sabe que não pode existir democracia em lugar nenhum sem que haja plena segurança jurídica — ou seja, sem a expectativa de que a lei será aplicada conforme está escrita e dentro de um entendimento racional, todas as vezes que for necessário e de maneira igual para todos. Mas o ministro Fachin é o que se poderia chamar de insegurança jurídica ambulante — é o contrário, justamente, do que um regime democrático precisa. Onde está a lógica? Dias atrás, num voto no tribunal eleitoral, Fachin passou duas horas inteiras torturando o português, a razão e a lei brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Sim, dizia ele: não há nenhuma dúvida legal de que o ex-presidente Lula é inelegível. Mas uma força superior, segundo nos disse, anula a lei nacional. Que força seria essa? Deus? Não: dois sujeitos que fazem parte de um comitê de dezoito consultores da ONU em direitos humanos. Eles não têm nenhum poder funcional — não são a Corte Internacional de Haia, a Agência de Energia Atômica de Viena ou a Assembleia-Geral. Não têm existência jurídica. Não julgam nada nem decidem nada; só dão pareceres, e acharam que Lula tem o direito de se candidatar à Presidência.

Se há alguma coisa que existe de sobra neste planeta é terreno para montar qualquer espécie de ditadura

Mas só dois, entre dezoito, resolveram isso? Só dois. Ouviram os dois lados — os advogados de Lula e o Ministério Público brasileiro? Não. Só ouviram o lado de Lula. O que decidiram representa uma posição oficial? Não; isso eles só vão dar no ano que vem. Em suma: é uma insânia, e por isso mesmo o tribunal eleitoral negou por 6 a 1 o pedido de Lula. O espanto é que tenha havido esse 1 a favor — o voto de Fachin. Nada do que ele disse fez o mais remoto sentido. E se os dois consultores tivessem decidido que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a monarquia? Fachin acha que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena de ficar na ilegalidade internacional. Se um ministro da nossa Suprema Corte defende um negócio desses, não é possível ter a menor confiança em nada do que o homem venha a decidir. Argumentou-se, é claro, que ele não é sempre assim; ao contrário, tem votado de maneira sensata. Mas aí é que está o problema: ele pode surtar a qualquer momento, sem avisar ninguém, e dar outro voto igual a esse — e não há absolutamente nada que se possa fazer a respeito. Insegurança jurídica é justamente isso. Outra coisa: Fachin não teria direito à sua opinião pessoal? Não desse jeito, da mesma maneira que você não pode dizer: “Na minha opinião a Terra é quadrada”. Isso não é opinião nem democracia.

É esquisita, nessa e em outras histórias similares, a ligeireza com que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os ministros se acharam na obrigação de cumprimentar Fachin pelo seu “brilhante voto”; ele, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que massacraram cada palavra que disse. Todos acharam igualmente “brilhante” a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa armou com essa comissão da ONU. Brilhante por quê, se é um completo disparate? Tudo isso causa a pior impressão. Nossos mais altos tribunais de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, em que a solidariedade entre os sócios se pratica através da puxação automática e perene de saco. Asinus asinum fricat, poderiam dizer uns aos outros — não são eles que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público não entender nada? Pois então; eis aí um pouco de latim para verem se está ao seu gosto. O STF, por sinal, é o retrato vivo de uma democracia na UTI. Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência individual de um funcionário (salário de até 12 000 reais por mês, mais horas extras, chamado “capinha”) que lhe puxa a poltrona na hora de sentar à mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a rainha Elizabeth II tem um serviço assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do mundo. Os ministros acham isso normal, como acham normais seu recente aumento de 16% nos salários diante de uma inflação anual de 4%, seus privilégios materiais, seus dois meses de férias por ano, sua aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora. Isso é simplesmente desigualdade — e como acreditar numa democracia na qual a maior corte de Justiça vive abertamente com direitos individuais de seus ministros superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está assim, imagine-se o resto.

Isso não é democracia — é um arranjo provisório, que só fica de pé porque ninguém ainda se organizou para jogar tudo no chão.
JR Guzzo é Escritor e Jornalista.Este artigo foi publicado originalmente em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599.

Entre a prisão e o hospital

Por Denis Lerrer Rosenfield

Do cárcere, um ex-presidente condenado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro manipula o processo político via processos ditos jurídicos, agindo por interposta pessoa, no caso, o candidato Fernando Haddad. No hospital, um candidato atacado, vítima de um ato cruel, sobreviveu e se manteve presente politicamente via redes sociais. O primeiro representa uma esquerda degenerada que descambou para o crime e para o aparelhamento dos Poderes constituídos. O segundo representa o antipetismo, tão ancorado na sociedade brasileira, seja por reação ideológica, seja pela necessidade de uma limpeza da vida pública.

Considerar, agora, uma terceira alternativa não é uma proposta séria, por partir de completo desconhecimento da realidade. Esta está dada, e atente pelo nome da oposição entre petismo e antipetismo, entre defesa da corrupção e seu combate. As artimanhas das últimas semanas, permeadas por ideias de uma terceira via, mais servem para apaziguar consciências desnorteadas que, em nome do politicamente, correto, procuram uma fuga da realidade. Para além da iniciativa tardia, imagine-se a confusão nas urnas eletrônicas, com candidatos que lá estariam e não estariam mais!

Como máscara a acobertar uma suposta “justificativa”, aparece a defesa da democracia contra o “fascismo” e outras bobagens do gênero. De repente, num toque de magia, todos se tornaram “democratas”, até mesmo aqueles cuja longa trajetória se caracterizou pela defesa das ditaduras castrista, de Chávez e de Maduro e, de modo geral, do “socialismo bolivariano”. São democratas da mais alta estirpe, certamente! Isso para não falar da corrosão das instituições democráticas, das investidas contra a Lava Jato e da apropriação de empresas públicas, sendo o caso da Petrobrás o mais emblemático.

Os tucanos merecem um tratamento à parte. Não apenas deixaram de ser uma alternativa ao PT, mas vieram a se tornar uma força auxiliar do petismo. O candidato Geraldo Alckmin bate preferencialmente em Jair Bolsonaro, com uma propaganda caricatural e rasteira. O deputado, que sempre lutou contra o “socialismo bolivariano”, é apresentando como se um Hugo Chávez em potencial fosse! Qual foi o resultado disso? Ajudou a desacelerar o crescimento de Bolsonaro, estancou o dele mesmo, se não caiu, e favoreceu o aumento das intenções de voto em Haddad. O PT agradece e manda um forte abraço lá de Curitiba!

Aliás, o namoro do PSDB com o PT não é de hoje. Remonta a uma suposta afinidade ideológica entre os dois partidos, supostamente em torno de ideias social-democratas, embora os petistas jamais se tenham reconhecido em tal denominação. Ao contrário, não cessaram de criticar a tal da “herança maldita” do governo Fernando Henrique. E o ex-presidente tucano não cessa de lançar palavras amigáveis a Haddad, Lula e congêneres, para além de afirmações feitas realmente por Alckmin, e supostamente desmentidas, de que não votaria jamais em Bolsonaro em segundo turno. Numa eleição polarizada, criticar tão fortemente um candidato significa, evidentemente, balizar o caminho para o outro.

Lula talvez nem esperasse tanto, deve estar emocionado! Após as sucessivas tentativas de aviltar a democracia brasileira e suas instituições, além de ter conduzido o País, com a ajuda de outra “eleita” dele, Dilma Rousseff, a uma crise econômica, social e política de vulto, Lula e seu partido se colocam como“vítimas” e, para algumas “boas almas”, como representantes da democracia. Vítima é o povo brasileiro!

Afinal, quais são as credenciais petistas? O Brasil legado pelos sucessivos governos Lula e Dilma é uma verdadeira ruína. A irresponsabilidade fiscal foi tanta que até agora o PIB encontra dificuldades para crescer, após sucessivas quedas. O desemprego atingiu mais de 12 milhões de trabalhadoras e trabalhadores; a classe média ascendente, tanto alegada por seu novo status, fez o movimento inverso, após ter usufruído uma efêmera bonança.

E o pior de tudo é que esse descalabro vem sendo atribuído pelos petistas ao governo Temer, que ousou enfrentar tal situação. A irresponsabilidade é total, marcada pela completa falta de pudor! A narrativa do “golpe”, num claro artifício demagógico, foi o instrumento utilizado para debilitar as instituições democráticas. É como se Lula não fosse um cidadão qualquer, pairando por cima das leis, como se estas devessem estar a seu serviço.

O desrespeito à leis e à Constituição – só aparentemente respeitadas – conduziu o partido e os seus auxiliares na mídia televisiva e impressa a uma investida contra o Judiciário e o Ministério Público. Isso para não falar das tentativas reiteradas de desconsideração da Lei da Ficha Limpa e de levar o “caso” de Lula, julgado segundo a lei em todas as instâncias dos tribunais brasileiros, a um comitê de Direitos Humanos da ONU, como se tivesse jurisdição sobre o País. O próprio Estado Democrático de Direito foi posto em questão.

Lula e o PT jamais esconderam seus sucessivos projetos de controle da imprensa, denominada “controle social dos meios de comunicação”. Basta substituir a palavra social por petista, para que tenhamos a sua plena significação. Foram e continuam sendo defensores do “socialismo bolivariano” e de Maduro, cuja opressão contra seu povo foge de qualquer parâmetro democrático. A violência e a miséria são suas características centrais.

Neste contexto, uma vítima, convalescendo num hospital, é designada como “fascista” e “ditatorial”, numa curiosa inversão de papéis. Se Bolsonaro veio a se consolidar enquanto alternativa, isso muito se deve às mazelas e arbitrariedades petistas, em paralelo com as dubiedades e incoerências tucanas. Aliás, estes aliados “objetivos” ou escondem ou não compreenderam que a candidatura da “direita” é uma resposta à corrupção, à insegurança que grassa pelas ruas e ao politicamente correto. Estão colhendo o que plantaram.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 01.10.18.

Dilma não pode ser esquecida

A campanha eleitoral já está há duas semanas nas ruas do País, mas quase nenhum candidato a presidente foi capaz de abordar aquele que deveria ser um dos principais assuntos desta eleição: o terrível legado dos governos lulopetistas, especialmente o de Dilma Rousseff.

Dilma sofreu impeachment em 12 de maio de 2016 e foi afastada em definitivo em agosto daquele ano. Desde então, o País luta para superar a imensa crise causada por sua incompetência e sua visão de mundo, consubstanciada na ideia segundo a qual “despesa corrente é vida” – frase símbolo do modo Dilma de pensar e que quase levou o País à ruína.

Os números de sua passagem pela Presidência não permitem dúvida sobre o desastre: Dilma saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto deixando atrás de si uma inflação de mais de 9%, uma taxa de juros próxima de 15% e desemprego de 10,9%, contra 6,5% em 2014, quando a petista foi reeleita. O número total de desempregados saltou de 6,4 milhões para 11 milhões nesse curto período, uma alta impressionante de mais de 70%. Tudo isso sob o pano de fundo de uma brutal recessão de 7,6% registrada entre a reeleição de Dilma e seu impeachment – lembrando que a petista recebeu a economia crescendo a uma taxa média de 4,64% ao ano nos quatro anos anteriores, durante o governo de seu criador, Lula da Silva. Nem é preciso grande exercício de imaginação para especular como estaria o País hoje se ela ainda estivesse a presidi-lo.

No entanto, nada disso parece fazer parte dos discursos dos principais candidatos ao Palácio do Planalto, que desde o começo da campanha deveriam ter usado o governo Dilma como exemplo óbvio do que não se pode fazer na Presidência.

Mesmo os presidenciáveis que integravam a oposição àquele tenebroso governo preferem ignorá-la, centrando fogo no atual governo, como se fosse este o responsável pelo descalabro em que o País vive. Pode-se fazer muitos reparos ao trabalho do presidente Temer, mas é preciso reconhecer que, a despeito das imensas dificuldades resultantes do turbulento processo de impeachment, seu governo estabilizou a inflação, reduziu a taxa de juros, realizou algumas importantes reformas necessárias para a retomada da atividade econômica e conferiu um mínimo de racionalidade ao processo político. Tudo isso em menos de dois anos. É um feito, sob qualquer aspecto.

Mesmo assim, é seu governo, e o não o de Dilma, que é tratado como “herança maldita” na campanha eleitoral. Consolidou-se o discurso segundo o qual Temer resume, em si, o que há de pior no País, desde a corrupção até a cassação de “direitos sociais”, passando pelo desemprego e pela lenta retomada econômica – e tudo isso se traduz em uma impopularidade da ordem de 70%, inédita na história nacional. Enquanto isso, Dilma Rousseff aparece como favorita para ganhar uma das vagas ao Senado por Minas Gerais.

Não se chega a tal situação sem uma estratégia muito bem pensada. Quando conquistou a Presidência, em 2003, Lula da Silva tratou logo de qualificar o governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, de “herança maldita”, malgrado o óbvio fato de que, não fosse a estabilidade da economia proporcionada pela administração de FHC, a agenda social lulopetista, que tantos votos ainda rende ao demiurgo petista, não sairia do papel. Mas esse embuste funcionou perfeitamente – tanto que os candidatos tucanos à Presidência depois de FHC trataram de se desvincular do ex-presidente, pois temiam perder votos.

Sem que se faça nesta campanha a denúncia da verdadeira herança maldita com a qual o Brasil tem de conviver desde que o PT alcançou o poder, permite-se que alguns candidatos alcancem bom desempenho nas pesquisas eleitorais oferecendo ao País as mesmas ideias estapafúrdias que fizeram do governo de Dilma o mais desastroso de nossa história recente. Esquecer o que Dilma fez – sob o patrocínio entusiasmado de Lula da Silva, o mesmo que, agora, promete fazer o Brasil “ser feliz de novo” – é condenar o País a um futuro sinistro.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 30.08.18

Um sistema eleitoral corrosivo

Por José Serra


A praticamente três semanas do primeiro turno das eleições, convivemos com episódios que desbordam as fronteiras admitidas na disputa política civilizada. É necessário identificar as causas estruturais dessa radicalização das forças que têm uma visão puramente instrumental – e, por isso, distorcida – da democracia.

Uma das causas – para mim, a principal – é a óbvia inadequação do nosso sistema eleitoral. Por muito tempo o debate sobre a inconveniência (ou não) do voto proporcional tal como o praticamos foi relegado à condição de devaneio intelectual ante os desafios, sempre urgentes, das nossas tumultuadas conjunturas. Acontece que o enfraquecimento da democracia – decorrente daquele sistema – começa a cobrar alto preço, empurrando-nos cada vez mais rumo ao imponderável.

A justificada impaciência dos eleitores com a política deve-se à dificuldade de se formarem maiorias aptas a levar à frente um programa verdadeiramente popular, que conduza ao crescimento sustentável, com emprego e distribuição de renda, e refreie os apetites setoriais e corporativistas que colonizaram o Estado brasileiro. Mais ainda, nos últimos anos tivemos o recrudescimento da violência – que se alastra sob um Estado mastodôntico e inerte. Esse componente, em especial, favorece a guinada de parte do eleitorado para o salvacionismo.

As recentes mudanças feitas na legislação eleitoral – encurtamento das campanhas, fim das doações empresariais e vedação (a partir de 2020) de coligações partidárias – podem ser consideradas positivas, mas de forma alguma serão suficientes. O decisivo é mudarmos a essência do atual sistema eleitoral, baseado no voto proporcional, na direção do voto distrital.

No Estado de São Paulo, por exemplo, os candidatos a deputado disputam o voto de 33 milhões de eleitores, distribuídos em quase 250 mil km2. Na Bahia, são 10 milhões, espalhados em quase 570 mil km2. Sim, a maioria das campanhas tende a se concentrar em determinadas áreas, mas nunca a ponto de abandonar o restante do território dos Estados, que são trabalhados pelos chamados cabos eleitorais.

Esse sistema exige elevados gastos de campanha e, ao mesmo tempo, não requer e não cria laços fortes entre eleitores e eleitos. É um sistema que enfraquece a representatividade democrática. Mais ainda, a partir destas eleições, vigente a quase exclusividade do financiamento público, os defeitos do sistema proporcional se agravarão, pois os candidatos à reeleição têm muito mais força para abocanhar parte maior do dinheiro disponível.

Em suma, trata-se de um sistema eleitoral pouquíssimo sujeito à renovação, que exige enormes gastos de campanha, não cria laços entre eleitores e eleitos, estimula a proliferação de novos partidos e perpetua as mesmas práticas e ideias que a população rejeita. Mais de dois terços das pessoas não se lembram em quem votaram para deputado! O eleitor não se vê representado nesse sistema, o que insufla o espírito bonapartista que hoje vai arrebanhando parcelas crescentes do eleitorado.

Mas há saída para esse impasse: a adoção do sistema distrital misto no lugar do proporcional puro. Os Estados seriam divididos em distritos, onde os eleitores votariam nos candidatos locais, que apresentariam plataformas ligadas a programas de governo: ações no âmbito do distrito, dos Estados e do País. As campanhas seriam muito mais baratas.

O eleitor teria direito a dois votos: um no candidato distrital e outro no partido de sua preferência. Cada partido apresentaria uma lista ordenada de candidatos a deputado e obteria número de cadeiras equivalente ao seu desempenho proporcional, garantidas as vagas dos eleitos nos distritos. Essa mudança contribuiria para implantarmos um sistema político vibrante, que garantisse vez e voz a minorias relevantes, mas sem deixar de levar adiante um programa que atendesse à maioria da população.

Hoje, as eleições saturam o eleitor com candidatos que se amontoam aos milhares na TV e no rádio. Configura-se um ambiente em que é impossível o debate programático verdadeiro, sobrando apenas espaço para as técnicas do marketing. É preciso que a “classe política” acorde para a urgência de reformarmos profundamente o sistema eleitoral. Se, por omissão e culpa dessa classe, nada for feito, o sistema proporcional será cada vez mais foco de instabilidade e crises.

A principal barreira para a aprovação da grande mudança reside, evidentemente, no próprio Congresso, mais precisamente na Câmara dos Deputados. O Senado, diga-se de passagem, já aprovou um projeto de lei complementar (de minha autoria) que prevê a mudança e o remeteu à Câmara, onde aguarda a deliberação.

A resistência de muitos deputados se explica pelo receio de, no contexto de mudanças de regras, não se reelegerem. Trata-se de um sentimento previsível. A reeleição, quando formalmente permitida, é sagrada na vida pública – para vereadores, deputados estaduais e deputados federais. Apenas estes últimos votam na mudança ou não do sistema eleitoral, mas recebem pressões não apenas dos seus cabos eleitorais, são bastante sensíveis à opinião dos vereadores e dos deputados estaduais que têm sido seus aliados nas sucessivas eleições.

Estou convencido de que essa resistência poderá, contudo, ser vencida se as mudanças forem aprovadas bem antes das próximas eleições – quatro anos, se possível –, dando tempo para os deputados se prepararem para as novas regras. Mais decisiva será a pressão da opinião pública, a começar pela mídia.

Melhor seria, se viável, votarmos a mudança ainda neste ano, entre a eleição e o final da legislatura, pois os deputados que não se reelegerem tenderão a votar a favor, vislumbrando a chance de voltarem à Câmara nas eleições seguintes, mediante novas regras de votação.

Substituir o atual sistema eleitoral corrosivo é, de fato, a condição essencial para assegurarmos a estabilidade da nossa democracia.

José Serra é Senador da República (PSDB-SP). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 13.09.18.

As ameaças à democracia

A grande ameaça à democracia brasileira, a julgar pelo que tem saído com frequência cada vez maior na imprensa internacional, é a candidatura presidencial do deputado Jair Bolsonaro. No final de semana passado, o New York Times afirmou que o ex-capitão do Exército “está instigando os brasileiros a voltar a um capítulo sombrio de sua história”, referindo-se à ditadura militar. Já o jornal argentino La Nación destacou os temores de que “a quarta maior democracia do mundo estará em perigo com a possível vitória do deputado ultradireitista”. E esses são apenas os exemplos mais recentes das muitas reportagens e análises de jornais estrangeiros para os quais Bolsonaro, e apenas ele, encarna o que há de mais deletério para a democracia na atual corrida eleitoral. Trata-se, contudo, de uma visão parcial, que ignora um outro grande risco à democracia no País, representado pelo lulopetismo.

O sistemático ataque de Lula da Silva e dos integrantes de sua seita ao Judiciário, ao Congresso e à imprensa deveria ser igualmente percebido no exterior como uma ameaça concreta à democracia. Há muito tempo, o lulopetismo demonstra profunda ojeriza a aceitar os princípios democráticos, especialmente o contraditório e os limites impostos pela lei – que, de acordo com a doutrina lulopetista, só se aplica aos outros.

A ousadia de alguns juízes de condenar e mandar prender o morubixaba Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro, fazendo cumprir o que está na lei, serviu para escancarar de vez o caráter autoritário do PT. O partido recrudesceu sua campanha contra o Judiciário, exigindo que Lula receba tratamento especial. Mais do que isso: Lula está descaradamente usando a atual campanha eleitoral para se livrar da punição a ele aplicada e, se der, voltar à Presidência da República. É um escárnio poucas vezes visto na história pátria.

Na provável hipótese de Lula não poder concorrer, por ser ficha-suja, os petistas esperam que o partido consiga eleger presidente o ex-prefeito Fernando Haddad e que, ato contínuo, o chefão do partido seja solto. Essa estratégia, que ultrapassa todos os limites do aceitável no jogo político, foi candidamente explicitada por Gilberto Carvalho, ex-ministro e um dos principais porta-vozes de Lula. Em entrevista à Gazeta do Povo, de Curitiba, ele declarou: “Na campanha, vamos deixar claro para o povo o seguinte: votar no Haddad é votar no Lula. É o Lula quem vai governar. Vamos tirar o Lula da cadeia em algum momento. Até porque ele não vai passar o resto da vida lá. E vai sair direto para o Palácio do Planalto para cogovernar com o Haddad. Quem vai governar formalmente é o Haddad”.

A desfaçatez de tal declaração é apenas a mais recente manifestação do profundo desapreço do PT pelas instituições. Ajuda a fortalecer a suspeita de que, se conseguirem ganhar a eleição, mesmo depois dos escândalos e desmandos administrativos que protagonizaram, os petistas podem se sentir em condições de reimplantar sua agenda liberticida, frustrada pela incompetência e pelo desplante do poste Rousseff.

O programa de governo do PT prevê o controle da mídia, que é o outro nome para censura; o uso extensivo de plebiscitos para “aprofundar a democracia e empoderar a cidadania” – o que, em linguagem petista, significa atropelar o Congresso –; e a convocação de uma “assembleia constituinte”, providência que, quando adotada nos países sul-americanos governados por ditaduras com as quais o PT simpatiza, serviu para solapar as instituições e fazer evaporar a oposição.

Assim, Jair Bolsonaro representa de fato uma ameaça concreta à democracia, mas não é a única. No caso do ex-capitão, preocupam a sua visão simplista dos problemas nacionais, a sua inexperiência administrativa e a sua admiração incontida por métodos violentos, inclusive por torturadores, e isso basta para vê-lo como um grande perigo. Já Lula da Silva, graças ao formidável aparato de propaganda petista, consegue se fazer passar, aqui e no exterior, por grande democrata, embora seus atos – pelos quais está preso – e suas palavras – contra as instituições – revelem o exato oposto disso.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.08.18

"Golpistas" úteis

A notícia de que o PT se aliou a vários partidos que apoiaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff, publicada pelo Estado, surpreende somente os incautos que ainda acreditam no discurso da pureza ideológica petista. Pois a única ideologia do PT é a que estiver mais à mão para satisfazer seu projeto de poder e de aparelhamento de setores fundamentais do Estado.

Assim, o PT se apresenta hoje como partido de “esquerda” e como líder do “campo progressista” unicamente porque lhe é conveniente, e não por princípio ou convicção.

O assim chamado “socialismo” petista sobrevive apenas no palavrório de seus fanáticos militantes, pois na prova dos noves, quando exerceu o poder, o PT rapidamente esqueceu seu “socialismo”, julgando ser mais interessante associar-se aos compadres do capital para financiar sua permanência no poder.

Flagrado com a boca na botija, e com seu demiurgo Lula da Silva na cadeia, o PT inventou o discurso da “perseguição política” e, em torno disso, retomou a verborreia esquerdista que tanto excita desavisados artistas e intelectuais, mas que, na prática, é mera tentativa de dar substância ideológica e sentido histórico ao que não passa de oportunismo barato.

Esse oportunismo se manifesta explicitamente na formação das alianças do PT nas disputas estaduais. A reportagem mostrou que em seis Estados o partido da defenestrada Dilma Rousseff será cabeça de chapa em candidaturas com legendas que os petistas classificam de “golpistas”. Em outros nove, o PT apoiará candidatos cujos partidos também ajudaram a derrubar Dilma.

É claro que os petistas, diligentes na hora de apontar as contradições dos adversários, já têm na ponta da língua argumentos para justificar seu constrangedor contorcionismo eleitoral. Segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffman, “não há (contradição) porque estamos deixando claro que eles têm de apoiar Lula” e “ em todos esses casos (de alianças com os ‘golpistas’) tem apoio a Lula”.

Ou seja, a necessidade de amparar seu encalacrado comandante obriga o PT a engolir seus alardeados princípios e associar-se a partidos e políticos que até outro dia demonizava furiosamente. É claro que isso tudo foi embalado pela conhecida retórica embusteira do PT – Gleisi informou que os partidos “golpistas” fizeram “uma autocrítica, inclusive”, razão pela qual estão agora devidamente higienizados e aptos a juntar-se aos virtuosos petistas.

No Ceará, por exemplo, o PT abriu mão de disputar uma vaga ao Senado para não atrapalhar a campanha à reeleição de Eunício Oliveira (MDB), que votou pelo impeachment de Dilma. E o presidente do Senado não decepcionou: “Eu sou eleitor do Lula. Eleições livres são eleições com Lula”, discursou Eunício em evento no dia 7 passado em Fortaleza.

O PT integra também a coligação do governador de Alagoas e candidato à reeleição, Renan Filho (MDB), filho do senador Renan Calheiros (MDB), outro que votou pelo impeachment de Dilma. Mas isso são águas passadas: o senador Renan conta com a popularidade de Lula da Silva para reeleger o filho e, por isso, não se constrange em vir a público para declarar apoio desbragado à “candidatura” do ex-presidente e, ao mesmo tempo, para maldizer o governo de seu correligionário Michel Temer. Segundo Gleisi Hoffman, agora Renan é parte do time: “O Renan teve um reposicionamento nessas questões que interessam ao campo progressista e popular”.

O tal interesse do “campo progressista e popular” foi definido de maneira bem mais singela pelo presidente do PT de Mato Grosso, deputado Valdir Barranco, ao explicar por que o partido está apoiando a candidatura ao governo do Estado do senador Wellington Fagundes (PR), que também votou pelo impeachment de Dilma.

Segundo Barranco, não foi possível fechar alianças com siglas de centro-esquerda, razão pela qual o PT se viu obrigado a pensar em “suas prioridades”: “A política está em permanente mudança. Neste momento, a melhor tática é essa. Sem o ‘chapão’, não teríamos quociente eleitoral para eleger deputados”. Simples assim.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 09.08.18.

A Encruzilhada Nacional

Eleições podem ser ensejo para a multiplicação de ilusões com o objetivo de seduzir o eleitor. Não se trata necessariamente de apelar para mentiras ou fraudes, embora isso também aconteça; o que tem marcado as campanhas é o reducionismo marqueteiro, que transforma grandes temas em slogans de fácil digestão. Ganha mais votos aquele cuja lábia convence o eleitor de que é capaz de trazer a felicidade pelo menor custo. O atual momento brasileiro, no entanto, mais do que qualquer outro da história recente, exige que o eleitor saiba exatamente o que lhe estará reservado no futuro próximo caso não sejam tomadas imediatamente medidas de austeridade para tirar o Brasil da beira do abismo. E isso, infelizmente, não está acontecendo - há, pelo contrário, um “enorme grau de incompreensão” da população sobre o “curso absolutamente insustentável” em que o País se encontra, como alertou recentemente o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.

Tendo sido um dos principais responsáveis pela implantação do Plano Real, Malan tem autoridade para falar sobre o quão duro é um processo de estabilização de uma economia em frangalhos. Esse processo demanda, antes de tudo, a colaboração consciente do conjunto da sociedade. O Plano Real funcionou porque, ao contrário dos planos anteriores, não foi implantado de cima para baixo. Na prática, o Real foi uma espécie de convite para que os cidadãos imaginassem a economia sem inflação, com o restabelecimento do valor das coisas, sem a variação diária de preços. A população, aos poucos, aderiu, porque se sentiu como parte da solução. Mas o plano não foi bem-sucedido apenas por isso. Como preço a pagar pela sonhada estabilidade, os brasileiros foram chamados a apoiar uma dura série de medidas, que incluíram a renegociação das dívidas dos Estados, a venda de estatais, a reestruturação do sistema bancário e o ajuste fiscal. Com a notória exceção do PT, o Real foi amplamente aceito - o que significa que, se bem explicadas e transparentes, as reformas necessárias para reequilibrar as contas nacionais podem, sim, como sugere Malan, receber apoio dos eleitores.

Para que isso aconteça, contudo, é necessário preservar a memória recente do País, impedindo que a mistificação prevaleça sobre a realidade dos fatos. Por isso é muito oportuno que respeitados protagonistas desse passado, como o ex-ministro Malan, venham a público para ajudar a combater as desonestas tentativas de desmoralizar todo o hercúleo trabalho que resultou no fim da chaga da inflação e na estabilização da economia, condições sem as quais a festejada “justiça social” dos governos lulopetistas não teria sido possível.

O recém-lançado livro Uma Certa Ideia de Brasil: Entre Passado e Futuro, que reúne artigos de Malan publicados no Estado entre 2003 e 2018, tendo como eixo, portanto, a desastrosa passagem do PT pela Presidência, presta-se a essa imperiosa tarefa de denunciar o logro da propaganda petista - que trata o eleitor como passivo freguês do mercador de ilusões Lula da Silva - e de convidar os brasileiros a ter “consciência social do passado”.

Para Malan, o próximo presidente tem de ter “consciência do que foram os últimos 15 anos, porque (governar com essa herança) será o maior desafio de sua vida dada a situação do País”. Como lembrou o ex-ministro, a campanha eleitoral é a parte menos penosa dessa experiência, porque “disputar a eleição e eventualmente ganhá-la é uma coisa”, mas “governar um país da complexidade do Brasil é algo muito mais complicado” - especialmente quando o eleitor não é advertido previamente de que terá de fazer muitos sacrifícios.

“Estamos num ponto de inflexão, numa encruzilhada que é das mais importantes que tivemos na nossa história recente”, disse Malan ao Estado, dando adequado tom grave ao atual momento. Há quem acredite ser legítimo brincar com fogo, prometendo magicamente fazer o Brasil ser “feliz de novo”, e há quem considere desnecessárias ou não tão urgentes as reformas que se impõem. Como enfatiza o ex-ministro, saber como se chegou à situação atual é o primeiro e indispensável passo para evitar que esses charlatães triunfem neste momento tão crítico para o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 28.08.18

Eleições presidenciais e inelegibilidades

Por Geraldo Brindeiro

A Constituição federal garante a plenitude do processo democrático, mas estabelece condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade, previstas também em lei complementar, para “proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”(Constituição federal, art. 14, §§ 3.º a 9.º). Os pedidos de registro de candidaturas, portanto, devem ser indeferidos pela Justiça Eleitoral se os candidatos não preencherem as condições de elegibilidade ou se incidirem em causa de inelegibilidade.

A Lei Complementar n.º 64/90, com as alterações da Lei Complementar n.º 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), estabelece em seu artigo 1.º, inciso I, alínea e, a inelegibilidade dos que “forem condenados, em decisão (...) proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1) contra (...) a administração pública e o patrimônio público (...)”. O pedido de registro de candidatura a presidente da República, portanto, deverá ser indeferido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se o pretenso candidato tiver sido condenado em segunda instância pela prática de crimes, por exemplo, de corrupção passiva, peculato e outros. Tal pedido formulado perante o TSE deve ser instruído, dentre outros documentos, com “certidões criminais fornecidas pelos órgãos de distribuição da Justiça Eleitoral, Federal e Estadual” (Lei n.º 9.504/97 – Lei das Eleições – art. 11, § 1.º, inciso VII).

Assim, se o pretenso candidato tiver sido condenado em segunda instância, isso constará da certidão, o que obviamente levará o Tribunal Superior Eleitoral, por dever de ofício, a indeferir liminarmente o pedido.

Nesse sentido, é a jurisprudência do TSE. No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n.º 177-23/RJ, de que foi relator o ministro Dias Toffoli, consta do acórdão unânime o seguinte trecho, verbis: “(...) é necessária a apresentação de certidão de inteiro teor quando apresentada certidão criminal com registros positivos, pois cabe à Justiça Eleitoral examinar, de ofício, a satisfação das condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade” (sessão de 29/11/ 2012). E no acórdão proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n.º 53-56/RJ, de que foi relator o ministro Marco Aurélio, observou S. Exa., verbis: “Acredito que, competindo à Justiça Eleitoral apreciar, de ofício, as condições de elegibilidade e constatando, ante os documentos exigidos para apresentação válida do pedido de registro, não ter o candidato certidão negativa quanto a processos criminais, cabe examinar e, a meu ver, indeferir esse registro”. Presidiu a sessão a ministra Cármen Lúcia, que acompanhou os votos dos relatores nos dois processos.

A Justiça Eleitoral exerce funções administrativas, consultivas e regulamentadoras, além da função jurisdicional. Esta somente ocorre se houver ação judicial – em que há autor e réu – e, após apresentadas suas respectivas razões, o julgamento. Não há, obviamente, lide ou litígio sem partes. O pedido de registro de candidatura não é evidentemente ação judicial, mas tem natureza administrativa, devendo ser indeferido se contrário à Constituição e à lei.

Nenhuma aplicação, portanto, tem à hipótese acima descrita o artigo 16-A da Lei n.º 9.504/97 (Lei das Eleições) – que trata de situação sub judice –, pois o próprio pedido de registro de candidatura a presidente da República revela per se, com base na certidão de condenação criminal em segunda instância, a inviabilidade do registro. E, se não há registro de candidatura deferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, não há razão para abrir prazo para ação judicial de impugnação de registro, até porque inexistente causa de pedir (causa petendi). Logo, não há que falar de questão sub judice, locução latina indicativa da situação em que se encontra uma questão, ou controvérsia, submetida pelas partes a julgamento.

O artigo 16-A da Lei n.º 9.504/97 somente tem aplicação nas hipóteses em que o registro de candidatura tenha sido deferido pela Justiça Eleitoral, mas seja objeto de ação judicial de impugnação de registro proposta pelo Ministério Público Eleitoral, por candidatos ou partidos políticos adversários, hipótese em que se mantém o registro até o julgamento pela Justiça Eleitoral. Neste caso, o candidato com registro sub judice poderá participar da campanha eleitoral. Mas não o candidato sem registro, cujo pedido foi indeferido liminarmente por ser contrário à Constituição e à lei.

Finalmente, o artigo 26-C da Lei da Ficha Limpa, ao admitir a possibilidade de o órgão colegiado do tribunal ao qual competir a apreciação de eventual recurso relativo à condenação criminal em segunda instância suspender em caráter cautelar a inelegibilidade, isso somente ocorrerá se o tribunal considerar que há plausibilidade jurídica na pretensão recursal, conferindo-lhe efeito suspensivo para suspender a execução do acórdão condenatório criminal.

Aliás, para evitar eventual exegese falaciosa, é preciso dizer que o que está sub judice, por definição, é a condenação criminal de que caiba recurso. Mas não o pedido de registro de candidatura indeferido liminarmente por ser contrário à Constituição e à Lei da Ficha Limpa. Esta veio exatamente para estabelecer a inelegibilidade com a condenação criminal em segunda instância, sem necessidade de trânsito em julgado.

Geraldo Brindeiro é Doutor em Direito pela Universidade de Yale (Estados Unidos da América do Norte). Professor na Universidade de Brasília. Foi Procurador Geral da República. (1995-2003). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.08.18.

Um País à deriva sem reformas

Por Ives Gandra da Silva Martins

Não há brasileiro consciente que não perceba que, se não houver uma reformulação estrutural na administração pública, o País é o mais forte candidato a seguir a desastrosa trilha de Maduro, o tiranete venezuelano.

Com uma dívida pública explosiva, que pode chegar a 80% do PIB no fim do ano e poderá ultrapassar a dos países desenvolvidos em 2022, pois beirará os 100%, se não houver correção de rumos, visto que há uma ligeira queda nos indicadores das nações desenvolvidas; e com um déficit público financiado pela tomada de recursos no mercado, o que poderá ser cada vez mais difícil no futuro, o quadro é preocupante, justificando o contínuo rebaixamento brasileiro pelas agências de rating. É de lembrar que tais recursos não voltam em investimentos ou obras sociais, mas servem fundamentalmente para financiar a esclerosada burocracia estatal, a renitente corrupção e o fantástico desperdício de recursos em ações sem propósitos desenvolvimentistas – situação agravada por uma carga tributária superior à dos EUA, do Japão, da Coreia do Sul, da China, da Suíça, do México e à da esmagadora maioria dos países emergentes. Por essa razão, cidadãos conscientes percebem que, se não houver um projeto de austeridade pública e de reformas estruturais, a rota para o abismo é uma realidade.

É bem verdade que estava o País quase saindo da inacreditável crise de corrupção e incompetência dos 13 anos dos governos anteriores quando uma cinematográfica, mal conduzida e insustentável operação do anterior procurador-geral da República paralisou a nação em dois pedidos de impeachment, rejeitados, a partir de uma mal explicada atuação de membro do parquet até então ligado ao chefe da Procuradoria-Geral da República e de delações premiadas hoje em plena revisão. Tal desastrada ação paralisou o País, deixando o presidente da República sem condições de implementar as reformas necessárias, tendo apenas, por já aprovada, escapado a reforma trabalhista.

As reformas previdenciária, tributária, burocrática (administrativa), do Judiciário e política foram enterradas, não conseguindo o governo federal sensibilizar os futuros candidatos à Presidência a encampá-las.

Neste ínterim, de terra de ninguém o Brasil passou a conviver com estranhas performances dos principais atores políticos e da administração pública.

Os candidatos, para não se comprometerem com temas polêmicos mas necessários, abandonaram, uns, o governo, e outros – exatamente os que demonstraram maior desconhecimento de finanças públicas, de respeito à lei, de economia e da realidade internacional – passaram a tripudiar sobre as reformas pretendidas.

À evidência, qualquer que seja o presidente eleito, se não quiser ser tão incompetente como Nicolás Maduro, terá de fazer as reformas necessárias a um custo político muito maior do que se tivesse apoiado aquelas propostas no ano passado.

A dois meses e meio, porém, das eleições, nenhum dos candidatos apresentou um verdadeiro projeto para o Brasil, alguns, inclusive, apenas sugerindo voltarmos ao século 19 e à luta marxista de classes.

Por outro lado, o Poder Judiciário, que ganhou visibilidade pública graças à TV Justiça – nos países desenvolvidos os debates judiciais, por serem técnicos, não são televisionados –, apesar da competência e da cultura dos ministros do pretório excelso, passou a exercer um protagonismo político antes inconcebível, sem ter para tanto representação popular ou ser vocacionado à política. Assim, assuntos típicos de administração pública, pertinentes ao Executivo ou de produção legislativa, própria de Parlamento, foram tratados muitas vezes monocraticamente, com impacto na gestão da coisa pública. Executivo e Legislativo, acuados por outros atores ávidos por exposição na mídia, tiveram seus agentes preocupados com sua defesa contra as acusações, muito mais do que com administrar e legislar.

É bem verdade que contra esta assunção de competências que não tem, apesar de exercer o Ministério Público função essencial à administração da Justiça, vem a Suprema Corte limitando o excesso de protagonismo, devolvendo aos delegados de carreira a função de polícia judiciária que lhes dá a Constituição (art. 144, § 4.º), permitindo-lhes firmar delações premiadas e responder diretamente ao magistrado, para quem atuam como vestíbulo das possíveis ações penais.

O certo é que neste quadro de excesso de protagonismo individual, instalado nos Três Poderes, e de falta de proposições consistentes por candidatos, em face do receio de indispor-se com segmentos da sociedade, o Brasil é uma nação à deriva, onde os Três Poderes são desarmônicos e sem real independência constitucional.

Creio que chegou o momento de a sociedade, por meio de suas instituições privadas, principalmente as dedicadas à reflexão política, econômica, jurídica e social, onde melhor se detectam os reais problemas nacionais, manifestar publicamente, por seus maiores expoentes, desvinculados de uma ambição política imediata, o que o Brasil efetivamente necessita, colocando na mídia seus pontos de vista, suas preocupações, suas ideias e suas propostas de soluções, a fim de que o vazio das propostas conhecidas até o presente seja substituído por algo que possibilite tirar o País da crise.

E não excluo a discussão ampla do papel do Brasil na crise econômica mundial gerada pelo presidente Donald Trump, que aparentemente beneficiou os EUA, num primeiro momento, mas que pela guerra comercial que está provocando acarretará problemas, no curto prazo, para o mundo e, no médio e no longo prazos, para os EUA. Apesar de o País estar entre as dez maiores economias do mundo, o certo é que o Brasil tem menos de 2% do comércio mundial, correndo um grave risco de, se o futuro presidente errar na fórmula a ser adotada, despencar nas preferências internacionais, por falta de segurança jurídica, planejamento econômico, estabilidade política e competitividade empresarial.

Ives Gandra da Silva Martins, Advogado e Professor de Direito, é o Presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.07.18.

A política como pornochachanda

Por José Nêumanne Pinto

A República brasileira começou numa parada militar que se tornou um golpe. Quando o desfile acabou defronte ao Arsenal da Marinha, o médico republicano jacobino José Lopes da Silva Trovão foi instado pelo povo, que se recolhera a um botequim, a pagar um trago. A conta somou 40 mil réis e o paladino só tinha 11 mil réis. Resultado: o taverneiro arcou com todo o prejuízo da celebração. A piada pronta, contada no clássico A Formação das Almas: O Imaginário da República Brasileira, do acadêmico José Murilo de Carvalho, revela como ela teve início num porre com pendura.

Até hoje, às vésperas da parada cívica das eleições gerais de outubro (a um mês de completar seu 129.º aniversário), o prejuízo continua sendo arcado pelo empreendedor disponível para financiar a embriaguez geral. Os 40 mil réis bancados pelo taverneiro em novembro de 1889 chegaram ao astronômico déficit público nominal, isto é, a diferença entre receitas e despesas (incluindo os juros da dívida pública), que alcançou a expressiva quantia de R$ 562,8 bilhões. Enquanto o déficit primário (receitas menos despesas, excluindo os juros) na última virada do ano foi de R$ 155,8 bilhões. Em janeiro, esperava-se que o príncipe escolhido pelo povo mataria esse sapo imenso com uma paulada certeira.

O último fim de semana, porém, jogou por terra as ilusões de que um presidente legitimado pelo voto daria um jeito nas contas públicas agônicas. E usaria toda a força obtida nas urnas para avançar na guerra popular contra a corrupção endêmica que mata o País de inanição moral, tuberculose cívica e tumores malignos de despudor. A campanha presidencial está nas ruas e nenhum pretendente ao trono imperial da República cínica gastou um grama de sua saliva para apresentar um plano racional para reduzir a máquina pública devoradora de recursos, pôr fim a privilégios herdados das priscas eras imperiais e impor um garrote de lei e ordem para conter a sangria da guerra civil da violência urbana e rural. O povo esperançoso está é órfão.

O pior é que, em nome desta Nação esfolada, os políticos encarregados de legislar e executar e os juízes aptos a julgar promovem um espetáculo grotesco que não pode ser instalado num picadeiro de circo mambembe por lhe faltarem caráter e pudor, mas sobrar profissionalismo. As comédias do teatro de revista, produzidas por Walter Pinto, e que regalavam o caudilho Vargas, que adorava piadas a respeito dele próprio, são lembranças do pundonor de um passado distante. As aventuras mirabolantes de João Acácio Pereira da Costa, O Bandido da Luz Vermelha, registradas no filme de Rogério Sganzerla, são matéria de contos infantis edificantes, se comparadas com os atuais escândalos de gatunagem.

O ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva chefiou a quadrilha que esvaziou os cofres da República pela qual Lopes Trovão lutou e bebeu, conforme os procuradores que o acusaram, o juiz, os desembargadores e ministros que o condenaram e as evidências dos fatos históricos. À frente de um Partido dito dos Trabalhadores (PT), esse cavalheiro cumpre pena de 12 anos e 1 mês por corrupção e lavagem de dinheiro numa tal “sala de estado maior” da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Ao título de presidente mais amado da História ele adicionou o de presidiário mais celebrado e disputado do inferno prisional, onde, aliás, não vive.

Numa das inúmeras tentativas de garantir um mínimo de limpeza ao exercício de cargos públicos, a Constituição de 1988, que ele próprio assinou, criou a inovação das leis de iniciativa popular. A mais célebre de todas – a Lei da Ficha Limpa – chegou ao Congresso, que a aprovou e foi sancionada por sua mão direita, proibindo desde então candidatura de qualquer cidadão condenado em segunda instância, que é o caso dele. No entanto, sua mão esquerda a rasga, exigindo o absurdo de autorizar o signatário da norma legal a nela escarrar.

A República – que, como Almir Pazzianotto Pinto lembrou, em artigo nesta página, O puxadinho da Constituição, garantiu “pensão vitalícia a D. Pedro II” e autorizou “a compra da casa onde faleceu Benjamin Constant, destinada à residência da viúva” – patrocina hoje a farsa da egolatria de um condenado por furto amplificado. Que outro nome pode ser dado à convenção do PT em que o aplaudido ator Sérgio Mamberti leu um texto do presidiário, que surgiu em imagem e som na exibição de um vídeo?

Esse espetáculo, aliás, foi precedido por outro show, em que dois ídolos da música brasileira e da resistência à ditadura militar, Chico Buarque e Gilberto Gil, usaram uma canção, Cálice, com inspiração bíblica e símbolo da luta contra a censura, para tratar um político preso como se preso político fora. E precedeu o mais espetacular passa-moleque da tradição de engodos desta República dos desfiles: o lançamento do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para substituir na chapa o poderoso chefão preso, como vice, que terá a vice do vice, Manuela d’Ávila. Arre!

Tudo pode parecer uma pornochanchada da Boca do Lixo, mas é muito pior. Trata-se de uma tragédia permitida pela democracia de facilidades, fundada por um truque em que a classe política usurpou a casa de leis para inventar a farsa do Congresso constituinte, como se cada voto em 1986 valesse por dois. E pior: para nada.

Pois a candidatura duplamente fora da lei de um apenado e ficha-suja não sobrevive apenas pela fé no torneiro mecânico do ABC que virou o beato Luiz Conselheiro da imensa Canudos em que o Brasil se está tornando. Mas também pelo oportunismo rastaquera de quem o usa para se dar bem na “vida pública”. E de alguns figurões do Judiciário, como o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luiz Fux, que inventou a condenação prévia sem efeito algum no despacho em que arquivou o processo que a pediu. Pensando bem, a comparação é injusta para os filmes da Boca do Lixo, que ao menos não furtavam seu público fiel.

José Nêumanne Pinto é Jornalista, Poeta e Escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 08.08.18.

Lula é, sim, inelegível

As artimanhas jurídicas que vêm sendo maquinadas pela defesa do ex-presidente Lula da Silva para viabilizá-lo como candidato à Presidência da República na eleição de outubro não devem prosperar se, como se espera, a Lei Complementar n.º 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, for respeitada. E há bons sinais de que será. O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi taxativo ao afirmar ao Estado que “o candidato condenado em segunda instância já é um candidato inelegível, ele é um candidato cuja situação jurídica já está definida. A Lei da Ficha Limpa impede ele de concorrer, portanto, ele é inelegível”, disse.

Não é a primeira vez que o ministro dá uma declaração nessa linha. Quando tomou posse na presidência da Corte Eleitoral, em fevereiro deste ano, Luiz Fux já tinha dito que “o ficha-suja está fora do jogo democrático”.

Embora o ministro Luiz Fux tenha ressalvado que “não gostaria de personalizar nenhuma questão”, sua afirmação se aplica perfeitamente à situação de Lula da Silva, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelos três desembargadores da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre.

Um advogado que integra a equipe eleitoral do PT criticou a manifestação do ministro Fux, que estaria, segundo o causídico, “querendo dar lição de moral em candidato”. A rigor, ainda que Lula da Silva precise, de fato, de algumas lições de moral – e o tempo que passará atrás das grades pode auxiliá-lo na reflexão –, não é disso que se trata. Trata-se tão somente da interpretação de um dispositivo da Lei da Ficha Limpa, redigido em português cristalino: “São inelegíveis: (...) os que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”, caso de Lula da Silva.

O PT tem até o dia 15 deste mês para fazer o registro, na Justiça Eleitoral, da candidatura do escolhido pelo partido para disputar a Presidência. Como as leis não são vistas como obstáculos aos desígnios do partido, o escolhido é Lula da Silva, sustentado como “único plano” da legenda há meses. Os objetivos da manobra não são outros além de tumultuar o processo eleitoral e garantir ao dono do PT algum protagonismo e evidência nos meios de comunicação. Não sendo o candidato do PT à Presidência, Lula da Silva verá reduzido o seu poder de ditar os rumos da legenda e corre o risco de ser condenado ao esquecimento na cela em que se encontra.

Embora já tivesse exposto seu entendimento quanto à inelegibilidade imediata dos candidatos condenados em segunda instância, o ministro Luiz Fux trouxe à reflexão um aspecto muito importante da interpretação da lei no que concerne às candidaturas sub judice, ou seja, candidaturas que ainda estão sujeitas à apreciação da Justiça Eleitoral. Para o ministro, há uma distinção clara entre candidatos sub judice e candidatos inelegíveis. Lula da Silva é inelegível, ainda que o ministro não tenha citado seu caso em particular. “Não pode concorrer um candidato que não pode ser eleito”, disse Luiz Fux. “Aqueles candidatos que já tiveram sua situação definida pela Justiça não são candidatos sub judice, são candidatos inelegíveis”, completou.

Manter sub judice a suposta candidatura de Lula da Silva – a ser confirmada em convenção partidária até o próximo dia 5 – é uma estratégia do PT para tumultuar um processo eleitoral que já tende a ser aguerrido por si só, mantendo viva, deste modo, a cantilena da “perseguição política” ao “maior líder popular da história deste país”, já que a ficção política é o que resta ante as agruras da realidade jurídica.

É alvissareiro para a saúde do pleito deste ano que a mais alta instância eleitoral do País esteja atenta às maquinações não só de Lula da Silva e de seus acólitos, mas de qualquer candidato que esteja sujeito aos rigores da Lei da Ficha Limpa. O reatamento dos laços entre eleitores e eleitos passa, antes de tudo, pela segurança de que as escolhas feitas na urna estão amparadas pela lei e, portanto, são válidas.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 02.08.18.

Cultura punitiva, sociedade em risco

Por Antonio Claudio Mariz de Oliveira

Um sofrimento infligido a um homem ou à sociedade, quando é adotada uma da reação para extirpá-lo ou minimizá-lo, é acrescido de outro padecimento, de natureza diversa. O exemplo mais claro é o do medicamento que causa efeitos colaterais danosos. Procura-se a cura de uma moléstia e se adquire, como efeito direto do remédio ingerido, um outro mal para a saúde.

O mesmo se dá com os fenômenos advindos da conduta humana. O exemplo a ser analisado é o da criminalidade, violenta ou a denominada de colarinho-branco. A primeira tem como antídoto escolhido a repressão policial. No cumprimento dessa missão, tem-se assistido ao remédio voltar-se contra os doentes, que se tornam vítimas do arbítrio policial. Ademais, os próprios responsáveis pelo combate à doença do crime violento têm sido atingidos pelo tratamento escolhido: inúmeros são os policiais mortos em serviço.

Já o combate ao crime não violento, que encontra na corrupção o seu mais eloquente modelo, vem provocando efeitos colaterais que atingem o ordenamento penal e a segurança jurídica do País.

Instalou-se uma verdadeira “cruzada anticrime”, responsável por uma cultura punitiva criada pelos responsáveis pela persecução penal e caracterizada pelo desrespeito ao sistema de normas constitucionais e legais que regem essa atividade. Como arauto dessa cultura nós temos a mídia, que, por sua vez, influencia uma sociedade cada vez mais raivosamente intolerante e sedenta de castigo e de vingança.

O Direito Penal prevê sanções para as condutas que prejudicam valores, bens e interesses relevantes da sociedade. O cerceamento da liberdade é a punição de maior grau e tem, juntamente com outras, o escopo de proteger aqueles valores.

O Processo Penal, por sua vez, regulamenta o dever estatal de apurar, processar e julgar os infratores das normas penais, ditando as regras para o cumprimento dessas atividades. Deve-se salientar que o sistema legal de natureza penal, ao lado do escopo punitivo, tem o dever de regrar a atuação do Estado de modo a preservar a dignidade, a liberdade e os direitos individuais dos acusados de prática delituosa, de forma a impedir que o processo e a eventual condenação se transformem em vingança e a punição extrapole os exatos limites da responsabilidade pessoal do autor do crime.

O crime é gerado e produz frutos no âmago da própria sociedade, razão pela qual há a possibilidade de qualquer cidadão vir a cometê-lo. Ademais, todo e qualquer membro do corpo social está sujeito a ser alvo de uma acusação falsa ou mais grave do que a sua real responsabilidade.

Nesse sentido, aquele que é levado ao banco dos réus tem o direito subjetivo de ser submetido a um julgamento justo. Para tanto é fundamental que os julgamentos sejam realizados de acordo com e em obediência aos princípios constitucionais, que constituem o chamado garantismo penal, destacando-se a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência, o devido processo legal, o princípio do juiz natural, da legalidade.

Em face dessas considerações, outra se impõe: após o advento da sanha punitiva a que nos referimos, passou a haver uma perigosa flexibilização daqueles princípios de proteção ao homem acusado, em nome da aplicação de sanções penais como forma de combate ao crime. A sistemática reiteração das violações dos postulados garantistas permite afirmar que nós estamos no limiar de uma ruptura do ordenamento, com a instalação de um estado de anomia jurídica e legal.

Diferentemente do que apregoam os prosélitos da cultura punitiva, a punição não é meio de combate ao delito. Sendo um ato posterior ao crime já consumado, a sanção penal não o evita. Verdadeiramente se estaria combatendo a criminalidade se estivessem sendo atacadas as suas causas. No entanto, ao que parece, detectar e enfrentar os fatores desencadeadores da prática delitiva pouco importa. Pode haver crime, desde que haja punição. Parece não se querer melhorar a sociedade, basta que após a ocorrência do delito haja prisão, mesmo antes do julgamento do acusado.

Esquece-se, e isso deliberadamente, de que a prisão não é a única resposta ao crime. Há outras sanções, mais eficientes, menos onerosas e desprovidas dos males da cadeia, que se tornou um perigoso fator de criminalidade, em razão do deletério sistema penitenciário existente.

Dos 750 mil presos - aliás, é o Brasil o terceiro país do mundo em prisões -, 70% já estiveram presos anteriormente. Voltaram a cometer crimes, não se inibiram com a prisão e não foram por ela recuperados. E quem tem a intenção de infringir a lei penal pela primeira vez com mais razão não se sente inibido de fazê-lo diante da simples previsão legal de vir a ser punido. Repita-se, a prisão não impede o crime.

Puna-se o culpado com a sanção justa, pois se estará cumprindo a lei, mas não se engane com a afirmação de que o crime está sendo combatido. Essa assertiva é uma falácia.

Não se deve olvidar, por outro lado, que os homens que investigam, acusam e julgam não perdem a sua condição de seres humanos, portanto, falíveis. Estão sujeitos às influências externas, à mídia, ao chamado clamor social e a pressões das mais variadas espécies.

É necessário que as autoridades, a mídia e a sociedade reavaliem e repensem os seus conceitos sobre o crime, lembrando-se de que ele é um fenômeno social e que todos poderão dele se aproximar, como autores, como vítimas, culpados ou inocentes, e que constitui verdadeira tragédia, não espetáculo midiático. Sendo assim, é imprescindível que o rol das garantias constitucionais e legais, protetoras da liberdade e da dignidade, permaneça intacto e seja rigorosamente obedecido, sob pena de haver ruptura do ordenamento, com a instauração da tirania investigativa e judiciária.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é Advogado Criminalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.07.18.

O grande mal e a grande vilã

Em entrevista ao Estado, o ex-diretor da Polícia Federal (PF) Leandro Daiello disse que “o que tinha de papel e dados digitais na polícia quando eu saí era suficiente para quatro ou cinco anos de operações”. Leandro Daiello, que esteve à frente da PF de janeiro de 2011 a novembro de 2017, dá a entender assim que as grandes operações policiais dos últimos anos não deverão acabar tão cedo. Haveria tanta corrupção a ser investigada que não seria possível o País voltar ao seu leito de normalidade nos próximos anos.

Leandro Daiello fala em “quatro ou cinco anos de operações”. Outros, mais impetuosos, entendem que tal estado de coisas não deve ter prazo para terminar. Com isso, dão mostras de uma visão um tanto peculiar do País, na qual tudo deveria se submeter ao que chamam de “combate à corrupção”.

Ainda que faltem evidências empíricas à tese de que a corrupção é o principal problema do País, sua simplicidade, repleta de certezas, atrai cada vez mais adeptos, como mostram as pesquisas de opinião. A ideia central é simplista: a corrupção não é apenas o maior problema nacional, mas também a matriz de todas as mazelas do País.

A corrupção é, assim, transformada no grande – e, a rigor, no único – inimigo que merece ser combatido. Bastaria aniquilá-lo para que todos os outros problemas do País tivessem um novo e promissor encaminhamento. E o inverso também é válido: enquanto a corrupção não fosse extinta, não haveria possibilidade de uma melhora efetiva do País, por mais que pudesse haver avanços em outras áreas. Tudo seria inútil enquanto o grande mal não fosse vencido.

Tal simplificação da realidade finge que o País pode esperar pacientemente o término do “combate à corrupção”, como se essa contínua produção de escândalos não tivesse nefastas consequências institucionais, sociais e econômicas.

Não há possibilidade de normalidade num ambiente econômico em que a cada semana, às vezes, a cada dia, surge uma nova delação ou um novo documento a demonstrar a suposta podridão de todo o sistema político. Como ficará, por exemplo, a confiança dos investidores, dos empresários e da população em geral com mais cinco anos de Lava Jato?

Essa visão distorcida sobre a corrupção tem também efeitos sobre a democracia e a responsabilidade política. Se o combate à corrupção é o elemento decisivo para salvar o País – se é a Justiça, e não o voto responsável do cidadão, que tem o dever de assegurar um Congresso honesto –, não há necessidade de uma mudança de comportamento do eleitorado, que tem escolhido displicentemente seus representantes. Logo depois da eleição, boa parte dos eleitores nem ao menos sabe qual foi o candidato a deputado federal ou estadual que sufragou.

Achar que a corrupção é o principal problema do País não conduz necessariamente a escolhas responsáveis na hora de votar. Como dissemos neste espaço (Corrupção como medida de tudo, 18/6/2018), “sempre que os brasileiros foram às urnas para eleger não um presidente da República, e sim um campeão contra a corrupção – Jânio Quadros e Fernando Collor, por exemplo –, os resultados foram nada menos que desastrosos”.

Logicamente, toda corrupção deve ser combatida. O bem do País não admite transigência com o crime. No entanto, combater o crime, tarefa essencial num Estado Democrático de Direito, é bem diferente do que “pôr fim à corrupção”, numa espécie de revolução moral e política feita por agentes do Estado sem voto. Hoje em dia, quando se fala de corrupção, não se pede a aplicação estrita do Código Penal, como seria natural e desejável. O clamor é por uma reforma política. “Se não tiver a reforma política, a máquina vai continuar gerando (corrupção). Da maneira que a política é jogada hoje, não sobrevive, não. A fábrica de corrupção está aberta”, disse Leandro Daiello ao Estado. O grande mal seria a corrupção e a grande vilã, a política. Nesse teatro, que nada tem de ingênuo, a população é apresentada como vítima inerme, irresponsável tanto por seu passado como por seu futuro.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 20.06.18

Corrupção como medida de tudo

Não há dúvida de que a corrupção é um dos grandes males do País, há muitos anos. Também não há dúvida de que a Operação Lava Jato e suas congêneres, que vêm expondo de maneira crua a pilhagem do Estado por quadrilhas políticas e empresariais, contribuíram decisivamente para que os brasileiros se dessem conta do tamanho do problema e nutrissem verdadeira ojeriza pelos corruptos. No entanto, a luta contra a corrupção e as denúncias produzidas quase diariamente pela vanguarda dessa campanha acabaram por sequestrar a agenda nacional, de tal modo que os eleitores parecem hoje incapazes de refletir sobre os problemas do País sem vinculá-los de alguma maneira à corrupção – que, como consequência, se tornou a medida de todas as coisas.

Esse fenômeno ficou espantosamente claro em uma pesquisa nacional do Instituto Ipsos Public Affairs a respeito da reforma da Previdência. De acordo com o levantamento, 75% dos entrevistados consideram que “o maior problema da Previdência é a corrupção no sistema, que desvia seus recursos”. Apenas 15% entendem que o maior entrave do sistema previdenciário “é o modo como ele foi pensado e também o envelhecimento da população”.

Ou seja, a maioria dos brasileiros, a julgar por essa enquete, acredita que o galopante déficit da Previdência não existiria se não fosse a corrupção.

A resposta revela um grau tão absurdo de desconhecimento da realidade que só se pode concluir que os brasileiros em geral estão mesmo convencidos de que a corrupção é a fonte deste e de qualquer outro mal que assole o País.

Como mostram os dados publicados regularmente pelo governo e pela imprensa há muito tempo, a Previdência é deficitária porque o brasileiro se aposenta cedo demais e porque não há contribuintes em número suficiente para sustentar a aposentadoria de uma massa crescente de beneficiados – tudo isso sem mencionar privilégios desmedidos concedidos a determinados grupos.

Nada disso obviamente é fruto de corrupção, e sim de um sistema disfuncional construído a partir de deliberações conscientes dos representantes do povo, tudo com amplo respaldo democrático. Ao atribuir a “corruptos” um problema que é, em grande medida, dos próprios eleitores – a escolha de candidatos de triste fama –, os entrevistados parecem ter encontrado uma maneira de transferir sua responsabilidade cidadã a terceiros, devidamente caracterizados como ladrões de dinheiro público. Ou seja: se não fosse a corrupção, tudo funcionaria bem.

Basta notar que, para 51% dos entrevistados, o modelo de Previdência atual “é sustentável, ou seja, pode continuar da mesma forma por muitos anos”. E, mais espantoso ainda, 52% dos entrevistados com curso superior entendem que o sistema vai bem e não precisa mudar. Ou seja, não se pode alegar ignorância, pois se supõe que os entrevistados nessa faixa socioeconômica tenham amplo acesso às informações necessárias para embasar sua opinião.

Assim, fica muito claro que uma parte considerável dos brasileiros, inclusive os supostamente mais esclarecidos, está convencida de que é a corrupção que inviabiliza o País, e não as escolhas malfeitas, tanto nas urnas como na administração do Estado. Não é uma situação de todo surpreendente, ante a desmoralização completa da política em razão do denuncismo que tão bem caracteriza o trabalho de uma parte da força-tarefa da Lava Jato e que ganha manchetes escandalosas dia e noite.

A transformação da corrupção em régua que mede todos os recantos da vida nacional, conveniente tanto para os jacobinos que pretendem destruir a política tradicional como para os eleitores que preferem respostas fáceis para problemas difíceis, está na raiz da indisposição generalizada no Brasil com tudo o que diz respeito ao governo, aos políticos e às próximas eleições – decisivas para o futuro do País. Sempre que os brasileiros foram às urnas para eleger não um presidente da República, e sim um campeão contra a corrupção – Jânio Quadros e Fernando Collor, por exemplo –, os resultados foram nada menos que desastrosos. Mais do que nunca, é preciso impedir que a histeria anticorrupção governe o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 18.06.18.

Laços com a sociedade

Por Zeina Latif

A desejada renovação da política não é para já. Em alguma medida porque as regras eleitorais contribuem para reforçar a competitividade dos grandes partidos e dos políticos atuais. Uma trajetória como a de Macron na França enfrentaria muitas dificuldades no Brasil.

Há algo, porém, mais relevante. O engajamento da sociedade na política é um fenômeno recente, não tendo sido possível o surgimento de novas lideranças políticas competitivas. Bons nomes, dentro e fora da política, há. Faltou tempo para depuração. O quadro nas eleições de 2022 será, provavelmente, diferente.

Nem tudo está perdido, no entanto. Há um lado positivo da não renovação neste momento. Diante da urgência de reformas, tudo que o Brasil não precisa agora é de um presidente inexperiente. A reforma da Previdência não pode mais esperar, apenas para citar a mais urgente delas.

Experiência e habilidade política serão atributos essenciais ao próximo presidente. Mais do que no passado. O chamado presidencialismo de coalizão, que caracteriza a busca de maioria no Congresso, dependerá mais da boa política, porque as barganhas tradicionais estarão racionadas. A lei das estatais limita a oferta de cargos políticos e, por conta do orçamento apertado, reduziu-se o espaço para emendas parlamentares e matérias no Congresso que beneficiem políticos e grupos de interesse.

Mas não é só isso. Capacidade de diálogo e de comunicação também serão essenciais. O próximo governo terá, pois, de modernizar a relação da política com a sociedade para ser bem sucedido. A importância do diálogo aumentou, pois a agenda de reformas é desafiadora, demandando apoio da sociedade, hoje mais participativa.

A fórmula usual de comunicação de muitos políticos é apelar para discursos populistas, apontando vilões a serem combatidos. A última vítima foi Pedro

Parente. Vários políticos correram para apontar o dedo contra o ex-presidente da Petrobrás. E o governo sucumbiu. Infantiliza-se e subestima-se, assim, a sociedade.

A velha fórmula, no entanto, já não funciona tão bem. O apoio à greve dos caminhoneiros se reduziu quando a sociedade compreendeu que o custo será pago por todos nós. Os políticos afoitos que apoiaram a paralisação logo precisaram rever suas posições.

Não surpreende que a sociedade não se sinta representada pelos políticos.

Políticos precisam aprofundar e modernizar a comunicação com a sociedade, dando transparência aos problemas e às políticas públicas, expondo custos, objetivos, os beneficiados e seu impacto.

O caminho para maior transparência é longo, mas já foi iniciado. As renúncias tributárias hoje são mais conhecidas, bem como os privilégios que beneficiam alguns grupos, como os militares e a elite do Judiciário. A prática de avaliação de políticas públicas, ainda que lentamente, vai ganhando corpo. Evidência disso foi o trabalho do Banco Mundial avaliando as distorções causadas por algumas políticas sociais e sua baixa efetividade.

Esse passo, porém, ainda não foi dado pela política; mesmo políticos novos. Um exemplo é a gestão João Doria na Prefeitura de São Paulo. O ex-prefeito demonstrou coragem ao enviar à Câmara sua proposta de reforma da Previdência do funcionalismo municipal. A iniciativa não resistiu, porém, ao primeiro teste. O barulho dos servidores públicos contra a medida venceu a razão. E a sociedade, desinformada, assistiu a tudo sem entender quanto a reforma é necessária e precisa ser apoiada. Outro exemplo mais singelo é o programa Cidade Linda, iniciativa que visa melhorar o espaço público. Incompreensível a Prefeitura não ter envolvido a sociedade, pedindo sua ajuda para cuidar da cidade.

O modelo tradicional de comunicação, com bravatas e apontando vilões, está mofado e hoje cola menos. Não dialogar, por temer panelaços e reações nas redes sociais, deixou de ser opção. Os desafios pela frente demandam reforçar os laços com a sociedade, com transparência e discurso honesto. A sociedade clama por participação.

Zeina Latif, Professora, é a Economista-Chefe da XP Investimentos. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.06.18.

Os estragos da greve

O estrago causado pela crise no transporte, iniciada em maio e ainda sem solução, fica mais claro a cada nova notícia positiva sobre a evolução da economia em abril, o mês anterior à paralisação dos caminhões. Ao pôr em xeque o governo e toda a atividade produtiva, os transportadores interromperam um movimento de recuperação iniciado depois de um primeiro trimestre decepcionante. A expansão das vendas no varejo, divulgada ontem, confirma a tendência já indicada pelo desempenho da indústria, com produção 0,8% maior que a de março, 8,9% superior à de abril de 2017 e crescimento de 3,9% acumulado em 12 meses. No conjunto mais amplo do varejo, todos os grandes componentes tiveram resultado positivo na passagem de março para abril. Não se via esse desempenho desde 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

As vendas no varejo restrito tiveram aumento mensal de 1% em abril e superaram por 0,6% as de um ano antes. No quadrimestre foram 3,4% mais volumosas que as de janeiro a abril de 2017. O crescimento em 12 meses bateu em 3,7%. Incluídos carros, motos e componentes e também material para construção se obtém o varejo ampliado. Nesse caso, o aumento mensal foi de 1,3%. Houve ganho de 8,6% em relação a um ano antes, de 7,4% no confronto dos quadrimestres iniciais e de 7% em 12 meses.

As comparações interanuais e os volumes acumulados em 12 meses confirmam a tendência de crescimento observada a partir do começo do ano passado – pelo menos até abril. Mesmo com oscilações de um mês para outro, é clara a trajetória ascendente quando a base de comparação está a pelo menos um ano de distância. Esse movimento é evidenciado também pelos números da indústria. A produção do primeiro quadrimestre foi 4,5% maior que a do período correspondente de 2017. O avanço foi de 3,9% no confronto dos 12 meses findos em abril com os 12 imediatamente anteriores.

Os primeiros efeitos da crise no transporte rodoviário já apareceram em alguns dados da atividade industrial de maio. A produção das montadoras de veículos, até abril em firme recuperação, caiu 20,2% de um mês para outro e 15,3% em relação a maio de 2017. A perda mensal apontada no relatório oficial da associação das montadoras foi de 53,8 mil unidades. Mas esse número só tem sentido quando a base de comparação é o resultado de abril. Quando se considera a tendência de crescimento observada até o mês anterior, percebe-se um prejuízo muito maior, estimado entre 70 mil e 80 mil pelo presidente da organização.

O setor automobilístico vinha liderando a recuperação industrial e contribuindo de forma importante para a reativação das vendas ao consumidor. Essa contribuição explica boa parte da diferença entre a expansão do varejo restrito e a do varejo ampliado. Em abril, por exemplo, as vendas de autos, motos e componentes foram 36,5% maiores que a do mesmo mês do ano anterior. Os números do comércio relativos a maio devem mostrar danos severos causados pela interrupção do transporte rodoviário. Nesse mês, 25 mil veículos deixaram de ser licenciados, segundo o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antonio Megale.

A crise no transporte provocou uma crise de abastecimento e a extensão dos danos aparecerá no próximo levantamento, comentou a gerente da Coordenação de Serviços e Comércio do IBGE, Isabella Nunes. Mas a perda, segundo ela, será um ponto atípico, fora da série, indicativo de um evento singular. Se essa avaliação estiver correta, a trajetória de recuperação será retomada em pouco tempo. Terá havido danos, mas transitórios.

É cedo, no entanto, para formular essa previsão com um mínimo razoável de segurança. A extensão real dos estragos é desconhecida e, além disso, ainda há dificuldades para a contratação de transportes. Ontem o governo continuava negociando a formulação de uma tabela de fretes, a terceira, porque outras duas haviam sido rejeitadas por alguma parte interessada. A crise continuava, portanto, e os estragos se multiplicavam.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.06.18

Nossos ilegais


Por Odemiro Fonseca

São os 33 milhões de brasileiros que podem e querem trabalhar e não encontram trabalho. A principal razão é a definição de trabalho legal que levanta enorme muralha fiscal entre empregado e empregador e deixa 33 milhões de fora. Uma carteira assinada pelo salário mínimo custa ao empregador três vezes o que recebe o trabalhador. A consequência é que um salário mínimo custa para o empregador 115 % do PIB per capita do Brasil. No máximo, 50% nos países ricos.

Além dos encargos trabalhistas, existem outros impostos, como o transporte e outras contribuições trabalhistas e sindicais. Outro imposto enorme é o turnover. Contratar e descontratar no Brasil é outro salário mínimo, se o turnover da empresa for de 36 meses. Existe forte crença de que aumentar o custo do turnover protege o trabalhador. Engano cruel.

O muro fiscal que barra 33 milhões de brasileiros que querem trabalhar é cruel porque barra as minorias, os mais jovens e os menos qualificados, todos já vítimas de estigmas culturais. Faz muito tempo que o Brasil não passa pela situação de ter a demanda por trabalho maior do que a oferta, como é comum em muitos países. Como nos EUA atual, onde quem defende tornar os ilegais legais são os empresários. Nova lei deve ser aprovada ainda em junho.

Os números no Brasil são patéticos: 33 milhões de carteiras assinadas, 93 milhões de pessoas ocupadas, e precisaríamos ter 125 milhões trabalhando. Temos 33 milhões de desempregados, desocupados e desalentados. Se eles trabalhassem, as possibilidades de proteger quem precisa e investir em fundamentos como educação e saúde seriam muito maiores. E as demandas sociais e o crime seriam menores.

Ter 60% da população trabalhando não é sonho num país adulto. Mas os 28 milhões que são empregadores (empreendedores, profissionais liberais e trabalhadores por conta própria) são forçados a saltar a muralha fiscal e, como mostra artigo recente de Gustavo Franco, são ignorados até pela Constituição. Apenas lembrados quando amarrados em algum pelourinho. Mas são eles que empregam 53 milhões de brasileiros, recolhem impostos para pagar políticos e 12 milhões de funcionários públicos e são os únicos que podem empregar os 33 milhões de desempregados e desalentados.

O muro fiscal seria derrubado por uma reforma previdenciária e trabalhista que recolhesse 11% do que 125 milhões recebessem como salário (pagos compulsoriamente por aplicativo do sistema bancário), que criaria uma poupança anual previdenciária de 9% do PIB. Com 30 anos de trabalho e contribuição, um trabalhador de 60 anos poderia comprar um seguro que pagaria até a sua morte renda mensal maior do que receberia trabalhando. O trabalhador escolheria como e quando se aposentar. E com um salário mínimo por hora de 8 reais, o trabalhador levaria para casa 50% a mais do que leva hoje. Os impostos não seriam mais sobre o trabalho. Nem mesmo os necessários para complementar os que poupassem abaixo de um mínimo. Sistemas híbridos de previdência tendo o governo como segurador de última instância são comuns.

Com tais reformas, os desembolsos por trabalhador cairiam para menos da metade para os empregadores, com segurança trabalhista. E como o recolhimento para previdência individual não é um imposto, a poupança privada total e a carga fiscal do Brasil atingiriam níveis asiáticos (esta proposta para a previdência é de 1989. O ministro da época declarou: “esta é a primeira proposta com começo, meio e fim).

Odemiro Fonseca é empresário. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, RJ, edição de 13.06.18.

Falar é preciso

Por Flávia Oliveira

Fabiana Cozza ficou só e exposta. Ninguém ganha quando uma mulher negra é relegada à solidão que a sociedade brasileira naturalizou. Terminou sem vencedor o Fla-Flu do feriadão nas redes sociais, porque vitimou uma artista de incontestável talento, cantora de repertório impecável. Fabiana é filha de pai preto e mãe branca, se autodeclara negra. Sambista de raiz, conhece a obra e a trajetória de Dona Ivone Lara e tinha relações pessoais com a compositora, a maior que o Brasil já conheceu. Fabiana foi atacada em sua identidade racial — e isso é inadmissível. Ponto. Mas o país que tem por hábito invisibilizar personalidades negras, que clareou seu maior escritor, Machado de Assis, e eternizou Lucélia Santos no papel de uma jovem escravizada, Isaura, precisava falar sobre colorismo. Ainda precisa.


Na minha fé, tempo é divindade. A ele recorri para resistir a apelos e provocações de amigos (e nem tanto) para comentar a sequência de acontecimentos que levaram Fabiana a renunciar ao papel de Dona Ivone Lara — para o qual fora convidada, cabe sublinhar. Há hora de falar e dias de calar. Silenciei em luto pela irmã negra ferida. E também como exercício pedagógico para os que embarcam em polêmicas virtuais no domingo e voltam à programação normal na segunda. Quem é branco pode não pensar em raça; quem é preto não tem o direito de esquecer.


Colorismo é debate necessário, porque cor de pele conta muito no país que foi miscigenado para tornar-se branco. Negros de pele clara ou menos escura — eu, entre eles — são mais aceitos na escola, no mercado de trabalho, nas relações sociais, nas artes. Privilégio no Brasil segue cartela de cores. Não é por acaso que contabilizamos mais de cem denominações étnico-raciais, muitas usadas para escamotear, sobretudo, origens africanas. Aqui, casais se recusam, sem constrangimento, a adotar crianças pretas retintas. Racismo.


É preciso falar sobre pigmentocracia, porque três de cada quatro filmes nacionais lançados em 2016 foram dirigidos por homens brancos, informou a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Em 162 novelas exibidas ao longo de três décadas, a partir de 1984, 91% dos personagens centrais eram mulheres ou homens brancos; só 11 foram protagonizadas por artistas pretos ou pardos, mostrou levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemma/Uerj). Negros e mestiços protagonizaram 11% dos 253 romances publicados no período 1990-2004; 94% dos autores eram brancos, segundo pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè na Universidade de Brasília (UnB).


Sobra invisibilidade aos negros e, por isso, a escolha de Fabiana Cozza para encarnar Dona Ivone virou debate público — repudiadas, por óbvio, as ofensas. A cantora tem legitimidade profissional e pessoal para o papel. Quem discute seriamente colorismo não pôs em dúvida nem o talento nem a identidade racial de uma artista maiúscula, mas a decisão política da produção de reverenciar a grande dama escalando uma cantora de pele mais clara. Não foi censura, mas questionamento à repetição de padrões históricos, agora confrontados.


Havia uma coleção de argumentos a favor de Fabiana, entre eles, a preferência da família de Dona Ivone Lara, segundo declarou o neto André. No meio, uma equipe sem convicção da escolha que anunciou — houvesse certeza, a artista seria blindada, a renúncia não aconteceria, o público decidiria. Do outro lado, estava uma militância cada vez mais crítica, empenhada em discutir privilégios e brigar por representatividade. O ativismo negro não é homogêneo — nem deve ser. É míope quem cobra unidade. Como em qualquer organização, movimento, grupo, há vivências, pontos de vista e ênfases diferentes. No fim, restou uma mulher negra ferida. Perdemos todos.


Flávia Oliveira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 07.06.18.

O muro de Bolsonaro

Por Carlos Andreazza

Só muito raramente escrevo sobre livros que edito. Esta é uma exceção. Impõe-se. O motivo é simples: a obra ajuda a empreitada daqueles que tentam — a sério, sem lhe subestimar a inteligência — compreender Jair Bolsonaro; ou melhor, oferece instrumentos aos que lhe querem decodificar o discurso. Refiro-me a Ganhar de lavada, trabalho em que Scott Adams disseca as técnicas de persuasão por meio das quais Donald Trump não apenas venceu a eleição presidencial americana, mas também reinventou o Partido Republicano, dinamitou o Democrata e minou, como sem precedentes, a credibilidade da imprensa tradicional.

Não se iluda, leitor: Trump ganhou — fez tudo isso — no discurso. Ele identificou os anseios fundamentais do público para o qual poderia falar, aquele que o queria ouvir e que lhe bastaria para vencer, e investiu todas as fichas na percepção de que as pessoas não tomam decisões com base em fatos, e que estão facilmente propensas a ignorar detalhes se atraídas por uma palavra hábil capaz de corresponder a suas prioridades e a seu estado emocional. Mais do que querer as mesmas coisas que o eleitor que cortejava, Trump era — tornou-se — as coisas que o eleitor que cortejava queria; e operou essa complexa justaposição de existências exclusivamente graças à sua apreensão da realidade e ao modo como se comportou a partir dessa leitura.

Não sei se Bolsonaro conhece Adams, se estudou as ferramentas de convencimento do presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com sucesso até aqui. Todos se lembram do “muro de Trump”, o paredão que, eleito, ergueria para separar os EUA do México. Trata-se da hipérbole exemplar, a âncora a partir da qual o então candidato cravou para si — com ódio de um lado tanto quanto paixão de outro — uma bandeira objetiva capaz de mobilizar milhões de eleitores e transformá-lo em protagonista, em pauteiro-mor, da campanha.

Não há moralidade quando se emprega tal nível de persuasão. Somente eficácia. Quando Trump afirmava, espetacular e radicalmente, que deportaria milhões de imigrantes, inclusive legais, outra coisa não fazia do que se inscrever — na mente das pessoas — como o único que se preocupava com a porosidade das fronteiras nacionais e com a imigração ilegal, e o único que faria algo prático a respeito, daí o muro. Pormenores sobre como implementar o que prometia? Ora, ele se aprofundaria nas formas de execução quando empossado, com o auxílio de especialistas. Impossível não pensar em Paulo Guedes, no caso bolsonarista, como emblema tranquilizador dessa mensagem postergadora.

Bolsonaro joga esse jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio — o desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou capitalizar a mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança pública — e, sobretudo no caso da segurança, estabeleceu-se como o senhor do assunto, o único que verdadeiramente se sensibiliza com o problema, e o único que o enfrenta com a prioridade exigida pela população. Ele também ergueu seu muro. E aqui falamos de ferramentas de convencimento, pouco importando a violência da proposta, segundo seus detratores, tanto quanto sua realização impraticável, segundo o mundo real. A amarra mental de Bolsonaro — o gatilho de choque por meio do qual se eleva como dono da pauta da segurança — é a ideia, afirmada e reafirmada, de armar a população; o tom dessa pregação se intensificará daqui até outubro.

Quem já o viu falar sobre segurança pública certamente se espantou com a superficialidade de seus comentários a respeito. Puro método, no entanto. O deputado pode passar horas tratando da questão sem mencionar, nem sequer de passagem, seu cerne, a fragilidade das fronteiras por meio das quais drogas e armas entram no país, e ainda assim convencer multidões de que é o único consistentemente preocupado com a insegurança do brasileiro. Uma arma na mão e uma defesa na cabeça. Aí está. Abordagem genérica com solução micro: eis o discurso de Bolsonaro. Funciona. Comove. Arrebanha. Persuade. É chamamento individual; convite à participação de sujeitos historicamente excluídos; solução compartilhada — não interessa se estúpida. Bolsonaro, a rigor, não fala de outra coisa senão de proteção à propriedade privada. E acerta.

Não adianta, portanto, cobrar-lhe que se aprofunde, que apresente um programa, tampouco supor que o simplismo exagerado de sua fala sobre segurança seja falho. Não é. Não para efeito eleitoral. Bolsonaro não é um parvo no lugar e no momento certos. Há ciência em sua generalidade. Ele é objetivo. Descarta pormenores próprios à política porque estica seu verbo no sentimento, o da moda, que repele tudo quanto derive da política como atividade. Ele foge da minúcia porque constrói seu discurso numa camada narrativa que prescinde da razão para comunicar e seduzir – uma faixa, legítima, que é essencialmente emocional, e para a qual nuance é blá-blá-blá.

Como Trump, Bolsonaro trabalha para se converter numa ideia, num valor. Ao contrário de Trump, porém, não vencerá. Como Trump, contudo, já ganhou.

Carlos Andreazza é editor de livros.

O resgate da confiança

Por José Renato Nalini

Na visão de Sérgio Abranches e de outros pensadores atuais, as três angústias que afligem o homem contemporâneo são a destruição do meio ambiente, a falência da democracia representativa e as ameaças da 4.ª Revolução Industrial. Todas graves e urgentes. Todas capazes de acabar com a vida no planeta. Pelo menos a vida como acreditamos que ela seja ou deva ser. Só que uma delas tem um encontro marcado com a nacionalidade: as eleições de 2018, para este triste país chamado Brasil.

A política partidária desgastou-se de tal forma que atingiu deterioração inimaginável. Hoje, quem tem coragem de se dizer político parece estar assinando um atestado de corrupto. Generalizou-se o que todos os partidos fizeram, enlameando-se ao confundir o público e o privado, apoderando-se de dinheiro do povo e aprofundando a iníqua desigualdade social, que se agravou nos últimos anos. Ninguém saiu ileso. Respingou a dúvida em desfavor dos poucos honestos que ainda são encontrados nos quadros eleitorais.

Como devolver à população a esperança de que a política partidária continue a ser a fórmula adequada para estabelecer um convívio solidário? Não é fácil, mas não impossível.

Para isso é preciso ter coragem. Muita coragem, o que não é apanágio de tantos. Enfrentar os temas polêmicos. Com firmeza e sem receio de ser politicamente incorreto. Ninguém mais suporta a tergiversação. As pessoas têm nojo do populismo. Principalmente do populismo brega, da mediocridade, do aproveitamento vulgar de tudo o que possa parecer simpático ao eleitor e é utilizado por quem nunca se preocupou com os temas nevrálgicos, mas quer agora aparentar sensibilidade.

Coragem para dizer a verdade. Destemor para ser franco.

Mas mentir é mais fácil. Omitir-se também é uma tática em voga. Ficar na platitude, repetir chavões, dizer o que o auditório quer ouvir. Variar o discurso conforme a plateia.

Não dá mais para esse jogo. Haverá saída?

O caminho só pode ser o que não se espera dos camaleões. Expor-se. Ousar. Ser audaz. Dizer a que veio. Fazer escolhas. Definir-se. Não se iludir com a espera da unanimidade. É melhor o não com clareza do que o talvez ambíguo. Não há partido incorruptível. Toda instituição humana é suscetível de acolher seres humanos com fissura de caráter. Mas condenar o adversário e ocultar as faltas dos parceiros é ignominioso. Impõe-se pedir perdão pela cegueira, por haver-se entregado a praxes hoje inadmissíveis. Aceitar o erro da omissão ou da imprudência de ter navegado nas águas turvas da quase ilicitude. Uma postura de dolo eventual: aceitar o risco de se expor. Conviver cercado de pessoas que não mereciam confiança. Tudo em nome de coalizões nefastas.

Mas a população séria quer muito mais.

Assumir o compromisso de reduzir drasticamente o número de partidos. Uma República de 40 partidos é uma falácia democrática. Acabar com o Fundo Partidário: que o partido seja sustentado por seus filiados. Interromper a sanha irresponsável da criação de mais entidades federativas. Frear o crescimento desenfreado da máquina pública.

Contar a verdade sobre a Previdência, que mais dia, menos dia - e isso está mais próximo do que se imagina - deixará de honrar proventos e pensões. Pois o Brasil real não cabe no PIB. Muito delírio, muita mentira, muita pretensão desancorada de encarar um quadro tétrico: a recessão brava, a estagnação, o desemprego crescente. Não se previu o tsunami da modernidade e nossa indústria perdeu o rumo da inovação. A educação não foi levada a sério por todos os responsáveis, não só pelo governo. Até porque o timing do governo é o da próxima eleição, incapaz de imaginar o que deva ser uma geração adiante da sua.

A população que não está pronta para a mutação estrutural que ciência e tecnologia trouxeram - e já alteraram o que se acreditava estável e permanente - é a mais penalizada. Ainda acredita em diplomas, em cursos universitários de profissões que serão descartadas. E já o são, sem que grande parte dos interessados o perceba.

O próximo presidente, o próximo Congresso, os Legislativos estaduais não terão condições de resolver a tragédia nacional. Mas poderão mostrar que o Brasil tem jeito. E esse jeito não se pode afastar da verdade. Nunca houve uma conjunção de fatores adversos tão sérios e comprometedores. Atraso tecnológico, paralisação da produtividade, violência em ascensão na mesma proporção do desânimo e desesperança.

Quem teve condições procurou abrigo no Primeiro Mundo, num êxodo inverso ao das correntes migratórias que tanto desenvolvimento trouxeram para o Brasil pós-abolição.

Uma responsabilidade enorme recai sobre os próximos governantes. Não se espere que em quatro anos haja reversão do caos. Mas a sinalização de que gente séria assumiu o leme já seria suficiente para conquistar quem não pode sair do Brasil e gostaria de encontrar estabilidade, paz e condições de viver dignamente neste chão em que nasceu. Conscientizem-se disso e abandonem a obsoleta e necrosada fórmula de fazer política. Chega de discurso. Chega de promessas vãs.

Sem isso, nas próximas eleições o espaço estará aberto para a aventura. Para o inesperado e para o temerário. Não se deve correr esse risco. Pode ser a derradeira oportunidade de se garantir o sonho de nação desenvolvida. De se cumprir a promessa do constituinte de 1988, ao acenar com uma pátria justa, fraterna e solidária.

Sem que se admita a falência da democracia representativa neste Brasil que já não crê em nenhum mandatário, sem que as máscaras sejam arrancadas e permaneça exclusivamente o ser humano em cotejo com a sua vontade de encarar a verdade, não haverá futuro decente no horizonte.

O grande eleitor de 2018 será o medo. E o medo não é bom conselheiro.

Não paguemos para ver.

JOSÉ RENATO NALINI, ESCRITOR E DOCENTE UNIVERSITÁRIO, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS. / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.06.18.

Aposta no caos

O estrondoso sucesso da greve dos caminhoneiros – que viram atendidas todas as suas reivindicações e colocaram o governo de joelhos, arrancando urras de parte considerável da população – inspirou os oportunistas de sempre a tentar capitalizar e, quem sabe, ampliar a insatisfação popular.

É o caso, por exemplo, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), sindicato petista que decidiu deflagrar “a maior greve da história da Petrobrás” para protestar contra “os preços abusivos dos combustíveis” e “contra o desmonte da empresa que é estratégica para a nação” – razão pela qual exige a demissão do presidente da estatal, Pedro Parente.

Felizmente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) declarou a greve ilegal, estipulando multa diária de R$ 500 mil em caso de descumprimento. Em sua decisão, a ministra do TST Maria de Assis Calsing disse que se trata, “a toda evidência, de greve de caráter político”. Com razão, a magistrada considerou que a pauta dos grevistas representa “forte ingerência no poder diretivo da Petrobrás” e também “em ações próprias de políticas públicas, que afetam todo o País e cuja solução não pode ser resolvida por pressão de uma categoria profissional”. Além disso, escreveu ela, uma greve de petroleiros neste momento provocaria enormes prejuízos à população, especialmente “por resultar na continuidade dos efeitos danosos causados com a paralisação dos caminhoneiros”. E Maria de Assis Calsing arrematou: “Beira o oportunismo a greve anunciada”.

Os oportunistas em questão, é claro, não se fizeram de rogados. “Consideramos inconstitucional (a decisão do TST). A Constituição nos garante decidir quais interesses devemos proteger com a greve”, disse um porta-voz da FUP. A pilantragem hermenêutica apenas confirma o caráter totalmente mendaz desse e de outros movimentos feitos exclusivamente para explorar o apoio popular obtido pela greve dos caminhoneiros.

Esses movimentos pretendem ampliar a já crescente hostilidade ao governo do presidente Michel Temer, transformado pelos jacobinos da luta anticorrupção e por aproveitadores em geral em símbolo de um país carcomido pela corrupção e pelos privilégios a minorias bem articuladas.

Ora, não é preciso morrer de amores por Temer para ver aí um evidente exagero, pois o presidente herdou um país esfrangalhado pela criminosa irresponsabilidade lulopetista e, em pouco tempo, restabeleceu um mínimo de racionalidade fiscal, disso resultando a queda da inflação e dos juros e a retomada do crescimento. No entanto, nada do que esse governo faz, mesmo seus acertos mais evidentes, parece digno de crédito, pois, conforme indicam as pesquisas e a julgar pelo apoio popular aos caminhoneiros, Temer passou a ser um exemplo de governo desastroso.

Esse discurso ressuscitou o que deveria estar morto, isto é, o embuste lulopetista, segundo o qual o País era uma maravilha nos tempos de Lula da Silva e Dilma Rousseff – inclusive com combustível barato, subsidiado. A nostalgia daqueles tempos “dourados” ignora, por exemplo, que a política de subsídios tende a concentrar renda nos grupos organizados da sociedade, restando à maioria desorganizada e pobre arcar com o custo.

Aliás, é preciso lembrar que a crise dos caminhoneiros tem sua origem não só na ilusão do diesel barato, mas também na farra petista do crédito farto, que estimulou muitos a comprar caminhões, inflando assim a oferta do serviço de transporte, o que baixou o preço do frete. Quando veio a crise, a demanda pelo serviço caiu, deixando muitos caminhoneiros endividados e sem trabalho. A racionalização do preço dos combustíveis, para sanear a Petrobrás destruída pelos petistas – os mesmos que ora organizam uma greve para “defender” a estatal –, completou o quadro.

A política de austeridade e as reformas de Temer nada têm a ver com essa crise. São, ao contrário, sua solução, nunca sua causa. Mas é mais fácil acreditar nas patranhas lulopetistas ou, pior, defender a volta dos militares ao poder, do que aceitar a dura realidade de que o Estado não é senão administrador de recursos escassos.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 31.05.18.

Brincando de golpe

Por Eliane Cantanhede

Assim como nos aviões, são duas as decisões mais tensas de uma greve: quando e por que começar, quando e por que parar. A greve dos caminhoneiros começou na hora certa, jogou luz nas agruras do setor, criou um caos no País e foi um estrondoso sucesso. Os caminhoneiros, porém, estão perdendo o timing de acabar a greve e capitalizar as vitórias.

As pessoas apoiaram a revolta, mesmo sofrendo diretamente as consequências, porque se identificaram com as dificuldades dos caminhoneiros e, como eles, estão à beira de um ataque de nervos diante de tanta corrupção. Mas é improvável que apoiem agora, simultaneamente, o “Fora Temer”, o “Lula livre” e a “Intervenção militar já”.

É uma salada indigesta. Pepino, abacaxi e pimenta não combinam e, cá para nós, focar o protesto na queda do presidente Michel Temer raia o ridículo, é como “chutar cachorro morto”. Faltando seis meses para o fim do governo? Com Temer já no chão? É muita artilharia para pouco alvo.

O governo cedeu exatamente em tudo que eles pediam: preço do diesel, redução de impostos, previsibilidade nos reajustes, tabela mínima de fretes e mudança nos pedágios federais, estaduais e municipais. Uma brincadeira que vai custar de R$ 9,5 bilhões a R$ 13,5 bilhões ao Tesouro. Leia-se: a você, leitor, leitora. Agora, a munição do governo acabou. Não há o que fazer.

Eles exigiam mais do que 30 dias de suspensão de aumentos, o governo admitiu o dobro. Exigiam aprovação já, o governo assinou medidas provisórias, que entram em vigor imediatamente. Exigiam publicação do acordo no Diário Oficial da União, o governo fez uma edição extra. Depois de tudo, eles passaram a exigir o corte de R$ 0,46 nas bombas, antes de voltar à ativa. Estão enrolando. Com outras intenções?

Uma coisa é a paralisação de caminhoneiros com reivindicações justas. Outra coisa, muito diferente, é um movimento político com exigências difusas, até contraditórias, e absolutamente inexequíveis. A paralisação deixa de ser justa, perde a legitimidade e passa a ser um ataque oportunista, não a um governo agonizante, mas às instituições e a toda a sociedade.

Ontem, manifestantes já circulavam pela Praça dos Três Poderes e confrontavam o Palácio do Planalto, como ocorreu em junho de 2013. Amanhã, os petroleiros podem começar uma greve sem pauta, movida a ódio e a política. No que isso vai dar? Há um clima de insegurança, de temor, de exaustão, no qual o que mais falta é racionalidade. Não estão medindo as consequências.

Estão todos brincando com fogo: governo, caminhoneiros, os que amam Lula, os que odeiam Temer, os saudosos da ditadura militar... Mas todos eles, que comemoram e se divertem hoje, poderão ter muito o que chorar e espernear amanhã, porque todo esse ódio e essa “revolução” miram um governo em fim de festa, mas podem acabar fazendo a festa de quem menos eles esperam em outubro.

Diz a inteligência, e confirmam os estrategistas, que você só dá passos sabendo onde quer chegar. E deve saber o momento de parar, para renovar energias, ou até recuar, para não bater com a cara na parede. O que se vê hoje, nos radicais que ameaçam as vitórias dos caminhoneiros, e na turba que os aplaude maliciosa ou ingenuamente, é justamente a falta de objetivos, de propósitos. É se jogar de cabeça, sem pensar nos riscos, nos perigos.

Derrubar Temer e colocar Rodrigo Maia na Presidência não pode ser um objetivo sério, um propósito de boa-fé. É uma manifestação irracional de ódio, um desserviço ao Brasil, uma aventura com repercussões nefastas. Quem gosta de brincar com fogo parece torcer por um golpe, mas um golpe de verdade. Que não venham depois chorar sobre o leite derramado, tarde demais.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.05.18.

A greve dos caminhoneiros

A eliminação temporária da cobrança da Cide (conhecida como imposto do combustível) sobre o diesel traz algum alívio para os caminhoneiros, há dias em greve nacional contra as sucessivas altas do preço do combustível. Mas não resolve o problema principal dos grevistas, impõe novas dificuldades ao programa de ajuste fiscal do governo e sua concretização está condicionada a uma decisão responsável de um Congresso cujas atitudes com frequência beiram a irresponsabilidade.

Em meio a protestos de caminhoneiros que alcançaram pelo menos 24 Estados, o governo concordou em zerar a Cide sobre o diesel, mas condicionou a medida à aprovação, pelo Congresso, do projeto que acaba com a desoneração da folha de pagamentos de diversos setores.

A desoneração foi adotada pelo desastroso governo de Dilma Rousseff com o alegado objetivo de estimular os setores beneficiados, mas seus resultados foram pouco notáveis do ponto de vista do crescimento. Do ponto de vista fiscal, porém, comprimiu ainda mais uma receita que já caía em razão da recessão deixada pela administração lulopetista. Para manter o déficit primário relativamente controlado e dentro da meta de R$ 159 bilhões neste ano, o governo propôs a retirada da desoneração de 53 dos 56 setores que haviam sido beneficiados pelo governo Dilma. Entendimentos entre o Planalto e o Congresso haviam elevado o número de setores beneficiados para cerca de 20, o que reduziria fortemente a receita adicional esperada. Agora, com a eliminação da Cide, a receita líquida adicional tende a ser ainda menor, tornando mais penoso o ajuste paulatino das contas da União.

Nem assim, porém, os caminhoneiros ficaram satisfeitos, pois a redução para zero da alíquota da Cide sobre o diesel reduzirá em apenas R$ 0,05 o preço do combustível na bomba. O valor é considerado insuficiente para resolver os sérios problemas que eles enfrentam desde que os preços dos combustíveis passaram a ser ajustados pela Petrobrás de acordo com a variação da taxa de câmbio e da cotação do petróleo no mercado internacional (o preço do óleo passou de US$ 50 o barril em julho do ano passado para cerca de US$ 80). Por essa razão, os caminhoneiros decidiram manter a greve.

A política de preços adotada pela Petrobrás tem sido um dos principais elementos da credibilidade da gestão comandada por Pedro Parente, que tomou posse em junho de 2016. Essa política – fortalecida por outras medidas de teor semelhante – simboliza o afastamento total da interferência política nas decisões da Petrobrás, como as que havia na gestão lulopetista. A compressão artificial dos preços dos combustíveis para conter a inflação, ao lado das operações do amplo esquema de corrupção instalado na estatal pela administração petista, comprometeu seriamente a saúde financeira e a capacidade operacional da Petrobrás. A recuperação da empresa iniciada por sua atual gestão é um dos ganhos administrativos mais marcantes do governo Temer, e não pode ser comprometida por ingerências políticas.

A solução acordada para o problema que afeta os caminhoneiros, por isso, foi a redução da tributação sobre os combustíveis, que é muito alta. Ela corresponde, em média, a 44% do preço da gasolina pago pelo consumidor e a 28%, no caso do diesel. Mas a tributação mais pesada não provém da Cide – daí o baixo impacto de sua eliminação sobre o preço final –, e sim de outros tributos, especialmente o ICMS, que é de natureza estadual. A Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes calcula que o ICMS representa de 25% a 34% do preço da gasolina e de 12% a 15% do diesel.

Enquanto o problema persiste, setores da economia começam a parar. A indústria automobilística já se queixa da falta de componentes, filas de caminhões parados reduzem as operações portuárias, mercadorias deixam de ser transportadas, postos estão ficando sem combustíveis, aeroportos podem parar. É preciso encontrar uma solução rápida.

N. da R. – Este editorial já estava na página quando a Petrobrás anunciou a redução de 10% no preço do diesel nas refinarias por 15 dias. (Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.05.18.

Constituição à la carte

O artigo 102 da Constituição diz, na alínea b do inciso I, que é da competência do Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. Não há, portanto, nenhuma referência ao momento em que foi cometido o delito, se antes ou durante o exercício do mandato.

Malgrado essa clareza meridiana, o Supremo Tribunal Federal resolveu extrapolar suas funções e invadir seara do Poder Legislativo, ao “emendar” o artigo 102 da Constituição a título de acabar com “os problemas e as disfuncionalidades associados ao foro privilegiado”, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, em seu voto – que poderia muito bem ser qualificado de “proposta de emenda constitucional”.

Nesse afã de “consertar” a Constituição para adequá-la ao desejo de acabar com a corrupção e a impunidade, o ministro Barroso estabeleceu que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”. Ou seja, se o crime pelo qual o político é acusado tiver sido cometido antes de assumir o mandato, ou se não tiver relação com suas atividades como parlamentar, o processo correrá na primeira instância, e não mais no Supremo, como manda a Constituição.

A tese do ministro Barroso foi amplamente aceita na Corte, apesar de ser claramente subjetiva. Afinal, como estabelecer se o crime em questão está ou não “relacionado às funções desempenhadas”? A vaguidão da “emenda” do ministro Barroso certamente colaborará para que haja inúmeras contestações judiciais, sendo necessário, como já esperam os seus colegas, resolver caso a caso, ao sabor das conveniências monocráticas do magistrado de plantão. Ou seja, cria-se uma regra que não estabelece regra nenhuma, um convite para a confusão.

Mas este não é o único problema grave da “emenda” do ministro Barroso. Graças a ela, os parlamentares ficarão perigosamente expostos a juízes de primeira instância e a procuradores da República convencidos de que todos os políticos são corruptos até prova em contrário. É justamente para proteger a atividade dos políticos eleitos pelo voto direto que existe o foro dito “privilegiado”. Do contrário, corre-se o risco de paralisação do poder público, exercido pelo Congresso e pelo Executivo, cujos integrantes ficarão sujeitos à litigância de má-fé em qualquer comarca.

Além disso, a “emenda” do ministro Barroso não estende a restrição do foro privilegiado aos demais detentores dessa prerrogativa, entre os quais os juízes, os procuradores da República e os próprios ministros do Supremo. Somados, esses operadores da lei chegam a 35 mil dos cerca de 60 mil detentores do foro privilegiado. Os parlamentares federais são menos de 1% do total.

Assim, a título de sanar a “violação aos princípios da igualdade e da República” e de agilizar o trabalho do Supremo, supostamente assoberbado em razão dos processos contra políticos, a “emenda” do ministro Barroso excluiu apenas os parlamentares do rol daqueles que desfrutam do privilégio. E isso tem uma explicação óbvia: o ativismo judicial considera a classe política essencialmente corrupta, sendo a grande responsável pelos males do País; logo, deve ser tratada com maior rigor. Já os juízes de primeiro grau e os procuradores da República, empenhados na caça aos corruptos, merecem tratamento distinto.

É evidente que o Congresso reagirá a essa usurpação de suas funções pelo Supremo, gerando previsível choque – mais um – entre esses Poderes. Nada disso, infelizmente, deverá alterar a questão de fundo – qual seja, a de que o Supremo parece realmente disposto a refazer a Constituição a seu alvedrio, sem ter recebido um único voto para isso.

Ironicamente, o mesmo artigo da Constituição que estipula o foro privilegiado para parlamentares federais diz também que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. Seria bom que o Supremo começasse a respeitá-lo.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 06.05.18

A prevalência da lei

Se o voluntarismo judicial gera uma grave distorção no sistema jurídico, ao fazer com que os efeitos da lei não sejam expressão apenas da vontade do Congresso – mas também da particular vontade de juízes –, ele se torna ainda mais prejudicial na hora de aplicar a Constituição. É o que se tem visto em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que tantas vezes dizem exatamente o contrário daquilo que está expresso nos artigos da Carta Magna.

A Constituição é a lei de maior hierarquia no País. Todas as outras leis devem estar em conformidade com o seu conteúdo. Se o conteúdo constitucional está sujeito a um tratamento fluido, que não respeita a literalidade do texto, todo o sistema jurídico é afetado pela instabilidade e insegurança. Já não existe critério seguro, sendo tudo passível de uma nova e criativa interpretação.

Não resta dúvida de que, às vezes, é preciso fazer uma aplicação sistêmica da lei, corrigindo eventuais omissões e contradições. Tal necessidade, no entanto, não autoriza a desprezar o que o legislador constituinte escreveu. Em geral, as interpretações contrárias ao texto constitucional não se baseiam numa avaliação global do ordenamento jurídico, de modo a conferir-lhe maior unidade. Ocorre justamente o oposto. O que se vê são discordâncias pessoais em relação ao texto legal que levam a interpretações casuísticas, sem nenhuma consistência sistêmica, e que produzem outras e maiores contradições.

Sempre houve uma margem subjetiva na aplicação da lei. O problema é que, atualmente, se perdeu a reverência pelo texto constitucional. Muitos juízes reivindicam para si liberdade total para interpretar a lei, rejeitando qualquer limite objetivo nessa tarefa. Tornam-se soberanos com poderes absolutos.

Como é óbvio, tal lógica confere um poder excessivo ao Judiciário, que teria a faculdade de atribuir à lei o sentido que mais lhe convém. Raríssimas vezes o sentido dado à lei por esses juízes todo-poderosos guarda alguma relação com o texto aprovado pelo Congresso – esse, sim, o locus da soberania.

Quando se discutem essas questões, é frequente tratar o STF com condescendência. Por ser o tribunal de maior hierarquia no Judiciário, diz-se que ele teria o direito a errar por último. Ou ainda que a Constituição não seria o que está escrito no livrinho, mas aquilo que o STF define como sendo a Constituição.

A posição hierárquica do STF confere-lhe, não há dúvida, uma enorme responsabilidade. Mas esta é a responsabilidade de ser fiel ao texto constitucional, não a de ditá-lo como quiser. Sua missão institucional é ser o guardião da Carta Magna. Assim, é um equívoco achar que, por ser a Corte mais alta, o Supremo teria total liberdade interpretativa ou que não precisaria respeitar os limites expressos no texto.

O STF tem o dever de ser exemplo a todo o Judiciário, em especial de respeito ao texto definido pela Assembleia Constituinte. Num Estado Democrático de Direito, não cabem interpretações judiciais que desautorizam o texto constitucional. Os ministros do STF não são árbitros da Constituição. Há juízes, por exemplo, que agem como se fosse da alçada da Suprema Corte retirar vigência de parte do texto constitucional por considerá-lo incompatível com o sentimento atual da população. Agindo assim, os ministros do STF assumem o papel que ninguém lhes outorgou – o de serem oráculos da vontade da população.

A Constituição não é aquilo que o Supremo diz ser. É a Constituição que define o que o Supremo deve ser e como deve se portar. Por exemplo, não cabe aos ministros do STF ponderar se devem respeitar as competências privativas do Congresso Nacional. Não há situação, por mais excepcional que seja, que justifique ultrapassar os limites de cada Poder.

A Carta Magna de 1988 tem muitos defeitos e compete ao Congresso corrigi-los. Mas não se encontra no texto constitucional o disparate de estabelecer que o País será regido pela vontade de 11 ministros, que não receberam nenhum voto popular. Numa República vale a lei – não a arrogância de seu intérprete.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 07.05.18

Segurança e sistema prisional

Por Evandro Mesquita

Adequado, de início, ressaltar a distinção entre cenário social adverso em periferias de capitais e grandes cidades, propício a originar condutas delitivas, a ser medicado em suas causas, e ações criminosas e violentas já em curso, a débito de meliantes sem nenhuma perspectiva de recuperação, especialmente quando integram organizações criminosas consolidadas. Essas são duas situações bem diversas, a merecerem tratamentos também absolutamente diferenciados.

A higidez do meio social depende de retomada vigorosa do desenvolvimento, com elevação de empregos e renda, soluções de médio e longo prazos, envolvendo escolha de caminhos eficientes para maior desempenho global e/ou setorial da economia. Sabe-se também que há espaço para definição de macroplano social para o País, que ultrapasse os limites quadrienais de governos, associado ao exercício de política demográfica que já exercitamos no passado para povoar a imensidão territorial vazia, agora novamente necessária, mas para busca do aprimoramento social, lastreada em paternidade responsável, caminho seguro para a prevalência de referências e valores morais afastados de esgares ideológicos e pruridos do politicamente correto.

Enquanto isso, tendo em vista a ocorrência diária e contínua de crimes de sangue, deve o poder público acelerar a identificação e segregação dos transgressores, retirá-los de circulação, isolá-los. E tendo como razão principal para isso não só o mal já causado, mas a prevenção pelo mal maior que ainda poderão causar.

Nesse sentido, muitas esperanças se depositam nas ações federais de segurança pública em implementação no Rio de Janeiro sob coordenação do Exército Nacional e integrando as Polícias Militar e Civil, cujos resultados poderão definir alternativas também para outros Estados e regiões.

Não obstante, é certo que o incremento da criminalidade guarda estreita relação com o sistema prisional atual, quando se constata que 80% dos crimes mais agressivos praticados contra a pessoa e o patrimônio são de autoria de reincidentes, em geral fora de presídios e penitenciárias por fuga, resgate ou liberdade eventual convertida em fuga. Estando sentenciados, os Poderes Legislativo e Judiciário terão cumprido o que lhes cabia fazer, aprovando leis e prolatando sentenças. O elo fraco, portanto, reside no sistema prisional vigente, que não consegue reter parcela significativa de criminosos violentos, que voltam às ruas e aos morros para a prática de crimes que ascendem à categoria de hediondos.

Cabe, fundamentalmente, aos Estados federados o ônus de custódia da massa carcerária, conquanto o disciplinamento legal respectivo seja basicamente de natureza federal. A ausência da União no sistema prisional e a contenção de repasses do Fundo Penitenciário Nacional são decorrentes da carência de recursos, em face da busca do equilíbrio orçamentário nominal, que reserva cifras cavalares para o serviço da dívida, exaurindo os meios seja para aporte social, seja para investimentos.

A edificação e a manutenção de presídios em locais afastados, e mais ainda em relação aos de segurança máxima, exigem somas excepcionalmente elevadas e nem por isso eliminam fugas por túneis e transposição de muralhas, além do manejo de celulares para contato com o crime organizado externo e o ingresso de armas e drogas. Também o sistema de visitas íntimas estimula a libido, com vasto corolário de consequências indesejadas, como submissão ao homossexualismo perverso e deformação da ordem e disciplina internas, transformando o carcereiro em atendente de motel.

Por outro lado, os estabelecimentos prisionais situados em meio a centros urbanos, com ampla movimentação humana ao redor, alarido de crianças, vozerio de pessoas, visão de mulheres, rumor de veículos, enfim, plena liberdade reinante no entorno, produzem amargor, reação psicológica negativa e anseio insopitável por fugir. O presidiário com longa pena a cumprir, erotizado pelas visitas íntimas, adrenalinado pelo burburinho citadino, estará transformado em verdadeira máquina de fuga.

Diferentemente do que ocorre nos cenários descritos, o sentenciado com pena de média ou longa duração, ao entrar no estabelecimento prisional deverá preparar-se para o período da condenação, revendo anseios sociais, perspectivas de realização pessoal e objetivos econômicos, amoldando-se à ideia de vida singela, tosca, introvertida - pois essa é a realidade de qualquer presídio.

É a possibilidade de superação, ao menos parcial, dessas diversas questões que levam a lembrar a adoção de presídios e/ou penitenciarias em ilhas marítimas. O Serviço do Patrimônio da União possui rol completo de ilhas ao longo do litoral brasileiro, suficiente para determinar as mais adequadas para a finalidade em cada Estado. O manuseio de levantamentos aerofotogramétricos disponíveis facilita a escolha. Capitais privados poderiam interessar-se pelo novo nicho para investimentos.

Trata-se de sugestão sem originalidade. Ilhas-prisão existiram e existem em muitos países. Mesmo o Brasil já dispôs de exemplos. Mas com a adição provisória ou definitiva da modalidade ao sistema prisional estariam no curto prazo minimizados os problemas referidos, dispensando-se dispendiosas edificações e decorrente manutenção.

E, principalmente, porque não só a sociedade, mas também o presidiário serão beneficiários da alternativa. Assim, transplantado do cubículo da cela para o espaço da ilha e a imensidão do mar e do céu que a envolvem, próximo ao potencial construtivo da natureza, livre da promiscuidade e da baixaria dominantes na prisão tradicional, liberto da excitação e das aspirações inviáveis, aí, sim, poderá vicejar o que de bom ainda remanesça na alma e no coração do presidiário.

Evandro Mesquita é advogado e diretor da Fundação Ulysses Guimarães. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.05.18.

Ganhar ou perder

Por Fernando Gabeira

As pesquisas mostraram que há muitos candidatos à Presidência, mas ainda poucos votos. Conheço quase todos os candidatos pessoalmente, incluído Levy Fidelix, cuja campanha documentei em 2015, assim como outros considerados nanicos na época. Discutir suas qualidade e seus defeitos é um esforço válido, mas não é isso que farei em 2018. O que posso fazer apenas é ajudá-los a ganhar ou perder votos, lembrando grandes temas para a sociedade, nos quais nem sempre eles se fizeram presentes.

Poucos dos mais votados falaram, por exemplo, de duas questões muito discutidas no momento: a prisão em segunda instância e a revisão do foro privilegiado. É compreensível que mantenham uma certa distância. Abraçar esses temas e ampliá-los com uma perspectiva de combate à corrupção não é bem visto entre os políticos. Muitos candidatos são discretos nesse ponto porque não querem perder o apoio dos seus pares, muito menos arriscar-se a um confronto com o Congresso, em caso de vitória.

Como em todas as eleições, assumir uma linha política nem sempre representa apenas mais votos. É sempre um jogo de ganha e perde.

A própria esquerda será chamada a se definir, mas hoje, por uma questão de coerência, ela associa a prisão após segunda instância à presença de Lula na cadeia. E certamente terá de adotar a posição mais leniente, que prevê prisão após o trânsito em julgado.

É uma posição defensável, em nome da liberdade individual, sobretudo se omitir suas terríveis consequências, como a sobrevivência do sistema de impunidade, que tanto contribuiu para arruinar o País. Seria assim uma posição ultraliberal, defensável apenas num regime burguês, já que os regimes de esquerda não conhecem essa história de trânsito em julgado: muitos deles prendem sem contemplação, até inocentes.

Mas é importante prever um espaço para a esquerda, sobretudo para o candidato indicado por Lula. Mais da metade dos eleitores de Lula votariam nele.

Se existe um problema de ganha e perde votos, hoje, esse problema é o medo nas cidades brasileiras. Bolsonaro adiantou-se alguns meses, propondo armamento, defendendo a tese de que bom policial é o que mata, e mais alguns componentes que o aproximam de uma política de tolerância zero com o crime.

É isso mesmo, ou existe alguma alternativa? Nesse caso, não vale apenas dizer apenas que é preciso haver empregos, educação e tudo mais. É necessário mostrar que existem escolhas mais eficazes, apresentar uma política específica de segurança pública.

O crime organizado é uma realidade nacional. Ele domina as cadeias e todas as redes de tráfico de drogas no País. Numa cidade como o Rio de Janeiro, as milícias, por exemplo, controlam territórios onde moram 2 milhões de pessoas.

Tudo isso é um desafio para os candidatos. Eles têm de mergulhar no tema e dizer alguma coisa – ganhar ou perder votos, isso é do jogo.

Esse perde e ganha se transporta também para a base. Todos prometem crescimento econômico. Mas que tipo de crescimento? Vão entulhar as ruas de carros individuais? Lembrem-se de 2013.

Os candidatos hoje em dia são aconselhados a evitar alguns temas, escolher apenas o que as pesquisas recomendam. Mas quando alguns temas dominam a cena e os candidatos são protagonistas distantes, sempre vai haver pouco voto.

Mesmo sem esquecer que há um segundo turno, o ideal seria que os candidatos já expressassem grandes correntes. No passado, isso era canalizado pelos dois grandes partidos. Mas PT e PSDB vivem cada um o seu inferno com a Lava Jato.

O PT perdeu seu candidato e o PSDB, embora se afaste de Aécio, não conseguiu dar o passo fora do círculo. Geraldo Alckmin sentiu um alívio porque o inquérito sobre as doações da Odebrecht foi para a Justiça Eleitoral. Sua grande vitória: ter-se livrado da Lava Jato.

É um equivoco. Em primeiro lugar, porque fortalece o discurso de que a Justiça persegue uns e protege outros. Em segundo lugar, se é inocente e está tudo bem, nada melhor do que ser investigado pela Lava Jato, que acumula grande capacidade técnica, até para inocentar. Para um candidato à Presidência, fugir da Lava Jato não é bom esporte neste outono.

Numa corrida em que tudo pode acontecer, a sociedade, que já se desapontou com os grandes partidos, precisa de salvaguardas. Um delas é trazê-los para o debate dos temas que lhe interessam de fato. É sempre possível argumentar que os políticos têm uma linguagem escorregadia e, além disso, nunca cumprem exatamente o que prometem.

Mas não se pode pensar em eleições como se fossem as mesmas sempre. Ainda não é o ideal, mas nunca se teve tanta transparência, nunca se esteve tão atento aos caminhos da política.

Dizem que os 11 ministros do STF são tão conhecidos como a seleção nacional de futebol. Não tenho elementos para contestar ou validar. Sei apenas que muita gente se esforça para escalar aquela muralha de palavras difíceis, citações, para se aproximar do que realmente interessa: saber qual o placar do jogo, se há esperanças no combate à corrupção.

Ainda é muito cedo para prever, mas tudo indica que a indignação não é o único elemento. As pessoas sabem mais do que no passado. Sabem porque conheceram o declínio do sistema político-partidário e sabem porque se dotaram de meios técnicos superiores.

Não vai adiantar muito ficar meio escondido no debate, nem se proteger com um exército de robôs multiplicando fake news. Esta é uma eleição singular no Brasil, depois de tudo o que vivemos. A grande personagem é a sociedade que emergiu de todos esses traumas. Sua atuação é imprevisível. Conheceu a fragilidade humana dos seus líderes e, no mínimo, vai buscar os melhores mecanismos de controle.0

Levado a sério, um programa de governo é um deles.

* FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20 de abril.2018.

Lula atrás das grades

Por Mário Vargas Llosa

Que Lula, o ex-presidente do Brasil, tenha dado entrada em uma prisão em Curitiba cumprindo uma pena de doze anos de prisão por corrupção, e originado protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela ou da Nicarágua, era algo previsível. Mas é menos previsível que tantas pessoas honestas, socialistas, social-democratas e até mesmo os liberais tenham considerado que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que muito se preocupou em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, aparentemente, cerca de 30 milhões de brasileiros de extrema pobreza quando esteve no poder.

Aqueles que pensam assim estão convencidos, aparentemente, que ser um bom governante tem a ver apenas com a execução de políticas sociais avançadas, e isso o isenta de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi levado à cadeia pelas coisas boas que fez durante seu governo, mas pelas más, e entre estas figura, por exemplo, a corrupção espantosa da companhia estatal Petrobrás e de seus empreiteiros, que custou ao castigado povo brasileiro nada menos que três bilhões de dólares (dois bilhões deles em subornos).

Além disso, aqueles que têm Lula em tão alta consideração esquecem o papel feio de alguém “que corre de um canto para outro levando fofocas” que atuou como um emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes corruptos e ministros para que favorecessem essa transnacional com contratos multimilionários de obras públicas.

É por este motivo e outros casos que Lula tem não um, mas sete processos por corrupção em curso e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari ou José Dirceu, seu chefe de gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, golpes e outras operações criminosas. Entre as mais recentes acusações que recaem sobre ele, está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em uma praia do Guarujá (São Paulo).

Os protestos pela prisão de Lula não levam em conta que, desde a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava sufocar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários públicos e banqueiros, foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e há várias dezenas deles que o serão em futuro próximo.

Nunca na história da América Latina havia acontecido algo semelhante: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais, que, a partir de São Paulo, se espalhou pelo País, não contra uma empresa, um caudilho, mas contra a desonestidade, as más ações, os roubos, os subornos, toda a corrupção gigantesca que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a prática política, em todo o país. Um movimento popular cujo objetivo não era nem a revolução socialista nem derrubar um governo, mas sim a regeneração da democracia, para que as leis deixassem de ser letra morta e fossem verdadeiramente aplicadas a todos igualmente, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.

O extraordinário é que esse movimento plural tenha encontrado juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, deram-lhe um canal judicial, investigando, denunciando, mandando para a prisão uma série de executivos, empresários, industriais, parlamentares, funcionários, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é viável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no terceiro mundo, se houver vontade e apoio popular para fazê-lo. Sempre cito Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nestes últimos anos, temos visto no Brasil como seu exemplo foi seguido por inúmeros juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e liberdade que quase tinha sido perdida.

Existem muitas pessoas admiráveis no Brasil; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa ou minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de ação punível; e atletas e desportistas cujos nomes deram a volta pelo mundo. Mas se eu tivesse que escolher um deles como um modelo exemplar para o resto do planeta, não hesitaria um segundo para escolher Sérgio Moro, este modesto advogado natural do Paraná, que, após sua formatura, entrou na magistratura por concurso, em 1996. Segundo comentou, o que aconteceu na Itália na década de noventa, o famoso processo Operação Mãos Limpas, deu-lhe ideias e entusiasmo para combater a corrupção em seu país, usando instrumentos semelhantes aos dos juízes italianos de então, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada e a colaboração da imprensa dos meios de comunicação em troca da redução da sentença. Eles tentaram corrompê-lo, é claro, e é certamente um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos não são, infelizmente, excepcionais. Mas lá está ele, fazendo parte de uma verdadeira – embora ninguém a tenha chama disso – revolução silenciosa: o retorno à legalidade, ao império da lei, em uma sociedade na qual a corrupção generalizada a estava desintegrando impedindo de o “grande país do futuro” que sempre foi ao ser o grande país do presente.

A corrupção é o grande inimigo do progresso latino-americano. Faz estragos nos governos da direita ou da esquerda e um grande número de latino-americanos chegou a acreditar que é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não existe defesa: terremotos, tempestades, relâmpagos. Mas a verdade é que existe e de fato o Brasil está demonstrando que é possível combatê-lo, se há juízes e promotores arrojados e responsáveis, e, claro, uma opinião pública e os meios de comunicação que os apoiam.

Por isso, é bom, para a América Latina, que pessoas como Marcelo Odebrecht ou Lula da Silva tenham sido presos depois de terem sido processados, concedendo a eles todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a justiça é a mesma para todos, os pobres diabos que são a imensa maioria e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro ou suas posições. E são precisamente estes últimos que têm maior obrigação moral de obedecer a lei e para mostrar, em suas vidas diárias, que não são necessárias transgressões para preencher essas posições de prestígio e poder que eles têm alcançado, pois isso é possível dentro da legalidade. É a única maneira pela qual uma sociedade acredita em instituições, rejeita o apocalipse e as fantasias utópicas, sustenta a democracia e vive com o sentimento de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la mais a cada dia. /TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO.

Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, foi candidato a Presidente da República do seu País, o Perú, sendo vencido por Alberto Fujimori, professor universitário, candidato populista. E deu no que deu. Mário, completamente fora da politica partidária em seu País, escreve semanalmente para diversos jornais do mundo e, no Brasil, para O Estado de São Paulo, que publicou este artigo na edição de 16.04.18.

Pior para quem mais sofre

A profunda crise econômica que o lulopetismo legou ao País está sendo duplamente mais penosa para a faixa da população que vive em piores condições. O partido afastado do poder com o impeachment de sua presidente dizia que este era o segmento social para o qual se voltavam preferencialmente suas políticas ditas sociais, mas essa se tornou a parcela da sociedade mais prejudicada pelas aventuras e irresponsabilidades do PT. Na crise, as faixas de menor renda perderam proporcionalmente mais do que as demais e, enquanto outros segmentos da população passaram a sentir os efeitos dos primeiros sinais de retomada da economia, os que menos ganham continuaram a ficar mais pobres. No ano passado, embora o ritmo da atividade econômica tenha começado a se intensificar de maneira ainda tímida, o rendimento real de todas as fontes continuou a cair, mas caiu mais para quem ganha menos.

De acordo com o relatório Rendimento de Todas as Fontes 2017, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 124,6 milhões de pessoas que tinham algum rendimento em 2017 – salários e fontes como aposentadoria, pensões, programas sociais e aluguéis – recebiam em média R$ 2.112. Esse valor é 0,6% menor do que a renda mensal média de R$ 2.124 recebida em 2016.

A redução da renda média foi maior entre os que ganham menos. Os 43,4 milhões de trabalhadores que representam os 50% mais pobres da população com alguma forma de rendimento tiveram perda média de 2,46%. No ano passado, a renda dessa faixa da população era de R$ 754 (contra R$ 773 em 2016), quase 20% menos do que o salário mínimo.

Muito pior era a situação de 10,36 milhões de pessoas que, no ano passado, viviam com apenas R$ 40 por mês, em média. Também entre esses mais pobres a situação piorou no ano passado. Em 2016, a renda real média dos mais pobres era de R$ 49. O que já era pouco há dois anos encolheu 18% em 2017. Pode-se dizer que os pobres ficaram ainda mais pobres no ano passado.

A consequência estatisticamente óbvia da disparidade entre a variação da renda dos que ganham menos e dos que ganham mais foi o aumento da distância entre a base e o topo da pirâmide e o aumento da fatia da renda total obtida pelos mais ricos. No topo, cerca de 2 milhões de pessoas (1% da população) recebiam R$ 27.213 por mês, 36 vezes a renda média dos 50% mais pobres.

Curiosamente, o Índice de Gini, principal medida da desigualdade de renda, permaneceu inalterado entre 2016 e 2017. Mas isso se deveu à queda da renda dos estratos mais altos, não à recuperação proporcional da renda dos mais pobres.

Há uma aparente contradição entre a queda da renda e os sinais, ainda que tímidos, da recuperação do emprego detectados por pesquisas do próprio IBGE e de outros órgãos públicos, como o Ministério do Trabalho. Embora no ano passado o número de pessoas com alguma ocupação tenha aumentado, o aumento se deveu ao mercado informal, onde a renda é menor e as garantias sociais igualmente menores. “Tudo o que o mercado de trabalho gerou de ocupação em 2017 foi voltado para a informalidade”, observou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo. “Não houve aumento no trabalho com carteira assinada. Isso influencia muito fortemente o rendimento da população.”

A superação dos piores efeitos sociais e econômicos do fracasso das políticas do PT e de seus aliados levará tempo e dependerá da preservação das condições mínimas para o crescimento do País. Isso implica responsabilidade na gestão do dinheiro público, manutenção da inflação em níveis toleráveis, garantia de condições para o investimento produtivo que gera emprego e faz crescer a renda média, entre outros fatores. É de um governo que tenha compromissos como esses que depende a pavimentação da estrada para o crescimento econômico e para a redução da pobreza e das desigualdades sociais. O eleitor terá a oportunidade e a responsabilidade de elegê-lo em outubro.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.04.18

Carta aos sobreviventes

Por Paulo Delgado

Morremos incessantemente vendo alastrar a ousadia dos donos da circunstância nacional. O pouco tempo que nos separa do vazio final que podem vir a ser as eleições de outubro precisa ser preenchido por uma vida menos moribunda. Só a ressurreição dos silenciosos enterra os fantasmas que não querem desaparecer e insistem em assombrar.

Os veteranos que viveram esse modelo, e ficaram imunes a ele, deviam começar a se mexer, buscando a simbiose entre os velhos preservados e os novos promissores. Absorvam os ventos da mudança, transitem para a nova forma de fazer política. Rasguem as fotos, fotografia é esquecimento.

Não é preciso falar o nome dos personagens. São grilos falantes. É necessário um “não saber deles” para melhor lhes responder e opor ao seu desejo de nos impor seus costumes. Encontrar brechas na degradação, abrir nossas fissuras, a fenda que nos resta de liberdade e lucidez. Buscar a vibração esquecida do movimento que ilumina o reino de sombras que resiste à mudança. E impôs a servidão aos sentidos como se fôssemos tontos, cúmplices ou culpados.

Antes de renunciar à esperança desligue a conexão com tagarelas. Movimente você as manobras do movimento deles. Organize o pessimismo. Use sua experiência. A imitação produz semelhanças sociais. Despeça-se de quem tem acentuada tendência para falar de si mesmo. Faça seu corpo ficar aquém da sua idade, sua mente além do seu corpo e seu caráter coincidir com sua boa natureza. Hoje vê melhor quem vê mais fraco, ouve mais quem fala baixo. Evite os fluxos de vaidade que emanam da TV de juízes e da negatividade dos carros de som. Exibicionismo não é transparência, é devassidão. Bem viveu quem bem não viu.

Minorias intimidadoras criaram um estado de exceção fosforescente dentro de um circo de marionetes ofuscantes. Após dose enorme de regularidade, a tolerância a bobagens alcançou enorme prestígio e parece sem fim. Disso se observa a cuidadosa servidão da Justiça que, cheia de dedos, julga e aborda o homem paparicado, líder da classe dominante do capitalismo sem concorrência. Ao impor o método de detenção, exigindo prazo, culto e comício, é evidente o universo de privilégio que cerca o personagem. Incapaz de refletir sobre a solidão e o ócio de uma cela, desatento à fadiga do inconsciente, libera um amontoado de palavras ofensivas ao juiz, misturadas à comiseração por si mesmo. O êxtase fúnebre da alienação de um período improvisador mais se revela. Se a prisão é tão injusta assim, negociar com o opressor é de envergonhar Apolônio. Mas não, o objetivo é enfeitiçar a mídia, atrair devotos para impor desespero à decepção e, meu Deus, gravar um vídeo cuja síntese é: causa justa limpa dinheiro sujo. Não há história, nem penitência. Redimir para voltar a pecar? Aparência e coerência, senhores, são quase toda a conduta.

Aguente as tempestades. Aumente a qualidade da sua solidão. Fuja aos escombros do País abatido pela velha Justiça. Não caia na armadilha de ser parte do que repele. Observe o privilégio como desejo que devora. Tristeza sem desespero, alegria sem contentamento. Não chore, não solte foguete. Um caminho é procurar sua linha de vida, e não estacionar inviável diante dos condecorados. Nem tudo o que tem função tem sentido. E alguns, olhando assim de longe, estão mesmo é com a cabeça quebrada precisando de conserto. A história, de moral baixa, anda cheia de juristas e especialistas, fruto desses vazamentos no crânio, que foram aumentando, e acabou atacado por cardumes. Mas é sempre cada um que arruína a própria reputação, pois os cascos mais protegidos são os dos refratários à adulação. Desde Petrarca, há mais virtude em desdenhar da honra recebida do que ser merecedor dela.

A memória rígida da informática trouxe nova cultura, novo ciclo de verdade, uma moralidade do “fato”, que desmoraliza velozmente o curral político com seu emblemático domínio da versão. Há grandes inimigos do povo que não aceita vida de gado. Houve evolução: lembre-se dos atos secretos do Senado; da nomeação para a Casa Civil escancarada pelo celular; do erro do acusado de querer intimidar a Justiça e pretender ser absolvido sem se confessar; do circuito revelado da fortuna ilegal; dos que romperam o pacto, ajudando o País a ver o lodaçal.

A sociedade amanhece 6 a 5 mais otimista, mas continua ameaçada. Exéquias para quem pactua com o atraso. Não era melhor antes. Era um blefe.

É hora de alguém menos glutão que nos conceda hiatos de sensatez. Capaz de deter a insolência da facilidade e de empurrar quem decidir cair na vala comum que é errar sem se arrepender. Pense na sua experiência. Não jogue luz para fora do seu corpo se não for para iluminar o caminho de alguém. Não se deixe comer pela treva da ideologia de almanaque, o buraco da angústia que fez do Estado negócio de panelinha, uma certa esquerda ligada a certa direita. A arrogância exótica do governante e sua predileção pelo lado oportunista do capital, subtraindo energia da Nação. O que vai abrir espaço para outra formulação é fugir à esclerose em placa do gênio malicioso do fanático. Há outra política, outra economia, um melhor direito, fora da cabeça de heróis bebês e seus assuntos. O reino messiânico dessa gente subjuga o discernimento e o estilo opulento da política que praticam fez sucumbir o rosto da pessoa normal, levando o cidadão sem trejeito a desaparecer como um clandestino.

A alegria interrompida voltará em novos rostos. E jogará luz sobre o povo silencioso, ofuscando a glória dos que produziram a amargura. Um fardo, dar fim ao tempo desse gênero de líderes e autoridades latino-americanas em torno de quem o domínio público perde o poder de iluminar. Tempo que desorganizou a ordem dos afetos, separou famílias e nos roubou o entusiasmo e a admiração uns pelos outros, a única arte da política diante dos abismos do mundo.

PAULO DELGADO, SOCIÓLOGO, É CO-PRESIDENTE DO CONSELHO E ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO-SP. FOI DEPUTADO FEDERAL PELO PT-MG. ESTE ARTIGO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE SAO PAULO, EDIÇÃO DE 11.04.18.

Alguns são mais iguais que os outros?

Por Ives Gandra Martins

Ninguém discute o nível intelectual, o conhecimento jurídico ou a idoneidade dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. São, todos eles, autênticos juristas.

No entanto, o protagonismo individual que se manifesta em alguns casos e a invasão da competência de outros Poderes por parte dos ministros transformaram o debate -travado até 2003 no plenário, em nível elevado- em algo diferente, semelhante aos protagonizados pelos parlamentares nas casas legislativas com direito, inclusive, a ofensas pessoais e manifestação de preferências ideológicas.

Tal protagonismo em questões exclusivas de outros Poderes -o artigo 103, 2º, da Constituição não permite, nem nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Legislativo, que o pretório excelso legisle- colocou o Supremo em posição, no mínimo, vulnerável.

O ex-presidente Lula, por seus advogados pretéritos e atuais, ingressou com pedido de habeas corpus no STF para que o artigo 5º, inciso LVII, da lei suprema seja-lhe aplicado: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Dessa maneira, se infrutíferos os embargos de declaração contra a condenação imposta pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não seria recolhido ao cárcere, como foram todos aqueles outros políticos, burocratas e criminosos comuns desde que o STF entendeu que bastaria a condenação em segunda instância, antes de seu trânsito em julgado, para que o acusado fosse colocado atrás das grades.

Embora por contagem apertada, 6 a 5, a decisão prevalece por tempo considerável, inúteis tendo sido até o presente as tentativas de modificar tal inteligência da Suprema Corte.
Agora, seguidores do ex-presidente Lula defendem -embora não tivessem essa interpretação legal quando outros adversários políticos, como Eduardo Cunha, foram encarcerados- que apenas com o trânsito em julgado da decisão condenatória pode-se efetuar a prisão.

Na minha modesta opinião de velho advogado, a exegese correta do dispositivo é a seguinte: efetivamente, só com o trânsito em julgado de uma decisão condenatória alguém será considerado culpado.

O STF, porém, com apoio até cinematográfico do Ministério Público e o aplauso generalizado da sociedade, decidiu que a condenação por tribunal de segunda instância autoriza a decretação da prisão.

Pessoalmente, não interpreto a lei segundo minhas preferências, pois, apesar de considerar correto o encarceramento antes da sentença final, a Constituição não o permite, razão pela qual expus meu desconforto de professor provinciano com a decisão dos iluminados membros do pretório excelso.

A Suprema Corte terá agora que decidir mais uma vez a questão, visto que o eminente ministro Edson Fachin passou para o plenário a apreciação do habeas corpus.

Recentemente, o também ilustrado ministro Alexandre de Moraes incorporou-se à tese do encarceramento após decisão de segunda instância, e a competente presidente da corte, Cármen Lúcia -cujos estudos e escritos sempre admirei, embora com pequenas divergências-, declarou que, se a Suprema Corte tivesse que mudar sua orientação por se tratar do ex-presidente, estaria se "apequenando".

Está o país, portanto, na expectativa de saber se o pretório excelso confirma, e de forma definitiva, a decisão anterior, segundo a qual o ex-presidente deverá ser recolhido ao cárcere como o foram inúmeros outros políticos, burocratas e cidadãos, ou se muda a inteligência do caso, para gáudio de seus seguidores.

Nesta hipótese, passará para o povo não para mim a impressão de que a Suprema Corte assim decidiu por ser o ex-presidente quem é, abrindo, por outro lado, fantástica avenida para que os atuais encarcerados sejam também libertados.

No livro "A Revolução dos Bichos", George Orwell faz a paradigmática afirmação de que "todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros". Numa eventual mudança de jurisprudência, ficará no ar tal sensação?

Ives Gandra Martins, advogado, é Professor de Direito Constitucional na Universidade Mackenzie (SP). Este artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição de 20.02.18.

Que diacho de democracia é esta?

Por José Nêumanne

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso praticamente lançou uma campanha nacional pela anistia exclusiva de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, na convenção de seu partido, o PSDB, que fingiu, ao longo de 13 anos e meio, ser oposição e depois entrou, mas agora saiu, do governo-tampão de Michel Temer. “Prefiro combatê-lo na urna do que vê-lo na cadeia”, disse. Noves fora o erro de português na frase (do que no lugar de uma simples preposição a), a sentença é um habeas corpus preventivo que nem Gilmar Mendes concederia. O “presidenciável” do PT foi condenado a nove anos e meio de prisão na primeira instância, aguarda julgamento de recurso na segunda e as possibilidades de ele vir a ser inocentado são mínimas. O que autoriza o sociólogo a considerá-lo apto a ser votado, se a Lei da Ficha Limpa não o permitiria?

Bem, os destaques da reportagem que relatou esse disparate, assinada por Anne Warth, Daiene Cardoso, Felipe Frazão e Pedro Venceslau, publicada na página A4 deste jornal no domingo 10, a respeito da convenção da véspera, sábado 9, passam a impressão, talvez imprecisa, de que os tucanos têm uma razão forte para isso. “As urnas os condenarão (Lula e o PT) pelo desgoverno, pelo desmonte e pelas obras inacabadas”, disse o presidente nacional do PSDB, Geraldo Alckmin, governador de São Paulo e pule de dez na posição de disputante da sucessão presidencial pela legenda. Como Mané Garrincha perguntou ao técnico Feola no vestiário da partida contra a União Soviética na Copa da Suécia, os senhores combinaram com os russos?

Que nada! As ruas roucas de tanto gritar se calaram, mas qualquer pessoa que frequente um bar de periferia em qualquer metrópole brasileira sabe que nada disso resiste a um átimo de raciocínio racional. Primeiramente, para Lula se candidatar a Justiça terá de absolvê-lo, partindo do pressuposto de que o multirréu está certo: é perseguido pela Polícia Federal (PF), pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça. Ou seja, sem chance!

Last but not least – por último, mas não menos importante –, como diriam os súditos de Elizabeth II, o ninho do tucanato empavonado afunda na titica. O senador Aécio Neves (PSDB-MG) chegou tão perto de vencer a eleição contra Dilma e Temer que não faltam argumentos lógicos a quem acredita que a disputa foi fraudada. Desse fato emergiu a possibilidade de o neto do dr. Tancredo brilhar no cenário nacional como a voz do contra, aquele que poria fim aos desmandos e à roubalheira patrocinados pela aliança PT-PMDB na dúzia de anos anteriores. Mas qual o quê?! O sonho de consumo da sociedade indignada perdeu o cartaz ao ser identificado como “Mineirinho” no propinoduto da Odebrecht.

Flagrada com a boca na botija imunda, a esperança nacional reencarnada passou a ser vista como um réprobo, uma figura a respeito da qual nenhuma família decente comenta algo na ceia diante das crianças. Seus instintos assassinos revelados entre palavras de baixíssimo calão lhe reservaram um lugar no fundo do lixo da História, ao lado dos notórios Eduardo Cunha e Sérgio Cabral. E o partido afundou junto no lamaçal da vergonha alheia. Sua passagem pelo ato em que Fernando Henrique e Alckmin falaram foi sintetizado no olho da reportagem do Estado a esse respeito: “Investigado na Lava Jato, senador mineiro não foi anunciado em convenção, não fez discurso e foi vaiado”.

Essas duas evidências, se não eliminam, no mínimo dificultam esse paraíso na Terra dos tucanos emplumados no qual o multirréu será perdoado e ungido candidato só para perder para Alckmin. Baseados em quê? “Eu ganhei de Lula duas vezes”, contou Fernando Henrique. É verdade. E daí? Por enquanto, o PSDB perdeu até o respeito pela própria História, ao aceitar cargos do presidente que os derrotou nas urnas e não fechar questão em prol da reforma da Previdência – não por ele, mas por nós.

Há, entretanto, algo ainda mais sórdido e grave na escolha de Lula como rival preferencial pelos tucanos nas eleições gerais do ano que vem: é a suprema soberba que os maiorais do partido assumem de que eles se acham acima do bem, do mal e da Constituição. Que autoridade tem o PSDB para abolir o Estado de Direito, no qual o império deve ser da lei (e não dos parlapatões da política), para atropelar uma norma legal de iniciativa popular e firmar um alvará de soltura para um condenado contra o qual foram apresentadas carradas de denúncias, delações e provas? A Veja da semana traz uma foto de Lula com o ex-ditador líbio Muamar Kadafi ilustrando a notícia de que, em sua proposta de delação, o ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de madame Rousseff promete contar que o PT recebeu US$ 1 milhão para a campanha do então candidato e presidente, em 2002. Agora já não se trata apenas de corrupção pesada, mas de grave crime de traição à Pátria. Ao qual os tucanos se acumpliciam.

Enquanto Lula “voltava à cena do crime” (no dizer de Alckmin) no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e cometia o desatino de inculpar policiais federais, procuradores e o juiz Sergio Moro pela roubalheira na Petrobrás, cometida em seus dois mandatos e em mais um e meio de sua afilhada, os tucanos ofereciam seu pescoço ao eleitorado. Isso lembra o conselho de Antônio Carlos Magalhães, que os tucanos adotaram como deles, de não votarem o impeachment do “sapo barbudo” (apud Brizola) para “sangrarem o porco” na eleição de 2006. Resultado: Lula esmagou Alckmin em 2006 e Dilma repetiu o feito sobre Serra em 2010 e Aécio em 2014. Como disse Talleyrand sobre os Bourbons, os sabichões “não aprenderam nada e não esqueceram nada”.

Será que eles acham que, se anistiarem seu adversário preferido, também serão eles perdoados? OK, está tudo muito bom, está tudo muito bem, eles venceram, batatas fritas... Mas, nesse caso, que diacho de democracia é a esta, hein?

José Nêumanne é Jornalista, poeta e escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 13.11.17.

Senso Incomum: Judiciário quer nomear Ministros. Sugiro para a Saúde um não fumante

Por Lênio Luiz Streck

A coluna também poderia ter o seguinte título: Alguém que trai a esposa(o) pode ser ministro(a)?

Esta coluna não está preocupada com o destino nem do Ministério do Trabalho e nem da quase-ministra deputada Cristiane Brasil. O que quero discutir é o aspecto simbólico da interferência do Judiciário em assuntos que não são de sua alçada. Uma das grandes vantagens (talvez a única) de criticar o ativismo judicial e as arbitrariedades do Poder Judiciário no Brasil, como venho fazendo desde o século passado, é que nunca tive problema de “falta de material”. Todo santo dia aparece alguma decisão arbitrária e, mesmo que já tenha visto quase de tudo nessa vida, não paro de ser surpreendido. No meu ofício acadêmico, penso que jamais sofrerei de tédio.

Dessa vez, o juiz da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ) resolveu suspender a nomeação da deputada Cristiane Brasil ao cargo de ministra de Estado do Trabalho, pelo fato de que essa nomeação afrontaria a moralidade pública, já que a deputada teria sido condenada em duas reclamatórias trabalhistas.

Pois bem. Dentre as 27 atribuições do presidente da República previstas na Constituição do Brasil, a primeira delas deixa claro que é de sua competência privativa nomear e exonerar ministro de Estado (artigo 84, I da CF/88). O argumento de que a deputada seria imoral para ocupar o cargo, pelo fato de que já foi condenada por duas reclamatórias trabalhistas, é redondamente frágil.

“Mas professor, o senhor quer dizer que a (Não-quase-ou-de-novo) ministra tem moral para o cargo? O senhor gosta dela?”. Não, não quero dizer isso. Nem quero dizer o contrário. Isto porque sou jurista, não sou comentarista político, e é por isso que não interessa o que eu acho, o que eu penso nesse sentido, assim como não interessa o que pensa o juiz. Juiz tem responsabilidade política e é subjacente a essa responsabilidade a tarefa de decidir, não de escolher.

É por isso, pois, que a decisão é frágil. Nem estou dizendo que a argumentação moral, a argumentação política e a retórica são frágeis. Não importa. A argumentação jurídica — essa, sim, a que importa de verdade — é frágil justamente porque se afasta da racionalidade própria do Direito. Quando a nomeação de Lula foi barrada, protestei; quando a nomeação de Moreira Franco foi barrada, protestei do mesmo modo. Por isso, protesto, aqui, mais uma vez contra o ativismo.

Legitimar uma decisão ativista porque concordamos com a racionalidade moral ali pressuposta nada mais é do que legitimar que o Direito possa ser filtrado pela moral. E se aceitarmos que o Direito seja filtrado pela moral, e peço desculpas por fazer as perguntas difíceis, indago: quem vai filtrar a moral? É esse o ponto. Alguém tem de ser o chato da história. Não podemos aceitar o ativismo que agrada. Isso é consequencialismo puro, e devemos rejeitá-lo por uma questão de princípio. Do mesmo modo um réu não pode ser condenado porque o juiz não gosta dele. E nem o réu deve ficar preso porque o juiz fundamenta no clamor social, como se houve um aparelho chamado clamorômetro. Ou como as pessoas que queriam fazer interpretação extensiva ou analogia in malam partem no caso do ejaculador (ver aqui).

Agora dito isso, tomemos emprestado o pessimismo de Kelsen por um momento e aceitemos, para fins de argumentação, que o Direito é assim mesmo e que juiz faz ato de vontade. Se a decisão for mantida (no segundo grau já foi), e o precedente tornar-se obrigatório (quanta gente adora esse stare-decisis-que-não-é-stare-decisis no Brasil, né?), gostaria de sugerir ao presidente, doravante, algumas observações na nomeação dos seus ministros. Dizem que conselho, se fosse bom, não seria de graça. De qualquer forma, lá vão eles:

Penso que se o ministro da saúde fumar, deve ser descartado. Um bom ministro da Saúde deve praticar jogging diariamente. Deve comer salada e assistir o programa Bem Estar na Globo todo dia. O ministro da saúde também não deve ter halitose. E não pode ser gordo. Heráclito Fortes seria vetado.

O ministro da Defesa precisa saber lutar judô. Ou boxe. Se for algum lutador de MMA, melhor ainda. Deve ser feita, ainda, uma pesquisa da vida do ministro, para apurar se foi alvo de bullying na escola. Se sim, deve ser descartado, afinal, que ministro da defesa é esse que sequer conseguiu se defender? É preferível nomear o valentão que fez o bullying.

O ministro das Cidades não pode ser alguém que morou no interior; e o ministro da Agricultura não pode ser alguém que morou na cidade. O ministro da Educação deve sempre dizer “bom dia”, “por favor” e “obrigado”. Se houver qualquer registro de que ele não o fez, é imoral para o cargo. O Ministério da Cultura.... bem, esse eu acho que vai ter que acabar mesmo. Sem chance de resolver esse problema. É que ele deveria saber tudo sobre Machado de Assis, Shakespeare, mas parece crime impossível.

Falando sério agora. Seríssimo: desculpem a ironia, desculpem as perguntas chatas, desculpem a insistência em coisas que, para alguns, já estão ultrapassadas, como força normativa da Constituição, legislação, enfim. Mas isso precisa ser dito. Afinal, se o juiz escolhe como quer, não há critérios, e não mais poderemos exigir o cumprimento da lei. E aí não adianta reclamar do ativismo só quando ele incomoda. (Talvez não tenha ficado claro, mas eu não subscrevo a essas teses que alguns têm levantado, inclusive em livros, de que o ativismo é bom.)

Numa palavra final: se a racionalidade jurídica for substituída pela racionalidade moral, não servimos para nada. Fechemos as faculdades de Direito e matriculemo-nos todos em faculdades de filosofia moral.

Ainda: se a decisão for mantida, teremos que, por coerência e integridade (artigo 926 do CPC) perscrutar/sindicar todos os cargos de livre nomeação. Por exemplo, o presidente do TCU quer nomear João Antônio das Neves para seu chefe de gabinete... só que ele foi multado em duas blitzes ou não pagou o carnê das lojas Renner. Pode ser nomeado? Isso é pior ou menos ruim do que ter duas reclamatórias trabalhistas? O prefeito de Pedregulho das Almas quer nomear Sofrício Ataualpa para uma secretaria..., mas ele não pagou o caderninho da venda ou foi visto saindo de um lugar suspeito de mulheres de vida difícil na periferia. Cabe ação popular? Vai liminar aí?

Eis aí, de novo, a diferença entre Direito e moral. Entre a racionalidade jurídica e os argumentos morais. Ou a moralização do Direito. Não se pode olhar a política como ruim a priori.[1] Se o presidente erra na nomeação de um ministro, o ônus é dele. É o ônus da política. Se não fosse “por nada”, não há previsão constitucional que autoriza o judiciário barrar esse tipo de ato administrativo sob argumentos subjetivos.

[1] Nesse sentido, a excelente análise de Eloisa Machado de Almeida, Folha de S.Paulo de 10.1.2018: “Suspensão de posse de ministra não deveria ser questão jurídica”.

Lênio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório SDtreck e Trindade Advogados Associados. (www.streckadvogados.com.br).

Este artigo foi publicado originalmente no Consultor Juridico, edição de 11.01.18.

O Sindicalismo como profissão

A anunciada greve dos funcionários da Central Única dos Trabalhadores (CUT) diz muito sobre a entidade e os seus reais propósitos. Na terça-feira da semana passada, a direção da central sindical iniciou um Plano de Demissão Incentivada (PDI) que visa à redução de 60% de sua folha de pagamento, hoje composta por quase 180 funcionários.

O objetivo do ajuste orçamentário está definido, a questão é como chegar a ele. Caso a adesão ao PDI seja menor do que a esperada, a CUT começará a demitir até que a massa salarial da entidade chegue ao patamar pretendido. É contra estas demissões que os funcionários da central ameaçam cruzar os braços, seja lá o que estejam fazendo hoje.

De início, é possível afirmar que uma organização que prevê o corte de mais da metade da sua força de trabalho e ainda assim seja capaz de “manter as suas atividades regularmente”, como disse o presidente da CUT, Vagner Freitas, já operava, é evidente, com um corpo funcional inchado. E não é difícil imaginar por quê.

Fundada em agosto de 1983, em São Bernardo do Campo, a CUT sempre se notabilizou por sua atuação acessória à agenda política do PT, fundado três anos antes, do qual mais parece ser um braço operacional do que uma central sindical sinceramente comprometida com a defesa dos interesses dos trabalhadores que deveria representar.

O descompromisso com uma gestão financeira austera, que levou, entre outras coisas, ao superdimensionado quadro de funcionários que a direção da CUT agora pretende reduzir, floresceu em um ambiente de dinheiro farto que por décadas abasteceu a entidade por meio do imposto sindical.

É precisamente o fim do imposto sindical – um dos grandes avanços trazidos pela Lei n.º 13.467, que instituiu as alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e está em vigor desde o dia 11 deste mês – que está na raiz desse “choque de gestão” que a direção nacional da CUT pretende adotar e que pode levar à greve de seus próprios funcionários.

Desde a ditadura varguista, funcionou no País uma verdadeira “indústria sindical” que só pôde operar por tanto tempo graças ao derrame de dinheiro público que, por décadas, abasteceu as contas de organizações sindicais que tinham na defesa dos trabalhadores apenas o subterfúgio perfeito para receber mais dinheiro e assim alimentar suas próprias engrenagens de poder, influência e enriquecimento ilícito de seus próceres.

De acordo com os dados do Ministério do Trabalho, os sindicatos, federações e confederações de classe, tanto as que representam os trabalhadores como as patronais, receberam R$ 3,5 bilhões a título de “contribuição” sindical em 2016. O mais grave é que a aplicação desse expressivo volume de recursos foi pouquíssimo fiscalizada, o que conferia àquelas entidades uma liberdade quase ilimitada na gestão da fortuna que era retirada a contragosto de milhões de trabalhadores.

O benfazejo fim do imposto sindical, que destinava às entidades de classe o valor correspondente a um dia de trabalho de todos os empregados com carteira assinada, sindicalizados ou não, representa também o fim de um modelo de sindicalismo voltado para dentro, como se a atividade sindical fosse um fim em si mesmo, e não um meio para chegar a um estado de desenvolvimento econômico em que os trabalhadores possam ter garantidas condições dignas de trabalho e remuneração.

Uma greve de funcionários da CUT é o exemplo perfeito de um sindicalismo exercido como profissão, e não como um democrático instrumento de negociação entre partes que são desiguais na origem, mas que por meio de legítimos instrumentos de pressão, de lado a lado, podem chegar a acordos benéficos a todos.

Com um quadro de funcionários mais enxuto e um orçamento mais austero, a CUT, ou qualquer outra central, deveria dedicar-se à conquista de apoiadores dispostos a custear seu funcionamento pelos resultados que apresenta, não pela força de uma lei que, em boa hora, não vigora mais.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 28.11.17

A nação judicializada

Por Luiz Roberto Nascimento e Silva

Vivemos numa nação judicializada. O grande Miguel Reale dizia que o fórum era um imenso hospital, ou seja o que iria para ele era patologia da sociedade. Se inquilino e proprietário se acertam sobre o reajuste do aluguel, não haverá processo. Se dois sócios que decidem se separar chegam a um acordo, não há demanda.

No Brasil de hoje tudo é motivo de demanda. Todo mundo recorre de tudo. A expressão “vou recorrer” é uma interjeição, quase uma vírgula. Como somos originais em tudo, temos quatro graus de jurisdição, quando o normal na maioria dos países são dois, no máximo três.

O due process of law deriva do direito anglo-saxão fixado na Magna Carta de 1215, através da qual os barões impuseram limites ao rei João Sem Terra, impedindo que pudessem ser processados ou perdessem seus bens sem o devido processo legal. Percebeu-se depois que a decisão individual de um juiz poderia estar errada, consolidando injustiça. Assim, seria necessário que uma instância acima, o Tribunal, pudesse mantê-la ou modificá-la. Surgiu o duplo grau de jurisdição ou o direito de recorrer, que exercermos com tanta volúpia.

Na nossa sistemática atual os processos se eternizam, causando insegurança e desconforto entre os cidadãos. Uma sociedade mais justa não é apenas aquela que gera crescimento e riqueza, assegura o emprego e distribui a renda, mas também a que permite que a Justiça possa harmonizar seus conflitos num tempo razoável.

O direito é resultado de uma longa luta da humanidade. Na Antiguidade, o credor de uma dívida não paga podia matar alguém da família do devedor como compensação. Na Idade Média, o testemunho de um nobre valia mais do que o de sete servos. No século XVI na Europa, os suplícios penais eram tão cruéis que quando a guilhotina começou a ser usada em 1792 foi considerada um método de execução mais humano por gerar uma morte mais instantânea...

No campo tributário, os processos que se arrastam não por anos, mas por décadas. O Estado em seu sentido amplo — União, estados e municípios — recorre até de decisões pacificadas que deveria respeitar. Depois empurra os pagamentos através de precatórios que atravessam gerações de contribuintes. Quando as decisões são contrárias ao Fisco com a modulação de seus efeitos em geral ex nunc (só geram direitos para o futuro), elas acabam só devolvendo o que foi cobrado errado para frente, passando um apagador no passado.

No campo trabalhista, a ausência de cobrança de sucumbência gera uma total irresponsabilidade com os fatos. Como não há efeitos patrimoniais no caso de perda do processo, a regra é alegar tudo; depois o que sobrar é ganho. A recente reforma trabalhista já está sendo atacada por parte dos juízes. A coisa chegou a um tal ponto que o Tribunal Superior do Trabalho adotará o “princípio da transcendência” para reduzir o número de recursos. Ganha uma bolsa de estudos da Madame Natasha quem conseguir traduzir ou explicar ao cidadão comum o que seja isso.

Temos dois sistemas jurídicos no mundo ocidental. O romano-germânico ou Civil Law, cuja característica central seria a lógica e o bom senso fixadas em leis escritas. É o mais disseminado no mundo, e o nosso deriva dele. O outro, da Common Law, que se formou na Inglaterra, migrou para os Estados Unidos e Canadá, e cuja alma seria a experiência fixada nas decisões dos tribunais. No nosso atual não temos as virtudes de nenhum. As decisões não são mais tão consistentes, e nossa jurisprudência não tem força de precedente, valendo tanto quanto um jornal da véspera.

O Supremo Tribunal Federal deveria voltar a ser uma corte constitucional. Não deveria ter de julgar se solta ou prende um goleiro condenado porque o tribunal de origem não apreciou seu caso de forma definitiva. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha costuma decidir suas questões em menos de um ano. Tem a vantagem que sua sede não fica intencionalmente na capital e suas decisões são públicas, mas as sessões, não. A mistura de Brasília com televisão ao vivo tendo sido mortal para o bom senso.

Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo/RJ, edição de 20.11.17.

Aprendizado para a lava jato

Ainda que haja muitas diferenças, tanto na legislação como na cultura de cada país, a trajetória da Mani Pulite (Mãos Limpas) – a famosa operação italiana anticorrupção que, de 1992 a 2005, investigou cerca de 4 mil pessoas, com mais de uma centena de parlamentares, ministros, juízes e altos executivos de empresas – tem muito a ensinar para o bom encaminhamento da Lava Jato no Brasil, reconheceram unanimemente os quatro palestrantes do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato, promovido ontem pelo Estado em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP).

Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo, juiz e promotor à época da Operação Mãos Limpas, lembraram que o combate à corrupção vai muito além da questão jurídica, envolvendo a cultura e a educação de um país. Nesse sentido, os dois disseram que é preciso ter cuidado ao avaliar os resultados de uma operação que investiga casos de corrupção. Além de ser irreal a ideia de que a operação acabará com a corrupção, essa expectativa é contraproducente, pois pode levar à postergação de seu término, motivando exageros e causando um perigoso desgaste perante a opinião pública.

Piercamillo Davigo, que atualmente é juiz da Corte Suprema de Cassação, comentou a importância, no caso da Mãos Limpas, da colaboração de muitos investigados, o que proporcionou à Justiça informações muito úteis para a investigação de vários crimes. Ressaltou, no entanto, que algumas pessoas falaram apenas parte do que sabiam, como simples forma de se safarem, e depois tiveram “carreiras políticas espetaculares. Esse é um aviso que faço porque pode ocorrer aqui o mesmo fenômeno”, disse Davigo. Ou seja, não cabem ingenuidades a respeito das delações premiadas.

Também participaram do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, e o juiz Sérgio Moro, da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Suas intervenções explicitaram duas maneiras bem diferentes de enxergar a Lava Jato.

Deltan Dallagnol vê na Lava Jato muito mais do que uma simples operação investigativa e judicial. Para ele, a Lava Jato deve ser instrumento de transformação do sistema político. Considera, por exemplo, que diante de corrupção tão generalizada, o Ministério Público estaria autorizado a atuar no debate político. Ao comentar a experiência com o projeto das Dez Medidas Anticorrupção, Dallagnol disse que “a estratégia agora não é mais coletar assinaturas, mas escolher senadores e deputados que tenham passado limpo, espírito democrático, e apoiem o combate à corrupção”. Insatisfeito com as limitações institucionais do cargo que ocupa, o procurador almeja a eficácia política. Parece não se dar conta de que, atuando assim, reproduz os erros, e não os acertos da Mãos Limpas, com sua pretensão messiânica de redimir a política.

Já a fala do juiz Sérgio Moro teve um tom completamente diferente. Sem se negar a ver as limitações do trabalho da Justiça – “toda justiça humana é imperfeita”, reconheceu –, Moro reafirmou que a eficácia da função judicial está justamente em respeitar os limites da lei. Defendeu, por exemplo, o uso em alguns casos da prisão preventiva, mas admitiu que se trata de um tema polêmico. “Sei que existem críticas, e nós temos que ouvir essas críticas”, disse Moro. Ao lembrar que não é o dono da verdade, falou da necessidade de o juiz proferir decisões fundamentadas. Muitas vezes, são possíveis várias interpretações da mesma lei, mas nem por isso a lei deve deixar de ser o critério. O respeito à lei é a garantia de que o combate à corrupção não é arbítrio, mas manifestação do Estado Democrático de Direito.

Sobre a Mãos Limpas, “acho que é uma história de sucesso”, disse Moro. “Mas talvez se tenha esperado mais de uma operação judicial do que ela pode fazer.” Com esse reconhecimento da natureza e dos limites da esfera judicial, Sérgio Moro reiterou, uma vez mais, não ter vocação messiânica. É um juiz, e a redenção da política está fora da sua competência. “O que me cabe”, disse, “é julgar os casos concretos, a partir das provas produzidas nos autos.” Essa profunda consciência de sua tarefa, respeitando os limites do cargo, foi o que permitiu à Lava Jato produzir bons frutos. Afinal, à Justiça não cabe guiar, e menos ainda substituir, a população na esfera política.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.10.17

Imprensa livre, mas sociedade respeitada

Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Numa sociedade em que imperam as franquias democráticas, sob o manto do ordenamento jurídico, dentre as quais a liberdade de expressão e a de informação, impõe-se, para que sejam legitimamente exercidas, um contraponto, representado pelos limites ditados pelos direitos e pelas garantias de outrem. Sem o respeito a outros valores, igualmente protegidos pela nossa Carta Máxima e pertencentes a todos os cidadãos, as liberdades referidas passam a carecer de legitimidade e legalidade e se transformam em licenciosidade, em flagrante abuso de direito, em violação de toda uma gama de relevantes bens morais, que se situam num mesmo patamar de importância e de relevo.

A transposição desses limites cria conflitos de interesses, que, por sua vez, têm o condão de pôr em risco a segurança jurídica e, por consequência, paz e a harmonia em sociedade. Excessivos conflitos, em face do desregramento no relacionamento interpessoal, entre instituições ou organizações privadas, ou ainda no âmbito de várias atividades laborativas, causam um perigoso estado de anomia social.

Em regra, os conflitos coletivos ou individuais se dão exatamente pela ultrapassagem dos limites que cercam o exercício de direitos, com a consequente invasão do território onde se situam direitos alheios. Está demonstrado que os mecanismos legais para coibir os excessos na efetivação e concretização de direitos se têm mostrado insuficientes, mesmo em face do direito sancionatório.

Claro que na raiz dos conflitos se situa uma dose significativa de egoísmo, do querer absoluto, sem atenção ao querer alheio. As questões pertinentes a uma postura voltada para si, com desprezo por outrem, se situam no campo da moral, da ética e, pois, da educação. E o egocentrismo não é só individual, pois grupos e instituições não raras vezes disputam entre si espaços de atuação, sem considerarem os limites legais de sua atuação.

Mas ao lado desse aspecto, podemos dizer, de caráter subjetivo, há um fator de conflitos por desrespeito ao bem alheio, provocado pela sedimentação de uma cultura de aceitação e de complacência por parte da própria sociedade. O desregramento anômico cria fendas na estrutura da sociedade, por onde se esvaem garantias, direitos, honra, dignidade e liberdade.

Os conflitos gerados pelos desrespeitos aos direitos alheios, portanto, provêm da conduta individual, do comportamento de uma coletividade e da omissão e aceitação por parte dos segmentos atingidos.

O exercício de certas atividades pode ser destacado como forma individual e coletiva de invasão na esfera dos direitos de terceiros. Cada exercente da respectiva atividade não respeita limites, o conjunto dos exercentes também os desrespeita e a coletividade aceita os excessos.

Um exemplo eloquente de exercício de atividade legítima, mas que extrapola limites e comete violações, é o referente à imprensa.
Deve ficar claro que a imprensa chamada investigativa tem possibilitado inestimáveis benefícios à sociedade brasileira, pois tem revelado fatos e situações de alta nocividade, até mesmo substituindo as autoridades originariamente competentes para exercer investigações. Ademais, outra atividade desenvolvida pela imprensa, que é o jornalismo crítico, igualmente gozando de plena liberdade, instrui e colabora para a evolução intelectual dos leitores e ouvintes, pois faz pensar.

Ao contrário das duas espécies anteriores, a chamada imprensa informativa, essa, sim, tem abusado da liberdade que lhe é assegurada pela Constituição da República.

Em primeiro lugar, deve ser realçado – isso é o óbvio, mas foi esquecido – que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto que paira sobre todos os demais e pode ser exercido de forma ilimitada, sem observância de normas éticas e, especialmente, sem ceder à eventual violação de outro direito. Neste ponto me refiro especialmente aos direitos individuais, ligados à personalidade, à dignidade e à imagem de terceiros.

Por outro lado, esqueceu-se também que o direito de informar existe como instrumento de outro direito que não lhe pertence, qual seja o direito da sociedade de ser informada. O direito é dela, sociedade, e a imprensa o exerce em seu nome.

Aliás, e como terceira observação, a sociedade quer ser informada da verdade e só da verdade. Esse aspecto cria dois deveres impostergáveis para a imprensa: o dever de imparcialidade e o dever para com a verdade. Sem o cumprimento dessas duas obrigações a liberdade de imprensa perde sua legitimidade e legalidade.

Quando a imprensa divulga fatos não consentâneos com a realidade ou, demonstrando parcialidade, informa de maneira seletiva , desvia-se de sua missão precípua de informar a verdade. E muitas vezes assim age por motivos sectários e facciosos.

A motivação para a divulgação de inverdades pouco importa. Importa, sim, realçar os malefícios causados a alguém atingido pelo falso noticiado, à sociedade erroneamente informada e também à própria imprensa, que passa a ser alvo de descrédito e de desrespeito.

A nocividade de uma mídia que informa sem apurar o fato noticiado – portanto, informa de forma leviana e desabrida, sem nenhum respeito aos direitos individuais, aos direitos da sociedade de ser bem informada e à sua vinculação com a verdade – parece acentuar-se quando se trata da mídia televisada.

A imagem fixa mais do que a palavra escrita. Ela atinge os sentimentos sem passar pelo crivo da razão, o que provoca uma ausência de crítica a quem a assiste. Parece que o chamado homem midiático perdeu o senso crítico. Tornou-se refém da imagem, que o manipula sem nenhum esforço.

Em resumo, a mídia informativa em geral e a televisada em especial deveriam repensar-se e ter presente que transmitir a informação de forma açodada, em nome do furo jornalístico, sem indagar a verdade, é subtrair da atividade jornalística o seu substrato ético e retirar da liberdade de imprensa a sua legitimidade e a sua legalidade.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal. Este artigo foi publicado originariamente em O Estado de S. Paulo, edição de 08.11.17.

O partido da lava jato

Aos poucos, a Lava Jato, que caminha para seu quarto ano, vai deixando de ser uma operação contra um esquema de corrupção em estatais e organismos de governo para se transformar em partido político. Essa metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em “saneamento” da política como seu principal objetivo. Ou seja, ao se atribuírem uma tarefa que claramente extrapola o escopo de seu trabalho, imiscuindo-se em seara que, numa democracia, é exclusiva dos eleitores e de seus representantes no Legislativo, esses procuradores acabaram por se comportar como militantes de um partido – e, como tal, passaram a tratar todos os críticos de sua “plataforma” como adversários políticos.

Em recente entrevista ao Estado, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, deixou clara, de vez, essa disposição. Segundo Dallagnol, a Lava Jato não revelou apenas a corrupção de um político ou de um grupo, “mas de grande parte da classe política”. Por essa razão, “o objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei”. Mas, segundo o procurador, “há um problema: elas fazem as leis”. Ou seja, a julgar pelo que diz o coordenador da Lava Jato, a operação só será considerada bem-sucedida se varrer do Congresso “grande parte da classe política”, gente que, em sua visão, faz leis exclusivamente para se proteger da Justiça.

Para atingir esse objetivo, prossegue o procurador Dallagnol, não basta simplesmente levar aos tribunais os políticos que a Lava Jato considera corruptos, pois “apenas punições não resolvem”. É preciso, segundo ele, “avançar para reformas anticorrupção no sistema político, no sistema de Justiça e em outras áreas”, razão pela qual a Lava Jato, a título de se proteger dos atuais políticos, que seriam seus inimigos, considera essencial eleger representantes “que tenham um compromisso claro com a causa anticorrupção”.

O nome disso é política partidária. Em lugar de se preocupar com a obtenção de provas para sustentar as muitas acusações feitas contra políticos, alguns integrantes da Lava Jato parecem mais empenhados em construir a imagem de que a operação veio para salvar o Brasil e que ela se transformou em “patrimônio nacional”, conforme as palavras do procurador Dallagnol. Tornou-se assim, segundo essa visão, não apenas inatacável, mas também única intérprete autorizada dos anseios nacionais.

O problema é que a sociedade dificilmente concordará com isso. “É impossível prever o que acontecerá porque depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro”, reconhece Dallagnol, admitindo que os eleitores eventualmente podem discordar da “plataforma política” da Lava Jato. Se os parlamentares eleitos pelo voto direto – legítimos representantes dos cidadãos – decidirem que algumas das leis e reformas propostas pelo partido da Lava Jato não servem para o País, isso não significa uma vitória da corrupção nem uma derrota da operação, e sim uma rejeição ao que poderia ser desde uma ideia qualquer até uma agressão ao Estado de Direito. Foi o que aconteceu quando o Congresso se recusou a aprovar o pacote de medidas anticorrupção proposto pelos procuradores da Lava Jato e que incluíam barbaridades como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e fim dos prazos de prescrição.

A Lava Jato alcançou grande sucesso – e mudou a percepção de que tudo o que envolve gente poderosa acaba em pizza – quando se limitou a investigar a trama de relações promíscuas instalada na máquina do Estado desde que o PT chegou ao poder. De forma inteligente e sofisticada, a operação mostrou do que é capaz uma ação bem coordenada entre Polícia Federal e Ministério Público, obtendo evidências suficientes para condenar gente muito graúda a vários anos de prisão e o ressarcimento de bilhões de reais aos cofres públicos.

Limitando-se a punir quem deve ser punido, a Lava Jato presta inestimável serviço ao País. Quando se comportam como candidatos em campanha, seus integrantes se arriscam a perder credibilidade.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.10.17

Um país "justicialesco"

Por Ives Gandra da Silva Martins

À evidência, todos os brasileiros corretos –e são a maioria—são contra a corrupção. A expressão popular “corrupção” envolve variada gama de crimes, entre os quais concussão, prevaricação, a corrupção propriamente dita, etc. E, na luta para extirpá-la, crimes são praticados pelo Poder Público de desconhecimento do público, como o vazamento de informações por quem deveria guardar sigilo, crime punido pelo Código Penal, artigo 325.

Por outro lado, o Ministério Público não é um Poder, mas função essencial à administração da justiça, no mesmo nível da advocacia (artigos 127 a 135 da CF), razão pela qual, a meu ver, POR NÃO SER POLÍCIA JUDICIÁRIA, não poderiam, seus membros, presidir inquéritos policiais, nos termos do artigo 144 § 4º da CF, que torna exclusiva tal função a delegados de carreira.

Acresce-se que boas notícias não vendem jornais. Mark Twain dizia ser função da imprensa separar o joio do trigo e publicar o joio, de tal maneira que, na situação verificada nos últimos 13 anos, de assalto às contas públicas, a imprensa passou a ser a verdadeira orientadora da opinião pública, tornando a sociedade brasileira ávida de punições. Neste quadro, qualquer delação sem provas, de pessoas presas, temporária ou preventivamente para serem obrigadas a fazer colaboração premiada, é suficiente para conformar um “juízo definitivo” da sociedade sobre a culpabilidade do acusado, tornando difícil o exercício do sagrado direito de defesa, próprio dos Estados Democráticos de Direito.

Com a exposição que a TV Justiça trouxe aos Ministros do Supremo Tribunal Federal --conheço-os todos e os admiro –passaram, todavia, a um protagonismo inaceitável e a promover invasão de competências parlamentares, apesar de proibidos de assim atuar, até mesmo nas inconstitucionais omissões legislativas, por força do artigo 103 § 2º da CF. Tal ativismo judicial tem gerado insegurança jurídica, pois, embora não eleitos pelo povo, os magistrados têm legislado, como fizeram ao não respeitarem o artigo 53 § 3º da CF, nas prisões de Delcídio e Eduardo Cunha; ao tornarem o acusado passível de prisão, nas decisões de Segunda Instância, contra o inciso LVII do artigo 5º da Lei Suprema; ao criarem uma terceira hipótese de aborto impunível, ou seja, o eugênico, no caso dos anencéfalos (artigo 128 do CP); ao criarem uma outra hipótese de união estável constitucional, no caso de pares do mesmo sexo, contra o artigo 226 §1º a 5º da Carta Suprema; ao permitirem que candidato derrotado assumisse, sem eleições diretas ou indiretas, nos casos de governadores e vices afastados (artigo 81 da CF), e em inúmeras outras hipóteses.
Vivemos, pois, em um estado “gelatinoso” de direito, em que todos patinam e em que uma mera alegação sem prova material pode macular a imagem de qualquer pessoa, em dura violação ao inciso X do artigo 5º do Texto Supremo.

E, neste momento de incertezas, em que os Poderes não se entendem e a sociedade não avança em reformas necessárias, pois todos temem que qualquer ação, nesta ou naquela linha, venha a ser suspeita, necessário se faz o retorno à independência e harmonia dos Poderes, sem invasões e gestos cinematográficos, para que o país possa sair da crise.

Neste sentido, coordenado por Marcos da Costa e por mim, com a colaboração de alguns dos mais expressivos penalistas e constitucionalistas do país, estamos lançando, para o XXIII Congresso Nacional da OAB, em São Paulo, o livro intitulado “A importância do direito de defesa para a democracia e a cidadania”, pois entendemos que só a volta às competências originais dos Poderes e a valorização das instituições permitirão dar efetividade ao direito de defesa - inexistente nas ditaduras - verdadeiro alicerce do Estado Democrático de Direito.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, do CIEE/O Estado de São Paulo e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Guerra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e do Centro de Extensão Universitária - CEU. Autor de diversas obras pela RT e Saraiva.

STF se enfraquece

Por Míriam Leitão

Mais importante do que o resultado da decisão do Supremo Tribunal Federal na discussão de ontem é constatar o nível de tensão institucional a que o país chegou. O Supremo está dividido, o Senado fez alertas prévios ao STF sobre a natureza do que ele não aceitaria. O relatório em defesa do presidente Temer acusou o Judiciário de se “mancomunar” com o Ministério Público contra os políticos em geral.

Houve um tempo em que se tinha a impressão, na economia, de que o fundo do poço não chegava nunca. O PIB caía em queda livre e não parecia ter piso. Na política, a sensação que se tem é de que a tensão se eleva cada vez mais. Não parece haver teto. Políticos estão se alinhando, por cima até das mais graves divisões, para construir uma coalizão contra as investigações de corrupção.

O deputado Bonifácio de Andrada não tem maior expressão, portanto, o que ele disse no relatório não teria peso se não fosse o fato de que representa também o pensamento do próprio presidente. E lá foi feita a acusação de que o Poder Judiciário conspira com o MP contra os políticos. É mais um dos sinais de esgarçamento da relação entre os poderes.

O que estava em debate ontem era uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, impetrada pelo PP, PSC, Solidariedade, de 2016, sobre o poder de o STF decretar medidas cautelares contra parlamentares sem ouvir o Congresso. Não era o caso Aécio. Mas teria repercussão direta sobre o presidente do PSDB. Por isso, o que estava em jogo era se o Supremo daria, ou não, mais um passo em direção ao confronto com o Senado.

Quando o ex-senador Delcídio do Amaral, então líder do PT, foi preso, o Senado protestou, mas autorizou. Quando o próprio senador Aécio foi afastado em maio, pela decisão do ministro Edson Fachin, houve protestos mas a decisão foi acatada. Em junho, o ministro Marco Aurélio acabou revogando essa decisão de Fachin. Outros episódios foram absorvidos, como o que aconteceu com o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha.

O caso mais estranho de todos foi o da decisão do ministro Marco Aurélio Mello de afastar Renan Calheiros da Presidência do Senado em dezembro do ano passado. Renan desacatou o Supremo, e o STF recuou da decisão na votação do plenário. Naquele momento, como agora, a Corte temia provocar crise institucional e preferiu se dividir e recuar. Naquele episódio, o ministro Marco Aurélio tinha tomado uma decisão sob um argumento cristalino: o presidente do Senado está na linha de sucessão presidencial, um réu não pode ocupar a Presidência, logo, Renan, depois de ter se tornado réu, não poderia mais ocupar o cargo. O STF fez um estranho contorcionismo e optou por mantê-lo na Presidência da Casa, mas retirando dele a possibilidade de vir a ocupar a presidência da República. Fez uma cirurgia impossível nas atribuições do cargo.

Agora em setembro, a primeira turma decidiu novamente pela suspensão do mandato do senador Aécio, seu recolhimento noturno e a apreensão do passaporte. Elevou-se então a tensão com a reação forte do Senado. Em sua defesa, o senador tem dito que na conversa gravada pelo empresário Joesley Batista ele estava apenas negociando a venda de um apartamento. Existem empresas especializadas em vendas de imóveis e corretores para isso, mas mesmo quando se dá uma transação direta não se paga em dinheiro vivo, nem o pretenso vendedor avisa que o intermediário tem que ser um “que a gente mate antes”. Enfim, aquela conversa é absolutamente explícita. Não se trata de um negócio comum entre vendedor e comprador de imóvel. E a imunidade do mandato não pode ser invocada em indícios de crime comum. O mesmo Senado que protege o senador Aécio Neves não protegeu o ex-senador Delcídio do Amaral. A ordem judicial que tem que ser cumprida por qualquer cidadão pode ser desrespeitada se o cidadão se chamar Renan Calheiros.

Mais relevante do que o resultado da votação de um dia no STF é constatar que a interpretação da lei no país muda conforme a pessoa em questão. O STF votou ontem temendo uma crise institucional, e com o voto de minerva da presidente do Supremo. Essa não é a melhor forma de fazer prevalecer o Direito.

Míriam Leitão, jornalista há mais de 40 anos, é colunista do jornal desde 1991. É autora, entre outros, do livro Saga Brasileira, ganhador do Jabuti de Livro do Ano (2012). Entre seus prêmios, recebeu o Maria Moors Cabot da Columbia University (NY). Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 12,10.17 sob o titulo "Tensão máxima: STF se enfraquece e vota para evitar crise entre poderes".

Tempo de Vergonha

Por Carlos Andreazza

Direitos políticos são direitos fundamentais. O direito de se candidatar a cargo eletivo é um direito fundamental, relevante parte no conjunto de garantias individuais que a Constituição Federal protege — Constituição que tem, ou tinha, 11 juízes designados a guardá-la. Tem ou tinha? Tinha.

A infame sessão da última quarta no Supremo Tribunal Federal cravou essa resposta ao consagrar a prática — a de corregedor moral da atividade política — apregoada, dias antes, por guerreiros como Luiz Fux, aquele segundo quem, quando a um político investigado falta a grandeza de se afastar do mandato, é dever do STF ter por ele essa honradez. Sim: Fux — aquele, indicado por Dilma, cuja grandeza abarcou, em sua bem-sucedida campanha por uma suprema toga, pedir ajuda a patriotas como João Pedro Stédile, Sérgio Cabral e José Dirceu. Ele chegou lá.

Mas: e a Constituição? Aonde? Aonde esses valentes do direito criativo a levaram? À sessão da última quarta — a da vergonha.

Mesmo neste país histérico, em que a militância assaltou o debate público e em que o ativismo político já tem assentos na mais alta corte, mesmo neste país refém do alarido jacobino das redes, jamais pensei um dia ver o Supremo — em decisão de seu pleno — votar para que uma lei retroagisse de modo a punir o réu. É preciso repetir: o STF, a propósito da Ficha Limpa, firmou a jurisprudência de que um cidadão pode ser punido — com a inelegibilidade, interdição do direito político de disputar eleição — por crime ocorrido antes da existência da lei.

O que dizer quando é o Supremo a instituir a insegurança jurídica? O povo vibra, brada a ignorância que transforma em justiceiros magistrados cujos juízos declaradamente têm a ideia popular (e autoritária) de ética, e não o texto legal, como norte. Eis o bicho: o tão atraente quanto perigoso Direito catado na rua. O povo vibra, parvo, com as condições favoráveis — sinalizadas pelo STF — a que prosperem, cedo ou tarde, barbáries como as tais “dez medidas contra a corrupção”, ali onde, vestido de avanço moralizante da sociedade, propunha-se limitar o direito ao habeas corpus.

É o Brasil linchador e fulanizado o que triunfa — esse em que se aceita como necessário, para que presumido bandido nenhum escape, que leis sejam aplicadas a depender do réu, ao sabor do caso concreto, ajustadas ao prumo da indignação vulgar, negação mesmo do espírito impessoal sob o qual leis são concebidas. E se o réu — que às vezes nem réu ainda é — for um político... O leitor decerto pensou no caso de Aécio Neves. Peço, então, que o esqueça — porque o que lhe serve também cabe a todos os parlamentares eleitos para o Congresso Nacional, inclusive Eduardo Cunha.

Um pedido de prisão contra um senador da República ou um deputado federal — senão por flagrante de crime inafiançável — sequer deveria ser recebido pelo STF. E, no caso, não havia flagrante nem se tratava de crime inafiançável. A demanda de Janot era, como de hábito, inconstitucional. Numa corte superior saudável, deveria ter o lixo como destino. Mas o Supremo aceitou apreciá-lo. E aí entra a lógica. Porque, se o recepcionou para deliberação, resta evidente que qualquer decisão emanada do tribunal a propósito seria uma resposta ao pedido de prisão. A Primeira Turma estabeleceu uma medida cautelar — não foi? Ora, simples: uma alternativa à prisão.

Ocorre que a Constituição é expressa a respeito e — salvo se a Barroso já tiver derrubado esta hierarquia — prevalece sobre qualquer outro código: ainda que um senador fosse preso em flagrante de crime inafiançável, a palavra final, para chancelar ou não a decisão da Justiça, caberia ao Senado. E, se esse pode o mais, claro, pode também o menos.

Por isso não haveria razão para a grita: se o Senado quisesse (e já o deveria ter feito, não estivesse acoelhado) deliberar sobre o afastamento de Aécio, poderia, resguardado pela Constituição, e o STF teria de entubar a vergonha decorrente da militância de seus membros.

Ah, sim. Desprezo este blá-blá-blá de harmonia entre Poderes — da qual, de resto, só se fala para encurralar o Legislativo, não raro invertendo a origem da desarmonia. Ou será harmônico que o Supremo legisle e que ignore a Constituição para tomar uma prerrogativa do Parlamento? Ademais: harmonia entre Poderes — entre esses aí? Quem banca isso como essencialmente bom? Ao que serve? Neste país, tende-se mais à harmonia entre pilantras ou virtuosos?

Melhor, para o equilíbrio da República, que se respeite a Carta Magna. Conseguimos?

Esqueça, leitor, para radicalizar o meu ponto aqui, o pedido de prisão contra um senador e a medida cautelar que o impede de sair de casa à noite — e me diga onde, na Constituição, está escrito que um Poder, senão o Congresso, pode afastar um parlamentar de seu mandato?

Cuidado com os tipos que ascendem ao Supremo para fazer política. Já escrevi, sobre juízes como esses, que, se querem fazer leis, larguem a toga e se candidatem ao Legislativo. O problema — a razão da advertência — é que, sem que percebamos, já não é preciso ser eleito para dirigir o Brasil.

Carlos Andreazza é editor de livros. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 10.10.17, sob o título "Tempo de Vergonha no Supremo".

O crime e a política

Na semana passada, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a terceira denúncia, por organização criminosa, contra lideranças de um partido político. Antes haviam sido acusados políticos do PP e do PT. Agora, foi a vez de integrantes do PMDB. Os três casos parecem confirmar que a Procuradoria-Geral da República (PGR) faz uso distorcido do material recolhido pela Operação Lava Jato, dando por certo que os partidos são organizações criminosas. Ou, pior ainda, que a atividade política pressupõe a prática criminosa.

Uma coisa é a existência de criminosos em algumas legendas, outra coisa é que a legenda seja uma organização criminosa. Uma terceira, ainda, é que a política seja necessariamente espúria. Além de ser um tratamento abusivo das provas, já que se deduzem coisas que não estão nos autos, a confusão promovida pelo Ministério Público conduz à mais perigosa das conclusões, nunca dita, mas habitualmente insinuada: a equiparação entre atividade política e atividade criminosa.

Segundo a denúncia apresentada na sexta-feira passada, os senadores Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR), Edison Lobão (MA), Valdir Raupp (RO) e Jader Barbalho (PA) e os ex-senadores José Sarney e Sérgio Machado “integraram núcleo político de organização criminosa estruturada para desviar em proveito próprio e alheio recursos públicos e obter vantagens indevidas”, tendo recebido R$ 864 milhões em propina por contratos na Petrobrás. O caso refere-se a um inquérito da Operação Lava Jato, aberto em março de 2015. A PGR sustenta que a atuação dos políticos do PMDB causou prejuízos de R$ 5,5 bilhões à Petrobrás e de R$ 113 milhões à sua subsidiária Transpetro.

Certamente, cabe à Justiça averiguar as provas contra esses políticos. Se não deve haver espaço para qualquer tipo de impunidade, muito especialmente a lei deve ser cumprida quando se refere à atuação de pessoas que ocupam ou ocuparam altos postos na vida pública. No caso, os denunciados são, ou já foram, membros do Senado Federal. Tais elementos não permitem, no entanto, afirmar que o PMDB e outros partidos políticos são organizações criminosas.

É importante entender o que dizem as investigações da Lava Jato. Elas revelaram que, nas administrações petistas, foi instalado um sistema criminoso no núcleo do poder público, com a cooptação de vários políticos de diferentes legendas. Isso não é o mesmo que dizer, como equivocadamente tenta induzir a PGR, que os partidos políticos eram organizações criminosas. Por mais que haja criminosos num partido, isso não transforma o partido numa organização criminosa.

Reconhecer essa realidade não representa qualquer desculpa para os políticos que desviaram recursos ou causaram prejuízos aos cofres do Estado, das estatais e das empresas de capital misto. Havendo provas de seus crimes, devem ser exemplarmente punidos. O que não se deve fazer é confundir os papéis de cada um dentro do esquema criminoso. Ao se apresentar determinado partido como um “quadrilhão”, apresentam-se seus integrantes como quadrilheiros, o que é evidentemente equivocado. O fato inegável é que, se se abrigam na legenda alguns criminosos, a maioria dos que nela militam é honesta.

Além de causar uma injustiça à honra de políticos honestos, essa deliberada confusão reforça o distanciamento e, em muitos casos, a rejeição da população em relação à política e suas instituições, como se fossem todas corruptas. Assim, a política fica parecendo uma prática ineficaz, esbanjadora e criminosa por definição. E, nesse caso, a democracia será tão vil quanto a política. A indistinção de papéis ainda beneficia o verdadeiro chefe do sistema criminoso, que se vê premiado com a possibilidade de ser encarado apenas como um criminoso a mais, sem uma adequada avaliação de sua responsabilidade, multiplicada pelo exercício de função pública.

A atuação do Ministério Público deve se ater estritamente ao campo jurídico. Tudo o que passa daí cai no terreno da política, fora de sua competência. A Lava Jato deve perseguir os crimes, não a política. E se criminosos se aproveitam da política para exercer seu ofício asqueroso, é justamente nessas horas que é mais necessário o estrito respeito às alçadas institucionais de cada agente da lei, na preservação simultânea da ordem e da democracia.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.09.17

Uma decisão surpreendente

Por Carlos Velloso

Analisemos, sem quebra da reverência e do respeito devidos, a decisão proferida, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no agravo interposto na cautelar requerida pela Procuradoria-Geral da República, cautelar apresentada pelo mesmo órgão do Ministério Público, com base em gravação feita por Wesley Batista, um dos donos da JBS, com o fito de obter perdão consistente numa colossal imunidade penal. Esse senhor acabou preso, a requerimento do Ministério Público, porque se descobriu que mentira. Na cautelar foi pedida a prisão do senador e seu afastamento do mandato que lhe foi outorgado pelo povo.

A decisão, com todo o respeito, foi surpreendente.

O voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello, minucioso e longo, foi pelo não cabimento da prisão, do afastamento e demais medidas alternativas. No mesmo sentido, o voto do ministro Alexandre de Moraes, largamente fundamentado. Os ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes deixaram claro que, conforme expresso na Constituição, “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poder