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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Álvaro de Campos - Tabacaria (por Mário Viegas)

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‘Tudo de graça’ / Sobre o editorial ‘Tudo de graça’ (Estadão, 26/2, A3), não há dúvida de que o governo petista está rodando em círculos, sem saber como sair das cordas. A questão nos remete às eleições de 2022, quando, em tom salvacionista, Lula pregava aos quatro cantos que sua candidatura representava a manutenção da democracia e do Estado de Direito contra Bolsonaro. Vendeu o peixe certo na hora certa, mas cometendo um grave erro: não apresentar um plano efetivo de governo, que deveria ser amplamente discutido antes da chancela dos adesistas de centro e centro-esquerda que se juntaram a Lula, com apoio irrestrito de outros segmentos da sociedade. O que se viu foi sua aderência aos gastos públicos, como se vivêssemos a bonança de anos atrás, e utilizando a mesma retórica com o povo mais humilde, que ele acreditava cativo de sua mensagem demagógica. O resultado deste estado de coisas é a sensação de frustração com a política, seja em razão dos aproveitadores no Congresso, seja de um governo de esquerda que não consegue superar o que está por trás deste roteiro ultrapassado: a manutenção do poder a qualquer custo, como fez Dilma para se reeleger, em detrimento do avanço sustentável do País e da prosperidade de seu povo. Deveria ser proibida pela lei eleitoral a implantação de programas sociais que não fossem temporários, que visam, na verdade, a manter um eleitorado subjugado e fiel. / Paulo Chiecco Toledo / São Paulo / Fórum dos Leitores, O Estado de S. Paulo, em 28.02.25

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O poder das saúvas


Enquanto Jair Bolsonaro entretém a plateia com ameaças de golpe, parlamentares manipulam o Orçamento conforme seus objetivos eleitorais


Não é possível imaginar que a aprovação do escandaloso fundo eleitoral de R$ 5,7 bilhões, embutido no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), tenha ocorrido sem que o governo no mínimo soubesse da urdidura.

Na hipótese benevolente, o governo se omitiu. Nesse caso, as declarações indignadas de Jair Bolsonaro sobre o chamado “fundão”, supondo-se que sejam autênticas, indicam que o presidente ou não tem nenhuma autoridade sobre seus articuladores políticos ou escolheu nada saber, deixando o poder de fato para as saúvas que hoje corroem seu governo.

Em se tratando de Bolsonaro, contudo, é difícil ser benevolente. Outras hipóteses soam mais plausíveis. Uma delas é a de que o processo de aprovação do fundão eleitoral no Congresso foi articulado de modo a diluir as digitais do governo e de seus suseranos do Centrão na manobra, diante da previsível reação popular negativa.

De quebra, Bolsonaro pode faturar eleitoralmente com seu poder de vetar o impopular fundão – sem, contudo, fazer sua base trabalhar para que o veto seja sustentado no Congresso, como já aconteceu inúmeras vezes. Ou seja, o veto de Bolsonaro é apenas cenográfico.

“O acordo para incluir os R$ 5,7 bilhões para o fundo no Orçamento foi costurado numa reunião de líderes da base dele (Bolsonaro), na casa do presidente da Câmara (Arthur Lira), aliado dele, sob coordenação dos líderes do governo no Congresso e na Câmara. Então, se não fosse o governo Bolsonaro, não existiria o fundão”, disse ao Estado o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), que presidiu a sessão em que o fundão foi aprovado.

Ramos foi atacado por Bolsonaro como se fosse o culpado pela manobra, mas está cada vez mais claro que a responsabilidade, desde sempre, é dos governistas. É o padrão bolsonarista, ditado por um presidente especialista em se livrar de suas responsabilidades, sempre tendo em vista a campanha eleitoral.

Trata-se de método. Bolsonaro deseja governar de maneira irresponsável, razão pela qual trabalha dia e noite para enfraquecer as instituições que lhe impõem freios. No entanto, ao menos no caso do Congresso, a ofensiva dos bolsonaristas fracassou. Eles foram engolidos por turma mais esperta que eles, a tal ponto que, hoje, o presidente não pode dar um passo sem pedir a bênção do Centrão.

Nesse arranjo, Bolsonaro vem entregando ao Congresso partes cada vez maiores do controle sobre o Orçamento. O contrabando do fundão eleitoral na LDO é um poderoso símbolo dessa renúncia do Executivo, sob Bolsonaro, à sua função precípua de, antes de mais nada, transformar em realidade as aspirações nacionais.

Com um Executivo omisso e conivente, o Orçamento é entregue aos interesses paroquiais dos parlamentares, reduzindo drasticamente a capacidade de investimento do governo. E essas manobras orçamentárias ocorrem frequentemente sem qualquer preocupação com higidez moral e eficiência administrativa.

Como o Estado revelou recentemente, o governo permitiu que deputados aliados definissem a destinação de verbas alocadas no Ministério do Desenvolvimento Regional por meio das emendas do relator-geral do Orçamento. A esse escândalo junta-se outro, também revelado por este jornal: desde o fim de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, os parlamentares dispõem de uma modalidade de repasse de verbas para prefeituras e governos estaduais que dispensa qualquer justificativa ou apresentação de projetos. O dinheiro cai direto na conta da administração. Não à toa, é chamado jocosamente de “Pix orçamentário”.

No ano passado, esse repasse camarada de emendas individuais sem controle dos órgãos de fiscalização consumiu R$ 621 milhões do Orçamento. Neste ano, o valor saltou para R$ 1,9 bilhão. E os parlamentares já se movimentam para replicar esse modelo com as emendas apresentadas por bancadas de partidos, o que elevaria o montante para R$ 12 bilhões neste ano.

Assim, enquanto Bolsonaro entretém a plateia com ameaças de golpe, parlamentares silenciosamente manipulam partes cada vez maiores do Orçamento conforme seus objetivos eleitorais. Como o presidente não governa, dedicando-se apenas a alvoroçar vivandeiras e a bulir com granadeiros, os oportunistas estão cada vez mais à vontade.

Tudo o que sabemos sobre:Jair BolsonaroArthur LiraMarcelo RamosMinistério do Desenvolvimento RegionalOrçamento federal [Brasil]CentrãoLDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias]

Editorial de O Estado de S. Paulo, em 22.07.2021

Devastação ambiental

A temporada de queima na Amazônia está apenas começando, mas o descaso renitente do governo, somado ao agravamento das secas, permite vislumbrar uma tempestade perfeita

A devastação ambiental segue fora de controle. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a Amazônia registrou em junho o maior número de focos de incêndio para o mês desde 2007. No Cerrado, foi o maior índice desde 2010. A temporada de queima na Amazônia – entre julho e outubro – está apenas começando, mas o descaso renitente do governo, somado ao agravamento das secas, permite vislumbrar uma tempestade perfeita.

A devastação se alastra indiscriminadamente. Segundo o relatório MapBiomas, em 2020 o volume de áreas desmatadas em todo o País subiu 14% em relação a 2019. A alta foi verificada nos seis biomas brasileiros: no Pantanal, por exemplo, foi de 43%; no Pampa, 99%; e na Mata Atlântica, 125%. O crescimento foi menor na Amazônia (9%) e no Cerrado (6%). Mas ambos respondem por 92% de toda a área devastada: 61% na Amazônia e 31% no Cerrado.

Os próximos meses serão críticos. Em junho o País entrou no período de seca, que costuma se estender até setembro. Mas a estiagem neste ano será mais severa, por causa do resfriamento das águas superficiais do Pacífico – o La Niña. A região central registrou em junho o menor volume de chuvas em 91 anos.

Um ciclo vicioso está formado. A seca – responsável pela crise hídrica que impacta a agropecuária, o abastecimento de água e a produção de energia – deve favorecer o fogo na Região Amazônica. Como metade da chuva do Centro-Oeste, Sul e Sudeste é gerada pela transpiração da floresta, o desmatamento e as queimadas, por sua vez, agravarão as secas. Para piorar, as partículas em suspensão dos incêndios devem agravar os casos de doenças respiratórias, entre elas a covid-19, pressionando ainda mais os sistemas de saúde das Regiões Norte e Centro-Oeste.

O governo suspendeu por 120 dias a queima controlada em áreas agropastoris e florestais no País e autorizou até 31 de agosto o emprego das Forças Amadas na Amazônia. Mas não há nenhuma razão para crer que essas medidas serão mais eficazes neste ano do que foram nos dois anos anteriores.

Sob a gestão do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, órgãos ambientais como o Ibama e o ICMBio foram desmantelados e desprestigiados a olhos vistos. A articulação com as Forças Armadas não foi completamente eficaz e o próprio presidente do Conselho Amazônia, o vice-presidente Hamilton Mourão, admitiu mais de uma vez o descompasso com o Ministério do Meio Ambiente. O período de 60 dias previsto para a nova operação de Garantia da Lei e da Ordem na Amazônia é menor do que o dos anos anteriores e do que os 90 dias que vinham sendo reivindicados por Mourão.

Segundo o Instituto Socioambiental, no primeiro biênio do governo (2019-20) o desmatamento nas unidades de conservação aumentou 48,3% em relação a 2017-18. Nas terras indígenas, o aumento foi de 42,5%. Enquanto nas Áreas de Proteção Ambiental estaduais a alta foi de 58,2%, nas federais foi de 90,8%. Nas unidades de conservação de uso sustentável administradas pelo governo federal por meio do ICMBio, o desmate aumentou 129,8%. Entre as 20 terras com maior histórico de pressão e conflitos com garimpeiros, grileiros e madeireiros, o desmatamento cresceu inacreditáveis 534%.

A zona mais crítica é o centro-sul da Amazônia. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, 10 municípios que experimentaram condições de secas ou de extrema seca têm 283 km² de áreas desmatadas e não queimadas, além de grandes trechos de florestas remanescentes que podem ser atingidos por incêndios sem controle. Mas, dos 10, apenas 1 faz parte da lista de 26 municípios que receberão as Forças Armadas. Em 2020, nos 11 municípios definidos como prioritários pelo Conselho, só 12% da área desmatada sofreu ações de punição.

A falta de planejamento adensa a atmosfera de impunidade – acalentada desde sempre pelos atos e palavras do presidente da República – que oxigena os agressores ambientais. A tragédia está anunciada. Centenas de milhares de troncos já estão no chão, a seca está no ar e não faltarão mãos para riscar o fósforo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo,em 04 de julho de 2021 | 23h50

O STF impõe as regras da lei


Por Merval Pereira

O STF tem agido como uma barreira firme contra as tentativas de burlar a lei e de ir contra a democracia. A respeito do pedido da PGR de abertura de investigação contra Bolsonaro, o palácio do Planalto soltou hoje, uma nota de cinismo absoluto, onde diz que o executivo não se pronuncia sobre outros poderes.

Bolsonaro deve se achar um simples blogueiro, e não um presidente, porque pela boca dele, a presidência fala todo dia; afronta as instituições, chama de bandidos os senadores opositores da CPI, fala mal do STF, ameaça não passar a faixa presidencial se não houver voto impresso.

Ainda bem que o STF está impondo as regras da lei, porque se deixar Bolsonaro solto, sem controle, ele vai avançando. E não tem capacidade de entender o que é, ou não gosta da democracia; acha que pesos e contrapesos são prejudiciais ao seu governo, à sua pretensão de salvar o Brasil da corrupção.

Mas o governo está cheio dela e os valores morais agora começam a ser questionados por um blogueiro aliado, que divulga que supostamente a ministra Damares teve um caso com um homem casado. E o pastor Malafaia já quer que ela deixe o governo, caso seja verdade. Mostra a confusão que reina.

O pedido da PGR de abertura de inquérito contra o presidente só aconteceu porque não havia outra alternativa e depois de muita pressão, assim como a investigação aberta por Alexandre de Moraes contra bolsonaristas por organização criminosa é uma resposta à PGR, que age claramente em defesa de Bolsonaro, tenta barrar as investigações que atingem o presidente e seus aliados.

Mas o STF está dando a reposta devida. É um bom sinal de que o STF, instituição democrática fundamental, está agindo.

Merval Pereira é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo on line, em 02.07.2021

Bolsonaro em seu libirinto

Vendo sua margem de manobra se estreitar, ele parece cada vez mais desesperado

Por Fernando Gabeira


É um certo desperdício usar um pensamento de Isaac Deutscher para analisar a extrema direita. Mas, como ele dizia, cada vez que a margem de manobra política se estreita as pessoas começam a fazer bobagens, independentemente até de seu nível de inteligência.

A extrema direita mundial vive um momento difícil. Eslovênia, Hungria, Polônia e agora o Brasil, todos estão às voltas com uma conjuntura negativa. E de certa forma o fracasso diante da pandemia foi fator decisivo nas eleições americanas, contribuindo para a derrota de Donald Trump.

Na Eslovênia cai a popularidade do governo, na Hungria forma-se uma ampla coalizão contra Viktor Orbán e na Polônia o governo está sendo empurrado para posições mais à esquerda.

Aqui, no Brasil, Bolsonaro está com toda a carga negativa sobre ele. Não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo, tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo sanitário. O País não só ultrapassou os 500 mil mortos, como deve superar os Estados Unidos nessa contagem fúnebre.

Bolsonaro já não é muito hábil politicamente. Mas vendo sua margem de manobra se estreitar parece cada vez mais desesperado, a ponto de agredir verbalmente jovens repórteres no exercício de sua função.

O avanço da CPI da pandemia tem representado também uma grande derrota para a tese negacionista de Bolsonaro. Aos poucos vai se definindo algo que para alguns já foi obviamente demonstrado: a política do governo contribuiu para muitas mortes no País.

Outro fator de estreitamento são as próprias alianças políticas. O grupo que o apoia no Parlamento sabe explorar o espaço, aberto pelo início das grandes manifestações populares contra ele. Ainda não o suficiente para derrubá-lo, elas já representam importante agregação de valor ao apoio fisiológico: quanto mais gente na rua, mais cara se torna a amizade com o Centrão.

O mundo que o bolsonarismo encontrou ao chegar ao poder não mudou para melhor, ao contrário, as frustrações se aprofundam. Grande parte da juventude brasileira, por falta de horizonte, quer deixar o País. Isso significa que as possibilidades de derrota de Bolsonaro são grandes, mas algumas das causas que o levaram ao poder não foram removidas.

Assim como lá fora surgem alianças às vezes surpreendentes, como a de Israel e agora a da Hungria, aqui, no Brasil, a possibilidade de unificação do campo oposicionista também é, potencialmente, considerável. Em primeiro lugar, as próprias manifestações de rua, no seu crescimento, precisam atrair novas forças de oposição, ganhar uma cara de unidade nacional que transcende o poder da esquerda. Em segundo lugar, está o próprio futuro pós-Bolsonaro. Seria razoável enfrentá-lo sem levar em conta os mecanismos que impulsionaram sua ascensão?

Algumas dessas frustrações já estavam latentes no grande movimento popular de 2013. Ele é certamente interpretado de muitas maneiras. Mas havia nele um certo descontentamento diante dos serviços públicos, muito aquém da expectativa dos pagadores de impostos.

Depois de uma vitória nacional, a extrema direita não vai desaparecer. Provavelmente será reduzida a uma dimensão mais real, uma força minoritária, ainda que ruidosa.

Sempre haverá, daqui para diante, a compreensão de que ela não pode ganhar o governo, o que determina uniões republicanas, como na França, prontas para derrotá-la caso chegue ao segundo turno.

Derrotá-las nas urnas, porém, não vai resolver o problema. É necessário buscar uma estabilidade dificilmente ao alcance de uma força política única.

Collor não tinha partido, assim como Bolsonaro. Os presidentes que tinham partidos atrás de si acabaram tendo de fazer coalizões que trazem uma falsa estabilidade, uma vez que garantem votos, mas arruínam a legitimidade diante da opinião pública.

Programa e instrumento adequado de governo são temas ainda indefinidos na era pós-Bolsonaro. Não creio que seja algo muito extemporâneo. Na medida em que cresce a oposição a Bolsonaro, certamente são questões importantes. O interessante ao concluir um período como esse seria iniciar um grande estudo não só dessas, mas de todas as grandes questões que nos possam dar uma sensação de caminhar para a frente, sem esbarrar de novo nesse fantasma regressivo e autoritário que assombra a nossa História contemporânea.

Apesar do sofrimento humano e da devastação ambiental, a ascensão de Bolsonaro é também um período de aprendizado. Supor que vamos simplesmente voltar ao período anterior a ele, como se nada tivesse acontecido, é muito perigoso, pois pode nos trazer Bolsonaro de novo, ou alguma composição ainda pior que ele, por mais absurda que possa parecer essa hipótese.

Tudo isso tem um sentido maior, porque não estaremos concluindo apenas um período político. Estaremos vivendo um momento pós-pandemia. Não me lembro historicamente de outro tão estimulante como o pós-guerra na Europa. Muitas certezas cairão por terra, novas ideias afloram, seria um certo contrassenso reiniciar com fórmulas que já não respondem ao desafio do presente.

Fernando Gabeira é Jornalista. Publicado originalmente n' O Estado de S.Paulo, em 25 de junho de 2021.

Para sair dessa maré

Por Fernando Gabeira

‘É tudo um tecido de mentiras.’

Essa frase de um personagem de Ingmar Bergman às vezes me vem à cabeça quando tento sintetizar a política do governo Bolsonaro contra a pandemia.

Noutros momentos, procurei destacar a base dessa atitude devastadora, que é a negação de fatos. A negação como fenômeno psicológico foi teorizada por Freud em 1923. Sua filha Anna Freud ampliou os estudos do tema, sobretudo em crianças.

Não ver ou ouvir certos fatos às vezes é uma tentativa de evitar a dor ou o desafio que abale nossas convicções do mundo. Nas crianças indefesas, até que isso, em determinadas condições, tem um lado positivo e permite seguir adiante apesar de experiências traumáticas.

Em política, esse conceito de negação foi usado também para definir as teses que negam o Holocausto e as atrocidades do regime nazista.

Mas às vezes essa tendência se infiltra na sociedade. Michael Milburn e Sheree Conrad escreveram um livro sobre as principais políticas de negação na sociedade norte-americana.

Bolsonaro se recusou a aceitar a existência da pandemia. Da célebre comparação do vírus a uma gripezinha a todos os passos posteriores, sua atitude foi negar.

No auge da pandemia, já com 480 mil mortos, ele ainda fez uma tentativa desesperada de negar que todas essas mortes foram causadas pela Covid-19. Para isso, um auditor amigo produziu um relatório fake e o introduziu no sistema do Tribunal de Contas da União.

No entanto, na CPI da Covid, onde se apuram as responsabilidades, a tendência do governo é negar sua política de adesão à hidroxicloroquina e recusar a vacina. É a negação da negação.

O que fazer com tanta mentira? Para a CPI, a tarefa é simples: alinhar declarações, atitudes e documentos e provar que esse tipo de política causou mortes.

No campo político, entretanto, coloca-se uma questão importante: como atuar na vida pública com um país tão intoxicado pela mentira?

Não tenho ilusões de que o clima será muito melhor no futuro. O crescimento da internet mostra como os grupos se atacam: como enxames de abelhas, parecem morder diante de um pensamento que lhes desagrada.

Outro dia, questionado sobre a possibilidade de atenuação do clima, respondi longamente. Percebi como o tema me preocupa.

Um dos caminhos é unificar o campo da oposição e reduzir a hostilidade mútua diante do adversário comum. Coalizões mais heterogêneas, como em Israel, surgiram da necessidade.

Para reduzir a hostilidade no campo de oposição, não basta boa vontade. É preciso reconhecer que existem candidaturas diferentes, representando a esquerda, o centro e até a direita.

Os que afirmam que não querem nem um nem outro, nem Lula nem Bolsonaro, precisam avançar nessa forma simplificada, reconhecendo que não são forças equivalentes; existe uma diferença de qualidade entre elas.

Isso seria um primeiro passo. O centro seria criticado apenas por pensar de forma diferente, mas não por estabelecer uma equidistância artificial entre esquerda e extrema-direita.

Outra ideia que me parece válida é reconhecer que Bolsonaro pode perder apoio. A tática correta não é estigmatizar seus mais de 50 milhões de eleitores. Erros históricos coletivos acontecem. A tarefa principal é tornar leve o caminho de volta para uma posição mais sensata. O estigma, pelo contrário, dificulta a vontade de mudar.

São ideias iniciais. Quando as exprimi numa conversa com Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto lembrou o plebiscito no Chile e como uma posição mais solar, mais leve, acabou derrotando a herança de Pinochet.

São ideias iniciais, mas uma reflexão sobre o caminho. É insatisfatório apenas denunciar as mentiras do governo Bolsonaro e seus passos rumo a um golpe.

É necessário criar uma base comum de resistência e, sobretudo, algumas razões para acreditar em mudanças. Isso não purifica a atmosfera política, mas pelo menos ajuda a respirar.

Fernando Gabeira é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 14/06/2021.

A anarquia militar de Bolsonaro prevaleceu


Por Elio Gaspari

Participação de Pazuello num palanque político, absorvida pelo comandante do Exército, abre novo capítulo na história da anarquia militar, o da indisciplina bolsonarizada


O vice-presidente Hamilton Mourão tocou num nervo sensível da política de hoje: a necessidade de se “evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças”. Referia-se à escalafobética participação do general Eduardo Pazuello num palanque político, absorvida pelo comandante do Exército, abrindo um novo capítulo na história da anarquia militar, o da indisciplina bolsonarizada.

Não se pode prever a duração nem o desfecho dessa desordem.

Em 1964, o general Jair Dantas Ribeiro, ministro do Exército, foi ao comício de João Goulart no dia 13 de março. Ambos acreditavam que o governo se apoiava num dispositivo de oficiais e sargentos fiéis. (O general Castello Branco reconheceu-o, meio escondido, e mostrou sua surpresa ao colega Arthur da Costa e Silva).

É sabido que quando a política entra nos quartéis por uma porta, a disciplina sai por outra. Ela sai aos poucos. No século passado, o dispositivo palaciano juntava oficias e sargentos. Hoje, como na Venezuela e no último golpe boliviano, somam-se comandantes e oficiais de polícias. Piorou a anarquia.

Os repórteres Marcelo Godoy e Felipe Frazão mostraram que na indisciplina bolsonariana há um buraco mais embaixo.

No dia 4 de maio, um sargento da 15ª Brigada de Infantaria Motorizada participou de uma fala do deputado Major Vitor Hugo defendendo mudanças no sistema de promoções dos graduados. (Nada muito diferente do que fazia o capitão Jair Bolsonaro).

O general Ernesto Geisel definiu Bolsonaro como um “mau militar” e seu rigor pelo respeito à disciplina militar remete a um episódio ocorrido em fevereiro de 1972.

O Brasil era presidido pelo general Emílio Médici e faltavam dois anos para o fim de seu mandato. Ele proibiria que a imprensa tratasse da sua sucessão.

Geisel estava na presidência da Petrobras e, num país de cem milhões de habitantes, talvez fossem 500 as pessoas capazes de prever que ele seria o próximo presidente. Sabendo como seu nome vinha sendo costurado, não passavam de 50. Com intimidade para tratar do assunto com ele, talvez 20.

Para surpresa de Geisel, um sargento que havia sido seu motorista foi à sua casa para se despedir e perguntou-lhe quando iria para Brasília.

— Ah, eu não vou — respondeu o general.

— Vai, sim. O senhor vai ser presidente — informou o sargento.

Horas depois, Geisel contou a cena ao seu assistente, Heitor Ferreira, e expôs sua contrariedade:

— Quer dizer que (...) sargento também já está de novo se metendo nisso?

Elio Gaspari é Jornalista e Escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 06.06.2021.

Com quase meio milhão de mortos, Bolsonaro debocha

Nossa tragédia vai muito além dos números, pois também se traduz na corrosão dos nossos valores como sociedade

Por Ana Carla Abrão

O Brasil se aproxima da triste marca de meio milhão de mortos por covid-19. Meio milhão! Milhares dessas mortes teriam sido evitadas se a ciência tivesse sido colocada à frente do negacionismo e de teorias persecutórias doentias. Mas não foi e ainda não é assim. É a ignorância de alguns que ainda nos guia por esses dias cada vez mais sombrios.

Nessa mesma triste esteira, mais de 14 milhões de brasileiros desempregados e 14,5 milhões em pobreza extrema engrossam os números de uma tragédia que levará décadas para ser revertida. Poderia ser pior não fossem os programas de apoio à manutenção do emprego e ainda mais profundos seus efeitos não fosse o auxílio emergencial. Muito mais eficaz e certamente bem mais barato teria sido priorizar a vacinação em massa. Mas as mesmas amadoras e doentias ideias que nos levaram a tantas mortes também nos condenaram a uma lenta e sofrida recuperação econômica, compondo o saldo final do negacionismo: mortes, desemprego e fome.

Mas a nossa tragédia vai muito além dos números. Ela também se traduz na corrosão dos nossos valores como sociedade. E essa sim deverá ser a pior das heranças que esse triste momento nos legará. Ao apostar no grotesco, no obscuro, no deseducado, na omissão e na mentira, estamos comprometendo nossa capacidade de avanço, de recuperação e de reversão. Não há sociedade que avance na ignorância. Não há desenvolvimento econômico ou justiça social que resistam aos erros repetidos, ao ódio, ao preconceito e à intolerância.

Os exemplos dos nossos desvios de curso são muitos. O mais recente deles, o loteamento do orçamento público, equivale a abrir mão da competência de governar. Delega-se e distribui-se essa função como se delegável fosse. Abandonam-se os conceitos de planejamento e gestão. A distribuição sorrateira, dissimulada e opaca dos recursos é feita por mecanismos amplamente conhecidos, sempre marcados por desvios, baixo retorno e desperdícios. Anestesiados, vemos validadas e repetidas as práticas que têm como motivação um pouco de quase tudo, menos o interesse público. O furo no teto de gastos é outro exemplo. Sob o nobre pretexto de enfrentamento da pandemia e o falso argumento da proteção social, protegem-se os privilégios dos mais ricos em detrimento dos pobres de sempre. Como resultado, amplia-se a desigualdade social e o País como um todo empobrece.

Na educação, o desastre se aprofunda. Prioriza-se a discussão sobre homeschooling para atender aos interesses de uma das bases eleitorais do presidente da República, enquanto uma geração inteira de crianças e jovens brasileiros tem perdas irreversíveis de aprendizagem. O governo federal não orienta, não apoia e nem mitiga os impactos que irão comprometer a empregabilidade e a produtividade futura de tantos. Enquanto isso, ganha corpo um discurso delirante que ignora o conceito de Federação e acredita que repassar recursos exime o governo das tantas outras funções de gestão numa crise dessa magnitude. Na educação, assim como na pandemia, a desculpa padrão da transferência de responsabilidades a governadores e prefeitos e o confronto aberto nada mais são do que o enfraquecimento do pacto federativo e, portanto, do Brasil.

Mas são os exemplos de corrosão de valores os que mais pesam. E o desfile de mentiras e de provas de omissão em que se transformou a CPI da Covid talvez seja uma das grandes representações dessa degradação. O País assiste, paralisado, ex-ministros e ex-assessores do governo, cuja função deveria ser a de atuar em prol da população, abusando de uma falsa retórica e desconstruindo os valores que deveriam nortear a vida pública: a ética, a moral, o respeito, a honestidade e a responsabilidade com o coletivo. A covardia, que deveria passar ao largo dos homens e mulheres públicos, escancara-se ora travestida de falsa humildade, ora de arrogância, lá ou nas manifestações públicas cheias de deboche.

Pioramos muito. Perdemos muito. Falhamos vergonhosamente. Meio milhão de mortos é parte irrecuperável dos custos de escolhas erradas. A degradação das nossas instituições é outra parte. Mas estas, ao contrário das vidas perdidas, podem se recuperar desde que emerjam uma nova liderança política e uma agenda de País que resgate os valores que hoje se perdem em meio a tanta ignorância e a tanto deboche.
Ana Carla Abrão é economista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 25 de maio de 2021.

O PT quer Bolsonaro

Por Ascânio Seleme

Bolsonaro desce aceleradamente a ladeira política e é o melhor adversário para Lula em 2022

A ordem é continuar batendo em Bolsonaro, mas não tanto assim. O que já era perceptível antes, cristalizou-se com a pesquisa Datafolha. Bolsonaro desce aceleradamente a ladeira política e é o melhor adversário para Lula em 2022. Na verdade, como já escrevi em colunas anteriores, Bolsonaro deve perder para qualquer adversário, dada a sua impressionante capacidade de jogar permanente e consistentemente contra o seu próprio patrimônio. De Lula, perde de lavada. Os petistas já perceberam isso e, embora esta não seja uma orientação formal, a ideia é fazer barulho mas não a ponto de inviabilizar o presidente. Em outras palavras, o impeachment agora trabalha contra os interesses petistas.

A pesquisa mostra também que Lula ganha com facilidade de João Doria e Ciro Gomes num eventual segundo turno entre eles. Mas da mesma forma que o centro e a centro-direita podem caminhar em direção a Lula num confronto dele com Bolsonaro, é possível imaginar que o quadro se repita em sentido contrário na ausência do capitão da cédula eleitoral. Sem a ameaça do retrocesso institucional que o presidente representa, é bem possível que ainda no primeiro turno estas forças se aglutinem em torno de um outro candidato. E este sim será capaz de derrotar Lula porque reunirá ao seu redor também os antipetistas que olham para o PT e só enxergam corrupção.

A hipótese da eleição de Lula passa necessariamente pela permanência de Bolsonaro no jogo. Fraco, abatido, enlameado, mas no jogo. Claro que a economia pode melhorar em 2022, com o presidente torrando dinheiro em benefícios assistenciais, mas dificilmente os brasileiros vão engolir o mal diabólico que ele causou ao país com sua sanha negacionista na crise do coronavírus. Os números não deixarão muita margem para dúvida. Pode-se facilmente imaginar desde já como serão a campanha eleitoral e os debates entre os candidatos com o cardápio Bolsonaro colocado à mesa. Sem falar nos escândalos de corrupção do seu governo e da sua família. O trunfo que detinha contra o PT há muito deixou de existir.

O PT quer agora o que Bolsonaro dizia querer no ano passado. O presidente chegou a afirmar que seria “mamão com açúcar” um embate dele com Lula. Agora, com a volta do petista ao campo, o discurso mudou. Primeiro, instrumentalizado, Arthur Lira instalou a comissão que vai debater a volta do voto impresso. Em seguida, o capitão disse que se perder para Lula só aceitará o resultado se o voto for auditável. São sinais de que o desespero tomou conta. Mas não passa de mais uma ameaça tola e inócua da lavra bolsonarista. O voto impresso não deve ser aprovado, e a urna eletrônica é perfeitamente auditável.

O fato é que o PT quer Bolsonaro no cargo até outubro do ano quem vem. Não vale dizer que já se viu este filme antes, apontando para a estratégia do PSDB durante o Mensalão de “deixar Lula sangrar” para derrotá-lo nas urnas dois anos depois. As circunstâncias eram inteiramente diferentes. Lula não era um tosco antidemocrático como o que se vê hoje instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto. Tampouco atirava no próprio pé. A economia estava em modo “boom”, com expansão média de 4% ao ano. E, por fim, não havia uma pandemia com um presidente genocida no comando.

Ascânio Seleme é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 15.05.2021

Já foi visto

Por Merval Pereira

O esquema de desviar verbas através de emendas do Congresso, já usado em governos anteriores, como no escândalo dos “anões do Orçamento”, se repete agora de outra maneira, demonstrando como a criatividade dos corruptos é infindável. Fica claro que precisamos inventar um outro tipo de relacionamento do Congresso com o governo central, porque nosso sistema de presidencialismo de coalizão virou um instrumento de distribuir dinheiro para políticos e corromper o Estado.

Os “anões do Orçamento” eram deputados, de baixa estatura física e moral, que manipulavam a Comissão do Orçamento no Congresso com manobras para inclusão de obras regionais mediante propina recebida de empreiteiras e governantes estaduais e municipais. Agora, ao que tudo indica, o esquema, denunciado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, é centralizado no próprio Palácio do Planalto, que indica verbas de um “orçamento paralelo” a seus correligionários e até a oposicionistas que se disponham a votar com o governo em ocasiões especiais, como a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.

A esse “orçamento”, só têm acesso os parlamentares indicados pelo Centrão, e as ordens de pagamento saem do Ministério do Desenvolvimento Regional e de outros órgãos, sem que se saiba o que será feito do dinheiro, que não tem controle, pois não consta do Orçamento oficial.

Centenas de requisições informais de deputados indicando para que obras deveria ser encaminhado o dinheiro, num caso até compra de tratores, foram revelados pelo jornal. Bastava que o parlamentar dissesse que fora “contemplado” com tal verba ou que tinha direito a ela, para que o dinheiro fosse liberado, após evidentemente ser checada a planilha do chefe da Secretaria de Governo da Presidência, anteriormente o ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje a deputada Flávia Arruda, colocada estrategicamente na pasta para facilitar o trânsito dos acordos feitos pelo Centrão que ela representa.

O superfaturamento de obras continua sendo a raiz desses esquemas fraudulentos. Os tratores financiados pelo orçamento paralelo, segundo especialistas, estão mais de 200% acima do preço de mercado. A maior parte dessas verba vai para a Codevasf, Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco, que hoje abrange também o Vale do Parnaíba. Criada para atender cerca de 500 municípios, hoje abrange quase três mil em 15 Estados e o Distrito Federal, ou 37% do território nacional.

É uma das estatais mais cobiçadas pelo políticos, tradicionalmente dominada pelo Centrão. O esquema do “orçamento paralelo” é mais um para limpar dinheiro desviado do Orçamento público. No mensalão, parte do Congresso foi comprado com dinheiro público; no petrolão, o esquema montou-se especialmente em torno da Petrobras e de suas subsidiárias, com outras estatais envolvidas.

Entre as novidades descobertas pela Operação Lava-Jato, o dinheiro de corrupção não raro vinha de “doações” oficiais aos partidos políticos, que assim lavavam o dinheiro recebido. Agora, a lavagem de dinheiro é feita por meio do próprio Orçamento. As emendas parlamentares são impositivas, e todos têm direito a elas na elaboração do Orçamento. No primeiro ano do governo Bolsonaro, porém, foi criada a figura da “emenda do relator”, que ganhou o poder adicional de distribuir verbas.

Além disso, há uma disputa entre o ministro Paulo Guedes, da Economia, e seu mais direto adversário dentro do governo, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Guedes sugeriu a Bolsonaro que vetasse essa emendas no ano passado, e os parlamentares derrubaram o veto, mantendo a distribuição de emendas sem identificação pelo relator.

Não pode ser essa a base da nossa política partidária. Nenhum país aguenta um sistema político que tenha de ser regado a dinheiro e verbas desviadas para funcionar. Não há país sério que se baseie numa relação corrupta entre o governo central e os parlamentares. Quem controla esses esquemas todos é o Centrão, criado na Constituinte de 1988, formalizando a união de partidos como PMDB, PP, PFL, PTB, o mesmo grupo que sempre esteve no poder, e que hoje domina o Congresso.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado originalment n'O Globo, em 11.05.2021

O Brasil ameaçado

Bolsonaro tem roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições e a sociedade civil irão se mobilizar e mostrar seu desacordo com as políticas do Governo Federal.

Por Marcos Rolim,
Monika Dowbor
e Ana Severo

|Caminhamos para novos anos loucos de hedonismo com o fim da pandemia?

Há períodos na história onde pedaços inteiros de futuro desaparecem. Cada pessoa é ela e suas possibilidades, assim como cada nação, povo e instituição. Em situações extremas, como as guerras por exemplo, a morte precoce de milhares ou mesmo de milhões de pessoas é um resultado possível, assim como a destruição de nações, instituições e povos. Esses resultados eliminam possibilidades históricas, abatem do futuro infinitas trajetórias humanas, assentando a dor e o desespero nos vazios que se multiplicam.

Por conta do sofrimento pressuposto, as guerras são um mal a ser evitado. Em nossa época, desde o fim da II Guerra Mundial, os confrontos militares foram substancialmente reduzidos, inaugurando-se o período cunhado por John Lewis Gaddis como “a Grande Paz”. Isso se fez, basicamente, pela construção e pelo fortalecimento das democracias liberais e pelo processo de globalização que afirmou um mercado mundial e meios internacionais de regulação e dissuasão de conflitos. Ditaduras foram, historicamente, muito mais inclinadas à guerra porque elas se fundam em um discurso proponente da violência. Toda ditadura, de direita ou de esquerda, precisa de um inimigo para mobilizar sua base e legitimar as barbaridades que irá cometer. Por isso, a gramática dos ditadores e daqueles vocacionados à ditadura sempre exalta a violência.

As estimativas históricas compiladas por Steven Pinker mostram que as guerras mataram um número de combatentes no século XX que equivale a 0,7% da população mundial. Se acrescentarmos às baixas militares todos os demais mortos pela fome e pelas doenças causadas pelas guerras, mais as vítimas do Genocídio Armênio, do Holocausto, do massacre de Ruanda, chegaremos a 3% do total das mortes ao longo do século XX. Esses números servem para destacar a gravidade da pandemia em curso, vez que a taxa de mortalidade entre os casos confirmados de covid-19 no Brasil é de 2,6%, uma das mais altas no mundo. A referência a uma realidade de guerra para descrever a atual crise sanitária no Brasil não é, então, apenas uma figura de linguagem. A morte carrega também as marcas das desigualdades históricas no Brasil. Pesquisas mostram que os negros morrem mais que os brancos: são 250 óbitos pela doença a cada 100.000 habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes a cada 100.000.

A covid-19 no Brasil, como a guerra, também fragiliza a sociedade nos bastidores, ao agravar as condições sociais, econômicas e psíquicas decorrentes da ausência de políticas públicas adequadas para a contenção da doença. Entre elas estão as mulheres, sobrecarregadas pelas tarefas de cuidado que se multiplicam nos tempos da pandemia, mas não cuidadas pelo Poder Público. As mulheres pobres, negras e moradoras de periferias são ainda mais fortemente afetadas pela pandemia, o que reforça as desigualdades pré-existentes.

Estamos nos aproximando rapidamente da marca de 400.000 mortos sem que o país disponha de uma política unificada de enfrentamento à pandemia. Ao invés de um discurso, uma orientação e uma só agenda de saúde pública, temos uma estratégia de necropolítica no nível federal e, nas demais esferas de governo, uma miríade de iniciativas desencontradas. A ausência de uma coordenação nacional ampliou os espaços para narrativas que divergem em aspectos centrais sobre praticamente todos os temas, desde a prevenção, o uso de máscaras, o distanciamento social, a importância da proteção social, as abordagens terapêuticas e a vacinação. O que sempre foi domínio da Ciência, temas que em qualquer democracia no mundo foram abordados com o criterioso amparo de evidências de estudos clínicos e revisões sistemáticas passaram a ser tratadas por conspiradores com milhares de seguidores no YouTube e por relatos anônimos de testemunhas e sábios de botequim. O processo, como se sabe, não teve geração espontânea. Ele se formou com a sistemática produção de conteúdos manipulatórios dirigidos aos potencialmente influenciáveis por mensagens preconceituosas que estimulam o ódio a adversários políticos e a instituições.

Há vários elementos totalmente novos nesse processo, mas destacamos dois deles: a) o enfraquecimento radical da esfera pública, como ambiente solar onde todos os argumentos podem ser expostos e contraditados sob a vista dos interessados; o que se deu pelo deslocamento do discurso político ao mundo sublunar dos espaços privados, onde os aficionados compartilham mensagens produzidas com incrível eficácia e b) a possibilidade de customização de mensagens para os indivíduos a partir da descoberta daquilo que Shoshana Zuboff chamou de “superávit comportamental”, vale dizer a infinidade de dados a respeito dos hábitos, ações, preferências, convicções de cada um de nós, entre outras informações privadas hoje de domínio das grandes corporações do mundo digital, que tornaram possível, a partir dos recursos de big data, o estabelecimento de um mercado de comportamentos futuros e, também, por óbvio, a fabricação de opções político-eleitorais.

No Brasil, a disseminação de conteúdos falsos e beligerantes, técnica amplamente empregadas nas eleições de 2018, se vinculou, desde o início, à proposição do golpe militar, apresentado com o mantra da intervenção militar como se a figura tivesse guarida na ordem constitucional. Na pandemia, o fenômeno caracterizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como infodemia, tem revelado um potencial ainda mais destrutivo com a disseminação de fake news negacionistas, de sentido antivacina e a favor de medicações contra a covid-19 sem amparo em evidências (Lópes-Medina; Lópes; Hurtado et al, 2021; World Health Organization, 2021; The Recovery Collaborative Group, 2021; Mainoli, Machado & Duarte, 2021). Tal situação, assinale-se, é ainda mais grave pelos possíveis efeitos iatrogênicos já observados e pela evidente redução de cuidados preventivos que costuma se associar à crença em remédios milagrosos.

As palavras costumam indicar movimentos mais profundos e não há violência política que se efetive sem ser anunciada com antecedência. O discurso violento é, por isso, sempre uma promessa e, em muitos casos, aquilo que Robert K. Merton chamou de “profecia que se auto cumpre” (self-fulfilling prophecy). O Holocausto não seria possível sem a ampliação do antissemitismo por um discurso que associava os judeus a insetos; o Gulag não seria realidade sem a ideia, proferida milhares de vezes, de que os dissidentes eram “inimigos do povo” ou “gusanos” (vermes) como prefere a ditadura cubana; tampouco o massacre de Ruanda ocorreria sem que os Tutsi fossem chamados de “baratas” pelos Hutus durante décadas.

Nunca em nossa história, um presidente foi capaz de produzir um discurso com tamanha intolerância e ódio quanto o tem feito Jair Bolsonaro. Esse fato, por si só, já seria temerário, mas há uma situação muito mais preocupante sintetizada, recentemente, pelo ministro Edson Fachin nos termos de sete ameaças à democracia: 1) a remilitarização do governo civil, 2) as intimidações e proposições de fechamento dos demais Poderes; 3) declarações acintosas de depreciação do voto; 4) atentados à liberdade de imprensa; 5) incentivo ao armamento geral; 6) recusa antecipada do resultado eleitoral e 7) naturalização da corrupção dos agentes administrativos.

O ponto central a discutir é que essas ameaças não decorrem da saúde, mas de um projeto político que não guarda com a democracia qualquer laço de pertinência, ainda que surja por dentro dela. Parece que estamos diante do fenômeno da erosão incremental da democracia conforme assinala Adam Przeworski analisando países como Turquia, Polônia, Hungria e Venezuela aos quais o Brasil sob Bolsonaro é frequentemente comparado. No caso brasileiro, as ameaças atingem a democracia e já significam o retrocesso em diversos direitos que o país ampliou como a inserção de mulheres no mercado de trabalho, proteção ambiental e educação entre outros. Perdem-se décadas de avanços que buscavam corrigir as injustiças e desigualdades históricas e uma noite ou mais noites de obscurantismo e violência voltam a assombrar nosso futuro próximo.

O agravamento da pandemia no Brasil é marcado pela posição negacionista do presidente e por sua determinação em permitir que o vírus circulasse amplamente para, assim, se alcançar a imunidade de rebanho. Essa estratégia infame foi demonstrada pelo estudo do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas que analisou mais de 3.000 atos normativos do Governo Federal durante a pandemia. Nesse trágico caminho, chegamos ao ponto do risco de não retorno em termos de possibilidades futuras.

Além de tudo o que já perdemos pela negligência, despreparo, irresponsabilidade e estratégia do gestor federal e de muitos outros governantes e políticos que se comportam zelando tão somente por suas perspectivas eleitorais, corremos agora o risco de tornarmos a covid-19 endêmica, com mais de 90 cepas do coronavírus já identificadas no país; o que, somado à destruição do sistema de proteção ambiental, consolidará a imagem do Brasil como uma ameaça ao planeta. Os impactos desse processo na economia aumentam os riscos de produção do caos social e de ações violentas, o que poderá ser utilizado para a justificativa de medidas de exceção e para inviabilizar as próximas eleições presidenciais.

Esse parece ser um roteiro definido para uma ruptura institucional. É preciso saber se as instituições democráticas serão capazes de barrá-la; se a sociedade civil irá se mobilizar de modo a sublinhar seu desacordo com as políticas do Governo Federal e defender os direitos fundamentais; se os partidos políticos comprometidos com valores democráticos conseguirão, diante da gravidade das ameaças, relevar suas diferenças e se portar responsavelmente e se saberemos construir uma saída para a crise sanitária e econômica com base na Ciência.

Marcos Rolim é doutor em Sociologia (UFRGS) e professor do programa de pós graduação em Direitos Humanos da UniRitter (RS).

Monika Dowbor é doutora em Ciência Política (USP), coordenadora do programa de pós graduação em Ciências Sociais da Unisinos (RS).
Ana Severo é economista, consultora em gestão de políticas públicas.

Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 28.04.2021.

O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito

A imprevisibilidade decisória – onde, quando, quem julga – volta a reinar. A insegurança jurídica é uma punição dada ao Brasil. De Lava a Jato a Lava as Mãos

Por Joaquim Falcão

O futuro do Brasil se faz perguntas muito simples. Mas decisivas. Diante da extensão da corrupção vista, ouvida e comprovada, primeiro exposta pelo mensalão de Joaquim Barbosa, e depois pelo juiz Sérgio Moro: quem cometeu o quê? No caso, Lula cometeu algum crime? Fez algo inadequado? Ou agiu dentro dos limites legais?

O Supremo não responde. Apenas constrói respostas reflexas. Não entra no mérito. Oculta-se em debates processuais sobre competências internas. Adia o Brasil. Nossa economia. Os investimentos. Nossa democracia. A normalização política.

Fere o direito de informação do cidadão. Não por esconder as respostas ilegalmente. Mas por não tê-las, hesitá-las, quando já deveria ter. Uma maneira de esconder é não decidir.

Em vez de responderem ao Brasil, discutiram em autofagia institucional. Quem manda em quem internamente? O relator manda na turma? A turma manda no relator? O plenário tem competência? Para quê? Tem, não tendo? O Supremo parece não saber quem é o Supremo.

Pode um ministro pedir vista por dois anos e três meses? Vital para o País? Pode querer ganhar votação no grito, como Barroso bem apontou?

Se o juiz Moro é suspeito, tudo ou quase tudo tem que recomeçar? Rejulgado em Brasília? A imprevisibilidade decisória – onde, quando, quem julga – volta a reinar. A insegurança jurídica é uma punição dada ao Brasil. De Lava a Jato a Lava as Mãos.

O ministro Barroso descreveu a natureza da corrupção revelada por Curitiba e a tática processual da vingança judicializada. A corrupção era sistêmica, planejada, interligada. Para combatê-la é preciso direito processual sistêmico. E não como instrumento da segmentação e individualização da corrupção.

Não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente. Talleyrand dizia que, às vezes, palavras escondem os pensamentos. O direito processual, às vezes, é usado para esconder o direito substantivo.

Quem melhor definiu ontem o Supremo foi o decano Marco Aurélio. Parecia um caleidoscópio. Aquele tubo, que criança gosta, onde as pedrinhas mudam de figura conforme você gira, em oposição, cada uma de suas partes.

Joaquim Falcão é membro da Academia Brasileira de Letras e Professor Titular de Direito Constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas - RJ. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 23.04.2021.

O pleno se pronuncia


Por Merval Pereira

O resultado de 9 a 2 no julgamento de ontem, confirmando que o plenário do Supremo Tribunal Federal pode julgar a decisão do ministro Edson Fachin de enviar à Justiça do Distrito Federal os processos contra o ex-presidente Lula não relativos à Petrobras, não reflete necessariamente a posição da maioria quanto à suspeição do ex-ministro Sergio Moro, decidida pela Segunda Turma. Embora possa indicar que a mudança de foro de Curitiba para o Distrito Federal será aprovada.

A figura política do ex-presidente Lula pairou sobre os votos de ontem, embora muitas vezes não tenha sido citado. O ministro Ricardo Lewandowski, que mencionou o ex-presidente diversas vezes em seu voto e em suas intervenções, chegou a afirmar que o tema só estava sendo discutido no plenário porque se tratava de Lula. Foi rebatido pelo presidente Luiz Fux, que lembrou que é inegável que o julgamento é importante porque diz respeito à Operação Lava-Jato e ao combate à corrupção no país.

Lewandowski foi o que mais politizou o tema, chegando a dizer que julgamentos do Supremo levaram a que Lula não pudesse concorrer à disputa em 2018, o que, segundo ele, poderia ter mudado para melhor o futuro do país.

O resultado de ontem foi uma derrota dos advogados da defesa do ex-presidente Lula, que queriam que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse tratado na mesma Segunda Turma. No plenário, a possibilidade de derrota é maior, embora possa não se confirmar.

A mudança de foro dos processos de Lula, de Curitiba para o Distrito Federal, decretada pelo ministro Edson Fachin, deve ser mantida pela vasta maioria do plenário, mas suas consequências em relação ao ex-juiz Moro ainda dependem do tamanho da divisão do plenário.

Os três ministros que votaram pela suspeição de Moro na Segunda Turma — Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Lewandowski — já reafirmaram seus votos no julgamento de ontem, em comentários paralelos. A discussão de hoje será em torno de um paradoxo jurídico: um juiz pode ser considerado incompetente para julgar um caso e, ao mesmo tempo, suspeito?

A decisão da maioria de admitir julgar o caso no plenário pode significar que, aprovando a tese de Fachin, o julgamento da isenção de Moro fica prejudicado. No entanto, para explicitar que seu voto não significa a análise do mérito, a ministra Cármen Lúcia reiterou que o plenário do Supremo não é órgão revisor da decisão das turmas e, portanto, não tem poderes para alterá-la.

Essa tese parece ter boa aceitação, sem que seja possível, no entanto, definir qual será a decisão final. Relator da Lava-Jato no Supremo, Fachin considera que o julgamento da suspeição perdeu sentido com a mudança de foro, e tem adeptos dessa tese.

O que estará sendo julgado, subjacente à suspeição, é o destino dos processos da Operação Lava-Jato. Caso Moro seja considerado suspeito no caso do triplex do Guarujá, todas as operações e investigações já ocorridas durante a tramitação desse processo em Curitiba serão anuladas, e ele terá que ser iniciado da estaca zero, o que poderá garantir sua prescrição.

A derrubada da suspeição manterá a elegibilidade do ex-presidente Lula, mas dará ensejo a que os novos juízes utilizem, em parte ou no todo, o material colhido pela força-tarefa de Curitiba em todos os processos, o que, em tese, faria com que Lula ficasse com uma espada de Dâmocles sobre sua candidatura à Presidência da República.

O ministro Marco Aurélio, ontem um dos dois votos contrários a que o plenário examinasse o recurso da Procuradoria-Geral da República, ironizou o fato de o ex-juiz Moro ter passado de herói nacional a bandido, indicando talvez que vote contra a decisão de suspeição tomada na Segunda Turma. Mas a tese de Cármen de que a decisão da Turma não pode ser revista tem seu peso. A grande questão é que a suspeição de um processo pode levar a que outros julgados por Moro venham a ser considerados nulos também pela Turma, o que prejudicaria toda a operação Lava-Jato e proporcionaria a revisão de todos os julgamentos do ex-juiz Moro.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 15.04.2021.

STF e suas razões


Por Merval Pereira

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razões que até a razão desconhece, como disse o filósofo Blaise Pascal no século XVII sobre o coração. Só assim podemos compreender a série de decisões tomadas nos últimos dias, reflexos distorcidos de outras, que percorreram todas as instâncias jurídicas nos últimos cinco anos em que a Operação Lava-Jato esteve em pleno vigor no combate à corrupção.

O STF é o exemplo mais evidente de que, no Brasil, até o passado é incerto, frase que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan colocou em evidência. Cinco anos depois de vários processos, vários julgamentos até na terceira instância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem o Supremo decidir, por maioria, que o foro para a Operação Lava-Jato não era Curitiba. Pior: ninguém sabe que comarca é o foro correto.

Dos onze ministros, oito votos a favor de transferir o foro se dividiram entre dois que achavam que era mesmo Curitiba, mas seguiram a maioria: o próprio relator Edson Fachin, e Luis Roberto Barroso. Outro, o ministro Alexandre de Moraes, votou por São Paulo, que deve prevalecer, e os demais pediram tempo para pensar. Três outros ministros votaram por manter o foro em Curitiba.

Como se vê, não é uma questão simples, e nem tampouco política. Denota um ponto de vista jurídico que é apoiado por cinco ministro do STF, e foi apoiado pelo STJ. Transformou-se a definição do foro em um ato político contra o ex-juiz Sérgio Moro, como se ele tivesse usurpado o juízo natural quando a questão foi discutida em diversos fóruns e, até o momento, a centralização em Curitiba dos processos da Lava-Jato por conexão era perfeitamente compatível com as normas jurídicas.

Aconteceu a mesma coisa no julgamento do mensalão. O então advogado Marcio Thomas Bastos, que já fora ministro da Justiça do governo Lula, tentou de diversas maneiras fatiar os processos, para mandar para tribunais regionais eleitorais ou varas comuns todos os que não envolvessem pessoas com prerrogativa de foro.

Por que queria fazer isso ? Porque era mais fácil para os advogados de defesa, desmembrando os casos, retirar deles a carga de uma operação organizada, conectada entre os diversos crimes. Assim como começou a ser feito pela Segunda Turma em relação à Lava-Jato, enviando processos para os tribunais eleitorais regionais e para instâncias inferiores da Justiça.

A segunda parte dessa história será julgada na próxima quinta-feira, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. Mais uma vez, as razões que a própria razão desconhece surgirão para serem debatidas. No início da sessão, vai ser levantada uma questão de ordem para saber se o plenário pode ou não analisar se a Segunda Turma poderia ter julgado o caso mesmo depois que o ministro Edson Fachin transferiu o foro para o Distrito Federal, decretando a perda de objeto do habeas-corpus.

Portanto, o plenário, embora não seja instância revisora das decisões das Turmas, como ressaltou a ministra Carmem Lucia, pode decidir que o julgamento da suspeição de Moro não deveria ter ocorrido. O que prevalece, a incompetência ou a suspeição? O artigo 96 do Código de Processo Penal diz que a suspeição é a primeira questão que tem que ser analisada nos processos, dentre as exceções: de competência, de impedimento, de suspeição.

Porém, segundo Douglas Fischer, renomado processualista penal, esse artigo só se aplica às exceções que são apresentadas na primeira instância. Quando essas exceções são arguidas em um habeas-corpus, ou em vários, impetrados em qualquer tribunal, inclusive no Supremo, não há ordem de precedência, pelo contrário.

Entre as duas, o que prevalece é a incompetência, porque você pode ter na mesma Vara, na mesma comarca, ou na mesma sessão judiciária, dois juízes, sendo que um é suspeito e o outro, não, ambos competentes. Mas não pode ter um juiz que é competente, e outro não, na mesma sessão judiciária. A competência prejudica a suspeição.

Vai ser outra das muitas discussões jurídicas a que assistiremos perplexos, no dizer do ministro Marco Aurelio Mello.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo online, em 18.04.2021.

TIRO NO ESCURO

Ao menos um massacre por semana. Fica difícil transmitir para o forasteiro o cansaço que nós americanos sentimos depois de cada nova tragédia.

Por Larry Rohter

Ao menos um massacre por semana. Eis o ritmo da carnificina aqui nos Estados Unidos devido ao fácil acesso às armas. Oito mortos no estado da Georgia, dez no Colorado, cinco em Maryland, quatro na Califórnia — isso apenas no mês passado. Em 2020, o total chegou a uma cifra recorde de 19.380 mortos, apesar da pandemia. Num país com 330 milhões de habitantes e 393 milhões de armas registradas, esses números não chegam a ser surpreendentes. E é justamente esse modelo mortífero que Jair Bolsonaro e seus filhos desejam importar para o Brasil.

Um assunto de tamanha importância merece uma discussão das mais amplas, mas não é o que está acontecendo. Em vez disso, os decretos de flexibilização da posse e do porte de armas e munição anunciados pelo Executivo na véspera do Carnaval — o mais recente disparo numa ofensiva bem planejada — tiveram uma tramitação expressa, de apenas 32 horas. O governo alega que houve 11 meses de consultas prévias, mas parece que os únicos envolvidos foram os colecionadores, atiradores e caçadores favoráveis às medidas. Foi exatamente como a cerimônia de posse dos novos ministros da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Casa Civil, Secretaria de Governo e Advocacia-Geral da União no dia 6 de abril: um processo fechado, reservado, quase secreto e às escondidas da imprensa.

Vou tentar, então, explicar a sensação de receio permanente que permeia o cotidiano de uma sociedade em que as armas são onipresentes. Imagine: você está aguardando sua vez numa pizzaria ou num McDonald’s quando entra um sujeito vestido em traje camuflado e portando um fuzil semi-automático AR-15 — fenômeno bastante comum nos 31 estados americanos com porte livre de armas. De repente a fila fica mais curta; as mães estão com medo e saem rapidamente com seus filhos. Enquanto isso, o freguês ainda esperando fica na dúvida: o armado é apenas um caçador com fome, ou um atirador maluco? Todo mundo fica nervoso e de olho nele.

Pior ainda é o impacto das armas no debate político. A primeira emenda a nossa Constituição garante as liberdades de expressão, imprensa e reunião, mas o porte irrestrito de armas tem o que os advogados chamam de “efeito inibidor” sobre o diálogo livre. Quando milicianos fortemente armados invadiram o Capitólio em Michigan em maio do ano passado para protestar contra o lockdown, os legisladores tiveram de cancelar a sessão. Em Wisconsin, no verão passado, um miliciano de 17 anos decidiu enfrentar uma marcha anti-racista e matou dois manifestantes. Apesar de serem de extrema-direita, parece que eles acreditam no famoso bordão de Mao Tsé-Tung: “O poder político vem do cano de uma arma”.

Agora a bancada da bala americana exige o direito de portar armas até no plenário do Congresso, supostamente como autodefesa. Mas a proibição existe porque certos legisladores escravocratas no século XIX balearam seus oponentes abolicionistas. O Brasil não está isento desse fenômeno: o caso mais conhecido aconteceu em 1963, quando o então senador Arnon de Mello disparou contra seu colega e rival alagoano, errou o alvo e matou o senador acreano José Kairala. Queremos voltar a esses dias?

Fica difícil transmitir para o forasteiro o cansaço que nós americanos sentimos depois de cada nova tragédia.

Certos ritos se repetem. Lamentamos, colocamos velas nos lugares do massacre, os vizinhos do autor da chacina dizem a repórteres que “parecia um cara normal”, exigimos ação do Congresso — e não acontece nada, absolutamente nada. Sabe por quê? Porque o superpoderoso lobby das armas diz que “não devemos politizar uma calamidade”.

Outro refrão ouvido sempre nesses momentos de dor coletiva é que “as armas não matam as pessoas, são as pessoas que matam as pessoas”. Mas um ressentido sem oportunidade de comprar um fuzil ou metralhadora não tem como massacrar os fiéis numa igreja ou estudantes numa faculdade, do mesmo jeito que um bêbado sem carro não tem como atropelar pedestres ou colidir com um ônibus. Temos todo um sistema para controlar quem pode e não pode dirigir, regras de velocidade etc. para garantir a segurança nas estradas. Mas nos Estados Unidos qualquer um pode comprar uma arma sem nenhuma regulamentação, em nome de uma falsa “liberdade” que na verdade ameaça a tranquilidade dos outros.

O Brasil ainda não chegou a esse patamar, graças a Deus. Mas, ao enfraquecer a fiscalização e ampliar o acesso às armas, os Bolsonaros e seus aliados estão abrindo uma verdadeira caixa de Pandora. Será que o brasileiro é menos violento e mais contido que o americano? Duvido. A raça humana tem certas características universais, e a agressão é uma delas. A arma apenas aumenta essa tendência, e não faz sentido facilitá-la. Sabemos de antemão o resultado.

Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”. Este artigo foi publicado originalmente na revista Época, em 09.04.2021.

BOLSONARO AINDA NOS PASSOS DE TRUMP

Para ele, o critério principal não era a habilidade do indicado, mas sim sua lealdade. No final de seu mandato, foi compelido a vasculhar a quarta divisão em busca de interinos oportunistas.

Por Larry Rohter

Quando um chefe de Estado tem uma mente desordenada e sua capacidade de organização está muito aquém das exigências do cargo, o resultado inevitável é o caos em seus ministérios, no resto do aparelho administrativo e no país. É uma lei universal da política, que os Estados Unidos experimentaram durante os quatro anos tumultuosos de Donald Trump na Casa Branca. E agora o Brasil está vivendo o mesmo fenômeno angustiante, conforme as deficiências de Jair Bolsonaro ficam cada vez mais evidentes.

Com a substituição de seis ministros na segunda-feira 29, Bolsonaro virou campeão de instabilidade. Em pouco mais de dois anos no poder, já são mais de 20 mudanças ministeriais. Incluindo interinos e indicações retiradas, são cinco ministros da Educação, quatro da Saúde, três da Justiça, trocas na Casa Civil e Cidadania etc., etc. Parece que se instalou uma porta rotativa no Palácio do Planalto, e podemos ter certeza de uma coisa: virão outras substituições, consequência da natureza impetuosa do presidente.

Foi atemorizante observar o mesmo processo no governo Trump. Cada vez que um ministro se demitiu — ou foi demitido num tuíte áspero e petulante —, seu substituto acabou sendo alguém ainda menos capaz ou escrupuloso. Claro, ninguém com um mínimo de talento ou fibra moral quer trabalhar para um presidente que não sabe governar e, ainda por cima, culpa os subordinados por sua própria incompetência. Por que entrar no serviço público se sua recompensa serão apenas insultos, uma reputação manchada e seus conselhos ignorados?

A historiadora americana Doris Kearns Goodwin cunhou o termo “time de rivais” para descrever a brilhante equipe de ministros, oriundos das mais diversas origens ideológicas e geográficas, que ajudou Abraham Lincoln a ganhar a Guerra Civil americana e preservar nossa União. Foi exatamente o contrário com Trump, que montou um time de bajuladores ineptos. Para ele, o critério principal não era a habilidade do indicado, mas sim sua lealdade. No final de seu mandato, foi compelido a vasculhar a quarta divisão em busca de interinos oportunistas. Bolsonaro parece seguir o mesmo raciocínio: a fidelidade acima de tudo.

Realmente, os paralelos entre os dois continuam sendo assombrosos. Num momento em que seu governo estava desmoronando devido a sua incompetência em enfrentar a pandemia, Trump tentou envolver as Forças Armadas na política interna, mas o Estado-Maior respondeu com uma declaração contundente que se resumia numa só palavra: NÃO!! Agora, Bolsonaro emprega a mesma tática, ameaçando um estado de exceção, e cabe aos militares assumir o papel de bombeiros freando um presidente piromaníaco.

Trump falava sempre de “meus generais”. O ex-capitão reformado trata as Forças Armadas como se fossem sua milícia particular.

O general Fernando Azevedo e Silva fez bem em não se curvar ante um abuso do poder, e em sua carta de despedida ouço ecos do general Jim Mattis quando se demitiu como Ministro da Defesa no governo Trump em dezembro de 2018. Em ambos os casos, o demissionário enfatizou a importância de preservar as Forças Armadas como instituições de Estado.

Agora basta ver se o general Walter Braga Netto também tem coragem. Os primeiros indícios não foram alentadores. A saída simultânea dos comandantes das três Forças, na semana em que o Brasil marca o aniversário do golpe de 1964, foi um ato repleto de simbolismo nada positivo. E dizer que o golpe precisa ser “compreendido e celebrado” apenas agravou as dúvidas iniciais. No mínimo, mostra uma falta de juízo político. Senhores passageiros, apertem seus cintos de segurança.

Outro paralelo preocupante entre Trump e Bolsonaro ficou exposto na mudança no Ministério da Justiça. Sempre achei equivocada a decisão de Sergio Moro em aceitar o cargo, emprestando seu prestígio pessoal a um presidente que carecia de respeito. Mas Moro teve o caráter de renunciar quando Bolsonaro ultrapassou os limites, e seu lugar foi preenchido pelo insosso advogado/pastor André Mendonça. Agora entra o ex-delegado Anderson Torres, amigo da família Bolsonaro. Trump também procurou um ministro submisso para defender seus interesses pessoais e acertou na terceira tentativa, com William Barr.

Em sua carta de despedida, o ex-chanceler Ernesto Araújo escreveu que o país é alvo de um projeto nefasto que visa roubar o brasileiro de “sua dignidade material e, principalmente, espiritual”. Tem razão: existem forças poderosas que tentam pauperizar e até matar um povo tradicionalmente generoso, cordial, e solidário. Só que Araújo errou de foco. A campanha não se origina no estrangeiro, nem nos salões das elites brasileiras. Vem do próprio Palácio do Planalto.

Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”. Este artigo foi publicado na revista Época, em 02.04.2021

Polícia em disputa

Por Tábata Amaral

O aparelhamento de qualquer braço armado do Estado é uma ameaça à democracia

Não demorou para que o surto psicótico do soldado Wesley Góes, alvejado por disparar contra outros policiais, fosse utilizado por deputados bolsonaristas, como a presidente da CCJ, para incentivar um motim das polícias contra os governadores.

Essa tentativa de instrumentalização, infelizmente, não vem de hoje. Ela catapultou a carreira de Bolsonaro e pode agora representar um alicerce importante da sua estratégia autoritária. Junte-se a esse aparelhamento as 31 alterações feitas na política de armas do país e os constantes ataques ao nosso sistema eleitoral e têm-se a receita do presidente para 2022.

Tudo indica que, se perder as eleições, Bolsonaro tentará replicar a manobra utilizada por Trump. Com a diferença de que, aqui, o elo do presidente com braços armados do Estado é mais forte. Mesmo rompido com parte da cúpula do Exército, Bolsonaro vem se alavancando, cada vez mais, sobre as insatisfações, muitas vezes legítimas, dos praças.

Temos uma polícia que está entre as que mais mata e morre no mundo, para a qual o número de suicídios supera inclusive o de mortes em serviço. Trata-se de profissionais que colocam sua vida em risco, são mal remunerados e sentem que parte da sociedade os rejeita. Esse é um terreno fértil para um presidente populista que os chama de herói, frequenta as suas formaturas e promete atuar por eles.

Essas promessas, no entanto, não passam de palavras vazias. O projeto de Lei Orgânica das Polícias apoiado por Bolsonaro despreza ações que, de fato, poderiam profissionalizar e valorizar a carreira policial. Tampouco estão entre as prioridades do presidente a implementação do Sistema Único de Segurança Pública e a oferta de uma estrutura de apoio psicológico e social às polícias.

A única coisa que Bolsonaro parece estar realmente disposto a fazer pela corporação é se aproveitar das suas insatisfações para obter o apoio armado de que precisa, e isso é, sim, muito perigoso. É um risco enorme a qualquer democracia que uma instituição com o monopólio da força seja utilizada como base de um projeto de poder. É por isso que é tão importante que todo o espectro político, incluindo o campo progressista, crie pontes com os policiais, dialogando com suas dores e anseios.

A escalada autoritária liderada pelo presidente segue em curso. Para além de barrar as constantes investidas do Executivo —como fizemos nesta semana ao impedir que fosse pautado o projeto do líder do governo que permitiria a convocação das polícias pelo presidente—, é preciso também tirar da extrema direita o monopólio do diálogo com as polícias. Antes que seja tarde demais.

Tábata Amaral é cientista política, astrofísica e deputada federal pelo PDT-SP. Formada em Harvard, criou o Mapa Educação e é cofundadora do Movimento Acredito. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 03.04.2021

O cão que late à toa e morde qualquer coisa


O presidente Bolsonaro é incapaz de conviver com divergências e, além de semear novos desafetos, o arranjo que constrói precipitadamente deixa os conflitos sem solução e cria outros

Por Celso Ming

O presidente Jair Bolsonaro é uma criatura insegura. Incapaz de conviver com divergências, sente-se ameaçado diante de qualquer diferença de opinião. Orgulha-se de reagir rapidamente: “Pior do que a decisão mal tomada é a indecisão” – repete ele. Mas a precipitação o impede de agir sobre as causas da divergência. É como o cão que late à toa e que morde a pedra que o atinge, e não quem a atirou.

Foi assim quando demitiu seus dois primeiros ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Foi assim quando demitiu o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, e o presidente do Banco do Brasil, André Brandão. Está sendo assim quando demite atabalhoadamente seu ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, os comandantes das Forças Armadas e o advogado-geral da União, José Levi.

Não importa para o presidente se um ministro é incompetente – ou não. Importa se ele está disposto – ou não – a dizer sempre amém a seus desígnios, por mais estapafúrdios que sejam. Mas às vezes, nem isso basta para aplacar seu ego sempre que sente o chão escapar-lhe sob os pés. Foi o caso das demissões do terceiro ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e do chanceler, Ernesto Araújo, que lhe tiraram sustentação com o Centrão.

O problema é que, além de semear novos desafetos, o arranjo que constrói precipitadamente deixa os conflitos sem solução e cria outros.

A pandemia já causou mais de 320 mil mortes e continua ceifando vidas sabe-se lá até quando e a que preço, porque a política sanitária do Brasil é uma aberração, assim reconhecida internacionalmente; porque as vacinas foram repelidas e, depois, porque não foram providenciadas a tempo; e porque o chamado tratamento precoce com remédios ineficazes contra a covid-19, a falta de distanciamento social e o não uso de máscaras compõem uma penca de falácias que levaram hospitais ao colapso e encheram os cemitérios.

O cão que late à toa e morde qualquer coisa
Incapaz de conviver com divergências, sente-se ameaçado diante de qualquer diferença de opinião. É como o cão que late à toa e que morde a pedra que o atinge, e não quem a atirou.

Não basta substituir o presidente da Petrobrás sem equacionar primeiro a questão dos voláteis preços dos combustíveis, que oscilam segundo as cotações internacionais e segundo a cotação da moeda estrangeira em reais. Não basta substituir o presidente do Banco do Brasil sem dizer primeiro como se faz para dar à empresa um mínimo de racionalidade administrativa num mercado competitivo e em forte mutação pelo uso intensivo das tecnologias digitais.

Bolsonaro entendeu que sua falta crônica de apoio político poderia ser suprida com a intensa cooptação dos militares. Nada menos que 6 mil deles foram incorporados à máquina do governo e nos postos de administração das empresas estatais. Mas esse jeito de garantir sua própria segurança entra em conflito com o princípio de que as Forças Armadas são instrumentos de Estado. Não podem ao mesmo tempo ser governo, sob pena de terem de se responsabilizar pelas lambanças e por toda omissão do governo, como na política de saúde, nos desastres do meio ambiente e na perigosa política de liberação de armamentos. A simples substituição dos comandos não dissolve o problema subjacente. E ele aparecerá mais à frente.

A outra viga de sustentação do presidente passou a ser o Centrão que funciona movido por toma lá dá cá e por chantagens políticas. Mas o Centrão está assentado sobre terreno sujeito a terremotos e a areias movediças. Hoje, exige a cabeça do chanceler e do secretário de governo. Amanhã, serão outras imposições atrás de mais concessões...

Também seguem sem solução a paradeira da economia; os 14,3 milhões de desempregados; a dramática quebra de renda do consumidor brasileiro; o Orçamento da União eivado de pedaladas que levam o risco de desembocar em condenações por irresponsabilidade fiscal; a disparada da dívida pública em direção aos 100% do PIB; o encalacramento das reformas; o novo galope da inflação; a falência de milhares de empresas; as indústrias que desistem de continuar no País, como mostram o fechamento das fábricas da Ford, da Mercedes-Benz e da Sony. E, também, como mostra a falta de confiança que puxou a cotação do dólar em mais de 29% no ano passado, mais novos 8% neste ano.

Mais que tudo, 2022 está logo aí. Lula voltou a ser elegível; empresários e banqueiros já não apoiam Bolsonaro como em 2018 e a minoria agitada que continua em sua defesa já não sabe como agir, pois falta comando e falta estratégia. E porque o presidente se sente cada vez mais inseguro.

Celso Ming é comentarista de economia. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 1.04.2021

Basta!


Por Eiane Cantanhede

Militares se unem a Judiciário e a Legislativo para dizer “não” aos absurdos de Bolsonaro.

O cerco do Congresso, dos tribunais superiores, de diplomatas, médicos, enfermeiros, ambientalistas, economistas, advogados, banqueiros e grandes empresários gerou um grito uníssono em Brasília: Basta! Basta de desgoverno, basta de delírios ideológicos e ameaças golpistas, basta de afundar o Brasil no cenário internacional. Há uma exaustão.

Nada, porém, foi mais estridente do que a demissão do ministro da Defesa, general de quatro-estrelas Fernando Azevedo e Silva, da reserva, que confirmou a crescente insatisfação das Forças Armadas com o governo e com o próprio capitão insubordinado Jair Bolsonaro.

Nem os militares aguentam mais.

Ordem, progresso, disciplina e hierarquia, sim, sempre. Mas Azevedo e Silva não segue a cartilha da submissão, da humilhação, da continência incondicional do general Eduardo Pazuello: “um manda, outro obedece”. Para o agora ex-ministro, a lealdade das Forças Armadas não é com o governo de plantão, muito menos com um governo errático e de viés autoritário. É com o Brasil.

Demorou, mas Azevedo e Silva cansou e ele não está sozinho ao negar ao presidente um alinhamento automático que engula os brios e os princípios das Forças Armadas para participar de qualquer tipo de ameaça ao País. Além de agir em acordo com o comandante Edson Pujol e o Alto Comando do Exército, o general teve apoio durante todo esse tempo também das duas outras Forças.

Na Marinha e na Aeronáutica concentram-se a insatisfação com a falta de compostura do presidente e a indignação com as menções recorrentes às Forças Armadas para ameaças e chantagens políticas. Mas, enquanto elas exibiam independência e distância, o Exército foi sendo sugado para o centro da política. Isso tem bônus: cargos, soldos, privilégios no Orçamento e nas reformas e a falsa sensação de poder. Mas o ônus não compensa: a perda de imagem, o uso da sua marca com intenções espúrias.

Com a demissão do general Azevedo e Silva os militares demonstram ao povo brasileiro que estão firmemente comprometidos com suas funções constitucionais, seus compromissos institucionais e a democracia. Unem-se, assim, a uma ampla parcela da sociedade que não suporta mais tantos desmandos, absurdos e erros, justamente numa pandemia com mais de 300 mil mortos.

A sensação é inevitável: quando o ministro da Defesa cai, mais um ministro da Saúde na pandemia cai e desabam o chanceler Ernesto Araújo, o ministro da Justiça, André Mendonça, e o advogado-geral da União, José Levi, é porque o governo está se desmilinguindo. Sem falar na fila de demissionários do Posto Ipiranga. Só falta o dono do posto.

Agora é preciso ver o que será construído no lugar. Não está claro se Bolsonaro vai trocar só o chanceler ou a política externa. Se muda o AGU para pintar e bordar a favor dos filhos no Judiciário e para perseguir os governadores no Superior Tribunal de Justiça.

O que está muito claro é que o general Braga Netto, que vai para a Defesa, vai encontrar o ambiente militar contaminado pela política, dividido, polarizado. E vai enfrentar, sobretudo, uma dúvida que não é apenas das Forças Armadas, mas de toda a Nação: ele assume para fazer o jogo sujo que o general Azevedo Silva teve a dignidade de se recusar a fazer?

O imbróglio militar e a pressão política inviabilizaram a ida do almirante Flávio Rocha para o Itamaraty. Se já resistia abertamente à presença de um oficial de quatroestrelas da ativa no Planalto, a Marinha não admitiria que ele assumisse a vaga de chanceler depois da demissão do ministro da Defesa. O trauma Azevedo e Silva cristaliza a mania de Bolsonaro de exigir submissão incondicional, principalmente nos erros, nos absurdos. Assim, tudo muda, mas não se sabe o que muda.

Militares se unem ao Judiciário e ao Legislativo para dizer ‘não’ aos absurdos e arroubos de Bolsonaro.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Kornal (PE) e do telejornal Globo News - "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, edição de 30.03.2021.

O piloto sumiu


Por Merval Pereira


O Congresso assumiu o comando de um “comitê de crise” contra a Covid-19, criado com um ano de atraso pelo presidente Jair Bolsonaro. As lideranças políticas do país, refletindo o pensamento de setores empresariais, da classe média desiludida, da maioria não negacionista emparedada pelo medo da pandemia sem ser maricas, tomaram as rédeas da situação, assumindo seu papel de representantes dos cidadãos. Assumiram o posto do piloto, que sumiu na tempestade.

Mesmo que formalmente Bolsonaro seja o líder, já perdeu a condição de liderar, e agora é liderado pelo Centrão, formado por políticos experientes, que não estão dispostos a seguir as maluquices do presidente eventual quando se trata propriamente do futuro do país e, por conseguinte, deles mesmos.

Uma relação impressionante de sequências foi feita pelo economista e especialista em risco Paulo Dalla Nora Macedo para demonstrar como chegamos aonde estamos, no dia trágico quando superamos a casa dos 300 mil mortes pela pandemia.

O mundo começou a vacinar em escala em janeiro deste ano. Só os EUA vacinaram 31 milhões de pessoas naquele mês. Até 31 de janeiro, o mundo tinha aproximadamente 2,250 milhões de mortes por Covid-19. O Brasil tinha cerca de 225 mil, ou 10% do total. De 1º de fevereiro até ontem, terão morrido mais 75 mil pessoas no Brasil vítimas da Covid-19, enquanto no mundo foram 500 mil.

Desde 1º de fevereiro, portanto, o Brasil terá concentrado 15% das mortes de Covid-19, um crescimento de 50% em relação a 31 de janeiro. Se pegarmos apenas março deste ano, esse número pode se aproximar de 30%. Ou seja, em março, quase uma em cada três mortes de Covid no mundo deverá ser do Brasil. “Um espanto que mostra que a aceleração de mortes aqui é absolutamente desproporcional ao resto do mundo.”

Na comparação com os EUA, o efeito do estágio da vacinação também é bem claro: até 31 de janeiro, eles estavam muito à frente do Brasil (+25%) no número de mortes por milhão de habitantes, o que ainda é verdade. No entanto, para as mortes apenas de 1º de fevereiro até hoje, estamos empatados em mortes por milhão de habitantes e temos curvas totalmente distintas: nós subindo, eles caindo. Por isso, se consideramos apenas março deste ano, já temos um número de mortes por milhão bem acima dos EUA.

A pressão sobre o governo chegou também à Comissão de Relações Exteriores da Câmara, onde seu presidente, o deputado tucano Aécio Neves, cobrou do ministro Ernesto Araújo uma ação mais efetiva do governo brasileiro, com nova postura no debate na Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre a quebra de patentes de vacinas e insumos de combate à Covid-19.

Membros do Brics, como Índia e África do Sul, com o apoio de outros 55 países, querem uma moratória do acordo que regula os direitos da propriedade intelectual, mas o governo brasileiro se posiciona por uma solução intermediária, que preserve as patentes, mas leve a uma produção de vacinas e insumos em países que já estão atendidos para países mais pobres, licenciamento voluntário negociado com as farmacêuticas, transferência de tecnologia.

“Um dos principais entraves à ampliação da oferta de vacinas no mercado mundial é o compromisso de patentes e a proibição de exportação de versões genéricas das vacinas em circulação. De um lado, criticamos a ausência de oferta de vacinas e, ao mesmo tempo, nos colocamos contrários a um movimento ou uma ação concreta que pode de forma célere ampliar a oferta dessas vacinas. Quais são as perspectivas para que uma solução intermediária possa ocorrer?”, atacou Aécio Neves.

É possível que, agora, haja uma orientação comum no combate à Covid-19 no Brasil. O comitê formado para coordenar as ações da crise da pandemia será comandada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Fica claro que, nesse assunto, Bolsonaro foi suplantado pela pressão do Congresso. Os políticos abriram os olhos, viram que, do jeito que estava, o país ia afundar, e resolveram assumir o controle da situação. O problema para Bolsonaro é que o Centrão está no comando, então ele terá que fazer avaliação sobre apoios políticos antes de reclamar de alguma medida que venha a ser tomada, como o lockdown.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, edição de 26.03.2021

Indignação e coragem


Derrotar o populismo é vital para nos livrarmos dos asnos que querem destruir a democracia

Por Luiz Felipe D’Ávila

O Brasil vive o mais longevo ciclo de governos populistas da sua História. Já se passaram quase 20 anos desde a posse do primeiro governo Lula. Após um breve hiato de sensatez, Lula embarcou no populismo desenfreado, aparelhando o Estado e institucionalizando um gigantesco esquema de corrupção que sangrou os cofres do Estado, corrompeu partidos e políticos, debilitou o funcionamento das instituições democráticas e aplainou o caminho para a eleição de Dilma Rousseff.

Fiel retrato da combinação de incompetência administrativa e inabilidade política, Dilma mergulhou o País em profunda recessão econômica, que produziu 13 milhões de desempregados e fez disparar a dívida pública. Ao tentar maquiar a situação lastimável das contas públicas, ela cavou a sepultura do seu impeachment, em 2016.

O cataclismo da era Lula-Dilma despertou o sentimento antipetista que elegeu Bolsonaro em 2018. A farsa do populismo de direita veio rapidamente à tona. A maquiagem liberal foi removida e a agenda reformista, sepultada. Aliás, Bolsonaro e Dilma parecem irmãos gêmeos: ambos são guiados pelo nacionalismo tacanho, pela defesa implacável dos interesses corporativistas e por um funesto intervencionismo do Estado na economia.

Não é por outra razão que a democracia brasileira atravessa a mais grave crise institucional desde a redemocratização do País, em 1985. Ao debilitar o sistema de freios e contrapesos institucionais, os governos populistas buscam a conquista do poder autoritário. Foi assim na Venezuela de Hugo Chávez, na Polônia de Andrzej Duda, na Hungria de Viktor Orbán e assim será no Brasil se o eleitor não expelir o populismo do poder pelo voto em 2022. Mas o populismo só se converte em autoritarismo quando a passividade cívica neutraliza a capacidade de nos indignarmos e de reagirmos às barbaridades cometidas pelo governo.

Nos Estados Unidos, a indignação cívica com a invasão do Congresso uniu milhares de cidadãos, imprensa conservadora e liberal e políticos republicanos e democratas em torno da defesa das instituições democráticas e da condenação do ato de vandalismo que representou o assalto ao Capitólio. Nas verdadeiras democracias há uma fronteira de respeito, decência, civilidade e dignidade que não pode ser cruzada, sob pena de o país descarrilar para o autoritarismo.

No Brasil, quando a sociedade civil se mobiliza – como foi no caso da reforma trabalhista e no da previdenciária –, o Congresso responde à pressão popular e aprova as reformas. Mas toda vez que a sociedade civil baixa a guarda, passa a boiada do interesse corporativista. A pressão do funcionalismo público desidratou a PEC Emergencial em mais de R$ 50 bilhões da proposta original. A vitória do corporativismo significa menos instrumentos de gestão para governadores e prefeitos frearem o gasto público e menos recurso para financiar o auxílio emergencial para os mais pobres. Mais uma vez o Congresso e o governo apostaram unicamente no aumento das receitas, como corte de benefícios tributários e aumento de impostos, para conter a escalada do rombo das contas públicas.

Santo Agostinho dizia que “a esperança nos deu duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como elas são; a coragem, a mudá-las”. Será preciso uma boa dose de indignação para erradicar a passividade cívica que nos leva a tolerar doses diárias da cicuta populista que mina a credibilidade da democracia e do funcionamento das instituições.

A sociedade civil precisa se mobilizar em torno de três pautas essenciais: engajar-se no esforço de guerra da vacinação da população, ajudar prefeitos e governadores a estancar a desesperadora crise social que foi agravada pela fome e pressionar o Congresso para votar os projetos que ajudem a impulsionar a retomada do crescimento, investimento e emprego. Na política, os partidos do campo democrático precisam se unir em torno de uma candidatura presidencial que personifique os seguintes atributos: capacidade de restabelecer a tolerância e a civilidade num país destruído pela boçalidade e pela corrupção moral e institucional que esgarçaram a confiança na democracia; competência técnica e política para tirar 20 milhões de brasileiros que o populismo jogou de volta à pobreza; coragem para sepultar a república de privilégios que sustenta o corporativismo; e liderança pública para reconstruir uma nação sustentável, capaz de conciliar a preservação do meio ambiente, o crescimento econômico e a abertura comercial.

A indignação e a coragem são vitais para mobilizarmos a sociedade e nos unirmos em torno de uma missão crucial: remover do poder os governantes “egoístas, vítimas de apoteose mental ou culto à personalidade. São asnos carregados de relíquias”, como bem descreveu Ulysses Guimarães, um grande líder político que lutou para restaurar a democracia no País. Derrotar o populismo em 2022 é vital para nos livrarmos dos asnos carregados de relíquias que querem destruir a democracia no Brasil.

Luiz Felipe D'Avila, cientista político, é autor do livro "10 Mandamentos - do Brasil que somos para o País que queremos". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, edição de 24.03.2021

A falta que nos faz um Biden


Por Carlos Alberto Sardenberg

Em 2 de janeiro deste ano, os Estados Unidos bateram o recorde de casos de Covid-19: 300.416 pessoas foram infectadas naquele dia. Em 12 de janeiro, cumprindo o ciclo do vírus, foi registrado o recorde de mortes por dia: 4.470.

Joe Biden tomou posse uma semana depois, em 20 de janeiro. Pois bem, no último dia 18, 59.822 residentes nos EUA foram infectados. E 1.611 morreram.

Os dados são do mapa da Covid-19 da Universidade Johns Hopkins.

Pode-se dizer que a vacinação já estava em curso, que o governo federal já estava comprando vacinas nas últimas semanas de Trump.

Verdade. Mas não percamos de vista a força de uma liderança nacional. Biden virou, sim, o jogo. Ele e a vice, Kamala Harris.

Primeiro, pela empatia com a população que sofria com a doença, sentimento demonstrado em cerimônias fúnebres de pesar e respeito, uso da máscara e campanhas pela vacinação. Isso muda o estado de ânimo de um país.

Segundo, pela ação fulminante. Prometeu vacinar 100 milhões de cidadãos em 100 dias. Passou dos 100 milhões no começo desta semana, sem distinguir entre americanos e não americanos.

Mais: em menos de dois meses de governo, aprovou um pacote de ajuda de US$ 1,9 trilhão, dinheiro para apoiar empresas, empregos e pessoas. Na semana passada, famílias residentes começaram a receber os depósitos em conta, US$ 1.400 por pessoa — um pagamento só — e parcelas mensais para crianças.

Ok, não precisam me dizer. Os EUA formam um país rico, com a maior parte da população bancarizada e a economia formalizada.

Mas, quando o governo Bolsonaro e o Congresso brasileiro levam mais de três meses para aprovar o programa de auxílio emergencial, isso não revela apenas incompetência. Indica falta de empatia e de preocupação com os doentes, seus familiares e os mais pobres.

O Congresso não ficou à toa nesse período. Negociou por semanas, nos bastidores, a eleição de suas mesas diretoras. A Câmara ainda arranjou tempo para tentar emplacar uma legislação pró-impunidade de seus membros.

O presidente Bolsonaro seguiu na marcha da loucura. Mandou procurar vacinas “na casa da mãe” e agora anda desconfiado de que todos os gestores de hospitais do Brasil, inclusive do SUS, formam um bando de mentirosos. Estariam todos passando números falsos de casos e mortes, tudo exagerado, para criar um clima contra ele, presidente.

Trata-se de um insulto grave ao pessoal da saúde, que está trabalhando além do limite para conter os casos crescentes. E uma ofensa aos doentes, os mortos, os familiares, os amigos.

Será por isso que, até a tarde de ontem, não manifestara condolências pela morte do senador Major Olímpio? Será que ele desconfia que o senador, seu desafeto, não morreu de Covid-19?

Parece absurdo, eu sei. Mas nosso colega Lauro Jardim relatou ontem que o futuro ministro da Saúde, o dr. Marcelo Queiroga, pretende mesmo dar uma blitz nos hospitais para checar se tem “tudo isso” de Covid-19.

E Bolsonaro ameaça decretar estado de sítio para acabar com o toque de recolher decretado por governadores e prefeitos.

O que ainda pode ser mais absurdo?

O pagamento de um auxílio de pequeno valor só a partir de abril. Diz o governo que não tem mais recursos. Tem sim. Os deputados e senadores poderiam abrir mão do dinheiro de suas emendas. O Congresso e o presidente poderiam ter usado sua maioria para cortar gastos com o funcionalismo.

Atenção, para evitar mal-entendidos. Dá para reduzir salários e benefícios da elite do funcionalismo, o pessoal da média e alta burocracia, nos três níveis do governo, Executivo, Legislativo e Judiciário.

E, com isso, aumentar o auxílio e dar prêmios substanciais ao pessoal da linha de frente do SUS e dos demais órgãos da saúde.

Eis o ponto: faltam uma liderança nacional e um Congresso não que representasse o povo — seria demais —, mas que ao menos o respeitasse e sentisse vergonha pelo que se passa.

Carlos Alberto Sardenberg é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.03.2021.

Para dizer nunca mais


Por Fernando Gabeira

Tanto falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita, centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa grotesca versão de governo.

Olhando o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de Bolsonaro na pandemia.

Mesmo os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.

De certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.

Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.

O líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da oposição a Bolsonaro.

Ocorreu-me pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo que está dentro da zona de conforto.

A existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de “genocida” ou mesmo de “pequi roído”.

Certamente, vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos os níveis do combate à pandemia.

Quando escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas, alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.

Ficou evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como Ernesto Araújo.

O caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.

Lula propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para garantir vacinas a alguns países asiáticos.

Os Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio. Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada ao México.

A vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.

Tudo o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade, é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.

Não importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.

A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais.

Fernando Gabeira é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 22.03.2021

O novo Lula é o mesmo


Ex-presidente reapareceu com um discurso simples e de essência racional

Por Elio Gaspari

Para o bem e para o mal, o novo Lula é o mesmo. Numa trapaça da história, enquanto o ex-presidente falava, Eduardo Bolsonaro, o 03, mandava que as pessoas enfiassem as máscaras “no rabo”, e seu pai, delicadamente, colocava-a no rosto.

Lula reapareceu com um discurso simples e de essência racional . Na quarta-feira, o número de mortos bateu a casa dos dois mil, num total de 270.917 (a provável população do Brasil no final do século XVII). A “gripezinha” estava no “finalzinho”, e a “conversinha” da nova onda mostrou-se mais letal que a do ano passado. Lula chamou Bolsonaro de “fanfarrão” e seu governo de “incompetente”: “Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você da Covid.”

Sem a teimosia delirante do capitão, Lula também tem um pé em sua realidade paralela. Ele fala de uma “Petrobras bem dirigida, como foi no nosso governo”.

A boa gestão no petróleo explicaria “o golpe contra a Dilma, porque é preciso não ter petróleo aqui no Brasil na mão dos brasileiros. É preciso que esteja na mão dos americanos, porque eles têm que ter o estoque para guerra.” Até aí, trata-se de uma opinião, mas Lula foi adiante:

“A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina.”

A Alemanha não chegou a Baku porque foi detida em Stalingrado no início de 1943. A essa altura, os nazistas já haviam sido detidos às portas de Moscou, e os Estados Unidos já haviam entrado na guerra (dezembro de 1941) e quebrado a perna do poder naval japonês na batalha do Midway (junho de 1942). A partir do final de 1942, os alemães passaram a combater numa guerra que não poderiam ganhar, mesmo que tivessem chegado ao petróleo de Baku. Isso para não se falar na bomba atômica, cujo combustível era urânio.

Falando da eleição de 1989, Lula diz: “Não ganhei porque a Globo me roubou”. A edição do seu debate com Fernando Collor foi editada com viés contra Lula, mas foi ao ar depois da transmissão da versão integral, ao vivo. Collor teve 35 milhões de votos, contra 31 milhões de Lula, que só venceu em três estados (RJ, RS e PE).

A agência Lupa checou a fala de Lula e apontou devaneios que custariam caro a Jair Bolsonaro se tivessem partido dele:

“Fachin (reconheceu) que nunca teve crime cometido por mim.”

“FALSO. A decisão do ministro do STF Edson Fachin não cita, em nenhum momento, que o ex-presidente Lula nunca cometeu crimes. Ele apenas considerou que as ações do tríplex de Guarujá (SP), do sítio em Atibaia (SP) e do Instituto Lula não têm relação direta com a Petrobras e não deveriam ter tramitado na Justiça Federal de Curitiba.”

Afora casos como esses, Lula continua ligeiro. Ele já disse que Napoleão foi à China e que Oswaldo Cruz criou a vacina contra a febre amarela. Agora, referiu-se a um artigo de 2004 do juiz Sergio Moro, no qual ele teria escrito que “só a imprensa pode ajudar a condenar as pessoas.” No seu famoso artigo de 2004, Moro não disse isso. Foi preciso, referindo-se à Operação Mãos Limpas italiana:

“Os responsáveis pela operação Mani Pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da ‘mani pulite’ vazava como uma peneira.”

Lula não precisava ter exagerado.

Elio Gaspari é Jornalista e Escritor. Pubicado originalmente em O Globo, edição de 14.03.2021.

O jogo do centrão


Por Malu Gaspar

Não há grandes dúvidas de que a troca de titulares no Ministério da Saúde terá o efeito de um placebo sobre os rumos do governo federal no enfrentamento à pandemia. Só não dá para dizer o mesmo dos efeitos da mudança sobre o futuro do governo Bolsonaro. Desde que o presidente anunciou a indicação do cardiologista Marcelo Queiroga para o cargo, uma fissura surgiu na aliança do bolsonarismo com o Centrão, bloco que sustenta politicamente o governo no Congresso. A dispensa da também cardiologista Ludhmila Hajjar, candidata de Arthur Lira e de vários outros membros influentes do bloco, fez com que começasse a circular na boca de seus líderes uma palavra que o presidente da República teme mais do que lockdown: impeachment.

“Não haverá um próximo ministro da Saúde. O que pode haver é um outro presidente da República”, dizia um desses inconformados, na terça-feira. A mensagem foi repetida diversas vezes nos últimos dias, com outros termos, a uma variedade de interlocutores no governo e na imprensa. E causou frisson nos bastidores justamente porque talvez não haja, em Brasília, nenhum termômetro mais bem calibrado para as expectativas de vida dos governos que o Centrão. Mas, antes que se imagine Arthur Lira encarnando um Eduardo Cunha 2.0 e partindo para o enfrentamento com Jair Bolsonaro, é preciso entender o que está em jogo nesse tabuleiro.

Desde que o presidente da República deixou Sergio Moro na estrada e abandonou as vestes anticorrupção, o bloco de Lira e seus aliados vêm ocupando cada vez mais espaço no governo. Seus apadrinhados estão na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), no Departamento Nacional de Obras Contra Secas (DNOCS) e no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Há menos de um mês, um de seus quadros, João Roma (Republicanos-BA), tomou posse no Ministério da Cidadania, que, além de ter o maior volume de verbas não carimbadas da Esplanada, ainda administra o Bolsa Família e o auxílio emergencial. Não consta, portanto, que o Centrão seja maltratado pelo presidente.

A questão é que os recentes movimentos das placas tectônicas da política fizeram o grupo sonhar mais alto. O primeiro foi a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara. Desde que assumiu, no início de fevereiro, Lira já aprovou a autonomia do Banco Central e garantiu a nomeação da candidata preferida do presidente da República para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), mas buscou se distanciar do negacionismo bolsonarista, posando de máscara em eventos no Planalto e cobrando agilidade na vacinação. Manteve na gaveta os pedidos de impeachment, mas comandou na Câmara o acordo partidário que manteve a prisão do radical bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

Há duas semanas, quando Edson Fachin anulou as condenações de Luiz Inácio Lula da Silva nos processos da Lava-Jato, recolocando o ex-presidente no cenário para a eleição de 2022, o Centrão se assanhou. Num post no Twitter, Lira escreveu que “Lula pode até merecer, mas Moro não”. Na Câmara, ao avaliar as consequências da decisão de Fachin, um escudeiro de Lira explicou, didático, que Bolsonaro agora precisa “fidelizar os aliados do centro”, já que Lula certamente atrairá apoios do mesmo grupo. “Tem um monte de ministério sem padrinho. É preciso abrir esse espaço”, dizia o deputado. Entre os próprios petistas, comentava-se que “o preço do Centrão aumentou”.

Foi nesse ambiente que se desenrolou a negociação para a saída de Pazuello da Saúde. Governadores, prefeitos e parlamentares do Centrão compreenderam logo que o fim do auxílio emergencial de R$ 600, a volta de Lula ao jogo eleitoral e o agravamento da crise da Covid-19 compunham um combo fatal para a popularidade de Bolsonaro. O presidente pode não ter percebido, mas o apelo para que se livrasse o quanto antes de Pazuello era também um aviso de que o bloco político não morrerá agarrado aos cadáveres deixados por seu desgoverno. Como diz uma das máximas do Centrão, “você pode pedir qualquer coisa a uma pessoa, menos que ela se suicide”.

O susto provocado pela última pesquisa Datafolha, mostrando que 54% da população avaliam como ruim ou péssima a atuação do governo na pandemia, fez o Planalto cancelar uma cerimônia em que se aglomerariam centenas de pessoas, e levou o demissionário Pazuello a dar uma entrevista defendendo isolamento social e mudança de hábitos.

Tais gestos, porém, não entram na conta do Centrão — uma equação guiada por verbas, poder e popularidade, não necessariamente nessa ordem e nem sempre com o mesmo peso. Se algum desses elementos desequilibrar demais o jogo, a fenda por onde hoje passam os cochichos sobre impeachment pode se transformar num abismo. Aí, não haverá Queiroga que resolva.

Malu Gaspar formada pela USP, cobriu política e economia nos principais veículos do país. Escritora, lançou dois livros: "Tudo ou Nada: Eike Batista e a Verdadeira História do grupo X" e "A Organização: a Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo". Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 18.03.2021

Dois erros antigos


Por Merval Pereira

Nada como uma competição, dogma do sistema capitalista que nenhum dos dois, Bolsonaro ou Lula, aceita integralmente. Não gostam de privatizações, querem o Estado induzindo a economia brasileira, usando as estatais como fonte de recursos políticos e econômicos. Bolsonaro, logo depois da fala de Lula, apareceu de máscara em solenidade pública, e nas redes sociais seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, postou a foto do pai com o slogan: “A vacina é nossa arma”. Parecia um slogan do governador paulista, João Doria.

Seria incorreto dizer que, afinal, Bolsonaro tem um adversário à altura na corrida presidencial. Mas é fato que a disputa entre um presidente no mandato contra um ex-presidente de dois mandatos é diferente. Como a pandemia se tornará o grande tema político nos próximos meses, a partir do patamar trágico de mais de 2 mil mortes diárias, o discurso do ex-presidente Lula foi um lançamento em alto estilo de sua candidatura, falando coisas sensatas e dando indicações do que faria se estivesse no governo.

Um comitê de crise, uma informação constante, com orientação à população e, sobretudo, incentivar a vacinação e não desdenhar a ciência são medidas de bom senso. Mas Luiz Mandetta, quando era ministro da Saúde, fez isso, e o governador João Doria está fazendo desde os primeiros dias da pandemia. Com vantagem para Doria, que tem o Instituto Butantan e a vacina CoronaVac para imunizar os habitantes de São Paulo e ainda distribuir doses por outros estados.

Além do mais, a economia do estado que ele governa foi a única que cresceu positivamente durante a pandemia e deve permanecer assim enquanto o resto do país sofre os desmandos do governo federal. O PSDB decidiu fazer eleições primárias entre Doria e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, para escolher seu candidato. Fazendo isso, ganhará uma consistência partidária que dará ao escolhido condições de disputar a eleição presidencial com uma base mais sólida do que em 2018.

O ex-presidente Lula apareceu ontem reciclando o personagem Lulinha, Paz e Amor, criado pelo marqueteiro Duda Mendonça em 2002, fazendo oposição a Bolsonaro, com afirmações de que o governo não cuida dos jovens, nem da economia, nem do emprego. Não totalmente paz e amor, no entanto. Talvez tenha querido deixar o passado para trás gastando um pouco da sua bile com os inimigos costumeiros, especialmente o ex-juiz Sergio Moro, que quer ver destruído.

Normal para quem ficou preso mais de 500 dias e agora vê os processos anulados. Lula foi vítima e beneficiário de uma disputa de narrativas em torno da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF). Com o fim da prisão em segunda instância, que o levou à cadeia, foi solto e, agora, com a mudança do foro competente para julgá-lo, teve os processos anulados.

Sem surpresas, mostrou-se próximo ao atual presidente quando criticou as privatizações, também quando atacou o jornalismo profissional. Bolsonaro quer fechar jornais, Lula quer controlá-los. O passado do PT condena Lula, mas o presente lhe é favorável, pois, se não foi inocentado, seus processos foram encaminhados para a Justiça Federal do Distrito Federal.

Começar todos da estaca zero, em outra jurisdição, é o que de melhor pode acontecer a Lula, pois a prescrição fatalmente acontecerá. Mas não está inocentado, e os roubos ocorridos na Petrobras e em outras estatais estão indelevelmente marcados na História do país. Temos, então, o maior erro judiciário da história, na versão de Lula, ou o maior caso de corrupção já registrado no país, talvez no mundo. Os que delataram, os que devolveram milhões de dólares e de reais aos cofres públicos, não deixam que se esqueça o esquema que foi montado.

Assim como não se pode esquecer que o presidente Bolsonaro ganhou uma eleição sobretudo porque absorveu o espírito do tempo e apoiou enfaticamente a economia liberal e o combate à corrupção, temas alheios a ele. Só lhe resta o antipetismo, forte fonte de apoios. Mas terá que disputar com os governadores Doria ou Eduardo Leite, o ex-ministro Ciro Gomes, e outros, esse espaço. Não podemos continuar a escolher o menos pior. Dois erros antigos não se transformam em um acerto.

Merval Pereira, Jornalista e Escritor, é comentarista de política na Globo News e membro da Academia Brasileira de Legtras. Este artigo foi pubicado originalmente n'O Globo, em 11.03.2021.

Sucata imunda de um coração


Mesmo que a maldade ande mais fácil que a bondade, não lamente o sol por causa do eclipse

Por Paulo Delgado

É um pouco repugnante o estilo difamatório do personagem que faz da grosseria investimento. O título do artigo é verso de W. B. Yeats, de poesia sobre deserções, fanatismo e ódio escravizando a alma.

Tirar a roupa em público é como dizer que não sabe nada. Com inteligência inadequada ao papel e princípios morais incapazes de defender a sociedade da pandemia, é o principal fator de desequilíbrio e desestruturação da institucionalidade. Torto, de sentimentos violentos, só entende as coisas do seu modo. Tudo é impossível, só ele é possível.

Cai por cima e põe por terra a sociedade civil, esgotada pelas sequelas sucessivas de frustração, inflação, baixa renda, identidades manipuladas, um sistema político deformador de cidadãos, juízes que burlam a lei, economia predatória, esgotamento da noção de destino, polícia arbitrária, desequilíbrio da noção de autoridade e reinfecção impulsionada por perversidade estatal impune.

O povo, como Eleanor Rigby, junta o arroz que o poder joga sobre os noivos e aguarda na janela seu destino.

Sem movimentos sociais a sociedade vê o imprevisível se tornar indesejável e suporta o improvisado contraveneno curiosamente virar o veneno. Porém, mesmo que a maldade ande mais fácil que a bondade, não lamente o sol por causa do eclipse.

Querendo se fazer mordaz o libertino é repentino. Repentino costuma não ser bom. O bem, diferente do mal, tem outra velocidade, vem devagar e leva em conta o ritmo do outro. É possível ser bom sem ter bagagem cultural. Difícil entender alguém influente sem atitude moral, seja prima-dona culta ou arrogante asselvajado. O mal-educado deveria desconfiar quando alguém vai visitá-lo.

As igrejas se dividiram, o Velho Testamento propagado aos berros exalta um Deus furioso, repetitivo, com ciúme da mansidão de Cristo. Impotente a oração, o ceticismo se acumula diante da fé. A riqueza perde mérito adquirida à sombra da virtude; a pobreza se alastra, a desigualdade se amplia.

Parte da Justiça quer adular o príncipe. Não detém a tempestade, quer ser um pingo dela. Felizmente, um ministro atento pisa no freio e decide adiar o renascimento do Riocentro. Mas não basta frear o ventríloquo. A fonte do falante é a garganta maior. O novo desenho está esboçado pela cultura dos desenfreados. E se impõe sobre o nacionalismo, os sentimentos coletivos, as instituições culturais e a vida econômica desorientada, comprometendo a formação para o trabalho e o emprego.

Hormônios fora do lugar, virilidade errada, armas em todo lugar, não é energia, é destruição. Sucata de um coração desumano, puxa o mundo para seu lado, aperta o pescoço aos palavrões.

Não vai ser coisa boa quando a decadência da língua e a miséria do corpo se encontrarem na terra de ninguém que se anuncia. Há em curso a ideia da violência como forma de organização social. Lugar onde a propensão para a confrontação, a cultura da extorsão, o policial violento e a arma de fogo do cidadão sem limite já corroem as bases da segurança pública.

O governante não deve levar em conta exclusivamente sua aflição. Se não respeita a democracia, manipula soldados, políticos e juízes, e quer impor sua vontade a ferro e fogo, seus costumes pessoais o denunciam e costuma vir dele mesmo a força que o aniquila.

O silêncio social cria cidadãos arruinados, sem condições de reagir. A economia, tocada por ministério reticências, desassociado da vida real, continua desatenta à avalanche do que se está formando. Todos os caminhos já foram percorridos. Livre mercado sem lei e gabinete com antipatia pelo povo ajudam pouco ao liberalismo. A economia, cheia de pretextos de mercado, precisa das razões de emprego, comércio e indústria. Capaz de fazer uma gestão que olhe as razões dos atores produtivos sem preconceito, com visão positiva do trabalho e ciente dos efeitos do que faz. Fatores não econômicos estão prevalecendo e a confiança se assusta com a improvisação e a empáfia.

Valores e fatos estão sendo esfarinhados. A futilidade estruturada na economia é de país das maravilhas. Melhor Alice, porque sincero é dizer que aqui é preciso correr o máximo que se pode para ficar no mesmo lugar. O governo é liberal como no Recife holandês o boi é voador.

A atividade econômica defendida não tem relação com a necessidade social de crescimento. A crise é por causa desta mania de manter a vida econômica diária intensamente insegura, culpando o vírus, o Legislativo e o Judiciário por isso. A demora programada da vacina, a ruína da linguagem pública, a mansão paga com salário, o palácio cuspir nos mortos, tudo pode estar a serviço do recrutamento de um movimento violento contraditoriamente conduzido pelas vítimas do agressor.

Se não há uma autoridade política central capaz de construir uma compatibilidade entre interesses divergentes, não há necessidade de presidente. E se é o governante que espalha como paina ao vento os conflitos e as divergências, ele é o desespero, que entretém o povo com insultos. Nada diz do que importa, arrasta multidões para o abismo ao invés de as proteger.

Paulo Delgado é sociólogo. Este artigo foi publicado originalmente 'O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021.

A macabra proeza de Bolsonaro


Por Antonio Carlos Pereira

Jair Bolsonaro está conseguindo fazer o que parecia impossível. Ao ignorar suas responsabilidades e debochar continuamente dos problemas do País e da saúde dos brasileiros, está abrindo caminho para o retorno político do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, seja por meio de algum preposto, seja pessoalmente, agora que o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações do demiurgo de Garanhuns – e na hipótese de que o Supremo mantenha essa nefasta sentença. Bolsonaro, por palavras e omissões, ajudou a recriar o monstrengo que já atormentou em demasia este país.

O assunto é da maior gravidade, pois traz de volta ao cenário político um grande perigo para o País. Aquele que foi eleito por ser o mais antipetista dos candidatos não apenas descumpre suas promessas de campanha, como está produzindo a perfeita antítese das expectativas do seu eleitorado: o ressurgimento do fantasma do lulopetismo.

Não se trata de mera hipótese ou recurso retórico. Recente pesquisa de opinião feita pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) constatou que, nas atuais circunstâncias, o líder político com maior potencial de voto é o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. Nada mais nada menos que metade dos entrevistados revelou a possibilidade de votar em Lula.

É desolador constatar que o mais famoso ficha-suja do País, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, voltou a ser, para metade do eleitorado, uma opção possível de voto. Tal resultado não se refere obviamente a nenhum mérito do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, que, como se sabe, tem nos últimos tempos se dedicado especialmente às suas pendências com a Justiça penal.

A pesquisa revela o que o governo de Jair Bolsonaro tem sido capaz de despertar no ânimo dos brasileiros. Tal é o descalabro da atual administração federal que metade da população já não vê como impossível votar naquele cujo governo produziu os maiores escândalos de corrupção da história do País.

Pode parecer ironia, mas Jair Bolsonaro está fazendo com que parte considerável da população se esqueça dos males e prejuízos causados pelo mensalão e petrolão e já não exclua do horizonte o voto em Lula – ou no seu preposto. Aquele que prometeu eliminar o lulopetismo é quem está agora lhe dando uma inesperada e perigosa sobrevida.

Há quem pense que, por estar inelegível em razão da condenação criminal, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva não representaria perigo ao País. Não seria, assim, preciso preocupar-se com o líder petista. Nada mais distante da realidade. Mesmo quando esteve impedido de se eleger, Lula foi capaz de produzir sérios estragos por meio de seus testas de ferro. Basta pensar no governo de Dilma Rousseff e nas eleições de 2018. Fernando Haddad chegou ao segundo turno por obra e graça daquele que, na ocasião, estava na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Não há como amenizar a gravidade da situação criada pelo presidente Jair Bolsonaro. É um tremendo retrocesso para o País o fato de que parcela relevante da população, estupefata com os contínuos desastres produzidos pelo atual governo federal, volte a considerar o PT como um voto possível. É como se o despautério do tempo presente levasse a esquecer ou, ao menos, a relevar o aparelhamento político-ideológico da máquina estatal, os desvios da Petrobrás, a interferência na autonomia do Congresso, a omissão nas reformas, o abuso do poder político, os privilégios às corporações.

Em 2018, muitos eleitores votaram em Jair Bolsonaro convictos de que era a melhor opção para o País. Outros deram o seu voto ao ex-capitão do Exército pensando que era o único jeito de derrotar o sr. Luiz Inácio Lula da Silva. Sabiam que, apesar de constar na cédula o nome de Fernando Haddad, o verdadeiro candidato do PT – quem iria de fato mandar caso a chapa fosse eleita – era Lula. Agora, há uma situação inteiramente inversa. Em vez de ser o ex-prefeito petista de São Paulo, é o próprio Bolsonaro que faz Lula sonhar em ter viabilidade política.

A situação esdrúxula expõe um novo engano. Quem continua apoiando Jair Bolsonaro achando que, assim, ao menos impede um mal maior – a volta do PT ao poder – pode, na verdade, estar contribuindo exatamente para aquilo que tanto rejeita. Não se vence a irresponsabilidade petista com outra irresponsabilidade.

Antonio Carlos Pereira é Diretor de Opinião d'O Estado de S. Paulo. Este artigo foi publicado em 09.03.2021.

Uma visita à mansão Bolsonaro


Por Fernando Gabeira

Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de Carrara, espaço gourmet, iluminação LED na piscina, home theater e toda essa papagaiada.

No entanto os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente, que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.

Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico, e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é enriquecer.

Existem, no entanto, outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso, por achar que eles são autoconstestáveis.

Gosto dessas discussões, pois, afinal, são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.

Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de “Crenças no governo”. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se “O impacto dos valores”.

Toda vez que vejo teóricos da “alt-right” afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.

Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia, são na verdade valores que surgiram precisamente no pós-materialismo, a partir dos anos 60.

A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de autoexpressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.

Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Não houve um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.

As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara à alt-right, os intelectuais pós-materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.

Os teóricos do bolsonarismo, ao se apegar a uma religiosidade popular, são apenas nostálgicos, pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, aquilo que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.

Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filosofo alemão, somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.

Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar, que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.

Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.

Quero apenas acentuar que os líderes espirituais da extrema-direita buscam reviver um passado que não existe mais e, mesmo quando essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente. Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender aos anseios de acumular riquezas.

Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump. E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.

Fernando Gabeira é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, edição de 08.03.2021. (Afirme a Democracia - assine O Globo).

Presidente, Vamos chorar para que nossos mortos sejam lembrados como suas vítimas


Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme.

Por JAMIL CHADE

Senhor presidente,

Uma vez mais, suas palavras sobre a pandemia ecoaram pelo mundo. Dos corredores da ONU às padarias de bairro onde sabem que sou brasileiro, vieram me comentar e, no fundo, me confortar.

Estou cada vez mais convencido de que existe um enorme risco de que, ao final desta pandemia, o Brasil se transforme no “misterioso país das lágrimas”. Acumuladas na alma de cada família, nas estatísticas dos jornais e no espírito de uma nação, as mortes registradas nos últimos meses tiraram um país de seu eixo, já frágil e já tão acostumado a enterrar seus filhos.

Como se viram as famílias com órfãos da covid-19
O senhor bem sabe que nada disso era inevitável. O destino do vírus estava em nossas mãos, como mostraram vários países do mundo que, mesmo sem uma vacina, o sufocaram. Já vocês preferiram sufocar nossos sonhos.

Existe uma percepção de que somos filhos de uma pátria, uma noção complemente equivocada alimentada por perigosos nacionalistas que formam a base da ala mais radical de seu governo. Uma nação nasce de seus filhos, é determinada por sua coragem, moldada a partir de sua diversidade. Seu futuro depende daqueles que choram. Jamais daqueles que se acomodam.

No fundo, as lágrimas mais sinceras são da parcela mais otimista da sociedade. Do grupo que acredita que o mundo pode ― e deve ser melhor.

Presidente,

Quando seu líder máximo manda uma sociedade engolir o choro, sua mensagem é clara: parem de lutar. Aceitem o que existe. As lágrimas sabem que exigir que elas cessem é, por si só, um gesto autoritário.

Provavelmente o senhor saiba que chorar não é um sinal de fraqueza. Mas sim de indignação, de recusa em aceitar um destino.

Escrevo essa carta apenas para informar que vamos chorar até construir algo novo. Vamos chorar para permitir que cada uma das pessoas amadas que nos deixou seja lembrada como uma vítima de suas escolhas políticas. E não apenas como vítima de um vírus.

Essas lágrimas não serão engolidas. Por seu arco-íris que formam, elas são expressões de uma determinação para colocar fim a uma noite escura.

Não choramos pelo passado. Não o resgataremos. Tampouco choramos por uma vontade de vingança.

Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme.

Saudações democráticas

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 05.03.2021.

Caindo pelas tabelas


Por Merval Pereira

Por onde quer que se pegue, o Brasil está literalmente descendo a ladeira, caindo pelas tabelas das principais estatísticas internacionais. A começar pelo combate à pandemia da Covid-19, passando por questões internas que nos afastam assustadoramente do mundo ocidental civilizado. Em números absolutos, temos o desonroso segundo lugar no mundo, com mais de 255 mil mortes por Covid-19.

Mesmo quando colocado em termos proporcionais, o número no Brasil fica entre os 30 países mais atingidos dos 178 com mais mortes por Covid-19 para cada 100 mil habitantes. Também na comparação proporcional, houve mais mortos no Brasil do que na Argentina, Alemanha e Rússia. Com relação à vacinação em massa, a estimativa é de que só será alcançada em meados de 2022, segundo a Economist Intelligence Unit.

A plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, indica que o Brasil aplicou, até o momento, 3,97 doses para cada 100 habitantes. O país com a maior taxa de vacinação no mundo é Israel, com 93,5 vacinados para cada 100 habitantes. Não por acaso, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, faz propaganda na televisão para estimular a vacinação, e o presidente brasileiro usa suas lives na internet para propagar o negacionismo, falar contra o uso de máscaras e sobre os pretensos perigos da vacinação.

Essa calamidade do combate à pandemia no Brasil se refletirá certamente na medição do Índice de Desenvolvimento Humano feito pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), que avalia a saúde, a educação e o padrão de vida dos países. O Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial na última medição, passou do 79º para o 84º lugar entre 189 países. Perdemos também duas posições na América Latina, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia.

Com relação à educação, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês) registrou em 2019 ligeiro avanço dos estudantes brasileiros, que seguem, no entanto, entre os 20 piores colocados entre as 80 nações avaliadas em Ciências, Matemática e Leitura. Com todos esses resultados, ainda acrescentamos à nossa desdita um Congresso que propõe acabar com a verba obrigatória no Orçamento para Educação e Saúde, e um governo que, ao mesmo tempo que tenta ser admitido na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), desdenha medidas de boa governança exigidas de seus membros, como valorização da democracia e dos direitos humanos, até regras de proteção ao meio ambiente e no combate à corrupção.

Na questão ambiental, retrocedemos 20 anos em dois no governo Bolsonaro. O Brasil, que já sediou congressos fundamentais e teve protagonismo internacional na discussão da proteção ambiental, hoje tornou-se um pária. A batalha contra a corrupção vai sendo gradualmente perdida por decisões jurídicas e parlamentares. Já não há pudor em debater mudanças em temas como nepotismo, improbidade administrativa ou impunidade parlamentar. Ou em defender alterações na Lei de Ficha Limpa.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, anuncia agora uma reforma política “profunda”, que pretende amenizar a legislação de cláusulas de barreira para atuação plena no Congresso dos partidos, acabar com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e certamente amenizar as barreiras a candidatos condenados, como estava na versão original da PEC da Impunidade.

Os partidos que não conseguirem atingir as metas em 2022 para a eleição da Câmara perderão pela primeira vez o direito de ter financiamento público, tempo no rádio e televisão de propaganda eleitoral e até mesmo estrutura de gabinete e presença em comissões e na Mesa da Câmara.

Essa é uma tentativa de repetir uma experiência já vivida. As cláusulas de barreira foram aprovadas em 1995, para vigorar dez anos depois. Teoricamente, os partidos teriam tempo suficiente para se organizar. Em 2006, esses mesmos partidos entraram no Supremo Tribunal Federal contra as novas regras, e os ministros acataram os apelos em nome de
“defender as minorias”. Chegamos aonde chegamos.
Merval Pereira, Jornalista e Escritor, é da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n1O Globo, em 02.03.2021

Sobre a criminalização da democracia

Por Kenarik Boujikian

No final de fevereiro, foi noticiado o recebimento de denúncia contra Guilherme Boulos e mais dois membros de movimentos populares. O crime imputado é o previsto no artigo 346 do Código Penal, conhecido como "supressão ou dano de coisa própria em poder de terceiro", e que tem a seguinte dicção: "Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção"

Refere-se ao fato ocorrido em 16/4/2018, quando vários manifestantes estiveram no chamado tríplex do Guarujá. Parte ingressou e permaneceu no imóvel por cerca de três horas e teria causado danos na porta de entrada e amassado a porta de um banheiro, valorado em cerca de T$ 1 mil, enquanto outra parte realizou manifestação do lado de fora do edifício.

Dois jornalistas da Folha de São Paulo que estiveram no imóvel com intenção de cobrir o fato também foram foco da investigação, mas o Ministério Público acabou por requerer o arquivamento em relação a ambos, o que foi acolhido.

A denúncia foi ofertada, do mesmo modo, contra Luiz Inácio Lula da Silva, pois ele disse em ato público, realizado em São Paulo, com cerca de 50 mil pessoas, "se é meu, ocupem". A denúncia contra Lula foi arquivada em janeiro de 2020 pela mesma juíza, que fundamentou a decisão na impossibilidade de vincular tal frase ao ato realizado meses depois no tríplex. Aliás, nem seria preciso qualquer esforço para a compreensão de uma simples figura e retórica de linguagem.

O crime imputado é classificado como sendo crime próprio, ou seja, o tipo penal exige que o autor tenha determinada característica ou condição. No caso, a lei exige que o autor do crime seja o proprietário da coisa, mas tal não significa que não possa haver coautoria ou participação.

Sem adentrar ao tema da propriedade do imóvel, da autoria, das teses defensivas ou provas, o fato é que a juíza rejeitou a denúncia em relação a Lula, ou seja, desapareceu da narrativa dos fatos a condição indispensável para a caracterização do delito. Não é possível falar em coautoria ou participação se nenhum dos agentes cumpre o requisito estabelecido na lei para caracterizar o crime. Se não há proprietário, não há de se falar em participação ou coautoria em quaisquer de suas modalidades.

Porém, o que mais chama a atenção nesses fatos é a criminalização dos movimentos sociais e das liberdades, seja pelo viés dos jornalistas, seja em relação aos eventuais participantes do ato.

Em relação aos jornalistas, ainda que o procedimento tenha sido arquivado, fica evidente que a investigação criminal é uma forma de pressão indevida, que abala os pilares da democracia, mecanismo usado cada vez mais. Eles estiveram no lugar das manifestações, atuando profissionalmente e ficaram com a espada na cabeça até o arquivamento.

A nossa democracia tem conteúdo estabelecido, com grande relevo, no artigo 5º da Constituição Federal, no qual encontramos a normativa central das liberdades.

No nosso tema, a carta estabeleceu proteção da manifestação, do pensamento, da criação, a expressão e a informação e, ainda, determinou que nenhuma lei poderá ter dispositivo que possa embaraçar a plena liberdade de informação jornalística, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (artigo 220).

Cabe ao Judiciário tornar estas liberdades uma realidade. O STF tem decisões paradigmáticas no tocante à atividade jornalística, como a que protege o sigilo da fonte, não permite que seja cerceada a liberdade de imprensa etc.

Em relação aos manifestantes, ainda, ressalto que para a prática do crime seria necessária a presença do elemento subjetivo, que na espécie é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de produzir dano em imóvel próprio.

Se os manifestantes tivessem intenção real de danificar, isso seria realizável, com cerca de 40 pessoas, que ao que parece estiverem no tríplex por três horas. Mas os vestígios são exclusivamente de danos na porta, próprios para o ingresso no local, para realização da manifestação. Forçoso reconhecer que o ato de protesto foi eficaz, pois muitos, como eu, devem ter na lembrança o grito dos manifestantes: "Aqui está o povo sem medo, sem medo de lutar! E a verdade é dura, o tríplex não é do Lula", junto com as imagens do tal apartamento, objeto central de uma das ações da "lava jato", que a cada dia traz mais perplexidades.

É claro que o grupo de pessoas que esteve no tríplex não tinha intenção alguma de danificar o imóvel, queria denunciar o que entendiam ser uma farsa judicial, através de suas falas, bandeiras e imagens do tríplex.

Temos decisões referenciais na órbita da Justiça que sinalizam para a necessidade de distinção de uma forma de manifestação, protesto e pressão democrática com uma figura delituosa.

A "criminalização" dos movimentos sociais, aqui entendida em seu sentido amplo, indica um mecanismo indevido do controle do Estado, que foge dos parâmetros constitucionais, ainda que use instrumentos previstos em lei. Ela se dá de forma muito particular no cerceamento das manifestações e dos protestos, que são a exteriorização da liberdade de expressão, pedra fundamental da democracia.

Temas dos mais sensíveis, a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), indicou no documento "Marco Jurídico sobre o Direito à Liberdade de Expressão" as suas três funções primordiais: a) traz em si a virtude que acompanha e caracteriza os seres humanos: a virtude única de pensar o mundo, de comunicar-se com outros para construir um modelo de sociedade; b) tem uma relação estrutural com a democracia. Estreita, indissolúvel, essencial, fundamental para fortalecer o funcionamento do sistema democrático pluralista, mediante a proteção e o fomento da livre circulação de informações, ideias e expressões de toda índole; c) é uma ferramenta-chave para o exercício dos demais direitos fundamentais.

Infelizmente, a criminalização encontra no Judiciário a sua maior ferramenta e por tal o Brasil teve sua primeira condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em caso emblemático de processo de criminalização dos movimentos sociais, que se intensifica a cada dia no Brasil.

Tratou-se do caso dos grampos telefônicos de membros do MST, com autorização judicial, e sua divulgação indevida. Deu-se em razão das violações praticadas pelas mãos do Judiciário. A corte considerou que houve violação do direito à vida privada, à honra, à reputação, à liberdade de associação, às garantias e à proteção judicial.

Todas as formas de criminalização têm um sentido real e simbólico e objetivam paralisar a atuação cidadã e bloquear as lutas sociais por direitos.

Nas mãos do Poder Judiciário está a manutenção da higidez constitucional e a afirmação do Estado democrático de Direito.

Finalizando, veio à mente o desenho "Sol de Justiça", de Goya, que está no Museu do Prado. Lafuente Ferri comenta o quadro e diz que a luz não é somente da liberdade e da lei. Com elas devem advir a Justiça simbolizada pela balança cercada de um esplendor luminoso, que dissipa a obscuridade. Do lado esquerdo do desenho vemos que a população recebe a claridade com êxtase, enquanto que aqueles que se encontram do lado direito e representam os partidários de um velho regime recebem contritos.

Esperemos que o "Sol da Justiça" permita que se faça justiça, para que nossos tempos não sejam de obscurantismo, mas de democracia!

Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos, membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 03.03.2021

Adeus à razão


A devastação atinge as pessoas, corrói a saúde e produz a miséria. Será esse o nosso destino?

Por Denis Lerrer Rosenfield

A irresponsabilidade do governo federal, secundado por boa parte dos estaduais, beira o absurdo. São mais de 250 mil mortos, nenhuma previsão de melhora e discussões bizantinas sobre alternativas inexistentes, como a da escolha entre vacina ou trabalho, como se fossem excludentes. Enquanto não houver vacinação maciça não haverá volta à normalidade.

Os limites da racionalidade são testados diariamente, como se a destruição fosse inevitável, seja da saúde coletiva, seja dos fundamentos da economia. Há, atuante, o que Freud chamava de pulsão de morte, Tânatos, que age “livremente” sem nenhuma contenção. Ou, em linguagem bíblica, a devastação atingindo pessoas, corroendo a saúde e produzindo a miséria. Será esse o nosso destino? Um ano já se foi, o de 2020, o outro começa a ir-se. E discutem-se as eleições de 2022!

A incompetência – A incompetência é o lado mais visível da devastação. Não há vacinas, não há insumos para a sua produção, não há leitos de UTI suficientes, não há oxigênio em algumas cidades. Boa parte do ano foi gasta com declarações inúteis sobre vacinar ou não, como se a vida do outro pudesse ser objeto de escolha. Todas as opções feitas foram erradas, com a exceção do governador João Doria, que tomou a iniciativa de comprar e produzir vacinas, a dita chinesa, que o presidente, enfim, depois de muita tergiversação, decidiu “nacionalizar”. No momento de tomar iniciativas meses atrás, demitiu ministros que tinham noção da gravidade da situação e os substituiu por um que só obedece, dando tempo para o vírus produzir os seus efeitos. Ode à irracionalidade.

A destruição – O resultado é a destruição. Vidas são perdidas, o medo da morte se generaliza, as pessoas se perguntam pelo amanhã, anseiam pela volta de uma normalidade perdida. E a perda se reflete no emprego, no nível de vida, na miséria hoje vivida por boa parte da população. Se o auxílio emergencial vier – e deveria moralmente vir –, parece que o será por razões eleitorais, e não por compaixão ao próximo. As autoridades responsáveis deveriam mostrar um mínimo de moralidade, de preocupação com o outro, e não se ater a coisas da política mais comezinha, cargos, privilégios e ausência de postura. E não apenas na ordem sanitária a pulsão de morte está presente, mas também no abalo da economia, na irresponsabilidade fiscal, na ausência de alternativas. Quanto mais o País afunda, mais é dito que tudo é fruto de más notícias, da imprensa e da mídia tradicional, como se dizer a verdade, expor o que está realmente acontecendo, fosse o maior dos males. Bem e mal trocaram da posição.

A poção mágica – O País regrediu a rituais mágicos. Enquanto a devastação progride e a morte se alastra, foi-nos oferecido uma poção mágica, coquetel de medicamentos inúteis para o tratamento da covid-19. Deu-se até um nome a isso, “tratamento precoce”. De tratamento não tem nada e de precoce só a enganação. Voltamos a um mundo medieval de drogas milagrosas com mercadores ambulantes que tudo prometem e nada fazem senão vagar para o próximo embuste. Milhões de reais foram gastos com a tal da cloroquina, que foi distribuída a Estados e municípios, como se algo estivesse sendo feito. Para vacina, nada; para a poção mágica, tudo! Guarda-se a aparência de ciência, transgredindo todos os seus critérios e protocolos. O Brasil tornou-se uma ilha de insanidade no mundo!

A emulação – Governantes devem dar o exemplo, que se multiplica no comportamento dos seus cidadãos. Bons exemplos produzem atitudes correspondentes; maus comportamentos criam os seus próprios. Se a ciência é desprezada ostensivamente, ganha curso um vale-tudo na população. Se o presidente não usa máscara, sendo a autoridade máxima, por que o cidadão comum haveria de fazê-lo? Se recomenda a poção mágica, por que as pessoas não deveriam tomá-la? Se não respeita aglomerações, por que as pessoas ficariam reclusas e separadas umas das outras? O bolsonarismo encarna precisamente esse tipo de comportamento, propagando a destruição como se fosse a nova normalidade, o que foi chamado de “nova política”. Essa forma de congraçamento no desprezo do outro, na ausência de solidariedade, tem o seu contrapeso na identificação com o líder e na fraternidade dos companheiros na pulsão de morte.

O juízo final – O espetáculo é aterrador. O vírus avança, sem limites, “contente da vida”, encontrando nos humanos a sua melhor forma de reprodução. Ele encontra uma “solidariedade” do avesso nos governantes que lhe deixam agir livremente, como se a liberdade fosse a devastação generalizada. Tânatos se propaga, enquanto as pessoas festejam nas ruas e praias, em bares e cafés, como se nada mais restasse senão dançar e cantar antes que a destruição encontre o seu ápice. A imagem bíblica que vem à mente é a de uma espécie de juízo final se aproximando, como se nada mais pudesse ser feito, como se nada mais fosse digno de esperar, como se ainda fosse possível uma “imunidade de rebanho”, na verdade um rebanho de humanos tomados pela insanidade.

A esperança hoje reside na volta à racionalidade.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi publicado originalmente n'O O Estado de São Paulo, edição de 01 de março de 2021.

Um presidente que age como insano é a primeira vez


Suplicamos a nossos irmãos evangélicos que submetam o capetão a um urgente descarrego, expulsem seus demônios

Por Nelson Motta

Desculpem voltar ao tema, mas não dá para segurar. O cara queria revogar a lei da oferta e da procura! Achava que os laboratórios de vacina disputariam a tapa o mercado brasileiro. Pagou mais caro e ficou no fim da fila de entregas. Exige da Petrobras a previsibilidade do dólar e do preço do barril de petróleo, que nem Mãe Diná garante. Mesmo sabendo que seria uma bomba no mercado, fez a estatal perder 100 bilhões de reais de seu valor, ao colocar na presidência mais um general, que entende tanto de petróleo quanto Pazuello de saúde. Feliz de quem soube antes e vendeu na alta e recomprou na baixa.

O homem disse, sem rir, que sempre tratou a imprensa “com cortesia e lealdade”, só queria dar um soco na cara do repórter que perguntou sobre os 89 mil do Queiroz na conta de Michele. Por ele, fecharia os jornais. E o tal do “mercado” também. Ele ameaça mais o capitalismo do que um governo de esquerda. Deu mais prejuízo à Petrobras que todas as ladroeiras da era Lula/Dilma.

O capetão (será erro de digitação, ato falho, piada ou justiça poética?) confia no respeito dos militares pela hierarquia: o chefe manda e eles obedecem. Talvez por isso tenha tantos militares submissos no governo executando suas ordens absurdas. Deve imaginar que, se sofrer um impeachment, os militares o apoiarão em um golpe “em defesa da liberdade”. A deles, é claro.

Suplicamos a nossos irmãos evangélicos que submetam o capetão a um urgente descarrego, expulsem seus demônios, lavem sua alma de entidades malignas, iluminem seu espírito e avisem a ele que Jesus está vendo. O homem está carregado. Só isso pode explicar as barbaridades que ele diz, desdiz, mente, trapaceia, sempre com efeitos desastrosos na diplomacia, na economia e na democracia.

Quanto mais gente morre, quanto mais atrasam as vacinas, quanto mais a economia piora, mais cresce a rejeição a Bolsonaro. Cresceria em qualquer governo, contra os números não há argumentos nem fake news que convençam. Todo mundo sente na pele os efeitos de suas mentiras e suas bravatas irresponsáveis, como os americanos sentiram com Trump e o levaram à derrota.

Com o fim ou a diminuição do auxílio emergencial, ou o estouro do teto fiscal, Bolsonaro tende a ser o que seus fanáticos o chamam: um mito, apenas um mito, como o saci ou a mula sem cabeça, cultuado por seus devotos e rejeitado pela maioria da população.

Governantes bons ou maus entram e saem com as eleições, mas um presidente que age como insano é a primeira vez. Ou segunda, depois de Jânio Quadros, que além de amalucado era golpista e bebum e deu incalculáveis prejuízos ao Brasil.

O monarca inglês George III (1738-1820) enlouqueceu, perdeu o juízo, e nos seus surtos saía nu pelos jardins do palácio, falava barbaridades e jogava fezes em seus ministros. O rei foi afastado, mas antes provocou muitos estragos à Inglaterra. Doença mental é assunto sério, não é vergonha para ninguém.

Jair Bolsonaro não precisa ser odiado ou adorado, combatido ou apoiado, precisa ser estudado.

Nelson Motta, Jornalista, Escritor, Produtor Musical. Este artigo foi publicado originalmente n' O Globo, em 26.02.2021

A união necessária para vencer o populismo

Enquanto o centro vacila, Bolsonaro busca cooptar o bloco do fisiologismo político

Por Luiz Felipe d’Avila,

Desde a redemocratização do País, em 1985 o Brasil foi governado por presidentes populistas, com exceção de três breves hiatos: dois anos de governo Itamar Franco (1993-1995), oito anos da Presidência de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e dois anos e meio do mandato de Michel Temer (2016-2019). Curioso notar que os vice-presidentes provaram ser muito melhores que os presidentes depostos pelo Congresso Nacional.

Itamar substituiu o presidente Fernando Collor e foi responsável por implementar o Plano Real, que acabou com a hiperinflação no País. Michel Temer ocupou a Presidência após o impedimento de Dilma Rousseff e aprovou a reforma trabalhista, implementou o teto do gasto público e reformou a base curricular do ensino médio.

Apenas Fernando Henrique honrou a Presidência com a agenda reformista. Privatizou estatais, fez a primeira reforma administrativa, promoveu uma revolução educacional que incluiu quase 90% das crianças no ensino fundamental e criou o Bolsa-Escola – o programa de transferência de renda que se transfigurou no Bolsa Família em 2003.

Esses três presidentes restauraram a esperança na nossa capacidade de construir uma democracia forte, uma economia de mercado competitiva e um País mais justo e menos desigual. Mas esses hiatos de bom governo foram ofuscados por desastrosos governos populistas.

Cada um deles contribuiu para denegrir as instituições democráticas, disseminando a polarização política e a divisão entre “nós e eles”; privilegiando o corporativismo público e privado em detrimento da competição de mercado; propagando a desigualdade de oportunidades pela perpetuação da péssima qualidade dos serviços públicos; e transformando os mais pobres em eternos dependentes do Estado para extrair ganhos eleitorais.

O resultado desse cataclismo populista foi trágico. Enquanto os principais países emergentes tiraram milhares de pessoas da pobreza, ganharam mercado e melhoraram consideravelmente a renda, a educação, a saúde e a infraestrutura, o Brasil regrediu.

Perdemos mercado, renda, competitividade e produtividade. Exportamos menos que a pequena ilha de Taiwan, cultivamos os piores indicadores educacionais entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e temos uma democracia disfuncional porque resistimos a avançar com as reformas do Estado.

A saída dessa encruzilhada se dá pela política. Demanda competência para unir os partidos do centro democrático e construir um projeto de País. Requer criar uma narrativa cativante para transformar boas propostas em votos nas urnas e resgatar a esperança no País. Exige coragem para acabar com as fortalezas de privilégios nos setores público e privado e determinação para combater o descalabro do desgoverno Bolsonaro: 20 milhões de brasileiros de volta à pobreza, 30 milhões de pessoas sem emprego, mais de 240 mil mortos pela covid-19, o menor índice de investimento dos últimos 11 anos e uma nação que se tornou pária internacional. É preciso muita incompetência, desunião e ausência de propostas e de liderança do centro democrático para perder a eleição em 2022 para um presidente da República que deixará essa herança maldita para as gerações futuras.

A desunião do centro democrático é o fator decisivo para pavimentar o caminho da reeleição de Bolsonaro. Há um certo compasso de espera no centro que pretende denotar sabedoria, mas no fundo revela hesitação, desunião e medo das incertezas inerentes à natureza do jogo político.

Enquanto o centro vacila, Bolsonaro busca cooptar o bloco do fisiologismo político, que está sempre à espreita para abocanhar cargos e verbas do governo, em troca de votos e influência para vencer eleições regionais e se perpetuar no poder. Bolsonaro adula a elite econômica, garantindo subsídios e reservas de mercado que desviam o foco dos reais problemas e perpetuam o corporativismo público e privado. O povo se ludibria com as promessas populistas porque a narrativa do centro não lhes toca o coração.

A união do centro democrático é vital para quebrar o instinto adesista que atrai partidos, empresários e o povo para o centro de gravidade do poder governamental. A construção da vitória eleitoral no próximo ano começa já. Não há tempo a perder. Estamos a apenas 17 meses das eleições. É urgente unir esforços das instituições que estão trabalhando na construção de propostas. Os partidos do centro democrático têm de se unir para ter um candidato competitivo, capaz de evitar a fragmentação do voto que pavimentou a vitória de Bolsonaro em 2018. Nomes como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, ajudam a agregar as forças políticas e a construir pontes.

O populismo se derrota com a união das forças do centro em torno de propostas concretas e de um candidato competitivo, capaz de percorrer o País e reavivar a esperança de que é possível construir uma nação melhor e sem os embustes do populismo de esquerda e de direita que continuam a minar a liberdade e a democracia no Brasil.

Luiz Felipe d’Avila, cientista político, é autor de "10 Mandamentos - do Brasil Que Somos Para o País Que Queremos". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 24.02.2021.

Preparando o futuro


Por Merval Pereira

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e regulamentações com o mesmo objetivo, ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira e Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 21.02.2021.

Tentando enxergar o que está à vista

E o que está à vista não é o Jardim do Éden, mas a guerra de todos contra todos de ‘O Leviatã’

Por Bolívar Lamounier

Onde estarão dentro de 25 anos os meninos que vão nascer na presente década? É cabível supor que muitas delas vão se conhecer revirando lixo em algum aterro. Algumas estarão distribuindo drogas nos bairros ricos, a serviço de traficantes. Muitas estarão cometendo assaltos e outras tantas estarão atrás das grades.

Projeções macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.

É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.

Se 60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651): uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada. Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?

Suscitar essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.

Claro, não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da organização militar é essa.

Derrocamento dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.

Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.

Bolívar Lamounier, cientista político, é sócio diretor da Augurium Consultora. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de São PAULO, em 20 de fevereiro de 2021.

A que ponto chegamos


Por Merval Pereira


Nossa mais recente crise institucional, não a derradeira, é consequência da leniência com que as instituições vêm tratando os frequentes abusos autoritários do presidente Bolsonaro e de seus radicais seguidores. Chegamos a essa situação, e não é a primeira desse tipo, porque o Congresso aceitou que deputados bolsonaristas e milícias digitais promovessem, como continuam a fazer depois da prisão do deputado federal (ainda?) Daniel Silveira, ataques às instituições, e que as Forças Armadas aderissem acriticamente ao governo Bolsonaro e aceitassem, algumas vezes com o endosso tácito até mesmo do ministro da Defesa, diversas tentativas de transpor as linhas da legalidade, contra a democracia.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo encarregado das negociações com os parlamentares, quase nunca fundadas em bases republicanas, declarou que não se envergonha dessas negociações. Deveria, pois assumiu, na sua faceta civil, a parte apodrecida das relações políticas, a mesma tática que o leva, e a outros generais, a repudiar o lulopetismo e, anteriormente, o próprio Centrão. Lembram-se do general Heleno cantando na campanha eleitoral “se gritar pega ladrão, não sobra um no Centrão?”.

A revelação do general Villas Bôas de que a nota de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor do ex-presidente Lula foi feita não em caráter pessoal, mas pelo Alto-Comando do Exército, é muito mais grave do que já parecia há três anos. Não importa se você gosta do Lula ou não, se acha que ele merecia o habeas corpus ou não. É um absurdo que o Alto-Comando do Exército respalde uma declaração daquelas às vésperas de um julgamento do STF.

É por isso que gente como esse deputado bolsonarista se acha em condições de fazer o que fez, de afrontar o Supremo. É inexplicável, também, a ironia atual do general em relação à nota que o ministro Edson Fachin soltou, de repúdio à revelação. Fachin não falou há três anos porque falou pelo STF o decano Celso de Mello, rebatendo vigorosamente a tentativa de pressão ilegal.

Esta crise que estamos vivendo, política e institucional, vem da aceitação de um governo autoritário, antidemocrático, que usa as Forças Armadas para se respaldar nessas ações e usa milícias digitais, que podem se transformar em milícias reais com os decretos de liberação de armas. Bolsonaro está armando a população claramente com o intuito de ter uma militância armada para se impor, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Trump tinha milícias armadas que desfilavam pelas ruas. Nos EUA é mais comum o porte de arma, então os militantes andavam altamente armados nas ruas e invadiram o Capitólio por incitação do ex-presidente Trump, que agora será processado civilmente por essa atitude, já que, politicamente, o Partido Republicano não permitiu que fosse impedido de continuar atuando na política.

Estamos chegando ao ponto em que as autoridades terão que tomar uma decisão, porque a democracia está permanentemente sob ataque neste governo Bolsonaro. O mais importante hoje é saber como a Câmara se comportará. No caso de Delcídio do Amaral, o Senado aprovou imediatamente a decisão do STF. Neste caso, há muita resistência, inclusive na base bolsonarista radical que está atuando e continua atacando o Supremo e a democracia, continua atacando os representantes das instituições que consideram agir como agentes da esquerda internacional, numa das várias teorias conspiratórias que espalham.

O importante é saber se a nova base do governo Bolsonaro vai se impor, a ponto de não aceitar a prisão do deputado (ainda?), um sujeito desqualificado, já investigado em dois outros inquéritos no STF, por atitudes antidemocráticas e por espalhar fake news. Saber se o corporativismo que protege uma deputada acusada de homicídio e outro, um senador, apanhado em flagrante com dinheiro escondido nas suas partes íntimas, chega ao ponto de acobertar ataques antidemocráticos de um autoritário que, ironicamente, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura militar que tanto venera.

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 19.02.2021

Para muito além de Silveira


Por Carlos Andreazza

Daniel Silveira é um golpista. Um dos mais óbvios exemplos de agente - um violento corruptor da democracia liberal - que se vale do espaço político institucional para minar as instituições da República. Há vários como ele - no Congresso, sobretudo na Câmara.

Esta é a principal razão para que seja enfrentado sem qualquer desvio do Estado de Direito; ou a peleja se terá estabelecido em terreno favorável ao reacionarismo rompedor. Não faltam bolsonaristas se utilizando da condição parlamentar para agredir o ordenamento republicano. O caso Silveira fará isso se aguçar. Não só por dar cartaz ao valente, mas por chamar o caos. Vai o STF prender deputados à baciada doravante? Crê o Supremo que a prisão de Silveira terá caráter educativo? Ou estimulante?

Daí por que me preocupo, desde que implantado, em março de 2019, com a vigência do inquérito chamado das Fake News, aquele - instaurado de ofício, sigiloso, desprovido de objeto investigado definido e correndo sem que o Ministério Público tome parte - que já resultou na censura à revista Crusoé e que ora abriga a prisão do deputado. Esse inquérito doente, autoritário, é um convite à briga de rua, à rinha desordeira que só interessa aos que dependem de um chão de instabilidade.

Não tenho dúvida de Silveira agiu em busca da reação colhida. A lógica extremista impõe que seus elementos movam atos heróicos - lances de mártir, de coragem - como gatilho que aguce teorias da conspiração e mobilize as milícias contra o que seria a opressão do establishment.

Está claro que o sujeito cometeu crimes. Graves. Basta ler o que dispõe a maldita Lei de Segurança Nacional, a da ditadura que Silveira louva - e que está perfeitamente em vigor. Tem sido o principal instrumento de ação de Alexandre de Moraes para tocar o inquérito anômalo. Aliás, é a LSN que garante o caráter inafiançável necessário à prisão do parlamentar. Isso é incontornável. O deputado pregou contra a ordem política. Ponto.

O outro requisito inescapável à prisão, porém, o flagrante, foi assegurado por uma compreensão nova, duvidosa, e que merece a melhor atenção, à margem de torcidas: a de que a natureza permanente de um vídeo disponível nas redes configuraria crime continuado e, pois, flagrante. Precedente perigoso. Essa parece ser a fraqueza - a brecha - por meio da qual a Câmara derrubar a prisão, valendo-se das prerrogativas conforme estabelecidas no artigo 53 da Constituição.

E aqui temos a corrida do dia, que pode agravar um já dado (mais um) choque entre Poderes: irá mesmo o plenário do Supremo deliberar sobre a decisão de Alexandre de Moraes - certamente para chancelá-la - antes de a Câmara se reunir para tratar do caso?

E a Câmara? Continuará protegendo os seus bandidos, interditando cassações, assim atraindo o Supremo ao enfraquecimento institucional derivado da invasão de espaços de outros Poderes?

A mentalidade autoritária está no controle.

Carlos Andreaza é editor de livros. Publicado originalmente n'O GLOBO edição on line, em 17.02.2021

Operação abafa


Por Merval Pereira

Uma entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ao historiador Marco Antonio Villa está viralizando nas redes sociais, como contraponto à campanha de tentativa de desmoralizar a Operação Lava-Jato, com o objetivo de anular a condenação do ex-presidente Lula pelo então juiz Sergio Moro por parcialidade no processo do triplex do Guarujá, sentença que foi confirmada no Tribunal Regional Federal em Porto Alegre e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília.

Segundo Barroso, há uma “operação abafa” em curso, por meio da aliança de todos os setores para enterrar ações de combate à corrupção. Ele já havia abordado esse tema, entre outros, no livro “Sem data venia”, publicado pelo selo História Real, coordenado por Roberto Feith na editora Intrínseca. Para Barroso, referindo-se às mensagens roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, o problema não é “alguém ter dito uma frase inconveniente ou não. É que estão usando esse fundamento pra tentar destruir tudo que foi feito, como se não tivesse havido corrupção”.

No livro, Barroso desenvolve a tese de que há em curso no Brasil “um esforço imenso para capturar a narrativa do que aconteceu no país”, fazendo uso “de provas ilícitas, produzidas por criminosos, Deus sabe a soldo de quem”.

Ele classifica esse como um “processo de tentativa de reescrever a História, com tinturas stalinistas”, e ironiza: “Só falta a criação de um Ministério da Verdade, como na obra ‘1984’, de George Orwell, que vivia de reescrever a história a cada tempo, modificando os fatos”.

No livro, e também na entrevista a Marco Antonio Villa, Barroso relata os fatos, “para que não se perca a memória do país”: “a) Eu ouvi o áudio do senador pedindo propina ao empresário e indicando quem iria recebê-la, bem como vi o vídeo do dinheiro sendo entregue; b) eu vi o inquérito em que altos dignitários recebiam propina para atos de ofício, abriam offshores por interpostas pessoas e, sem declará-las à Receita, subcontratavam empresas de fundo de quintal e tinham todas as despesas pagas por terceiros; c) eu vi o deputado correndo pela rua com uma mala de dinheiro com a propina recebida, numa cena que bem serve como símbolo de uma era; d) todos vimos o apartamento repleto com 51 milhões de reais, com as impressões digitais do ex-secretário de Governo da Presidência da República no dinheiro; e) eu vi, ninguém me contou, o inquérito em que o senador recebia propina para liberação dos pagamentos à empreiteira pela construção de estádio; f ) todos vimos o diretor da empresa estatal que devolveu a bagatela de R$ 182 milhões; e g) todos vimos a usina que foi comprada por US$ 1,2 bilhão e revendida por menos da metade do preço”.

Barroso compara o que está acontecendo aqui com o que aconteceu na Itália, na Operação Mãos Limpas, que acabou sendo neutralizada por ações do governo e do Congresso: “Como seria de esperar, o enfrentamento à corrupção tem encontrado resistências diversas, ostensivas ou dissimuladas. Em primeiro lugar, as denúncias, processos e condenações têm atingido pessoas que historicamente não eram alcançadas pelo direito penal. (...) Tem-se, assim, a segunda situação: muitas dessas pessoas, ocupantes de cargos relevantes na estrutura de poder vigente, querem escapar de qualquer tipo de responsabilização penal”.

Para Barroso, “a articulação para derrubar a possibilidade de execução das condenações criminais após a segunda instância foi o momento mais contundente da reação, logrando obter a mudança de posição de dois ministros do Supremo que, antes, haviam sido enfaticamente favoráveis à medida”.

Barroso, no entanto, mantém uma visão otimista do processo — ele se diz “realista” —, acreditando que é menos provável que aconteça aqui o que aconteceu na Itália, por várias razões que elenca no livro: “Sociedade mais consciente e mobilizada; imprensa livre e plural; e Judiciário independente e sem laços políticos, ao menos na primeira e na segunda instâncias (apesar de ainda ser extremamente lento e ineficiente)”.

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalente n'O Globo, em 16.02.2021.

O precoce começo de 22

Por Fernando Gabeira

Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.

O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.

Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.

Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.

Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.

Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.

No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.

Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.

Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.

O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.

Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.

O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.

Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.

Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.

É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.

Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 15.02.2021.

Sem o passivo do "bolsoleite"

Por Vera Magalhães

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, sempre muito discreto, resolveu sair das sombras e iniciar uma disputa mais aberta pela candidatura do PSDB à Presidência da República no ano que vem.

Na minha conversa de hoje com o genial Carlos Alberto Sardenberg e a querida Cássia Godoy, na primeira edição do Viva Voz na CBN, falamos sobre isso, ao comentar a frase, perspicaz, de Leite, segundo quem ele, ao menos, não misturou seu nome ao de Bolsonaro.

Sorte também nossa, em grande medida. Imaginar a iguaria Bolsoleite mistura componentes ainda mais nauseantes à estratégia tão manjada quanto sintomática da falta de nitidez político-ideológica da política brasileira.

Para ficar em casos mais recentes, antes do famigerado Bolsodoria tivemos os híbridos Lulécio, Dilmasia, capazes de sem dúvida provocar azia em quem espera que políticos e partidos assumam posições claras e não tentem apenas navegar a maré de popularidade de outros.

Porque, além de ser picaretagem, traz consequências, como se vê agora. Doria terá de carregar o Bolsodoria sem reclamar. Afinal, foi uma ideia de "jênio" de algum dos seus marqueteiros, e que na época foi bem sucedida. Ele patinava na disputa contra Márcio França (ou Márcio "Cuba", que saiu da mesma prancheta do jardim de infância da política que o Bolsodoria).

A intenção era galvanizar o voto da direita antipetista, uma forma de neutralizar a grande rejeição que havia ao fato de Doria ter deixado a Prefeitura de São Paulo com menos de dois anos de mandato.

Se levar a disputa interna do PSDB por esse campo da autenticidade e da coerência política, Eduardo Leite pode ter uma estrada. Afinal, ele deixou de ser candidato à reeleição para a prefeitura de Pelotas apesar da aprovação altíssima de que gozava, apenas porque havia prometido que assim o faria.

Tem, agora, de cumprir promessa na mesma linha: disse na campanha que não disputaria a reeleição ao governo. Daí por que, aos poucos, vá colocando a cabeça para fora do Estado.

Resta saber qual será a reação de Doria. O governador paulista não costuma ser muito sutil quando algo atravessa seu caminho. Basta lembrar como foi para cima de adversários no PSDB paulista e agora tenta, pela segunda vez, expurgar Aécio Neves da sigla sem combinar direito com os russos-tucanos.

Se comprar uma briga com Leite que fuja do controle e repita esses confrontos anteriores, ele tende a perder ainda mais apoio interno. Hoje existe um reconhecimento da bem-sucedida e relevante iniciativa de Doria em forçar o início da vacinação no Brasil, confrontando Jair Bolsonaro e desgastando o presidente, mas também remanescem as divisões internas e os interesses regionais que fazem com que o governador de São Paulo não seja unanimidade.

O aparecimento de um outro nome no horizonte de 2022 se junta à guerra contra o governo federal nas preocupações para o paulista.

Vera Magalhães é jornalista. Publicado originalmente em O Globo on line, em 11.02.2021.

A teimosia ignorante de Bolsonaro

Por Elio Gaspari

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais

Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?

O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.

Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.

O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.

Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.

O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.

A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.

Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Publicado originalmente por O Globo, em 10.02.2021.

A fila anda

Por Merval Pereira

A desintegração partidária exposta pelas traições em série na recente eleição para a presidência da Câmara provocou uma rebordosa que pode ter consequências profundas na corrida presidencial do próximo ano. Mostrando a resiliência da ressonância nacional da política do Rio, apesar dos pesares, o centro das negociações gira em torno de políticos daqui, como o próprio presidente Bolsonaro, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, o ex-deputado federal Miro Teixeira, o presidenciável Luciano Huck, entre outros.

A decisão de Rodrigo Maia de sair do DEM, sedimentada na entrevista que deu ontem ao jornal “Valor Econômico”, em consequência da vitória dos governistas para a presidência da Câmara e do Senado com dissidências de vários partidos que o apoiavam formalmente, mas não na prática, sobretudo o DEM, teve o condão de destravar uma série de negociações. Maia deve anunciar hoje oficialmente sua saída, mas não seu próximo destino, que pode ser o PSL renovado, livre dos bolsonaristas, ou o PSDB.

O governador João Doria jantou com Maia em São Paulo no domingo e o convidou formalmente para ir para o partido que preside, juntamente com o vice-governador Rodrigo Garcia. Ontem à noite, dando sequência a uma série de ações com que pretende assumir o controle de partido, Doria reuniu as principais lideranças no Palácio dos Bandeirantes para obter a expulsão do deputado federal Aécio Neves — que já tentou uma vez e não conseguiu —, forçando uma definição de maioria que é decisiva para sua campanha presidencial.

A garantia de que Doria realmente controla o partido é fundamental para que Maia possa tomar uma decisão. Doria sabe disso e disse a seus correligionários que somente sem ambiguidades o PSDB será um partido atraente, inclusive para Rodrigo Maia. Outra opção dele é o PSL, partido pelo qual o presidente Bolsonaro se elegeu e do qual saiu litigiosamente, em disputa dos fundos partidário e eleitoral.

O PSL elegeu a segunda maior bancada da Câmara em 2018, por isso tem direito à maior parte da divisão dos fundos, só sendo superado pelo PT. Mesmo perdendo vários integrantes nesses dois anos, especialmente com a saída do grupo de Bolsonaro, o PSL continuará tendo uma fonte de financiamento poderosa para 2022. Esse atrativo permitiria a formação de um novo partido, renomeado (quem sabe “Livres”), sem a presença de remanescentes do bolsonarismo, que poderia ser a base, eventualmente, de uma candidatura de Luciano Huck.

Maia não fala sobre seu futuro, mas o projeto do PSL remodelado, ligado aos movimentos de renovação política dos quais Huck participa, seria um projeto que o agradaria. Mas o fundo partidário também atrai os bolsonaristas, que veem na antiga sigla uma boa plataforma para enfrentar a campanha da reeleição com bala na agulha.

Tudo indica que agradaria mais a Luciano Bivar, que controla o partido, ter Maia como parceiro do que o ex-correligionário presidente. Mas a força de atração do poder eleitoral do presidente ainda pesa em decisões desse tipo. Huck teria a alternativa de filiar-se ao Cidadania, presidido por Roberto Freire, e a possibilidade de uma coligação com partidos como o Verde e o Rede. Será uma questão de balizar sua candidatura mais à direita ou mais à esquerda. Huck, no entanto, não pretende se envolver nessa disputa partidária. Ele continua interessado em debater ideias, defendendo que, no momento, é inócuo discutir legendas.

No campo da esquerda, quem atua com desenvoltura é Ciro Gomes, que ganhou esta semana o retorno do ex-deputado federal Miro Teixeira ao PDT, partido que liderou na Câmara por dez anos. Os dois foram ministros de Lula e estão empenhados em montar um programa que reflita um projeto de desenvolvimento para o país. Miro sugere que o título do livro de Gomes — “O dever da esperança” — poderia até mesmo ser o slogan da campanha, que foi convidado a coordenar pelo presidente do PDT, Carlos Lupi, ressaltando que a coordenação da campanha sempre é do candidato.

Parece que a oposição está entendendo que, contra políticos personalistas e populistas como Lula e Bolsonaro, só um projeto de futuro pode mobilizar o eleitorado para sair do marasmo em que nos encontramos, depois uma longa enfermidade.

Merval Pereira é Jornalista e escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente e,m O GLOBO, edição de 09.02.21.

As difíceis escolhas


Além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda

Por Fernando Henrique Cardoso

Dias difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?

O bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.

Mas não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.

Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.

Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.

Digo isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.

Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.

Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que sejam.

Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má palavra) vontade política.

E isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.

Não convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.

Não escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem a ser “los que mandan”.

Livremo-nos ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi Presidente da República. Publicado originalmente no O Estado de São Paulo, em 07.02.2021

Ao escolher o presidente, Câmara ignorou seus representados


Os congressistas deveriam explicar aos eleitores o seu voto e a razão

Por Roberto Macedo

A Carta Magna de 1988 diz no seu artigo 1.º, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A julgar por isso, a recente eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidente da Câmara seria inconstitucional, tamanha a distância que a maioria dos seus deputados manteve do povo.

O que se viu foi um processo de vassalagem a um candidato que não teria vencido se não fosse o apoio recebido do presidente Jair Bolsonaro, até mesmo sob forma que anteriormente abominava, o toma lá de verbas e cargos, e o dá cá de votos, vistos como o melhor para lhe evitar incômodos, como um processo de impeachment e comissões parlamentares de inquérito. E também para facilitar medidas para aumentar sua popularidade e suas chances de reeleição em 2022. O anterior presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, não se curvava diante de Bolsonaro, já Lira deve responder com gratidão.

Quanto a isso, merece destaque a reportagem Por eleição, Planalto libera R$3 bi a parlamentares, publicada por este jornal no último dia 29. Lamentavelmente, negociações de liberação de recursos para parlamentares em troca de apoio político no Congresso é prática antiga e comum em Brasília, mas o que chamou a atenção agora foi a dimensão do valor e a coincidência com o período pré-eleitoral nas duas Casas do Congresso.

Quanto a essas negociações, o jornalista Carlos Brickmann fez esta comparação: “Para evitar o constrangimento de levar uma proposta indecente a um parlamentar decente”, o que procurasse o governo ou fosse chamado para negociar deveria portar um código de barras para mostrar o valor de seu interesse, e acelerar as negociações.

Nos Estados Unidos, propostas legislativas feitas por congressistas em favor de seus redutos eleitorais são chamadas de earmarks, como aquelas plaquinhas colocadas em orelhas de bovinos. Lá são combatidas por uma instituição chamada CAGW (Cidadãos contra o Desperdício Governamental), como não cabíveis num orçamento federal que deve ser voltado para o bem comum, e não para interesses específicos e locais. Aqui caberia iniciativa similar, pois tais emendas parlamentares e outras verbas que recebem violam outro dispositivo constitucional, o de que todos são iguais perante a lei, pois no processo eleitoral os candidatos já incumbentes são beneficiados por essas dotações relativamente aos candidatos sem mandato. Assim, elas constituem indiretamente um financiamento público de campanhas, que distorce a competição entre candidatos.

Voltando à representação dos eleitores, a brasileira é extremamente frágil. Vivi em países com voto distrital, em que o eleito passa a representar um distrito, e não apenas aqueles que o elegeram, e tem o hábito de prestar contas aos moradores distritais ao longo de seu mandato, sem o que poria em risco a renovação dele. Houvesse isso aqui, os congressistas deveriam estar agora explicando em quem votaram na segunda-feira passada e a razão. Muitos enfrentariam problemas, pois a avaliação de Bolsonaro vem caindo e está perto de 30% a proporção dos que veem sua gestão como ótima ou boa. Aliás, a representatividade dos parlamentares eleitos no Brasil é tão baixa que é como se eles fossem parlamentares cometas, pois só aparecem diante do eleitor a cada quatro anos, em busca de votos.

No Senado, o resultado pareceu-me diferente do da Câmara e não tão ruim. Foi eleito o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) por maior margem relativa de votos, tendo como adversária apenas uma concorrente simbólica, Simone Tebet (MDB-MS), que disputou individualmente. Seu próprio partido deixou de apoiá-la. Bem articulado, Pacheco teve apoio até do PT.

Li na Agência Brasil reportagem sobre seu discurso de posse e destaco estes trechos: “Defendeu a independência da Casa, o combate à corrupção, a geração de empregos, o combate à pandemia, a estabilidade econômica e a preservação do meio ambiente. (...) (O Senado deve) atuar com vistas no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, com o objetivo de preservar vidas humanas, socorrer os mais vulneráveis, gerar emprego e renda. (...) também citou as reformas, sobretudo a tributária. (...) votações de reformas que dividem opiniões (...) deverão ser enfrentadas com urgência, mas sem atropelo”. Em tese, tudo muito bonito.

Pacheco chegou ao Congresso em 2014, como deputado federal, e no seu primeiro mandato alcançou a presidência da importante Comissão de Constituição e Justiça, o que demonstra poder de articulação, ratificado pela eleição recente. Seu currículo não levanta tanto as sobrancelhas como o de Arthur Lira, mas tem sido criticado por conflito de interesses entre suas ações políticas e negócios da família.

O que quero mesmo é um Brasil melhor, mas tenho minhas dúvidas quanto à eficácia, nessa direção, dos novos presidentes da Câmara e do Senado, principalmente do primeiro. Certo mesmo é que vou acompanhar de perto o trabalho deles.

Roberto Macedo é economista (FMG, USP e Harvard), Professor Sênior da USP. Consultor Econômico e de Ensino Superior. Este artigo foi publicado originariamente em O Estado de São Paulo, edição de 04.02.2021.

O grito do silêncio

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia

Por Affonso Celso Pastore

É compreensível que parte do setor privado evite criticar publicamente o governo, mas seu silêncio não significa aprovação: os preços dos ativos gritam por eles. Ao longo de 2020, a piora da situação fiscal decorrente da péssima reação do governo à pandemia provocou um crescimento sensível dos prêmios de risco, destacando-se a depreciação do real, que, após uma pausa no final do ano, prosseguiu recentemente com acentuada volatilidade. Embora poucos acreditassem que Bolsonaro pudesse reconhecer seus erros, e passasse a exercer a Presidência com uma competência nunca demonstrada, muitos apostavam que a liquidez internacional levaria à valorização do real, reduzindo a pressão sobre a inflação. Com isso, o Banco Central, que mantém uma elevada credibilidade, talvez pudesse retardar um pouco o início da inevitável normalização monetária, fazendo o que está ao seu alcance para ajudar na recuperação da economia.

É possível que a política fiscal expansionista de Biden venha a reforçar o enfraquecimento do dólar, mas este já vem ocorrendo significativamente desde maio de 2020, quando teve início uma política monetária com níveis recordes de estímulos. Foi em maio que o Federal Reserve derrubou a taxa dos Fed funds para 0,25% ao ano (o seu zero bound), foi em maio que comprou mais de US$ 2,5 trilhões de treasuries, que é perto de 2 vezes o total de ativos financeiros comprado durante o QE da crise de 2008, e não por acaso foi em maio que o dólar começou a se enfraquecer. Se a liquidez internacional fosse decisiva para valorizar o real, a partir de maio este teria de seguir a trajetória da mediana de uma amostra de 20 países emergentes, que se valorizou acompanhando de perto o enfraquecimento do dólar. Em 2020 e no início de 2021, o comportamento do real não tem nada a ver com o enfraquecimento do dólar. É explicado apenas por causas doméstico.

Afonso Celso Pastores foi Presidente do Banco Central. É sócio da A.C. Pastores & Associados. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 31.01.2021.

Dívida trilionária dispara novo alerta para crise fiscal


Enquanto o endividamento bate mais um recorde, os investidores externos batem em retirada


A informação do Tesouro de que a dívida pública pela primeira vez ultrapassou os R$ 5 trilhões, perto de 90% do PIB, dispara mais um sinal de alerta para a situação crítica das contas públicas. O Congresso precisa levar tal fato em conta no debate que crescerá a partir de segunda feira, depois da eleição dos novos presidentes da Câmara e Senado, sobre a criação de um novo auxílio emergencial. O endividamento recorde e a crise fiscal têm tornado o Brasil cada vez menos atraente aos investimentos externos diretos, termômetro da confiança mundial na nossa economia.

As despesas extraordinárias no enfrentamento da pandemia no ano passado são a causa básica do crescimento da dívida em R$ 760 bilhões, com um déficit primário de R$ 744 bilhões, quase 10% do PIB. Para manter o endividamento sob controle, deveríamos, em contraste, acumular superávits na faixa dos 3%. Isso dá uma ideia do esforço fiscal hercúleo necessário para o Estado brasileiro resgatar a confiança no país. Não há milagre no caminho a perseguir: a agenda de reformas paralisada no Congresso, em particular a administrativa, a tributária e as demais que trariam fôlego fiscal.

É verdade que precisam ser reconhecidas as condições extraordinárias de 2020 (e também de 2021). É indiscutível que uma crise pandêmica global, capaz de derrubar as mais fortes economias do mundo, exige de cada Estado ações compensatórias para proteger a saúde da população e acolher aqueles atingidos pelos reflexos econômicos da doença. Entre setembro e novembro, 14 milhões ficaram sem emprego. Para 10 milhões, a jornada de trabalho foi reduzida, ou o contrato, suspenso.

Mas nada disso significa considerar como “novo normal” a precariedade da economia. É necessário ter sensatez. No Brasil, com seu longo prontuário de calotes na dívida pública, todo novo auxílio precisa ser lançado em bases mais consistentes. Não é um acaso que o investidor externo venha paulatinamente perdendo a confiança no país, a ponto de os investimentos diretos terem somado, no ano passado, apenas US$ 34,2 bilhões, queda de 50% em relação a 2019 e o volume mais baixo dos últimos 11 anos — período em que muito se falou sobre as reformas, mas pouco se fez.

A fuga do investidor é explicada como sintoma da retração mundial causada pelo vírus. É menos que uma meia-verdade. Desde 2011, a tendência nos investimentos diretos tem sido de queda. No pico, em 2011, chegaram a US$ 102 bilhões, volume mais elevado desde que os dados passaram a ser coletados, em 1947. Caíram a um terço disso em 2020.

Daí a urgência das reformas. A perda de atratividade do Brasil vem de longe e pode se agravar dependendo de como o governo responder à nova onda da Covid-19. Vir para ficar não é um dogma para o investidor estrangeiro. Depende das condições. A Ford ficou um século — e partiu.

Editorial de O GLOBO, em 29/01/2021

Fora Bolsonaro


Por Eugenio Bucci

Presidente que lidera campanhas contra a imprensa é um atentado ambulante à Constituição

O xingamento “Globolixo”, com o qual as falanges bolosonáricas agridem reiteradamente a Rede Globo, tem duas origens malignas: uma superficial, de ocasião, e outra histórica, profunda.

Em sua origem superficial, “Globolixo” resulta de um trocadilho que faz troça da marca publicitária “Globeleza”, que a própria empresa adota em suas ações de marketing. À primeira vista, parece apenas um tipo de molecagem inconsequente. Nesse plano, temos a sensação de que o xingamento, um sinal de repúdio à programação e à linha editorial da maior rede de televisão do Brasil, poderia ser empregado por adolescentes de qualquer coloração ideológica, de direita ou de esquerda, indistintamente.

Mas não é assim. O palavrão guarda mais identidade com as milícias virtuais da direita antidemocrática, esse pessoal que, à moda do chefe, elogia torturadores, prega o fechamento do Supremo Tribunal e diz que o uso de máscara é coisa de maricas. Mais que uma tirada ignara, “Globolixo” é uma peça de retórica fascista. Mais do que ofender uma organização de mídia em particular, seu propósito é desacreditar toda a imprensa e todo o sistema de que as sociedades democráticas dispõem para separar o que é verdade factual do que é mentira. A palavra “Globolixo” concentra uma campanha insuflada diretamente pelo Planalto contra a imprensa livre.

Isso fica mais claro quando vamos atrás das origens históricas do termo espúrio. Essas origens remontam a palavra alemã Lügenpresse, algo como “imprensa mentirosa”. O termo frequentou o vocabulário de variadas correntes políticas a partir do século 19. No mais das vezes, servia a forças conservadoras ou ultraconservadoras para atacar órgãos de imprensa mais ou menos liberais, anticlericais e críticos, embora tenha atendido também a facções de esquerda que tentavam denunciar hipocrisias nos jornais burgueses. Entre tantas invocações, vindas de atores tão diversos, foi com os nazistas que a palavra Lügenpresse marcou lugar na história no século 20. Por meio dela os seguidores de Adolf Hitler produziram um estigma contra os judeus que estariam por trás das redações jornalísticas e uma ponta de lança para a propaganda massiva que mobilizaram para desacreditar todos os métodos independentes de verificação dos fatos.

Por que os nazistas rechaçavam o jornalismo? Muito simples. Para eles, só havia verdade nos enunciados do partido – tudo o que não fosse a palavra do partido era mentira potencial ou consumada. Um fato só era fato quando declarado fato pelo partido. Um fato não reconhecido pelo partido não era fato. Tudo muito chapado, muito estreito, bem ao gosto das massas que têm sede de tirania (massas que estão por aqui até hoje).

Em seus diários, Josef Goebbels, o ministro da propaganda do 3.º Reich, afirmou que gostaria de transformar o nazismo na religião do povo. A suástica funcionava, na imaginação dele, como a essência primordial, um sopro inaugural ou, ainda, o DNA insubstituível de todo discurso verdadeiro. Segundo essa dogmática, qualquer forma de expressão ou de representação que pretendesse conter ou indicar alguma verdade teria de carregar em seu código interno a inscrição da suástica. Dizendo Lügenpresse, os nazistas generalizavam seu juízo sobre a atividade jornalística – que seria por inteiro, e em absoluto, uma atividade de produção de falsidades – e rejeitavam de antemão a credibilidade de qualquer voz que não fosse a do próprio Führer.

Nos nossos dias, os fascistinhas de Facebook que repetem o xingamento “Globolixo” ecoam a campanha nazista baseada na palavra infamante Lügenpresse. Eles tentam minar a confiança do público na imprensa para matar o jornalismo de inanição (uma redação que não recebe o alimento da confiança do público morre à míngua). O pacto autoritário e antidemocrático que chegou ao poder com Bolsonaro sabe perfeitamente que para não desabar depende de eliminar a função social de verificação dos fatos, encarnada na imprensa independente – essa instituição social que está nos diários, como este aqui, nos telejornais de respeito, como o Jornal Nacional, e numa série de pequenas redações profissionais destemidas que investigam os acontecimentos com método e honestidade intelectual. O projeto de poder que aí está tem consciência de que só sobreviverá se matar o espírito livre da imprensa. Coerentemente, encoraja seus seguidores gritar “Globolixo”.

Em recente levantamento da entidade Repórteres Sem Fronteiras, constatou-se que 80% dos ataques contra a imprensa nas redes sociais em 2020 vieram diretamente do presidente da República ou de um de seus filhos. Em outra pesquisa, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou um aumento do número de agressões ao jornalismo no mesmo ano e provou que o campeão das aleivosias é Jair Bolsonaro.

Um presidente liderando campanhas anti-imprensa é um atentado ambulante à Constituição. Os jornalistas brasileiros não se afastariam do seu dever de objetividade e independência se exigissem, em bloco, a destituição de Jair Bolsonaro.

Eugenio Bucci é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - USP. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 28.01.2021

Biden não hostilizará o Brasil

Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro

Por Paulo Sotero

O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.

No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles – um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.

O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.

De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.

“Estou alarmado” com as ações desse “patife e fora da lei”, afirmou à MSNBC o ex-general Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.

Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos – sua especialidade –, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.

Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo “pólvora” se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam – sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul-União Europeia, já há tempo nas cordas.

Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.

Paulo Sotero é Jornalista. Pesquisador sênior do Brazil Institute no Wilson Center, em Washington, DC. Este artigo foi publicado originalmente no O Esatado de São Paulo, edição de 21.11.2020.

Fé na política

Por mais áspera que ela seja, recompensa os que a preferem à demagogia

Marcos Guterman

A vitória de Joe Biden na disputa pela Presidência dos EUA é, entre muitos outros aspectos, a reafirmação da fé na política – que, com todas as suas imperfeições, é o único mecanismo, numa democracia, para encontrar soluções legítimas e duradouras para os muitos problemas da sociedade.

É a recuperação do valor de todos e de cada um dos cidadãos como protagonistas da vida pública, em contraste com a ideia, tão bem simbolizada pelo presidente Donald Trump e seus discípulos, de que a maioria, encarnada no vencedor da eleição, detém o poder absoluto, cabendo à minoria calar-se e aceitar a sua insignificância.

Pode ser que o governo de Joe Biden acabe por frustrar as expectativas que se criaram em torno dele, mas isso é do jogo, e a democracia tem seus mecanismos para dispensar governantes incapazes de entregar o que prometeram. O importante a salientar é que não há saída fora da política e temos de aceitar seus muitos defeitos, especialmente porque a alternativa é a oclocracia messiânica de Trump e companhia, em que o líder atropela leis e instituições em nome da massa, movido por uma suposta missão de purificação nacional.

A derrota do aventureiro Trump e a vitória de um político calejado nos EUA mandam uma mensagem particularmente relevante para o Brasil, que ainda tem dois anos pela frente em seu experimento de negação da política, deflagrado nas eleições de 2018. Esse experimento, a exemplo do que aconteceu nos EUA e em outras partes do mundo sob inspiração de Trump, explora justamente a aflição dos cidadãos com o caráter contingente da vida democrática. O bolsonarismo, bem como o trumpismo, oferece a seus clientes eleitorais a perspectiva de controle total sobre a história, isto é, a supressão do acidental: tudo já está escrito e será revelado pelo líder.

Joe Biden, por sua vez, representa a incerteza da história ainda por ser escrita e que, portanto, clama pela participação de todos em sua elaboração, por meio de suas organizações sociais e partidárias, dentro das regras da democracia. E antes que alguém argumente que isso não é possível no Brasil, intoxicado pela descrença na política, deve-se lembrar do exemplo recente do governo de Michel Temer.

Em sua curta duração, o governo de Temer privilegiou o diálogo político – e não somente porque era a única forma de superar o tumulto legado por sua antecessora, Dilma Rousseff, mas porque era a tradução da convicção genuína do então presidente no poder da democracia.

“Nós temos que governar o país e governar por meio do diálogo. Diálogo entre quem? Entre o Executivo e o Legislativo, porque quando você despreza o Legislativo o ato de governar torna-se muito mais difícil”, conta Temer no livro A Escolha, coletânea de entrevistas do então presidente ao professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield.

Sabe-se que o governo de Temer foi muito impopular, mas não propriamente por seus atos, e sim pelo que representava numa sociedade polarizada: para uns, era “golpista”, malgrado ter assumido a Presidência num processo plenamente constitucional; para outros, era representante da “velha política”, identificada por extremistas como visceralmente corrupta.

Em meio a esse ambiente tumultuado, Temer enfrentou a crise com as armas que tinha na mão: sua larga experiência como parlamentar, seu bom trânsito entre os agentes políticos mais relevantes e seu conhecimento do funcionamento das instituições e dos limites da Constituição. Sobretudo, investiu na política – e foi relativamente bem-sucedido na resolução de parte da imensa instabilidade herdada de Dilma.

“As pessoas imaginam que essa história de derrubar a inflação e os juros é algo que cai do céu, uma espécie de ato da natureza, como se esta, por mecanismos próprios, fosse capaz de resolver essas questões. Não! É um ato político, de governo”, declara Temer, descrevendo assim a “escolha” de que trata o livro.

Pode-se olhar o legado de Temer pelos números, favoráveis em sua maior parte, ou pelas reformas aprovadas a despeito das muitas dificuldades. Mas a maior herança do governo Temer é o contraste entre um presidente com o senso do dever, que fez o que precisava ser feito mesmo à custa de sua popularidade, e a presidente que o antecedeu, com sua irresponsabilidade fiscal e sua visão retrógrada de país, e também o presidente que lhe sucedeu, afeito mais a “caneladas” do que ao diálogo e que não sabe o que fazer com o poder que recebeu das urnas. Temer mostrou, em seu curto mandato, que a política tradicional era, sim, capaz de oferecer uma alternativa racional e viável tanto à demagogia estatólatra do PT como ao reacionarismo primitivo do bolsonarismo.

Ou seja, não é preciso buscar alhures exemplos de como a política, por mais áspera que seja, recompensa os que a preferem à demagogia. Decerto Joe Biden merece servir como referência dessa possível retomada dos bons modos políticos; mas, por aqui, esse exemplo já existe – e se a política é a arte do possível, Temer é político por excelência, capaz, em suas próprias palavras no livro, de “trabalhar com aquilo que tem”.

Marcus Guterman é historiador e Jornalista. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 18.11.2020.

O GOVERNO NA CORDA BAMBA


Por Torquato Gaudêncio

A administração de um governo passa por cinco fases: a do lançamento, quando o governante toma posse e apresenta seus quadros; a do crescimento, quando os governos formam e ajustam suas estruturas, começam a apresentar programas e ações, em um espaço de seis meses; a de consolidação da imagem, quando os níveis de confiança ganham um patamar de respeito e credibilidade, merecendo os aplausos da sociedade; a do clímax, quando os governos sobem ao cume da louvação, com um grau de avaliação positiva que chega a beirar 70%; por último, a fase do declínio, que mostra administrações sem rumo, desestruturadas, vivendo crises e descendo pelo precipício. O ideal é que um candidato ou governante – em caso de reeleição – viva seu clímax às vésperas do pleito a se realizar, jamais antecipando o momento de declínio.

Desse traçado, advém a questão: em que estágio se encontra o governo Bolsonaro, com um ano e seis meses de vida? Deixemos que o leitor, ao final, encontre a resposta. De antemão, uma observação pertinente na ciência e na arte da política: um protagonista, a depender de habilidades e circunstâncias, pode recuperar seu vetor de peso. Dito isto, vamos às considerações.

O governo Bolsonaro está na corda bamba: enfrenta uma das maiores crises sanitárias da história do país, com o Brasil ingressando no pódio do maior número de mortos em 24 horas; na economia, a projeção para a queda do PIB este ano é de 9,7%; a crise política é aguda, tanto pelas dificuldades na formação de uma base parlamentar de apoio quanto nas tensões geradas pelo estilo intempestivo do presidente; na frente administrativa, a instabilidade se expande com a troca de ministros e tensões geradas pelo palavreado obtuso de figuras desastradas como Abraham Weintraub.

Esse quadro é ainda agravado pela agenda negativa que se desenvolve no STF. Que levará adiante o inquérito das fake news, enquanto prossegue o inquérito para apurar “a grave crise institucional”, aberta com ameaças à independência dos ministros do Supremo e a seus familiares, palavras pesadas e de baixo calão, disparos de fogos contra a sede da Alta Corte. Na esfera policial, a prisão de Fabrício Queiroz aproxima a fogueira da família Bolsonaro. Para o presidente, mexer com seus filhos é questão de vida ou morte. Atordoa sua alma.

Na paisagem da saúde, o caos está à vista. O ministro interino, Eduardo Pazuello, parece sem rumo. O ministério da Economia acaba de perder um quadro de alta referência, Mansueto Almeida, que se mostra esgotado. Os graves efeitos nessas duas linhas de ação do governo – saúde e economia – não sinalizam melhorias no curto prazo, sendo bem provável que os danos se estendam por 2021, após o clamor político que sairá da garganta dos 5.570 prefeitos, eleitos para comandar estruturas falidas e execradas pelo eleitor.

Há mais um cenário desesperador para a administração Bolsonaro. Eventual derrota de Trump na eleição presidencial de novembro deste ano pegará Bolsonaro “caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento no sol de quase dezembro” e sem saber para onde irá. O Brasil passou a ser extensão do trumpismo no mundo. O que Donald diz e quer, o chanceler Ernesto Araújo chancela e o presidente diz “amém”. Afinal “são amigos”. A ponto de Trump ter implodido o candidato do Brasil, escolhido por Paulo Guedes, Rodrigo Xavier, para dirigir o BID, geralmente comandado por um latino-americano. Será desta feita um norte-americano. O Brasil vai enfrentar a China como fazem os EUA?

E mais uma nota negativa: cai o apoio aos militares, segundo as pesquisas. Os generais, até meses atrás, encarnavam o valor do profissionalismo. Desde a saída do general Santos Cruz do governo, os que continuam no entorno presidencial endureceram o discurso. Passaram a acrescentar um viés político às falas. São extensores da linguagem desabrida do presidente. Em maio, o percentual de publicações negativas nas redes subiu para 55% e as positivas desceram para 45%. No ano passado, as positivas sobre os militares eram e 69% e as negativas, de 31%.

Voltemos à pergunta inicial: em que estágio se encontra o governo? Terá condições de resgatar seus vetores de peso nas esferas da pandemia, da economia e da política? Nos EUA, um dos fatores que derrubam Trump - com 13 pontos percentuais atrás de Joe Biden, o candidato democrata – é a má condução no combate à pandemia. Teremos até outubro de 2022 muita água a rolar por baixo dos palácios e das cúpulas côncava e convexa do Congresso. A índole de Jair Bolsonaro é um fator de conforto ou de desconforto?

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

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A razão sobre a emoção


Por Gaudêncio Torquato

O voto, a maior arma de defesa da democracia, está deixando o coração para subir à cabeça. A hipótese pode até parecer estrambótica nesses tempos de intensa polarização, quando o frenesi das emoções parece ganhar de capote para o jogo da razão. Enganam-se, porém, aqueles que imaginam emoção como sinônimo de explosão, catarse, palavras de baixo calão (que passaram a frequentar a linguagem dos governantes), slogans, refrãos, culto aos mitos. Quando alguém, ante uma tragédia como a que estamos vivenciando com a pandemia do Covid-19, diz - “nunca vi tanto desgoverno, não aguento mais, estou arrependido do meu voto na última eleição” - está falando pelo coração ou pela cabeça?

À primeira vista, as expressões parecem sair das veias do coração. Ocorre que elas são o resultado de um somatório de conhecimento, acompanhamento da política, comparação com outros ciclos históricos, observação acurada do que se passa ao redor. Nesse caso, temos de convir que um processo racional se desenvolveu. A razão prevaleceu, admitindo-se, claro, que coabita com a emoção na vida dos interlocutores. O fato é que, nas últimas décadas, decepcionadas com representantes e governantes, as pessoas dão as costas à política e iniciam uma jornada de revisão em sua maneira de escolher os quadros públicos.

Na Europa, o desenvolvimento do sentido crítico ocorre ao longo dos ciclos políticos. Políticas sociais fracassadas, os desvios da socialdemocracia, projetos liberalizantes que não deram certo, projetos inadequados e mesmo a corrupção têm sido o pano de fundo para a alteração dos comandos entre partidos. O afastamento de uns e a chegada de outros ao poder ocorre sob o fluxo de um conceito que os franceses designam como “autogestão” técnica, pelo qual as pessoas definem o que esperam e o que querem dos governos e estabelecem meios e condições para atingir sua meta. Nos EUA, onde dois partidos dominam a cena, democrata e republicano, é mais fácil selecionar representantes e governantes. Vota-se naquele que melhor atende as expectativas do eleitor.

Por nossas plagas, a paisagem é deserta. De ideias e líderes. Imensos buracos negros se multiplicam na constelação política, abertos pela ausência de expressões de porte, quadros qualificados, pensadores e formuladores políticos de alta densidade. Não se formam mais políticos como antigamente. Lembre-se, no entanto, que mudaram as condições da política. Os parlamentos já não têm mais a força de antigamente, as oposições perderam parte de seu tradicional vigor, o discurso se torna grupal/partidário/fisiológico, enquanto as tribunas não conseguem traduzir a liturgia e o calor dos grandes embates.

O carisma, brilho próprio e nato que serve para emoldurar perfis, também fenece sob a frieza calculista da política de resultados. As causas nacionais cedem lugar a interesses de grupos e setores. As linguagens se aproximam. Os comportamentos se igualam. O varejo se instala na esteira do conceito da política, que deixa de ser missão para ser profissão. A ética ganha contornos adjetivados para servir às circunstâncias.

A coragem, a audácia, o zelo e a obstinação, valores inerentes às lideranças, tornam-se escassos. O rigor na apuração de escândalos só ocorre sob o paredão de pressão da opinião pública. Quando a sociedade reclama, o sistema político corta dedos para não perder os braços.

E o que faz o líder? Defende frentes de interesse. Grupamentos corporativos. A liderança natural está agonizante. O caso de Lula é emblemático. Seu estoque de carisma está se esvaziando. Tem o PT como seu trono, onde assume o papel de onipotente e onisciente. Diz que o PT não assina lista de Frente Ampla porque o partido não é mais aquele do dito politicamente incorreto: “Maria vai com as outras”. Falha de razão e excesso de emoção.

A esfera política não vê a nova identidade em desenvolvimento no Brasil. Que cresce sob o signo da razão, do planejamento, do aproveitamento de oportunidades. No paiol das lideranças, as cores da mesmice se instalaram há muitos anos, gerando um discurso que não afeta, não entusiasma, não entra na alma. Nomes ali expostos são os mesmos de 20, 30 anos atrás.

Nesse ano de pandemia, a ser seguido pelo calendário eleitoral, o superlativo dominará a expressão política, a verdade se cobrirá com as cores de fake news, e o mundo real dividirá suas cores com o mundo virtual. Esperemos que a passarela entre esses dois universos seja pavimentada pela prevalência da razão sobre a emoção. E que não deixemos a polarização eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substituído pelo tronco da paz.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

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Política nacional de segurança sanitária


Por José Serra


Urge uma legislação geral de combate a pandemias e desastres de calamidade nacional


A pandemia de covid-19 é uma calamidade que combina três dimensões: econômica, sanitária e social. Ela causa um choque negativo na demanda e na oferta da economia, afetando a produção, o emprego e a renda. Suas proporções de doença e mortes provocam um choque social: milhões de pessoas, sem emprego ou renda, tornam-se vulneráveis e outras tantas aprofundam sua vulnerabilidade preexistente. Paralelamente, os efeitos da pandemia sobre a população causam um choque no sistema de saúde, ameaçando-o de colapso. A existência prévia de acentuada crise política é sério agravante.

Uma pandemia de coronavírus era prevista pela comunidade científica internacional, mas ao eclodir obrigou o poder público em todos os países a atuar de improviso. A maioria das nações tem adotado medidas pontuais de enfrentamento de emergência da disseminação do vírus e de tratamento dos infectados: transferências de recursos para grupos vulneráveis ou afetados pela pandemia, garantias e subsídios para empresas e proteção ao mercado de trabalho.

A experiência internacional aponta novos rumos para enfrentar calamidades públicas. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, publicou recentemente uma nota técnica que defende a ideia de “válvulas de escape” a serem acionadas em situações de calamidade. Isso permitiria que “regras contra desastres” fossem automaticamente acionadas, assim como é feito quando as regras fiscais são desobedecidas.

O desafio de desenhar políticas públicas às pressas, entretanto, é imenso e afeta mais os países onde há falhas de governo. Nesta pandemia, saíram-se melhor países como a Nova Zelândia, onde a espinha dorsal do orçamento público são políticas de bem-estar e saúde. A Austrália adotou um modelo de gestão compartilhada entre o governo federal e os entes federativos no enfrentamento da covid-19, dando transparência às iniciativas do poder público e funcionando como uma política nacional contra a pandemia.

No caso dos Estados Unidos, não foram tomadas medidas de planejamento de longo prazo, nem medidas imediatas de pronta resposta. Entretanto, desde a pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, causada por coronavírus, a ocorrência de novas pandemias era tida por certa, a dúvida seria quando. Naquele ano, um Estoque Farmacêutico Nacional, criado ainda na administração Clinton (1993-2001), fora transformado em Estoque Estratégico Nacional, que, no entanto, nunca chegou a reunir insumos e equipamentos básicos, tais como máscaras ou remédios genéricos, indispensáveis para enfrentar uma pandemia. O resultado é conhecido, tendo sido agravado pelo empenho presidencial em se opor ao combate à pandemia.

O governo brasileiro, desde o início, tinha várias condições favoráveis para encarar com eficiência a pandemia. O primeiro, fortuito, foi o começo tardio da presença e disseminação do vírus em nosso território, dando aos órgãos públicos mais tempo para se prepararem, além de proporcionar exemplos, em outros países, do que fazer e do que evitar. Conta também com um sistema de saúde nacional e de alcance universal, gratuito, cobrindo desde o atendimento médico, do mais simples ao mais complexo, até o desenvolvimento de pesquisa e a distribuição gratuita de medicamentos essenciais. E acumulou, ao longo de décadas, uma bem-sucedida experiência de campanhas nacionais de vacinação.

Entretanto, essas vantagens de nossa gestão da saúde pública não se converteram automaticamente em mecanismo capaz de planejar e gerir uma máquina de guerra de combate a um desastre das proporções da pandemia de covid-19. A começar por planejamento estratégico de diagnóstico, elaboração de políticas, implementação de gestão da crise provocada pela pandemia, que vai muito além de seus aspectos sanitários.

Um importante obstáculo são as inevitáveis oposições internas a uma política dessa magnitude. O surgimento de uma quinta-coluna, comandada pelo próprio presidente da República, certamente não ajudou, e ficamos condenados à improvisação em todos os níveis de governo. No início da crise, regras fiscais foram usadas pelo Executivo como pretexto para não atuar energicamente, mesmo após o Congresso e o Supremo Tribunal flexibilizarem os diplomas legais em vigor. Diante dessa omissão, partiu do Congresso a iniciativa de aprovar a Emenda Constitucional 106, a fim de instituir um apropriado regime fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades de um estado de calamidade pública internacional.

Cabe destacar que o novo dispositivo constitucional não deveria restringir-se à pandemia do novo coronavírus, mas alcançar qualquer calamidade decretada pelo Congresso Nacional em razão de emergência provocada por fatores externos. O regime extraordinário instituído pela Emenda 106 alinha-se às “válvulas de escape” propostas pelo FMI. Nesse sentido, é urgente a adoção de legislação geral estabelecendo, nos três níveis de governo, a regulamentação de uma política nacional de segurança sanitária, dotada de um arranjo institucional permanente de combate a pandemias e outros desastres que provoquem estados de calamidade nacional.

José Serra é Senador (PSDB-SP). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo,edição de 11.06.20.

Domingo, o dia D

Bolsonaro busca pretexto para golpe enquanto comete crimes em série

Por Vera Magalhães

A questão atual não é se Jair Bolsonaro cometeu ou não crimes de responsabilidade desde que resolveu rasgar a fantasia de democrata ainda em janeiro, mas notadamente a partir do início da pandemia do novo coronavírus.

É notório que o presidente da República usa a crise de saúde e econômica para afrontar os demais Poderes, avacalhar as instituições, avançar em seu projeto armamentista e de cooptação das Forças Armadas e das polícias militares para defendê-lo das tentativas de contenção constitucional dos demais Poderes.

A cada fim de semana, o Brasil agrava seu estado de anomia, caminhando de forma perigosa, sob o beneplácito de muitos dos que teriam obrigação legal de agir, para algo próximo de uma ruptura. Este domingo pode fornecer o pretexto que o presidente busca, mas não é este o único risco colocado diante de uma nação perplexa, apavorada e, em grande medida, ainda inerte.

Na última semana, o presidente resolveu incluir outro crime no rol dos que já cometeu: atentado à saúde pública. Diz o artigo 267 do Código Penal que é crime contra a saúde pública causar uma epidemia. Isso pode se dar por ação ou omissão, e ao verbo “causar” pode-se incluir ações para agravar uma epidemia em curso.

Bolsonaro determinou a revisão do horário e da metodologia de divulgação de dados da covid-19. Pior: depois de efetivar um general como interino na pasta, de coalhá-la de militares e exonerar técnicos em massa e de estabelecer, por medida provisória, um “excludente de ilicitude” para ações de servidores ao longo da pandemia, pressiona pela revisão de todos os dados até agora. O site do Ministério Interino da Saúde também passou a omitir dados divulgados desde o início da crise.

Tudo isso configura atentado oficial, deliberado e com documentação contra um País que vive um pico desordenado de covid-19 enquanto seus governantes discutem uma reabertura prematura e também ela criminosa.

Para agravar o que já é uma situação-limite, neste domingo, tudo conspira para que haja confrontos entre manifestantes e que esse seja o pretexto que Bolsonaro aguarda para tentar medidas ainda mais autoritárias.

Opositores do governo, com pautas justificadas, organizam atos em várias cidades contra o racismo e o fascismo. Mas o fazem também eles ignorando a necessidade de distanciamento social e não percebendo que levar o enfrentamento do governo para esse campo é tudo que a natureza golpista e belicosa do bolsonarismo quer neste momento.

Não por outra razão o presidente e seus 300 fanáticos afrontam mais de 70% da população do País semana após semana. O que o presidente, o vice, os filhos do presidente, as milícias bolsonaristas e os deputados teleguiados querem é que haja violência que justifique tentar enquadrar grupos antigoverno na Lei Antiterrorismo, num claro movimento de cerceamento ao direito de manifestação e sem tratar com o mesmo critério aqueles que pedem intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo.

O domingo pode fornecer a desculpa que o presidente está buscando para tentar empastelar as investigações do STF, impedir que elas cheguem à Justiça Eleitoral e calar ainda mais um Congresso que já está com o rabo entre as pernas enquanto os partidos do Centrão vão às compras nas gôndolas, antes fechadas a eles, do bolsonarismo.

É preciso que os líderes dos movimentos de oposição entendam a armadilha e orientem seus seguidores a não caírem em provocações e não deem pretexto para policiais simpatizantes do presidente agirem com truculência. Os governadores também precisam comandar suas polícias efetivamente, sob pena de serem as primeiras vítimas de um golpe que, se vier, terá nas PMs a força motriz.

Vera Magalhães é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.06.2020.

Cortando as asinhas


Por Eliane Cantanhede


‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor


À deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.


Nem a exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do Jornal Nacional”. Pois entrou plantão extraordinário na novela, o Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL, Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o governo sonega ou manipula.


(Bolsonaro 'arranja' agenda no ministério da Saúde a mulher que diz ter cura para covid com alho cru.)


O dr. Jair, epidemiologista, assumiu desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.


É triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante, que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam?


Com os mortos passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o grande problema” do momento são as manifestações de domingo pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando as manguinhas de fora”, acusou.


Definitivamente, o grande problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e contaminados não é próprio de democracias.


Estamos em más companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a realização de manifestações neste momento, a resistência das instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.


Quem “botou as manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se plantam armados na Praça dos Três Poderes?


Os vários manifestos, os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.


Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.06.2020

O fascismo eterno e o fascismo tabajara

Por Fernando Gabeira

Há obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja dos traços mais decisivos na política externa


Fascismo tabajara é uma feliz expressão criada pelo cientista político Luiz Werneck Vianna. Fascismo eterno é um conceito do intelectual italiano Umberto Eco e foi tema de uma de suas conferências nos EUA.

Como muita gente nova tem me perguntado o que é o fascismo, resolvi trabalhar um pouco o tema, partindo das características eternas do fascismo para suas manifestações tropicais. A conferência de Umberto Eco acabou resultando num livro de 64 páginas. Ele entende como fascismo esse regime nacionalista, autoritário, que vigorou na Itália e foi derrubado no final da Segunda Guerra.

Quando garoto, Umberto Eco participava de concursos de composições com esse tema: “Devemos morrer pelo glória de Mussolini e o destino imortal da Itália?” Como um garoto esperto, respondia que sim. Eco viu os americanos ocuparem a Itália, Mussolini ser executado e refletiu tantos anos sobre o fascismo que acabou extraindo do regime as suas características que sobrevivem aos tempos.

São 14 traços essenciais e, segundo Eco, não precisam estar todos presentes para definir um regime fascista. É temerário condensá-los num curto artigo e apontar sua manifestação tabajara.

Alguns, no entanto, são tão evidentes que não demandam profundas análises comparativas.

Eco acha que para o fascismo eterno não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. “Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.”

Daqui salto para dois outros traços essenciais: a relação com a cultura e a relação com as armas. Para o fascista, a relação com a cultura também é uma guerra permanente. Daí a célebre expressão atribuída por Eco a Goebbels: “Toda vez que ouço falar de cultura tenho vontade de sacar minha arma.”

No campo das armas, também se desenha um traço essencial do fascismo eterno. O fascismo eterno transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo, que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos não conformistas, como o homossexualismo.

Para Eco, o herói do fascismo eterno, para quem o sexo é um jogo difícil de jogar, prefere jogar com as armas, um simbolo fálico, e seus jogos de inveja se devem a uma permanente inveja do pênis.

Para aqueles que se veem despojados de qualquer identidade social, o fascismo diz que o único privilégio comum a todos é terem nascido no mesmo país. É a base do nacionalismo extremado. O único elemento que pode conferir identidade é o inimigo.

No fascismo há uma obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja um dos traços mais decisivos na nossa política externa. A própria ONU parece ser uma sede de conspiração, assim como a OMS e outros organismos internacionais. O aquecimento global é uma invenção do marxismo globalizante, o corona é um vírus comunista, destinado a enfraquecer os países do Ocidente.

Entre os 14 traços essenciais do fascismo eterno, na concepção de Eco, está também a recusa da modernidade. Escrevi sobre ele, mostrando que a proposta de Bolsonaro na verdade é uma retropia, uma volta a um passado ideal, ordenado e tranquilo, desenhado por Damares, com meninos vestidos de azul, meninas, de rosa.

O fascismo tabajara também defende um tipo de tradição religiosa, na qual a verdade foi revelada e não há espaço para o avanço do saber.

Só que aqui a verdade foi revelada nas profecias evangélicas, segundo as quais Cristo deve retornar ao Oriente Médio, quando Israel recuperar suas terras. É essa profecia que move o governo Bolsonaro a querer mudar para Jerusalém a embaixada brasileira.

O interessante, para finalizar, sem finalizar de fato porque há muito o que comparar ao longo dos traços restantes, o fascismo vê diversidade como um sinal de desacordo. Ele busca o consenso exacerbando no natural medo pela diferença. Seu primeiro apelo é contra os intrusos, logo, por definição tende ao racismo.

Umberto Eco morreu recentemente. Não viu surgir de novo o movimento antifascista. Mas, sobretudo, não pôde incluir um traço ao fascismo eterno que surge aqui como nos Estados Unidos: o fascismo chama de terrorista quem se insurge contra ele.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 08.06.2020.

O PAÍS DA PIADA

Por Gaudêncio Torquato

No chiste atualizado, o venezuelano chega perto de Deus e indaga: por que o Senhor tem sido tão injusto com a Humanidade? Nosso subsolo contém uma das maiores reservas do mundo em petróleo. Temos um herói que dá brilho à nossa história, Simon Bolívar, hoje mera estampa atrás da cadeira de Nicolas Maduro. Padecemos de fome, miséria. Mais 3 milhões de pessoas já fugiram e inflação de 2,5 milhões por cento corrói nossa economia. E agora esse bichinho mortífero de nome estranho, Covid-19.

Deus disse: tenho procurado ser justo. Vejam o Japão. Uma tripinha de terra com tufões, mas um gigante tecnológico. Olhe os Estados Unidos, a maior potência mundial, porém atormentada por ciclones que devastam regiões. E mais: olhe para esse Covid-19 que mata milhares no país e contamina milhões. Aliás, esse coronavírus é a resposta para os malefícios que as Nações provocam contra a natureza, o ódio e a ambição que impregnam governantes e políticos.

Passeie pelos encantos e da Índia e contemple as belas paisagens africanas, mas fuja da miséria daquelas paragens. Já viu algo mais lindo que os fiordes da Noruega? Veja o gelo que joguei lá. Botei muito petróleo no subsolo da Arábia Saudita e do Kuwait. Sabe por quê? Para compensar a tristeza de viver sob costumes desumanos.

O venezuelano se deu por vencido quando Deus arrematou: veja o Brasil, com seu imenso território, sol o ano inteiro, costa monumental banhada pelo Atlântico, terras férteis, sem terremotos, ciclones e guerras. A pergunta veio na bucha: e por que tanta condescendência? Deus foi taxativo: conhece o povinho que coloquei lá? Eles não estão livres desse vírus. Veja o governante que foi eleito. E assim terminou a conversa.

Pois é, esse governante acaba de acrescentar mais uma expressão ao seu besteirol: “quem é de direita usa cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”, aquele xarope-refrigerante de tempos idos. A demonstrar que o Brasil é uma piada.

O fato é que o castigo dos céus parece ter chegado ao nosso meio, depois de termos cantado por séculos as belezas da “terra em que se plantando tudo dá”, conforme escreveu Pero Vaz de Caminha ao El-Rei de Portugal em 1500.

O Brasil padece hoje da improvisação que baliza as responsabilidades dos homens públicos.

A incúria, o desleixo, a falta de planejamento por parte dos gestores públicos estão na base da gravidade da pandemia que assola o país. Crise dentro de crise: crise sanitária, crise econômica, crises políticas em escalada crescente. Muita improvisação.

Vemos um governante “receitando” a cloroquina para combater o Covid-19. Ministros da Saúde, médicos, que saem do governo por discordar do protocolo que prega o uso da droga não recomendada por organismos científicos. Um novo ministro da Saúde, um general, capaz e respeitado no mister da logística, mas sem conhecimento técnico para aprovar uso de remédios. General que, de uma tacada só, nomeia dez militares para “militarem” na Pasta.

E mais: uma Secretária da Cultura, atriz famosa, que deixa seu cargo depois de fritura por parte do chefe, assumindo novo cargo longe de Brasília. Um ministro da Educação, gerador de termos e frases que desmontam a língua portuguesa. Um grupo de generais do Exército, instituição séria e respeitada, que dá sinais de concordar com os impropérios do capitão que nos governa, abandonando trincheiras do bom senso. Um ministro que comanda a área da economia, mas dá sinais de desespero ante a projeção de queda de mais de 5% do PIB para este ano. Um chanceler que “chancela” a mais estapafúrdia visão do mundo, parecendo um cultor de nova “guerra fria” entre as potências. A lista de disparates é longa. Paro por aqui.

A ganância, a ambição, o ataque feroz à natureza, a ausência do Estado no cumprimento de suas tarefas constitucionais, como se observa nesse momento de grande angústia, são responsáveis pela e ocupação maior dos cemitérios.

Continuaremos a ser um território tomado pela improvisação caso as normas de boa conduta sejam jogadas na cesta do lixo. Temos boas leis, um conjunto de disposições para proteger a sociedade e o meio ambiente. São desprezadas. Quando as catástrofes ocorrem, uns jogam a culpa em outros. Agora, a guerra que se trava entre potências, é para saber onde nasceu o vírus. Ora, o foco deve ser o combate a ele. Pressões políticas não podem balizar decisões técnicas.

O momento é de fazer brotar a semente do civismo. A grandeza de uma Nação não é apenas a soma de suas riquezas materiais, o produto nacional bruto. Abriga um conjunto de valores, o sentimento de pátria, a fé e a crença, o sentido de família, o culto às tradições e aos costumes, o respeito aos velhos, o amor às crianças, o respeito às leis, a visão de liberdade, a seiva que faz correr nas veias dos cidadãos o orgulho pela terra onde nasceram.

Só assim deixaremos de ser o país da piada pronta.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

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MENTIRAS, VERSÕES E LOROTAS


Por Gaudêncio Torquato

De onde parte essa onda de fake news, versões, simulações e dissimulações que se espraia pela paisagem no meio da epidemia? Nunca se ouviu um disse me disse tão farto quanto este do repertório de invencionices que usa as redes sociais, gravações e vazamentos de conversas, edição de vídeos, envolvimento de policiais, de juízes e procuradores?

Fragmentos do que se viu ouviu nos últimos dias: Bolsonaro tentando interferir no cotidiano da PF; uma desastrada reunião, em 22 de abril, farta de palavrões; hordas bolsonaristas agredindo jornalistas, portando faixas com dizeres desrespeitosos contra os Poderes Legislativos e Judiciário; pedidos de prisões para ministros do Supremo; ações policiais sob viés político, enfim, uma profusão de informações misturadas com falsidades.

Onde estará a verdade? Ou, para ser mais preciso: o que é verdade? Vamos à análise.

O fingimento faz parte da nossa cultura, e se mostra forte nesses tempos de polarização, quando adversários se atracam nas redes sociais desfechando punhaladas recíprocas. O caráter nacional, como é sabido, é povoado de fingimento. Nosso folclore político, aliás, é recheado de historinhas que mostram a esperteza do raposismo que impregna a vida pública.

Um pouco de humor para exemplificar este fato no relato de Sebastião Nery: “ José Maria Alkmin, a raposa mineira, mestre da arte política, chegava da Europa com cinco garrafas enroladas na pasta. A Alfândega quis saber o que era.

– Água milagrosa de Fátima.

– Mas tudo isso, doutor Alkmim?

– Sim, lá em Minas o pessoal acredita muito nos milagres da água de Fátima. Não dá para quem quer.

– O senhor pode desenrolar?

– Pois não, meu filho.

– Mas, deputado, isso é uísque.

– Ué, não é que já se deu o milagre?

É típico da índole do nosso político este tipo de despiste. Mas a esperteza não se restringe aos atores políticos. Faz parte do cotidiano das pessoas. Os comportamentos na esfera política costumam infringir normas, coisa que herdamos do passado. A clonagem na nossa cultura chega, hoje, ao mais adiantado grau de sofisticação. Nos últimos tempos, mergulhamos em um oceano de meias verdades, mentiras e lorotas. Estamos diante da maior escalada de pistas falsas de nossa história. Imensa confusão invade as mentes.

O fato é que a história da política é rica nas frentes da simulação e dissimulação. O cardeal Mazarino, ministro de Luis XIII, ensina em seu Breviário dos Políticos: “age com os teus amigos como se devessem tornar inimigos; o centro vale mais do que os extremos; mantenha sempre alguma desconfiança em relação a cada pessoa; a opinião que fazem de ti não é a melhor do que a opinião que fazem dos outros; simula, dissimula, não confies em ninguém e fala bem de todo mundo. E cuidado. Pode ser que neste exato momento, haja alguém por perto te observando ou te escutando, alguém que não podes ver”.

A descrição cai bem no momento que atravessa o país. A falsidade campeia, na tentativa de esconder a verdade. Até parece que os “inventores de causos” que emergem nas redes sociais, aprenderam com Nicolau Eymerich, frade dominicano espanhol que, em 1376, escreveu no “Manual dos Inquisidores”: falar sem confessar: responder às perguntas de maneira ambígua; responder acrescentando uma condição; inverter a pergunta; fingir-se de surpreso; mudar as palavras da questão; deturpar o sentido das mensagens; auto justificar-se; fingir debilidade física; simular demência ou idiotice e até se dar ares de santidade.

Hoje, há muito demônio disfarçado de santo.

E para deixar por instantes esse momento de angústia que passamos, na esteira de uma das maiores tragédias de nossa história, fecho o texto com outra historinha contada por Nery envolvendo o mesmo Alkmin.

Um correligionário de Bocaiúva fica meio “lelé da cuca” e aparece, sem eira nem beira, no gabinete do ministro da Fazenda, ainda no Rio de Janeiro, onde lhe pede inusitada colaboração.

– Dr. Zé Maria, eu quero ir à lua e preciso da ajuda do senhor, diz o visitante.

– Isto não é problema, diz Alkmin, dando asas à imaginação do conterrâneo. Dou-lhe o apoio de ministro e correligionário. Existe um pequeno e contornável problema, que é de definição, e só depende do amigo.

Alkmin continua:

– Você sabe que há quatro luas: nova, crescente, minguante e cheia. Agora, compete a você escolher qual das luas o nobre amigo deseja visitar, pois o apoio está dado.

Diante de um atônito conterrâneo, o ministro levanta-se da poltrona, estende a mão para a despedida e afirma, olhando no fundo dos olhos do eleitor:

– Me procure quando você definir!

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP,consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

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Ciência e autoritarismo


O que estamos presenciando hoje no Brasil é um retrocesso civilizatório

Por Denis Lerrer Rosenfield

Não é qualquer ideia, por ser uma mera opinião, que tem validade. Se isso fosse verdade, o conhecimento não se estruturaria, a civilização não avançaria e a vida humana seria impossível. Ideias argumentadas são as que, tendo pretensão de validade, são submetidas à discussão e ao confronto, aceitando testes, debates e verificações. O primeiro tipo conduz ao arbítrio e o segundo, a ordenações políticas baseadas na liberdade.

A ciência, grande expoente do processo civilizatório, aquele que torna um bípede falante qualquer um verdadeiro ser humano, teve um longo percurso histórico, com pensadores mais avançados pagando até com sua própria vida. Foi um processo penoso e difícil através do qual a força das ideias terminou por vigorar contra a violência da dominação política.

O conhecimento se estrutura, a experiência é valorizada, o confronto público de ideias torna-se uma condição deste progresso e seus efeitos se fazem sentir no bem-estar de todos, graças à descoberta de novas técnicas. Vacinas, protocolos de saúde e medicamentos são seus frutos. A pesquisa termina por estabelecer suas próprias regras, de modo que todos se possam reconhecer enquanto agentes de um conhecimento de dimensões coletivas.

Do ponto de vista político, a liberdade no nível do conhecimento se traduz por novas formas de estruturação do Estado, vindo a ser um princípio a organizar as relações sociais e políticas. O espaço do arbítrio, embora não possa ser eliminado, é então circunscrito, de onde surge a noção moderna de cidadania.

Ora, o que estamos hoje presenciando no País é um retrocesso civilizatório. O bolsonarismo, nome para designar um amontoado de ideias carentes de fundamentação, porém eficaz do ponto de vista do convencimento de uma parte da população, tem como uma de suas características principais o menosprezo da ciência e, por via de consequência, da liberdade. O desrespeito ao outro é total, tanto do ponto de vista científico quanto moral, este último se traduzindo pela ausência de compaixão e pela banalização da morte.

Trata-se de um movimento de extrema direita, que deve, evidentemente, ser distinguido da direita conservadora e da direita liberal, que prezam a ciência, a moral, o debate livre a democracia, a despeito, muitas vezes, de divergências sobre o significado desses conceitos. Quisera aqui salientar princípios comuns por eles compartilhados, como os que são igualmente vigentes no campo da esquerda, excluindo sua franja autoritária e totalitária. A extrema direita não adere a esses valores democráticos.

O que temos visto no tratamento da atual pandemia é a afirmação de meras opiniões do presidente Bolsonaro como se fosse um pesquisador a emitir “verdades” de que só ele conheceria o fundamento. O exercício autoritário do poder se conjuga com o desrespeito completo aos procedimentos científicos. É simplesmente aterrador que dois ministros da saúde tenham sido substituídos em curto espaço de tempo por não concordarem com as opiniões “médicas” do presidente. Um presidente não precisa ser especialista em nada, basta cercar-se de assessores competentes. E o que fez o terceiro ministro? Simplesmente seguiu o arbítrio presidencial.

O que faz o presidente? Assessora-se com seus filhos e seguidores, cujo único “princípio”, se é que essa palavra possa ser aqui empregada, consiste em construir uma narrativa que lhe sirva, nas redes sociais, para seu projeto reeleitoral. Que isso seja bom para a saúde dos brasileiros é algo meramente secundário.

As redes sociais, aliás, são campo particularmente propício para esse tipo de prática autoritária, pois lá passa a valer a narrativa, a pluralidade e a desordem das narrativas, como se todas as opiniões fossem de igual valor. Uma ideia científica passa a ser uma simples narrativa, com a qual se confrontam outras narrativas que, uma vez desmentidas, são substituídas por outras narrativas carentes de validade, e assim por diante. A ideia balizada, argumentada, desaparece ante uma avalanche “informativa”, hoje identificada como fake news.

Protocolos científicos, laboriosamente elaborados e estabelecidos há décadas, se não séculos, são simplesmente atirados para o ar, passando a valer a solução mágica de um medicamento determinado, lançado ao léu por supostos cientistas que nem seguiram as regras do seu meio. No caos do vale-tudo, seria uma “solução” entre todas, como se fosse igual escolher entre a conservação da vida, a cura da doença e aventuras perigosas no corpo de cada um.

As consequências do desprezo pela ciência e pelos princípios democráticos se fazem igualmente sentir no domínio dos valores morais. Joga-se contra a ciência, a favor do autoritarismo, quando corpos se amontoam em hospitais e cemitérios. A compaixão humana desaparece, entra-se numa contabilidade de necrotérios, como se as pessoas devessem estar submetidas ao espectro desse tipo de morte. A política põe-se a serviço das trevas e da ignorância – em linguagem popular, do capeta.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ESte artigo foi publicado originalmente no Estado de São Paulo, edição de 25.05.2010.

As eleições municipais

Por Gaudêncio Torquato

Coisa inédita: teremos eleições este ano para as prefeituras e câmaras de vereadores e o grande evento parece coisa sem importância. Compreensível. O Covid-19, esse bichinho invisível, joga todos os outros temas no baú do esquecimento. É claro que, um pouco mais adiante, o pleito estará na mesa dos candidatos, eis que se trata de construir a base do edifício político, composta por 5.570 prefeituras e cerca de quase 60 mil vereadores.

Que não haja dúvidas. As eleições se darão este ano, mas não na data marcada de 4 de outubro, pois os candidatos e seus cabos eleitorais ainda estarão se recuperando do caos pandêmico, sendo mais provável pensar em 15 de novembro. Será uma campanha mais rígida em muitos aspectos, a começar pelo fim das coligações proporcionais. Ou seja, não veremos vereador sendo puxado pela força dos votos somados de parcerias entre siglas.

O termo rigidez se aplica a outros aspectos. No campo dos recursos financeiros, por exemplo. O dinheiro mais curto exigirá campanhas objetivas, sem rodeios, equipes restritas, sem a parafernália das mobilizações do passado. A campanha encontrará um eleitor com posicionamentos diferentes da moldura tradicional.

Qual seu perfil? Difícil apontar todos os componentes que influenciarão o sistema cognitivo das pessoas, mas é possível pinçar valores que permearão as escolhas. A começar pela carga de sentimentos sofridos no desenrolar da pandemia que assolou o país, cuja extensão poderá chegar ao final do ano. Esse danado de vírus veio para ficar. Todos, uns mais, outros menos, carregarão as marcas do susto, do medo, da angústia, da depressão, cujos efeitos impregnarão o nosso modus vivendi. Até nossas crianças continuarão a recordar os angustiantes tempos em que tinham de usar máscaras.

Como esta bagagem emotiva se fará presente no instante em que eleitoras e eleitores estarão diante da urna eletrônica? Provável resposta: escolher o perfil que melhor traduza o resultado da equação Custo x Benefício. Resultado que não significa dinheiro, bens materiais, apesar de ainda abrigarmos um contingente que vota sob esta teia. Refiro-me a outro tipo de valor: qualidade, seriedade, zelo, preparo, disposição, compromisso, inovação, despojamento, simplicidade, modéstia, coragem, contra os velhos padrões, avanço. P. S. O capitão Bolsonaro foi eleito com essas bandeiras e está mostrando ser da velha guarda. Até sua conduta no comando da luta contra a pandemia será lembrada.

Quem pode encarnar esse acervo? Qualquer cidadã ou cidadão que, sob a equação Custo x Benefício, seja a(o) mais próxima(o) do eleitor. Este posicionamento valerá tanto para o voto no prefeito(a) ou no vereador(a). Constatação: é forte a impressão de que as mulheres serão bem votadas. Ganharam bom espaço na expressão de dor em corredores de hospitais e filas nas ruas. Mas o mais endinheirado não será necessariamente o eleito ou o mais votado. Pobres, ricos, feios e bonitos, jovens e maduros, homens e mulheres estarão no tabuleiro, jogando com as pedras da mesma oportunidade.

O que pretendo dizer é que, na campanha municipal deste ano, as desigualdades diminuem, elevando a probabilidade de vermos uma limpeza geral na galeria dos retratos que ali se veem há décadas.

E o que dizer? Primeiro, evitar o óbvio ululante, do tipo de promessas mirabolantes de grandes obras, essa tradição que sai de maneira artificial da boca de candidatos. O momento exigirá criatividade. Que significa encontrar formas simples, diretas, críveis, objetivas, para dizer as coisas. Governar juntos, por exemplo, mas isso não pode ser transmitido com a carcomida locução. O candidato deve ter uma plataforma de conselhos de bairros e comunidades, maneiras de acionar frequentemente esse mecanismo (via agenda de encontros), enfim, demonstrar que efetivamente quer administrar sob o princípio da democracia participativa.

No mais, ouvir o vento do tempo. Ele passa todos os dias por nós. Traz recados. Suave ou forte, exibe em nossos sentidos o retrato da emoção e da razão do povo. Meu saudoso pai, todos os dias, da calçada onde se sentava para conversar com os amigos, às 19 horas, aprumava o faro para sentir o jeitão do tempo. Olhava para o Nascente, via barras de cores nas nuvens, jogava sua impressão para os ouvintes e arrematava: “amanhã, não, mas depois de amanhã vai chover. E fulano não é bom de voto”.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

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Bolsonaro semeia a anarquia militar

Por Élio Gáspari

Influência da família no governo é ingrediente tóxico

Quando Jair Bolsonaro falou que “o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade e da verdade, também estão ao nosso lado”, não disse coisa nenhuma. Foi apenas uma construção astuciosa mas, como o capitão não consegue parar, acrescentou: “Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos. Faremos cumprir a Constituição. Será cumprida a qualquer preço.” Logo ele, que se julga “realmente, a Constituição” e se referiu às “minhas Forças Armadas”. Ganha um resfriadinho em Caracas quem não conseguir juntar lé com cré.

Para quem vive uma pandemia com a marca dos dez mil mortos batendo à porta e uma inédita recessão já instalada na economia, esse tipo de encrenca não era necessária.

O capitão passou mais tempo no baixo clero da Câmara do que no Exército, onde conheceu melhor as sendas da indisciplina do que as normas da corporação. Nelas também não se enquadrava, por exemplo, o major e ex-deputado Curió do Araguaia. Levado ao Planalto por um sentimento antipetista, Bolsonaro flerta com a anarquia militar.

Essa anarquia, resultante de divisões dentro das Forças Armadas, se fez sentir na política brasileira do século passado, até que perdeu ímpeto em 1977 e desapareceu com a redemocratização.

Na crise que Bolsonaro incentiva misturam-se ingredientes tóxicos. O primeiro deles é a influência de sua família no governo.

O que restava do prestígio militar do marechal Henrique Lott, poderoso ministro da Guerra de 1954 a 1959, esvaiu-se em 1962, quando sua filha Edna elegeu-se deputada estadual. Com três dos cinco presidentes-generais (Castello Branco, Emílio Médici e Ernesto Geisel) a história foi outra, e seus familiares não se metiam no governo. Castello demitiu um irmão porque aceitou um presente e não moveu um dedo quando a Marinha negou ao seu filho a promoção a almirante.

O segundo ingrediente tóxico vem a ser o “núcleo militar” formado no Planalto. É composto por militares da reserva e por um general da ativa agregado. Governos que não tiveram essa bizarrice funcionaram: José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Os que a tiveram: Costa e Silva e, de certa forma, Figueiredo, deram-se mal. Fora da linha de comando só há a bagunça.

O terceiro ingrediente é a simpatia de Bolsonaro pela opinião de sargentos e suboficiais, somada ao expresso apoio dado a policiais militares amotinados. A ele se junta uma militância parruda e agressiva.

Nos últimos 50 anos o Brasil teve dois tipos de chefes militares no Exército, aqueles de quem se sabia o nome e aqueles de quem não se sabia. Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves estiveram no primeiro grupo. Um enquadrou os generais depois da anarquia de 1969, na crise da doença de Costa e Silva. O outro, comandou-os no governo Sarney, quando baixou o chanfalho no capitão Bolsonaro. Depois, no segundo grupo, vieram dois chefes que comandaram a Força por treze anos. Deles não se fala e eles também não falam. Quem cruzar com os generais Gleuber Vieira e Enzo Peri na rua, não saberá quem são.

A ambos aplica-se a lição que Ernesto Geisel deu a um paisano que lhe perguntou quem era um general que ele promoveu à quarta estrela.

“Um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.”

Chamava-se Jorge de Sá Pinho.

Élio Gáspari, Jornalista, é autor de cinco livros sobre a última ditadura militar no Brasil. - A ditadura envergonhada, a ditadura escancarada, a ditadura derrotada, a ditadura encurralada e a ditadura acabada. Este artigo foi publicado originariamente em O Globo, edição de 06.04.20.

Selvagens


As cenas de selvageria protagonizadas por delinquentes travestidos de patriotas, ao agredir o repórter fotográfico do Estado Dida Sampaio e outros profissionais de imprensa, envergonham a Nação

Os camisas pardas do bolsonarismo vestem verde e amarelo. As cenas de selvageria protagonizadas por esses delinquentes travestidos de patriotas durante manifestação com o presidente Jair Bolsonaro em Brasília, ao agredir o repórter fotográfico do Estado Dida Sampaio e outros profissionais de imprensa, envergonham a Nação.

O Brasil civilizado demanda que as autoridades façam uma investigação independente, rigorosa e célere dos fatos, sem se deixarem constranger pela truculência e pelo despudor característicos dos bolsonaristas. O presidente Bolsonaro deveria ser o primeiro a exigir ampla apuração. Mas Bolsonaro quer fazer o País acreditar que ele nem sabe se houve alguma agressão, fartamente registrada: “Eu não vi nada. Recriminamos qualquer agressão que porventura tenha havido. Se houve agressão, é alguém que está infiltrado, algum maluco, deve ser punido”.

Mais uma vez, o sr. Jair Bolsonaro trata os brasileiros como tolos. Tenta minimizar os múltiplos crimes e transgressões cometidos em comício que ele próprio estimulou – a começar pela aglomeração em plena pandemia de covid-19, passando pelas palavras de ordem golpistas e culminando com a covarde agressão a jornalistas.

A esta altura, não é mais possível dissociar a violência bolsonarista daqueles que a inspiram. Mas só há um responsável direto pela espiral de afronta à democracia por parte dos desordeiros com camisas da seleção brasileira – este é o sr. Jair Bolsonaro, de quem se esperam desculpas não em privado, transmitidas por assessores, mas sim públicas, tal como foram as agressões, e essas desculpas devem ser dadas aos jornalistas atacados, a este jornal e ao País. Mas já não há mais esperança de que o presidente venha a desencorajar os boçais que agem em seu nome. Ao contrário: a julgar pelo que disse no domingo, Bolsonaro está disposto a dobrar a aposta contra a democracia, envolvendo agora as Forças Armadas – que, segundo ele, “estão ao nosso lado”.

Depois de sucessivas derrotas no Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro declarou que “chegamos no limite”, que “não tem mais conversa” e que “faremos cumprir a Constituição, ela será cumprida a qualquer preço” – referindo-se não à Constituição promulgada em 1988, mas a uma imaginária, que lhe dá poder absoluto.

O presidente, cujo apoio militar se resume a oficiais que ele levou para o governo e que são seus amigos dos tempos de quartel – relação que produz um tipo de lealdade que é pessoal, e não em torno de princípios –, claramente tenta enredar as Forças Armadas em sua ofensiva para desmoralizar o sistema constitucional de freios e contrapesos. “Esse é um fato que traz algum grau de preocupação, porque as Forças Armadas são instituições de Estado, subordinadas à Constituição, e portanto não estão vinculadas a governo nenhum”, reagiu o ministro do STF Luís Roberto Barroso, revelando uma inquietação que deveria ser de todos. Cabe aos chefes militares deixarem claro que nada têm a ver com a aventura bolsonarista e que, ao contrário, a repudiam.

Também se espera das forças vivas da Nação que manifestem não apenas sua repulsa, mas principalmente seu destemor diante de Bolsonaro e do bolsonarismo. “Cabe às instituições democráticas impor a ordem legal a esse grupo que confunde fazer política com tocar o terror”, disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. É preciso demonstrar que a Bandeira Nacional não pertence a essa minoria de desqualificados, que tentam sequestrar os símbolos pátrios para se apresentarem como os únicos brasileiros do País – os demais seriam “comunistas”, como foi chamado o ministro do STF Alexandre de Moraes, autor de decisões contrárias a Bolsonaro, numa intimidatória manifestação bolsonarista.

A escalada golpista coincide com o avanço de investigações sobre o clã Bolsonaro. E também coincide com a redução significativa do apoio popular ao presidente: a mais recente pesquisa da XP/Ipespe mostrou que em uma semana cresceu sete pontos porcentuais, para 49%, a fatia de brasileiros que consideram o governo Bolsonaro “ruim” ou “péssimo”. O recado a Bolsonaro vai ficando assim claríssimo: cada vez menos brasileiros toleram um presidente que, eleito para governar para todos, escolheu agir como condutor de pandilha.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 05.05.20

Bolsonaro insiste na desobediência institucional


Radicalização no ataque às instituições ameaça quebrar juramento que fez na posse

O presidente Jair Bolsonaro parece ter decidido se manter de vez na trajetória de desobediência institucional para fazer um teste mais forte dos limites que a Constituição impõe ao Executivo. Os arroubos autoritários de Bolsonaro, da família e de seguidores mais sectários vêm de antes da posse. A liberdade de expressão é um direito, mas todos podem ser responsabilizados se atentarem contra preceitos também constitucionais. Dessa forma, com idas e vindas e correção de desvios por força da Lei, vive-se na democracia, em liberdade e aperfeiçoamento constante.

O que tem feito o presidente é algo diferente e mais grave, pelo cargo que ocupa. Tem pregado a sedição, com ameaças claras à ordem constituída. Vai muito além da irresponsável militância que exerce contra o isolamento social, e leva seguidores a fazerem o mesmo, preocupado exclusivamente com seu projeto eleitoral, que teme ser prejudicado caso demore a retomada da economia devido à epidemia do coronavírus. Junta-se a um grupo de autocratas bizarros e coloca o Brasil na companhia isolada de Bielorússia, Turcomenistão e Nicarágua. Não se preocupa com a marcha sem recuo da Covid-19 no país para ultrapassar, ontem, 7 mil mortos e 100 mil contaminados.

A participação de Bolsonaro em mais uma manifestação antidemocrática em Brasília, duas semanas depois da primeira, marca a radicalização do presidente. Naquela, na entrada do Quartel-General do Exército, entre slogans em favor de um golpe militar e um novo AI-5, ele soltou um pouco enigmático “não queremos negociar nada”. Nesta última aglomeração, desta vez em frente ao Planalto, também com ataques de militantes ao ex-ministro Sergio Moro, o presidente foi adiante na sua visão autocrática do poder, repetindo a leitura canhestra que faz da Carta: “Queremos a independência verdadeira dos Três Poderes (...). Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência”, avisou o presidente, aproximando-se de um chavismo de direita — todos os poderes nas mãos do Executivo, com Judiciário e Legislativo no papel de figurantes. O que é inaceitável. Para reforçar o caráter autoritário e ilegal do ato, bolsonaristas atacaram repórteres do jornal “O Estado de S.Paulo”, agredindo a própria liberdade de imprensa.

O presidente repete a postura que teve na posse do ministro da Justiça e Segurança Pública e do advogado-geral da União, André Mendonça e José Levi, quando reclamou do impedimento de nomear o delegado Alexandre Ramagem para a direção-geral da PF determinado pelo ministro Alexandre de Moares, do STF, a pedido do PDT. São os freios e contrapesos da democracia funcionando, contra o que Bolsonaro se revolta. Mas tem de obedecer, é assim que funciona. E terá de continuar a funcionar. Mesmo que não goste de investigações que ameaçam filhos e podem iluminar os porões que sustentam manifestações como a de ontem, uma investigação sob a responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes, não por acaso objeto de agressões do bolsonarismo e causa de irritações do presidente.

Bolsonaro, nesta radicalização, começa rasgando o próprio juramento que fez na posse, conforme o artigo 78 da Carta: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro (....)”. Na política e na saúde, ele vai em sentido contrário. O presidente aceitou as regras constitucionais para se eleger deputado federal e presidente da República. Agora quer virar a mesa, o que é inconcebível.

Bolsonaro garantiu que as Forças Armadas estão ao seu lado nesta empreitada inconstitucional. Estaria certo disso depois de ter se reunido, sem registro na agenda, com chefes militares. A ver se as Forças Armadas aceitam manchar sua imagem reconstruída com muito esforço, profissionalismo e disciplina.

Há duas semanas, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, depois do ato no QG do Exército, reafirmou o compromisso das Forças Armadas com a Constituição, promulgada há 32 anos, num processo político de redemocratização em que foram fundamentais. E continuam sendo nessas três décadas contínuas de estabilidade democrática, o mais longo período de normalidade sem interrupções em 131 anos de República.

Editorial de O GLOBO, edição de 03.05.20

Cegueira ética


Há quem ainda veja Lula como líder político probo e comprometido com os mais pobres

Mesmo após as revelações de Sérgio Moro de que o presidente da República tentou insistentemente interferir politicamente na Polícia Federal (PF), 33% dos brasileiros continuam aprovando o governo de Jair Bolsonaro, indicou pesquisa do Datafolha realizada em 27/4. Ainda que porcentual maior (38%) reprove a gestão atual, é significativo que 1/3 da população abdique do critério ético na hora de avaliar o governo.

Vale lembrar que o presidente Bolsonaro não foi acusado pelo ex-juiz da Lava Jato de mero equívoco pontual. Sérgio Moro relatou que o presidente da República vem tentando há meses abdicar de um ponto central do combate ao crime e à impunidade: a isenção do Estado na investigação criminal. Ou seja, caso prevalecesse o jeito com que Jair Bolsonaro deseja tratar a PF, segundo revelou Moro, e o ministro do STF Alexandre de Moraes ratificou em despacho liminar, a Operação Lava Jato, por exemplo, não teria sido capaz de alcançar os resultados obtidos. Essa foi a revelação que Sérgio Moro fez ao País no dia 24/4 e, ainda assim, 1/3 da população continua aprovando o governo de Jair Bolsonaro.

Se é preocupante o esquecimento do aspecto ético na hora de avaliar um governo, é de reconhecer que o fenômeno não é novo. Na história recente do País, há casos clamorosos de continuidade de apoio popular a políticos envolvidos, de forma incontestável, com graves escândalos.


Apesar de uma trajetória repleta de escândalos de corrupção, Paulo Maluf manteve ao longo de décadas um eleitorado cativo. Quando muitos achavam que Maluf nunca mais ganharia uma eleição, em razão dos muitos escândalos envolvendo suas gestões, ele foi eleito prefeito de São Paulo em 1992. Com expressiva aprovação popular, Maluf ainda emplacou seu sucessor, Celso Pitta, nas eleições seguintes.

Caso gritante ocorreu em 2014. O Tribunal Superior Eleitoral indeferiu o registro da candidatura de deputado federal de Paulo Maluf, por força da Lei da Ficha Limpa. Mas, mesmo com o registro indeferido, 250 mil eleitores votaram nele. Naquele ano, Maluf foi o oitavo deputado federal mais votado em São Paulo e, após recurso judicial, tomou posse.

Em 2017, o STF condenou Paulo Maluf por lavagem de dinheiro. No ano seguinte, a Câmara dos Deputados cassou seu mandato. Não há dúvida de que tivesse sido candidato nas eleições de 2018 – na época cumpria pena de prisão domiciliar – o veterano político receberia muito apoio e muitos votos.

O esquecimento do aspecto ético é também especialmente evidente no apoio que o sr. Luiz Inácio Lula da Silva continua recebendo de parte significativa da população. Desde os primeiros escândalos do PT na década de 80, mas de forma especial após 2005, com o mensalão, foram muitos os prognósticos de que o envolvimento de petistas em casos de corrupção acabaria com a força política do partido. Afinal, o PT sempre se valia, nas campanhas eleitorais, da bandeira da ética e do combate à corrupção. No entanto, apesar de tudo o que foi revelado sobre as más condutas do partido e de muitos de seus dirigentes e filiados, continua havendo quem manifeste não apenas apoio político, mas verdadeira devoção ao líder petista.

O caso do PT não se refere a suspeitas ou a indícios. Há muito tempo saiu do campo da dúvida. O Poder Judiciário reconheceu a existência de provas contundentes a respeito do uso político das estatais, de desvio de dinheiro público, de favorecimento de empresas e de inúmeros atos de corrupção e de lavagem de dinheiro. Não bastasse tudo isso, ficou comprovado, em várias instâncias judiciais, que o ex-presidente petista recebeu vultosos favores de empreiteiras para deleite pessoal e familiar, como as reformas do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Apesar de tudo isso, há quem continue vendo Lula como um líder político probo e comprometido com os mais pobres.

Durante o tempo em que ficou preso em Curitiba, Lula teve, a poucos metros do prédio da PF, admiradores que o saudavam diariamente. Indiferentes a qualquer juízo ético sobre a conduta do líder petista, gritavam “Bom dia, presidente Lula!”. Caminhando a passos largos, os apoiadores de Bolsonaro esforçam-se para não ficar para trás.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
01 de maio de 2020 | 03h00

A República do "E daí?"

Por Bernardo Mello Franco

Num só dia, o Brasil recebeu três más notícias sobre a pandemia do coronavírus. O país registrou um novo recorde de mortes: 474 em apenas 24 horas. Isso fez o total de vítimas superar a marca dos cinco mil. Para completar, o Brasil ultrapassou a China no ranking de países com mais mortos pela Covid-19.

Diante desses fatos, qualquer presidente razoável se sentiria obrigado a reconhecer a gravidade da situação. Mas os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, que preferiu fazer piada com a tragédia. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, ontem à noite.

A mistura de indiferença e deboche virou marca das declarações do presidente. No domingo, ele foi questionado por uma eleitora sobre a decisão de entregar o comando da Polícia Federal a um amigo dos filhos.

“E daí? Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem”, ele respondeu, numa rede social. Em seu idioma particular, o capitão queria dizer que conheceu o delegado antes dos herdeiros. Mesmo assim, ele não se julgou obrigado a esclarecer o conflito de interesses.

Hoje o presidente fez questão de reforçar que Alexandre Ramagem foi presenteado com o cargo porque “passou a ser um amigo”. “Tomava café junto, leite condensado no pão, tá? E daí? Eu devo escolher uma pessoa que eu nunca vi na vida?”, questionou.

Bolsonaro quer transformar o Brasil na República do “E daí?”. Seu desejo é viver num país em que o governante pode ignorar as leis e não precisa prestar contas do que faz. Por isso, ele detesta a imprensa e incentiva ataques ao Congresso e ao Judiciário.

Nesta segunda, a Justiça Federal atendeu a um pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” e determinou que o presidente apresente o resultado de seus exames para a Covid-19. A informação é de interesse público, mas o presidente se julga no direito de sonegá-la.

Questionado sobre a ordem judicial, ele voltou a fazer graça. “Daqui a pouco querem saber se eu sou virgem ou não. Vou ter que apresentar o exame de virgindade. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham?”, perguntou, na porta do Alvorada.

Bernardo Mello Franco é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 29.04.20.

Crise: Estado liberal versus Estado autoritário

Por Gaudêncio Torquato

Ponto um: o Estado nas democracias ocidentais foi surpreendido pelo Covid-19 e, com exceção de uma ou outra Nação, tem se mostrado incapaz de dar respostas mais urgentes à pandemia. O Estado liberal e o Estado do bem-estar social estão no banco dos réus. Ponto dois: a China, que teria sido o nascedouro do vírus, deu respostas mais eficazes ao massacre pandêmico, em função da rigidez das ordens emanadas pelo poder central - o partido comunista -, e acatadas pela população. O Estado-autoritário, até o momento, está na vanguarda dos feitos positivos da guerra.

Ante esse quadro, levanta-se a questão: nesses tempos de incerteza e medo, o Estado forte é mais apropriado para enfrentar as crises que o Estado liberal democrático?

Essa questão é relevante. Como é sabido, temos à frente da economia um perfil comprometido com o Estado liberal, o ministro Paulo Guedes, que prega deixar sob a esfera estatal apenas obrigações em áreas como educação, segurança pública e saúde. Centenas de empresas que contam com a participação do Estado deverão passar à iniciativa privada, existindo para tanto até uma Secretaria Especial.

Aqui e alhures, porém, discute-se a ideia de dar mais força ao Estado para que possa resolver situações críticas e vitais como epidemias, pandemias, enfim, os desafios de um mundo em plena transformação.

Seria o caso de se imitar a China? Não. O que se vê ali é um capitalismo de Estado, forjado para alavancar os potenciais do país e torná-lo uma potência econômica, se possível a primeira do mundo. A par da alavanca da economia, a China é um Estado autoritário, que sufoca as liberdades individuais e sociais, materializadas na censura ao pensamento, à livre expressão e associação - criação de partidos políticos, por exemplo -, valores incompatíveis com os direitos humanos.

Não é, portanto, espelho para a democracia. Por outro lado, as nações democráticas dão passos, mesmo pequenos, nos caminhos do revigoramento de suas obrigações. Nas crises, o papel do Estado se avoluma, como temos observado nesse ciclo do Covid-19.

Um dos papas da ciência política, o sociólogo francês Alain Touraine, prega o aumento da capacidade de intervenção do Estado como forma de uma nação atenuar as desigualdades. Nos moldes em que atua hoje, o Estado tem sido fraco para debelar mazelas.

Essa é a razão pela qual os governos agem no varejo, trabalhando no curto prazo, sem planejamento e com presidentes, como Jair Bolsonaro, envolto em profunda crise política, trocando ministros, anunciando remédios salvadores antes do atestado da ciência, tentando fazer agrados às bases e angariar apoio para operar a administração.

Mas Estado forte, por aqui, tem sido sinônimo de autoritarismo, arbitrariedade, estrutura burocrática gigante e ineficiente, corporativismo etc. Donde emerge a questão: como encolher o Estado de sua estrutura paquidérmica, dando-lhe capacidade de planejar a longo prazo, sem reformas capazes de deflagrar novos costumes e consolidar as instituições?

Respostas óbvias: realizando as reformas necessárias para otimizar a gestão, nos moldes da trabalhista e da Previdência. Importa avançar com um amplo leque de mudanças.

Com esse escopo, é possível juntar no mesmo balaio os eixos do Estado liberal, do Estado do bem-estar social e do Estado que intervém no mercado quando necessário, maior institucionalização política, racionalidade administrativa, eliminação progressiva do corporativismo, mudança da política de clientelas, adoção da meritocracia, revigoramento dos partidos.

É evidente que essa meta, por nossas plagas, só será alcançada quando as tensões entre os três Poderes forem amainadas com estrita obediência aos trâmites constitucionais, a independência e a harmonia entre eles. Trata-se de um desafio que ultrapassará décadas. Os governos, sem exceção, têm pregado essa cartilha. Mas encontram obstáculos para cumpri-la.

Reformar o Estado não é tarefa para um só governo. O reformador tem inimigos na velha ordem, que se sentem ameaçados pela perda de privilégios, e defensores tímidos na nova ordem, temerosos que as coisas não deem certo.

Sobram indagações: em quanto tempo o país voltará a respirar com seus pulmões sadios? Como aparar desigualdades com programas que dão vazão a climas concorrenciais? Como resgatar a economia nesses tempos turbulentos? Como chamar de volta os investimentos quando o fantasma da recessão joga o país no fundo do poço?

Ante a atual paisagem, que tipo de Estado mais condiz com nossa democracia?

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

O preço da pusilanimidade


Diante das bravatas bolsonaristas, pode-se riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável

O presidente Jair Bolsonaro assumiu de vez que é candidato a caudilho. Em comício para seus simpatizantes, de caráter escandalosamente golpista, anunciou: “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Chega da velha política. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem com o seu presidente”.

Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.

É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.

Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.

Felizmente, nem a democracia nem a liberdade dependem de Jair Bolsonaro. Dependem, exclusivamente, do cumprimento da Constituição. Num arroubo à Luís XIV, Bolsonaro chegou a dizer: “Eu sou realmente a Constituição”. Não é. A Constituição é a materialização do pacto democrático, aquele ao qual todos se submetem, do mais humilde cidadão ao presidente da República.

Mas Bolsonaro, como sempre fez em sua trajetória política, está testando a disposição da sociedade de defender a ordem democrática por ele sistematicamente ameaçada. Pode-se quedar inerte diante das bravatas bolsonaristas, permitindo que se instaure um clima golpista, mas também se pode riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável.

Por isso, espera-se que o até agora silente ministro da Justiça, Sérgio Moro, faça jus à sua fama de inflexível cruzado da moralidade e da lei no exercício do serviço público e manifeste pelo menos desconforto diante do comportamento acintosamente impróprio de Bolsonaro na chefia da Nação. O mesmo se espera dos tantos ministros do presidente, militares reformados e da ativa, tidos como bedéis do governo, responsáveis por conter os muitos excessos de Bolsonaro. Até agora, contudo, predomina o silêncio - tão mais embaraçoso quando se recorda que o ato golpista protagonizado pelo presidente Bolsonaro, que é o comandante em chefe das Forças Armadas, ocorreu no Dia do Exército e diante do QG do Exército.

Consta que a afronta bolsonarista gerou mal-estar nas Forças Armadas, que não querem se ver vinculadas a movimentos que pedem a volta da ditadura militar e de medidas de exceção, como o famigerado AI-5, em franco desafio à Constituição. Para os generais, a guerra a ser vencida hoje não é contra os inimigos que Bolsonaro inventa todos os dias, mas contra o coronavírus.

Mas a guerra de Bolsonaro, já está claro, é contra as instituições da República e contra a maioria absoluta dos brasileiros, afrontados por um presidente que só se importa com o poder. Quem estiver na trincheira com Bolsonaro, seja no governo, seja em movimentos golpistas, vai se desmoralizar junto com ele.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.04.20

A ética dos nossos filhos depois da pandemia

Por Cícero Urban

Que esta ameaça global nos encoraje a buscar interesses comuns, e não apenas os nossos.

Vivemos hoje um novo problema, desconhecido de gerações passadas. Mas também um momento em que velhos problemas não resolvidos tomam novas formas. A morte da ética, celebrada na pós-modernidade, e substituída pela estética, agora entra em uma crise profunda. Algumas atitudes valorizadas no passado, como o autossacrifício e a luta de toda uma vida em busca de um ideal, foram substituídas pela busca individual do sucesso e pelo conforto imediatos. Tudo, ou quase tudo, passou a ser aceito e tolerado para atingi-los. Os fins, mais do que em outros períodos, justificam os meios.

Contudo essa tolerância associada com o individualismo desenfreado criou a marca mais forte de nossa geração: a indiferença. Veio, então, algo inesperado e que está mudando o rumo da História: um novo vírus. A forma mais simples de vida rasgando todas as nossas pretensões, narrativas e ideologias. Resta saber se este tempo passará como o crepúsculo ou como o renascimento da ética. E como isso influenciará nossos filhos na construção de um novo mundo pós-pandemia.

A palavra ética deriva do grego e significa costume, maneira habitual de agir, caráter. Busca, em seus princípios, a universalidade e a fundamentação da coisa certa a fazer. Para o sacerdote jesuíta Joseph De Finance, ela é uma ciência categoricamente normativa dos atos humanos, segundo a luz natural da razão. São as ações que escolhemos, em detrimento de outras, que são medidas e avaliadas e nos levam à tomada correta de decisão. No entanto, que valores devem ter prioridade agora? O que é indispensável em nossa vida?

O útil, não necessariamente é o bom. O belo, não necessariamente é o verdadeiro. O economicamente sensato, pode não ser o mais apropriado. Que critérios utilizar depois desta pandemia? O que fica depois de tudo isto?

Num mundo de joelhos, onde a ciência e a tecnologia pareciam resolver todos os problemas, vivemos contradições políticas, filosóficas e religiosas. O que parecia dividido agora ficou fragmentado. E a maior de todas as vulnerabilidades humanas veio à tona: a fragilidade da vida.

Pois bem, o que dizer aos nossos filhos depois deste “retorno à casa”? Ricos e pobres, não importa. Estamos todos perplexos e perdidos. O que diria hoje Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que tão sabiamente descreveu nosso tempo como o de uma “modernidade líquida”?

Nossas relações pessoais, nossos valores, nossos amores, nossas amizades, tudo é frágil e maleável. As pessoas deixaram de ser valorizadas pelo que são. Somos o que consumimos. As instituições e os Estados, que são, obviamente, feitos de pessoas, também ficaram enfraquecidos e fragilizados. Se na “modernidade líquida” todas as relações humanas foram abaladas, e isso parecia irreversível, agora estamos retornando ao passado?

Sim, a quarentena está nos obrigando a rever tudo. A importância de nos relacionarmos fisicamente e emocionalmente. De estabelecermos laços mais fortes. A falta que isso nos faz está mais clara agora. A amizade e o amor líquido das redes sociais não são suficientes para uma vida satisfatória e plena como pessoas. O sólido entrou em contraposição ao líquido.

Qual a ética a ser ensinada aos nossos filhos?

A primeira lição é que ela não é para o outro, mas com o outro, juntos! A segunda é que, como pessoas, somos insubstituíveis, mas como profissionais com diferentes papéis na sociedade, não. O limite desta ambivalência moral estará entre os principais dilemas pós-pandemia. Por isso a ética precisa ser “com o outro”.

Para Hans Jonas, nunca tivemos tanto poder, com tão pouca orientação para seu uso. Precisamos de mais sabedoria quando menos cremos nela. Homens crescem e são modelados. A liberdade é o direito de modelar-se a si mesmo. Educar nossos filhos neste novo mundo é modelá-los não mais para a busca do conforto falso do vazio e do imediato, mas para o retorno ao ponto de partida.

Não somos morais graças à vida em sociedade, mas somos sociedade graças a sermos morais. O nosso valor mais importante, e que precisa ser preservado, é o respeito ao próximo. Algo que ficou de lado por muito tempo.

Finalmente, a vida humana é maior e mais forte do que o vírus. Isolada, todavia, ela facilmente sucumbe a ele. E a fragilidade da nossa existência física só se fortalecerá na ação conjunta da vida em sociedade. Da somatória de todas as nossas qualidades individuais é que teremos a vitória contra este vírus e contra o mal maior, não causado pelo vírus, que é a indiferença.

Nós, como seres humanos, sofremos da deficiência de altruísmo. A nossa falta de sentido hoje reflete o vazio em que nos colocamos ao enfraquecermos e relativizarmos nossas relações humanas. Esperamos que a coerção desta ameaça global nos encoraje a buscarmos interesses comuns, e não apenas os nossos. Será o fim da “modernidade líquida”? Tudo dependerá da ética que guiará os nossos filhos.

Cícero Urban, médico mastologista, Professor de Bioética, é Vice Presidente do Instituto Ciência e Fé, em Curitiba (PR). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 18.04.20.

Triste Brasil

Por Élio Gáspari

É como se o país tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia


Atribui-se ao professor San Tiago Dantas uma observação mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um grande povo e uma elite de merda”. Com certeza, San Tiago disse que “vem se processando há séculos no Brasil um trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do exame cultural e político dos valores nacionais.” No discurso de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites.”

Nunca a elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da história nacional.)

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século 20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito. A ponte aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas de milhagem que existiam há mais de uma década. Os fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que liderou a expulsão do Carrefour sumiu, e o oligopólio das aéreas foi à garra.

Sendo velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da República diz que a Covid é uma gripezinha, afrontando a Ciência e a opinião pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque defende o isolamento. Os inimigos de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo deverá vetá-lo. Empresários beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá a recessão.

É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha. Se cada um continuar gritando, quem ganha é a Covid. Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS (que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.

Todos os lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque havia gente interessada nisso.

Há hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê? Porque chegam mortos.

Élio Gáspari é Jornalista. Escreveu 5 livros sobre a ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1º de abril de 1964 - A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Encurralada, A Ditadura Derrotada, A Ditadura Acabada, (Editora Intrínseca) Este artigo foi publicado originalmente pelo O Globo, edição de 15.04.20.

O vírus e a república

Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum

O presidente Jair Bolsonaro resolveu mais uma vez contrariar as recomendações de isolamento social feitas pelo Ministério da Saúde para conter a pandemia de covid-19 e saiu a passear por Brasília na sexta-feira passada, causando aglomerações e mantendo contato físico com eleitores, atitudes que podem facilitar a transmissão do novo coronavírus. Nada indica que não tornará a fazê-lo quando lhe der na telha. Questionado sobre seu comportamento, o presidente respondeu: “Eu tenho o direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir. Ninguém”.

De fato, o direito de ir e vir está entre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros, conforme a Constituição. No entanto, diferentemente do presidente da República, a maioria dos cidadãos está cumprindo as determinações dos governos locais, baseadas em consenso médico e científico, para que permaneça em casa e de lá só saia em caso de necessidade. Ou seja, milhões de cidadãos aceitaram um limite temporário a seu direito constitucional de ir e vir em nome da preservação de um precioso bem coletivo, isto é, a saúde pública.

Essa é a essência da ideia de república, em que o desejo pessoal de cada indivíduo, por mais legítimo que seja, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, expresso nas leis pactuadas por políticos democraticamente eleitos. Para que a república se realize plenamente, portanto, é preciso que seus cidadãos desenvolvam consciência cívica, isto é, tenham noção não somente de seus direitos, mas também, e sobretudo, de seus deveres.

Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum. Ao insistir na “volta à normalidade” muito antes do que a prudência recomenda, fazendo demagogia barata à custa da morte de milhares de compatriotas, o presidente Bolsonaro manda às favas seu dever irrenunciável de liderar os esforços para proteger a saúde da população diante da ameaça real da pandemia. Pior: inspira seus mais fanáticos seguidores a fazer campanha contra as determinações dos governantes estaduais e municipais destinadas a forçar o isolamento social.

Assim, não se trata somente de uma divergência em relação à melhor forma de enfrentar a pandemia; trata-se de uma verdadeira sabotagem aos esforços do Ministério da Saúde e de governadores e prefeitos para que o sistema hospitalar tenha condições de atender o máximo possível de doentes, poupando os médicos da terrível tarefa de ter que escolher quem viverá e quem morrerá.

Quando Bolsonaro, na condição de presidente da República, passeia por Brasília, confraterniza com simpatizantes e diz, no seu idioma peculiar, que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, estimula muitos brasileiros a imaginar que a crise esteja perto do fim ou que talvez não tenha a gravidade que as autoridades sanitárias – a começar pelo Ministério da Saúde – apregoam. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, queixou-se do comportamento do presidente em entrevista ao Fantástico. Ao defender um discurso “unificado” no governo, baseado na ciência e no bom senso, o ministro Mandetta disse que hoje o brasileiro “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.

Para os bolsonaristas radicais e o próprio Bolsonaro, contudo, não há dubiedade alguma. Não existe bem comum a ser preservado. Só existem os interesses particulares de Bolsonaro e de seus fanáticos seguidores, incapazes de aceitar os limites republicanos para suas vontades. Não por coincidência, são esses que vivem a vituperar contra as instituições republicanas, justamente aquelas que, felizmente, impedem Bolsonaro de realizar plenamente seu projeto de poder.

Afortunadamente, como mostrou um estudo de cientistas políticos divulgado pelo Estado, a maioria dos brasileiros – e dos eleitores de Bolsonaro – é favorável ao isolamento social pelo tempo que for necessário. Ou seja, o bolsonarismo antirrepublicano é minoritário mesmo entre aqueles que um dia votaram no presidente. Na hora da crise, a consciência cívica afinal parece falar mais alto – e as autoridades farão bem se ignorarem o alarido dos que só pensam em si mesmos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição 14.04.20

Viver na incerteza

Por Rosiska Darcy de Oliveira

Psicopatas ocupam a cena com sua covarde onipotência

Um vírus pôs a humanidade inteira em carne viva. O medo mora conosco, tomou o lugar do abraço. Um mundo imprevisível emergirá dessa tragédia, e nossa única certeza é a incerteza.

Hoje — e que dia é hoje, alguém sabe? — os referenciais que balizavam o cotidiano, a maneira como habitávamos o tempo e o espaço, se apagaram. A pandemia reverteu a flecha do tempo. A máquina do mundo parou. Petroleiros fantasmas estão parados no mar, cheios de um líquido que já não vale nada.

A casa é a fronteira da sobrevivência e uma exigência moral. Tenta-se manter uma rotina, memória esfumada de algo vivido em outra vida. O trauma deixará marcas. Esperemos que o confinamento físico tenha o dom de abrir os espíritos a mais humanidade.

Psicopatas ocupam a cena com sua covarde onipotência, acinte aos milhares de brasileiros doentes, quando liderança e competência são indispensáveis para bloquear o alastramento do mal. Com a palavra as instituições e os Poderes da democracia que juraram proteger a Constituição. Cabe-lhes impedir que continuem os inadmissíveis desvarios que ameaçam os vivos e desrespeitam os mortos.

A pandemia é uma desgraça sem precedentes. Contra ela os chefes de Estado que se respeitam tentam unir seus povos, multiplicar todos os recursos disponíveis. Convocam seus melhores quadros, mobilizando a inteligência coletiva de suas sociedades para socorrer os doentes. Todos, menos o do Brasil, imperdoável, que estressa o país nos dividindo, fabricando crises, cego aos que vão morrer sem socorro.

A hora é gravíssima. Não há espaço para mais nada que não seja dar o melhor de cada um de nós. Exemplar tem sido o trabalho heroico dos médicos e agentes de saúde e dos voluntários que se mobilizam para amparar os muitos que precisam de ajuda. Só isso deve nos preocupar e ocupar.

A pandemia tornou obsoletas questões que pareciam essenciais. Mudou as perguntas. E impôs a incerteza como regra do mundo. É com ela, e é doloroso, que doravante teremos que viver. Na travessia e no mundo de amanhã.

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 27.04.20

O papel de cada um

Se algo inspira algum otimismo, é a certeza de que as instituições como o Supremo e Congresso são capazes de proteger o País das investidas irresponsáveis do presidente.

Uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em caráter liminar, impede que o presidente Jair Bolsonaro suspenda unilateralmente as medidas de isolamento tomadas por Estados e municípios para enfrentar a pandemia de covid-19. No entender do ministro, o presidente da República, caso resolva levar adiante sua ameaça de realizar esse tipo de intervenção nos entes subnacionais, estará violando preceitos constitucionais como a proteção à saúde e o respeito ao federalismo e a suas regras de distribuição de competências.

O ministro enfatizou que é justamente em “momentos de acentuada crise” como este que se faz mais necessário o espírito de cooperação entre os Poderes e os entes federativos, “em defesa do interesse público” e “sempre com absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional”, de modo a evitar o “exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de covid-19” – referência clara às atitudes de Bolsonaro, que vive a se jactar do poder da caneta presidencial.

Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes observa, no entanto, que “lamentavelmente” é “fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de governo”, aludindo ao confronto público entre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, acerca do melhor modo de conter a pandemia. Na opinião do ministro do STF, isso acarreta “insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade”.

O ministro salientou, ademais, que as decisões tomadas por Estados e municípios são “reconhecidamente eficazes” contra a epidemia, em consonância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da maioria absoluta dos mais respeitados institutos científicos do mundo.

Em resumo, a decisão do ministro Alexandre de Moraes é essencialmente correta nos seus aspectos legais e muito oportuna em suas observações a propósito da necessidade premente de unificar o discurso das autoridades na sustentação do isolamento social como única forma efetiva, no momento, de atrasar o previsível colapso do sistema de saúde.

O presidente Bolsonaro havia dito, há alguns dias, que tinha pronto sobre sua mesa um decreto por meio do qual obrigaria Estados e municípios a suspenderem as medidas restritivas. Na ocasião, ele mesmo reconhecia que o decreto poderia ensejar “sanções” contra ele e que esperava “o povo pedir mais” para assiná-lo. Anteontem, voltou a tocar no assunto, para dizer que estuda transformar o decreto em projeto de lei, “e mandar para o Parlamento decidir”. Ou seja, não desistiu da ideia de atropelar a autonomia de Estados e municípios para estabelecer medidas de isolamento social.

À TV Bandeirantes, na quarta-feira passada, Bolsonaro voltou a dizer que governadores e prefeitos que “tomaram medidas em desacordo com a população têm que refazer seu programa e voltar a abrir o comércio”. Mais tarde, em pronunciamento em rede nacional, Bolsonaro disse que “o governo federal não foi consultado” pelos governadores a respeito das medidas de isolamento social e que, portanto, essas “são de responsabilidade exclusiva dos mesmos”. Aposta assim, mais uma vez, na politização da crise, ao jogar na conta das autoridades estaduais e municipais os terríveis efeitos econômicos do isolamento, como se houvesse alternativa a essas medidas, adotadas em quase todo o mundo ante a escalada da pandemia.

Mas o presidente, já se sabe, só está preocupado em afastar de si qualquer responsabilidade pela crise. Para isso, não se importa em ameaçar o princípio federativo previsto na Constituição nem em estimular, em rede nacional, o consumo de um remédio cuja eficácia ainda não foi comprovada e que, por outro lado, provoca perigosos efeitos colaterais.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro exigiu de seu ministro da Saúde que passe a adotar um discurso otimista. Não será fácil. Se algo inspira algum otimismo neste momento, é a certeza de que as instituições, como o Supremo e o Congresso, são capazes de proteger o País das investidas irresponsáveis do presidente.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 11.04.20

Opção pela vida

É hora de toda a sociedade aumentar a adesão ao isolamento. Sem isto, a recuperação econômica será mais penosa para toda a Nação

Desde a eclosão da pandemia de covid-19, líderes no mundo inteiro foram instados a responder o que deveria ser prioritário no desenho das ações de enfrentamento da crise: medidas que visam à proteção da vida ou da economia? Para salvar o maior número possível de vidas, dizem quase em uníssono os especialistas, impõe-se o isolamento indistinto da população. Para resguardar a atividade econômica, este recolhimento deveria ser seletivo, ou seja, válido apenas para as pessoas que estão nos grupos de risco – idosos e pacientes com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, entre outras comorbidades.

Os líderes mais inteligentes e responsáveis perceberam de pronto que priorizar a vida ou a economia é um falso dilema. Evidentemente, medidas de proteção da vida devem preceder todas as outras. Primeiro, por um imperativo moral, humanitário. Segundo, por uma questão pragmática: não há economia que pare de pé, em nenhum país do mundo, tendo deixado um rastro interminável de mortos. E é isto o que acontecerá se apenas determinados grupos forem isolados. Por ignorância ou má-fé, os que apostam no isolamento seletivo para mitigar os efeitos da pandemia na atividade econômica não levam em conta que, mesmo permanecendo em casa, pessoas nos grupos de risco estarão sempre expostas ao contágio pelo contato com as que foram liberadas para sair às ruas. É elementar.

O presidente Jair Bolsonaro é um dos escassos líderes mundiais que tomaram lado nesta contenda infrutífera, que, se presta para alguma coisa, é para alavancar interesses políticos. Sua opção ficou claramente conhecida por meio de declarações como “Vai morrer gente? Vai. Paciência”, “Esse vírus é igual a chuva. Vai molhar 70% de vocês. Alguns idosos vão se molhar também” e “Pessoas que estão morrendo de covid-19 já iriam morrer de outras causas”. Que tal?

Por sorte, o olhar do presidente da República sobre a pandemia não é o mesmo da esmagadora maioria da população, que fez uma clara opção pela vida. Pesquisa realizada pelo Datafolha com 1.511 brasileiros adultos que possuem telefone celular, em todas as regiões do País, revelou que 76% dos entrevistados apoiam medidas restritivas à circulação de pessoas e fechamento do comércio não essencial para evitar a disseminação do novo coronavírus, ainda que isso prejudique temporariamente a economia e leve ao aumento do desemprego. Apenas 18% dos brasileiros ouvidos pelo instituto de pesquisa disseram ser favoráveis ao relaxamento da quarentena como forma de estimular a atividade econômica, enquanto 6% não souberam ou não quiseram responder.

Entre os que defendem apenas o isolamento de pessoas que integram os grupos de risco, 43% são homens, 49% são empresários e 45% têm entre 35 e 44 anos. Não por acaso, são perfis que correspondem à base de apoio do presidente Jair Bolsonaro.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 12.04.20

Vendedor de ilusões

Por Merval Pereira

A retomada da retórica moderada do presidente Bolsonaro no seu pronunciamento de ontem à noite não é uma garantia de que o bom senso permanecerá prevalecendo, mas dá um fôlego para o verdadeiro objetivo, que é o combate ao Covid-19 dentro de nossas possibilidades de país emergente e em grave situação financeira.

Ainda mais que o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta dá sinais públicos de querer, de sua parte, não melindrar seu chefe, garantindo que é “Jair Messias Bolsonaro quem comanda esse time”. Além dos aspectos emocionais dessa disputa anacrônica, no entanto, há questões de fundo importantes, como o debate sobre o uso de cloroquina.

A prova de que a retórica moderada nem sempre reflete posições sensatas, ao levar para um pronunciamento oficial à Nação a ideia de que a cloroquina pode salvar milhares de vida, o presidente Bolsonaro mais uma vez interfere na condução da politica de saúde pública ditada pelos organismos internacionais, seguida pelo ministério da Saúde.

O importante no momento é não politizar o Covid-19, como disse o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) Tedrosn Ghebreyesus sobre a ameaça do presidente dos Estados Unidos Donaldo Trump de parar de contribuir financeiramente com a OMS, pois o organismo teria se tornado sinocêntrico, dando mais importância às informações vindas da China.

Trump, em tuíte, insinuou que a OMS, ao desaconselhar fechar o país à China no início da crise, quando ainda não havia sido declarada uma pandemia, teria segundas intenções. Da mesma maneira, a politização do combate ao novo coronavírus permitiu que o próprio Trump, coadjuvado pelo presidente brasileiro, fizesse durante muito tempo propaganda da cloroquina como um remédio milagroso, sendo que Bolsonaro chegou a levar para uma conferência virtual do G-20 caixas do remédio, quando ainda não há comprovação oficial da eficácia do medicamento.

Já há um consenso de que o uso em casos graves nos hospitais é permitido, mesmo sem confirmação científica. Como todos estão usando a cloroquina, fica difícil saber o alcance de sua eficiência, pois pode ser acompanhada de vários outros medicamentos, e em diversas dosagens. O importante é que não é possível ainda anunciar a cloroquina como o caminho para a cura, e torna-se irresponsável essa tentativa de levar à opinião pública uma solução que não existe, como Bolsonaro fez ontem em seu pronunciamento.

O desafio feito aos médicos David Uip e Roberto Kalil Filho pelo próprio presidente através do WhatsApp é exemplar do que não deve ser feito, uma disputa política com o governador de São Paulo João Doria que não leva a lugar nenhum. David Uip, coordenador da equipe de combate ao coronavírus em São Paulo, recusou-se a confirmar se foi usada a cloroquina em seu tratamento, enquanto Kalil Filho admitiu.

Este último, inadvertida ou propositalmente, ao cair na armadilha de Bolsonaro, foi usado pelo presidente em seu pronunciamento como avalista do uso da cloroquina em todos os estágios da doença. A politização dessa situação inusitada, que a ninguém dá, até o momento, o direito de ter certezas absolutas, só faz agravar o quadro geral.

Parece não haver clareza para o presidente do que nos espera pela frente, se compararmos nosso quadro atual com o dos países que já passaram, aparentemente, pelo pico da crise. Ainda estamos em meio à subida dos gráficos, e já temos cidades como Manaus, em região afastada dos grandes centros do sudeste mais afetados até o momento, com seu esquema de saúde colapsado pela amplitude da crise.

Bolsonaro, ao falar na televisão, que a cloroquina pode salvar milhares de vidas, está jogando um lance perigoso. Vendendo ilusões, pretende aparecer como o salvador da pátria. E pobre do país que precisa de salvadores da pátria, parafraseando Brecht. Favorável ao uso do medicamento nos momentos iniciais da doença, como alguns, de maneira minoritária, defendem, Bolsonaro atropelou a política oficial e deu falsas esperanças a milhares de brasileiros que ainda o levam a sério.

Merval Pereira é Jornalista e escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 09.04.20.

Achamos bom um presidente tutelado por generais?

Por Carlos Andreazza

Jair Bolsonaro - acuado - radicalizará. O exame dos padrões de seu comportamento assim indica.

Ele pode estar mesmo isolado - mas é a publicidade desse isolamento, sinal externo de fraqueza, o que mobiliza a reação do reacionário que governa o Brasil.

A ideia de que estaria isolado e sem força para demitir um auxiliar, de que Mandetta lideraria um governo paralelo garantido por generais, de que o presidente, tutelado, já seria uma espécie de rainha de Inglaterra - isso consiste em cenário a que um populista autoritário como Bolsonaro, um girassol cujo norte é o calor das redes, não se submete. Reagirá. Radicalizará.


O presidente da República, no Brasil, é muito poderoso. Que não nos enganemos sobre aquela caneta e sobre o que alguém de natureza golpista pode fazer quando encurralado. Por exemplo: decretar, no limite, estado de defesa e esperar a reação do Congresso para um choque institucional que poderia produzir um chão de desordem civil e ingovernabilidade. Há quem queira essa instabilidade.

Destaco essa possibilidade extrema também para chamar a atenção de quem me lê à forma - não percebida - como a mentalidade autoritária se instala influentemente entre nós.

Demonstro: circula a especulação segundo a qual generais tocariam uma espécie de intervenção militar na Presidência - e há quem ache mesmo muito bom. Não é.

Em outras palavras: contra a irresponsabilidade e o autoritarismo de um presidente eleito, a tutela militar? Devemos nos preocupar com esse tipo de puxadinho. Não é simples demoli-lo depois.

Isso é convite ao perigo. Uma ousadia para com a democracia em tempos de exceção.

Consideramos aceitável - deixamos passar sem ressalvas - que Davi Alcolumbre telefone para generais com o intuito de lhes informar que não aceitaria a demissão de um ministro, prerrogativa exclusiva do presidente da República?

Acharemos normal agora que um presidente de Poder - que dispõe de instrumentos políticos para frear e mesmo derrubar o presidente da República - avalize a tutela de militar sobre o chefe do Executivo?

Sugiro refletirmos sobre quem convidamos a dançar no baile.

Carlos Andreazza, Jornalista, é Editor de Livros. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 07.04.20

Os robôs do presidente

É grave ver Bolsonaro perto de milícias virtuais, que se servem de manobras digitais para atacar o ambiente de liberdade.

Mais da metade das publicações no Twitter favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, por ocasião das manifestações do dia 15 de março, foi realizada por robôs, revela estudo da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após analisar mais de 3 milhões de mensagens no Twitter, o levantamento ajuda a dar uma dimensão mais exata do tipo de apoio que o presidente Jair Bolsonaro tem nas redes sociais, bem como a expor os efeitos deletérios da manipulação digital.

Segundo o estudo, a hashtag #bolsonaroday foi a mais compartilhada na plataforma do Twitter no dia 15 de março de 2020, com cerca de 1,2 milhão de menções. “Os dados apontam uma ação expressiva de perfis não humanos – tanto de robôs, contas automatizadas, como de ciborgues, contas semiautomatizadas – nas publicações do Twitter, chegando a atingir picos de 55% de automatização das postagens no dia do evento”, afirma o estudo.

Em geral, as pessoas que usam o Twitter publicam cerca de três a dez tuítes por dia. Os usuários mais ativos chegam a publicar até 50 tuítes por dia. No dia 15 de março, cada robô favorável ao presidente Jair Bolsonaro publicou, em média, 700 mensagens com a hashtag #bolsonaroday. Houve casos de robôs com mais de 1,2 mil tuítes naquele dia.

O porcentual de 55% de interação por robôs é uma taxa incrivelmente alta, que supera amplamente outros casos recentes de manipulação do debate público por instrumentos digitais. Na eleição do presidente Donald Trump, por exemplo, as contas automatizadas geraram aproximadamente 18% do tráfego do Twitter, segundo o Internet Institute da Universidade de Oxford. No caso do Brexit, dois pesquisadores, Samuel Woolley e Bence Kollanyi, avaliaram que 32% das publicações no Twitter favoráveis à saída da Grã-Bretanha da União Europeia foram realizadas por contas desproporcionalmente ativas, o que indica algum grau de automação.

O estudo da FESPSP e da UFRJ relata algumas evidências empíricas sobre o papel desempenhado pelos robôs nas redes sociais. “A disseminação de mensagens e orquestração de campanhas online com o uso de automação e inteligência artificial tem consequências sociais, políticas e culturais relevantes: (a) sequestram a atenção da rede de usuários e ajudam a manipular os algoritmos das plataformas; (b) criam cascatas de informação que tendem a influenciar o comportamento de outros usuários por meio de contágio; (c) contribuem para a distorção e manipulação da opinião pública em constante construção e mutação; (d) pautam o debate e as conversações online e offline”. O uso dos robôs não apenas falsifica o tamanho do apoio ao presidente Bolsonaro, como deturpa todo o espaço público de diálogo, debate e informação.

Outro ponto destacado no estudo é o uso da estratégia de “campanha permanente” nas redes sociais pelos bolsonaristas, “com hashtags e mensagens cujo apelo, frequência e quantidade são típicos de períodos de campanha, incluindo alusão às eleições presidenciais de 2022 e 2026”. Entre as ações da campanha permanente está a “ativação constante da militância virtual para se defender e atacar seus adversários e o uso de narrativas de testemunho de diferentes atores sociais para a construção ‘do bem e do mal’”, diz o estudo. Um dos alvos mais frequentes dos bolsonaristas é o Supremo Tribunal Federal (STF). “Ainda que o Congresso tenha ganhado maior destaque mais recentemente, a campanha permanente se nutre do universo lavajatista que vê no STF um obstáculo para a continuidade da operação, além da questão da prisão em segunda instância”, aponta o estudo.

Os robôs bolsonaristas não só apoiam o presidente Bolsonaro, como atacam as instituições. Se é um alívio saber que muito dessa movimentação contra o Estado Democrático de Direito não vem de pessoas reais – é mera atuação de robôs –, é grave ver o presidente Bolsonaro tão próximo dessas milícias virtuais, que se servem de manobras digitais para atacar o ambiente de liberdade e diálogo próprio de uma democracia.

Editorial de O Estado de S. Paulo, em 05.04.20

A política como vacina

Está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar.

O momento que o País atravessa é crítico para a manutenção da democracia. “A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política”, disse o historiador José Murilo de Carvalho, em reportagem do Estado sobre os impactos da epidemia de covid-19 na vida política do País.

O risco não é desprezível. A rede bolsonarista, com o próprio presidente Jair Bolsonaro à frente, dedica-se diariamente a atacar as autoridades que assumiram a responsabilidade de enfrentar a epidemia com medidas duras de restrição econômica e isolamento social. A intenção é disseminar o medo do caos, de modo a criar uma atmosfera favorável a soluções liberticidas. Decerto embala os sonhos bolsonaristas o exemplo da Hungria, que acaba de conceder poderes ilimitados ao premiê ultradireitista Viktor Orbán, com a desculpa de que isso é necessário para conter a disseminação do novo coronavírus.

Ao mesmo tempo, a gravidade da situação, somada à atuação irresponsável e belicosa do presidente Bolsonaro, está provocando uma raríssima articulação política no País. Políticos de diversas tendências têm deixado momentaneamente suas divergências de lado para somar esforços em nome da imperiosa necessidade de salvar vidas e dar condições para que a população atravesse essa provação sem grandes privações.

Um exemplo recente disso foi a reação do governador de São Paulo, João Doria, a um elogio maroto feito pelo ex-presidente Lula da Silva, um de seus maiores rivais, a respeito de sua atitude firme na crise. É evidente que Lula só estava interessado em usar Doria como escada para atingir Bolsonaro, mas mesmo assim o governador paulista não deixou passar a oportunidade para enfatizar a necessidade de união de forças distintas: “Temos (Doria e Lula) muitas diferenças, mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos”, escreveu o governador no Twitter.

Para o cientista Marco Aurélio Nogueira, o comportamento hostil de Bolsonaro isola o presidente e reforça o protagonismo do Congresso, que já se verificava antes mesmo da epidemia, além de estimular as forças democráticas – liberais, social-democratas e da esquerda moderada – a “encontrarem um eixo programático de articulação”. É o que acontece em democracias maduras diante de crises profundas como a que atravessamos. “Essa possibilidade de articulação será o principal antídoto contra o acirramento das relações institucionais e sociais”, disse o professor Marco Aurélio Nogueira.

Assim, está na política a vacina contra a epidemia de autoritarismo e impostura que o presidente Bolsonaro deflagrou no País desde sua eleição – considerada pelo historiador José Murilo de Carvalho uma calamidade anterior à do coronavírus. Do mesmo modo, está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas imediatos decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar quando passar a fase mais aguda da doença.

“É hora da política séria, objetiva, com letra maiúscula”, opinou o fundador do movimento RenovaBR, Eduardo Mufarrej. “A sociedade precisa cobrar que as lideranças do País deixem as disputas por espaço de lado e se concentrem em construir soluções em conjunto. Vírus não respeita fronteiras, não distingue raças, não se importa com ideologias.”

É esse o grande esforço que o País deve empreender hoje: superar a polarização que tanto tem marcado o ambiente político desde a campanha presidencial de 2018 e reavivar a política civilizada, reaprendendo a ouvir vozes divergentes e a aceitar o que a maioria decidir, dentro das regras democráticas e com respeito às instituições. Isolar Bolsonaro não basta; é preciso desmoralizar a ideologia deletéria que o sustenta. Para isso, a política deve ser resgatada do limbo em que foi atirada em 2018 pelo bolsonarismo e valorizada como único meio de impedir que o País complete a obra de autodestruição que petistas e bolsonaristas, há tempos, estimulam com tanto ardor.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 03.04.20

A pedra no caminho

Graças a seu comportamento irresponsável, Jair Bolsonaro começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro, o de vilão internacional

O presidente Jair Bolsonaro foi reconhecido pela revista norte-americana The Atlantic como “o líder mundial do movimento de negação do coronavírus”. Já a revista britânica The Economist chamou Bolsonaro de “BolsoNero”, numa alusão à lenda de que o imperador Nero tocava harpa enquanto Roma ardia em chamas. E o presidente brasileiro foi o único chefe de Estado citado nominalmente pela The Lancet, uma das principais publicações científicas do mundo, em editorial crítico às respostas de muitos governos à pandemia, especialmente aqueles que “ainda precisam levar a ameaça da covid-19 a sério”.

Assim, Bolsonaro, graças a seu comportamento irresponsável, começa a conquistar um lugar jamais ocupado por um presidente brasileiro – o de vilão internacional. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, idolatrado por Bolsonaro, persistiu em sua costumeira arrogância diante do avanço dramático da epidemia, rendendo-se à necessidade de prorrogar o isolamento social, mesmo ante o colossal custo econômico dessa medida.

Aparentemente, contudo, Bolsonaro não se importa de ser visto como pária. Ao contrário: decerto feliz com a notoriedade global subitamente adquirida, na presunção de que isso lhe trará votos, insiste em desafiar abertamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas pelo Ministério da Saúde e por governadores e prefeitos de quase todo o Brasil. No domingo passado, o presidente passeou por Brasília, visitando zonas comerciais, pedindo que a vida volte ao normal e cumprimentando simpatizantes que se aglomeravam em torno dele – escarnecendo, assim, de reiteradas recomendações de seu próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Como se isso não bastasse, Bolsonaro ainda postou em sua conta oficial no Twitter vídeos e imagens que atestavam sua descarada irresponsabilidade. Ao fazê-lo, conseguiu outra proeza: tornou-se o primeiro presidente brasileiro a ter postagens suspensas pelo Twitter, por negar ou distorcer orientações das autoridades sanitárias na luta contra uma epidemia. O Twitter, aparentemente disposto a conter o vírus da desinformação, já havia feito o mesmo em relação a postagens do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e do chanceler Ernesto Araújo.

O temerário passeio de Bolsonaro por Brasília – apenas um dia depois de o ministro Mandetta ter enfatizado a necessidade do rígido isolamento social, pois, do contrário, “vai faltar atendimento para rico e para pobre” – demarcou definitivamente a fronteira que separa o presidente do resto do mundo civilizado. Bolsonaro hoje só governa o território habitado por seus fanáticos devotos.

Nesse país de valentões, em que a ciência e a razão são tratadas como inimigas, o presidente diz que “é preciso enfrentar o vírus como homem, pô, e não como moleque” – e, no léxico bolsonarista, “moleque” é quem defende quarentena contra a epidemia, para salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde. Já “homem” é ele, o presidente, que repta o bom senso e escancara sua demagogia ao cogitar de acabar com o isolamento social por decreto: “Estou com vontade, eu tenho como fazer, estou com vontade: baixar um decreto amanhã” para permitir a volta ao trabalho de quem precisa “levar o leite dos seus filhos, arroz e feijão para casa” – ou seja, todo mundo. Se milhares de pessoas morrerem por falta de atendimento médico em decorrência dessa irresponsabilidade, “paciência”, disse o presidente, pois, afinal, “um dia todos vamos morrer”.

Não à toa, o governador de São Paulo, João Doria, pediu aos paulistas que ignorem Bolsonaro: “Não sigam as orientações do presidente, ele não orienta corretamente a população e, lamentavelmente, não lidera o Brasil no combate ao coronavírus e na preservação da vida”. Já o ministro Mandetta, desautorizado tão escandalosamente pelo presidente da República, pediu paciência à sua humilhada equipe e, conforme apurou a jornalista Eliane Cantanhêde, do Estado, citou para seus comandados o poema No Meio do Caminho, de Drummond – aquele do verso “No meio do caminho tinha uma pedra”.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 31.03.20

Quem tem juízo e quem não tem

Para Bolsonaro, não importa preservar a economia ou as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem.

Os líderes do G-20, grupo das principais economias do mundo, anunciaram uma injeção da ordem de US$ 5 trilhões na economia global para enfrentar os impactos da pandemia de covid-19. “O G-20 se compromete a fazer o que for necessário para superar a pandemia”, informou o grupo em nota oficial. No comunicado, o G-20 se diz “determinado a não poupar esforços, individual e coletivamente, para proteger vidas; salvaguardar empregos e a renda das pessoas; restaurar a confiança, preservar a estabilidade financeira, estimular a recuperação e o crescimento econômico; impedir a interrupção do comércio e da cadeia global de suprimentos; ajudar todos os países carentes de assistência; coordenar ações nas áreas financeira e de saúde pública; e combater a pandemia”.

Na reunião, feita por teleconferência, todos os líderes do G-20 tiveram alguns minutos para comentários. O presidente Jair Bolsonaro usou seu tempo para defender medidas para estimular a economia e destacar os supostos progressos no desenvolvimento de uma droga à base de hidroxicloroquina para conter o novo coronavírus – cujas pesquisas, a despeito do otimismo de Bolsonaro, estão ainda longe de ser conclusivas.

Deve ter ficado claro para os demais chefes de governo do G-20 que não podem contar com o colega brasileiro, perdido em seus devaneios sobre uma cura milagrosa que viria a tempo de salvar milhares de vidas e, o que lhe parece mais importante, evitar o colapso econômico do Brasil – pois, segundo suas próprias palavras, “se afundar a economia, acaba com meu governo”.

Assim, para Bolsonaro, não importa nem preservar a economia nem as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem, com vista à próxima eleição. Por isso, insurge-se contra todos aqueles que – governadores à frente, mas também seu ministro da Saúde – propõem ou ministram remédios amargos, mas imprescindíveis, para conter a epidemia.

Como mostrou o G-20 ao se propor a gastar US$ 5 trilhões (mais que o dobro do PIB brasileiro) contra a pandemia, o que o mundo está enfrentando não se cura com licor de cacau Xavier. Graças à liderança caótica e hesitante de Bolsonaro, a equipe econômica até agora apresentou medidas tímidas que representam menos de 4% do PIB, segundo cálculo da Fundação Getúlio Vargas, enquanto os Estados Unidos poderão despender até 11% do PIB e o Reino Unido, 17%, para ficar apenas em países governados por políticos que Bolsonaro admira. O Reino Unido vai bancar até 80% da renda dos trabalhadores cujos salários forem suspensos, dentro de um limite de 2.500 libras mensais, bem acima do salário mínimo de 1.300 libras. Já Bolsonaro dará um “voucher” de R$ 600 (60% do salário mínimo) para trabalhadores informais – lembrando que, inicialmente, o presidente havia proposto R$ 200, e só bancou um valor maior depois que o Congresso propôs R$ 500.

Para Bolsonaro, contudo, tudo vai se resolver se as medidas de isolamento social forem imediatamente suspensas. Tornou a atacar os governadores, dizendo que estes terão de arcar com encargos trabalhistas de quem for obrigado a fechar seu estabelecimento comercial. Para ampliar a pressão, seu governo, contrariando diretrizes do próprio Ministério da Saúde e o apelo de todas as principais entidades médicas do País, lançou nas redes sociais uma demagógica campanha intitulada “O Brasil não pode parar”, que minimiza a epidemia e defende “voltar à normalidade”. Com isso, irresponsavelmente, estimula os brasileiros a desobedecerem à determinação de governos estaduais para manter o isolamento social, única forma de impedir que a epidemia cause o colapso do sistema de saúde – que, se ocorrer, ampliará de modo exponencial o número de mortos e, consequentemente, o desastre econômico, pois mortos não trabalham.

Mas Bolsonaro não está nem um pouco preocupado. “Eu acho que não vai chegar a esse ponto”, disse o presidente. “Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não acontece nada com ele.” Caramba!

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 30.03.20

Bolsonaro queima suas caravelas e vai para o tudo ou nada

Por Ricardo Noblat

Esta semana marcou uma virada sem retorno na trajetória do presidente da República. De causar problema político, a provocar conflitos e a desatar crises entre os Poderes na esperança de destruir a democracia e instalar uma ditadura no seu lugar, Jair Messias Bolsonaro passou também à condição de um grave problema sanitário que ameaça a saúde dos brasileiros.

Os próximos serão dias dilacerantes com a elevação dos casos confirmados de coronavírus e do número de mortos. E os dias mais trágicos ainda não terão chegado. Calculam técnicos do Ministério da Saúde que o pico da primeira onda da pandemia só se dará daqui a quatro semanas, coincidindo com o pico de mais duas epidemias: influenza e dengue. Tempestade perfeita.

Os Estados Unidos são o novo epicentro do coronavírus no planeta, ultrapassando em número de infectados a China, a Itália e a Espanha. Em Nova Iorque, nas últimas 24 horas completadas ontem à noite, morreram mais de mil pessoas. Há pelo menos meio milhão de infectados nos países que costumam remeter seus dados oficiais à Organização Mundial da Saúde.

Jamais se saberá com exatidão quantos de fato foram contaminados e quantos perderam a vida. É assim nas pestes. Aqui, cientistas desconfiam que os números estejam sendo achatados, por deficiência dos sistemas de registro, por falta maior de conhecimento da doença ou por razões ocultas que ainda não foram decifradas, mas que poderão vir a ser um dia.

Depois de estimular seus governados a circularem e se divertirem sem remorsos, o presidente populista de esquerda do México, uma espécie de Bolsonaro de lá, recuou assombrado e decretou a quarentena obrigatória. Menos mal, mas tarde. O prefeito de Milão admitiu que errou ao patrocinar uma campanha publicitária na qual garantiu que sua cidade não se fecharia. Fechou-se.

Justamente agora, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República do Brasil, a mando dos filhos de Bolsonaro e com o seu aval, está prestes a lançar a campanha “O Brasil não pode parar”. Sentindo-se autorizados pelo presidente eleito com o voto de apenas 39% dos brasileiros, devotos do Mito marcam carreatas em apoio ao fim da quarentena bancada pelos governadores.

Em contraste, na França, onde o coronavírus matou 365 pessoas nas últimas 24 horas, o presidente Emmanuel Macron prorrogou o período de confinamento. O presidente Donald Trump, que havia dito que o confinamento no seu país só iria até a Páscoa, engoliu o que disse. Fez um acordo com o Congresso e gastará o equivalente a 6% do PIB para socorrer quem precisa.

Como perdeu o bonde da história por ignorância ou escolha pensada e repensada, Bolsonaro faz o contrário. Atrasa a liberação de recursos para os Estados, o anúncio de medidas para que não se esvaziem rapidamente os bolsos dos que vivem na economia informal, e sabota as providências tomadas em sentido contrário por seus próprios auxiliares, além de detratá-los.

Por toda parte, a azeitada máquina bolsonarista de distribuição de notícias faltas e de produção de eventos se move para acirrar os ânimos e dividir o país, jogando uma parte dele contra a outra. Não importa que a grande maioria dos brasileiros diga apoiar a quarentena. Quem sabe a maioria não se desmanchará quando souber que a quarentena não acabará tão cedo?

Além da tempestade, teríamos então o crime perfeito: deixa-se que os velhos morram (menor pressão sobre a Previdência). E os mais pobres (menor pressão sobre outros gastos). Devolvem-se os jovens ao trabalho. Com salários reprimidos, naturalmente. Salvam-se os que por sorte se salvaram ou por dispor de renda que pagou melhor atendimento. Seleção das espécies.

Do desprezo de Bolsonaro pela vida alheia, do seu absoluto despreparo para exercer a função que exerce, o país teve mais uma vergonhosa amostra quando ele afirmou ao rebater a suspeita de que a pandemia causará grande estrago: “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.”

A Agência Brasileira de Inteligência, órgão do governo, preveniu a tempo Bolsonaro para o que estava por vir – ele não ligou ou não quis ligar ou começou a pensar sobre a vantagem que poderia retirar disso. A agência opera com vários cenários – o pior, de colapso total e rápido do sistema de saúde, da fome que possa matar os desassistidos, de saques e de convulsão social.

É tudo o que almejam Bolsonaro e os que compartilham dos mesmos propósitos. Esperam que em nome do restabelecimento da ordem possam, enfim, apelar para os militares. Dificilmente o Congresso aprovaria a decretação do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio. Mas Bolsonaro e sua malta já se contentariam com sucessivas e localizadas operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Realizadas por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. O Exército é despachado para lugares que exijam sua presença por tempo determinado. Para os Bolsonaro já estaria de bom tamanho.

Em meio a uma epidemia do tamanho desta, que obriga o Congresso e a Justiça a funcionarem virtualmente, não se remove um presidente do cargo via processo de impeachment, que é demorado. Os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff só caíram quando o povo foi para as ruas. Nem se quisesse, o povo agora iria. Panelaço faz barulho, mas não derruba presidente.

O que fazer com Bolsonaro que nem sob a pressão da farda renunciará? No passado, ele afrontou a farda ao planejar jogar bombas em quartéis. Afrontou ao cobrar o título de capitão em troca do seu afastamento do Exército por indisciplina e conduta antiética. Os generais fizeram cara feia, mas aceitaram a oferta. Resultado: hoje, batem continência para ele.

O desejo de Bolsonaro de ser promovido a ditador não será satisfeito pelas Forças Armadas. Não se conte, porém, com sua ajuda para que Bolsonaro peça o boné e vá para casa. Caberá aos civis de todas as cores que abominam as trevas desatarem esse nó.

Ricardo Noblat é Jornalista. Este artigo foi publicado originariamente no site da VEJA (veja.com.br)

O legado de Lovelock

Por Eurípedes Alcântara

Minúsculo organismo comanda hoje a agenda dos líderes das nações mais poderosas.

Impossível nesta hora grave não se lembrar do britânico James Lovelock, um dos mais valiosos e amáveis velhos sábios da tribo humana, ainda vivo e trabalhando aos 100 anos de idade. Com a colaboração do escritor William Golding, ele ficou famoso no final do século passado ao sugerir que a Terra não é apenas uma rocha coberta de água, vegetação e animais, mas um organismo biológico complexo capaz de se autorregular em benefício da manutenção da vida — mas não necessariamente da vida humana. Essa maneira de enxergar a natureza, mais filosófica do que científica, por não poder ser comprovada por um experimento, ficou conhecida como a “Hipótese Gaia”.

O controle do novo coronavírus sobre as ações humanas nos últimos dias em todo o planeta nos obriga a revisitar com maior generosidade a Hipótese Gaia e a visão mais ampla de seu teorizador sobre as interações ainda misteriosas das formas de vida que dividem o mesmo espaço no planeta azul. O novo coronavírus mede cerca de120 nanômetros — ou 120 bilionésimos de um metro. É uma dimensão quase inimaginável. Para se ter uma ideia, se o novo coronavírus fosse do tamanho de uma bola de futebol, o comprimento do gramado do Maracanã mediria a metade da distância da Terra à Lua. Esse minúsculo organismo comanda hoje a agenda dos líderes das nações mais poderosas do mundo.

Em sua casa de praia em Chesil Beach, no sul da Inglaterra, Lovelock vinha até recentemente recebendo jornalistas para falar do seu novo livro, “Novacene — A treatise on the future impact of Artificial Intelligence” (“Novacene — Um tratado sobre o impacto futuro da inteligência artificial”). É incrível não ter ocorrido a nenhum deles até agora pedir a opinião de Lovelock sobre a pandemia provocada pelo novo coronavírus. Uma das armas da guerra contra o vírus é a desaceleração drástica da atividade econômica com o objetivo de diminuir os contatos sociais e, assim, impedir ou pelo menos atenuar as oportunidades de contágio entre pessoas. Isso tem um custo altíssimo, avaliado pelo investidor Ray Dalio em 4 trilhões de dólares só nos Estados Unidos.

Do ponto de vista ambiental, no entanto, a súbita estancada econômica diminuiu em poucos dias mais de 50% da poluição atmosférica por gases de efeito estufa. Um proponente da Hipótese Gaia poderia muito bem teorizar que o novo coronavírus foi a maneira encontrada pela biosfera para, mesmo com grande sofrimento humano, tentar se reequilibrar. Quando Golding sugeriu e Lovelock rapidamente aceitou batizar sua hipótese de Gaia, a deusa grega filha do deus Caos, o objetivo foi justamente enfatizar a existência de um controle natural capaz de dar respostas automáticas aos grandes desequilíbrios provocados pela própria natureza ou pela atividade humana.

Minha visão particular sobre a Gaia coincide com a da ciência estabelecida, segundo a qual “hipóteses extraordinárias exigem provas extraordinárias”. Citei a força do novo coronavírus, capaz de diminuir dramaticamente a poluição do ar, como uma provocação capaz de nos faz pensar. Seria tolo ver nessa especulação força suficiente para elevar a tese holística de Lovelock ao patamar das ciências naturais como a Física, a Geologia ou a Biologia e a Química.

O bom Lovelock, porém, tem méritos científicos pouco conhecidos, mas ainda de grande valia. Jovem pesquisador a serviço do Exército inglês durante a Segunda Guerra Mundial, coube-lhe a então aparentemente desimportante missão de entender os mecanismos de transmissão do resfriado comum. Usando luz ultravioleta para identificar a trajetória e o alcance das gotículas contaminadas dos espirros de voluntários gripados, Lovelock descobriu que essa forma de transmissão direta pelo ar não era tão importante quanto se imaginava. O contágio perigoso mesmo ocorria pelos apertos de mão e pelo uso compartilhado de objetos como isqueiros e cartas de baralho. No seu trabalho, publicado pela prestigiosa revista científica “Lancet”, James Lovelock determinou que a doença entra no organismo quando a pessoa toca os olhos, nariz ou a boca com as mãos infectadas pelo vírus. Impossível não se lembrar dele nesta hora grave.

Eurípedes Alcântara é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 21.03.20

Cadeira vazia

Em nenhum dos 441 dias em que está na Presidência da República, Jair Bolsonaro a exerceu de fato. Age como se ainda fosse o deputado irrelevante que sempre foi ao longo de sua carreira como político, período em que só ganhava alguma notoriedade quando cometia uma de suas frequentes grosserias ou fazia o elogio de ditadores, sem ter apresentado um único projeto de lei relevante ou participado ativamente de nenhuma comissão da Câmara.

Enquanto era somente 1 entre 513 deputados, Bolsonaro oferecia risco apenas marginal ao País e servia como modelo, quando muito, para uma minoria insignificante de liberticidas; na condição de presidente, contudo, suas palavras e atos são naturalmente traduzidos como a expressão do governo e servem para orientar os cidadãos, especialmente em momentos de grave crise como esta que o País enfrenta, razão pela qual sua insistência em tratar como “fantasia” a pandemia de covid-19, na contramão do resto do mundo e do bom senso, pode causar imensos danos ao Brasil.

Talvez por esse motivo tenhamos chegado à situação esdrúxula em que as autoridades envolvidas na contenção do vírus em si e dos terríveis efeitos derivados da pandemia não tenham dado pela falta de Bolsonaro em suas reuniões.

Fosse presidente da República de fato, Bolsonaro teria participado do encontro promovido anteontem pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, para discutir com os chefes dos demais Poderes uma ação conjunta contra a pandemia. Compareceram os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. O governo federal foi representado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta – que, por mais competente que seja, não é o presidente da República.

Do mesmo modo, se tivesse a mínima noção de seu papel institucional e da gravidade da situação, Bolsonaro teria participado da videoconferência realizada também anteontem entre os chefes de Estado do Prosul (Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul), destinada a coordenar os esforços continentais no combate à covid-19, com destaque para a sensível questão do trânsito de pessoas. Sua ausência causou perplexidade. Em seu nome, participou o chanceler Ernesto Araújo.

Na nota conjunta, os chefes de Estado do Prosul manifestaram preocupação com a “propagação vertiginosa” do vírus e exortaram a adoção de medidas para fortalecer a cooperação regional, com foco no bem-estar dos cidadãos.

Bolsonaro nunca esteve preocupado com o bem-estar dos cidadãos do País que foi eleito para governar, muito menos com o bem-estar dos cidadãos dos países vizinhos. Sua única preocupação é com seus devaneios. Em sua concepção, a “histeria” com a pandemia “com certeza” é fruto de “um interesse econômico” de alguém ou de algum país que ele não se deu ao trabalho de nomear; ou então resulta de “luta pelo poder” no Brasil, parte do que ele chamou de “golpe”. Enquanto o mundo todo mobiliza energias para combater a pandemia, inclusive com a decretação de quarentena em países inteiros, Bolsonaro continua a dizer que tudo está sendo “superdimensionado” – e chegou ao cúmulo de criticar os governadores de Estado que “tomaram medidas que vão prejudicar muito a nossa economia”, numa referência às providências absolutamente necessárias para limitar a circulação de pessoas e, assim, conter a propagação do vírus.

Na sua ânsia de desafiar as instituições democráticas e a razão, Bolsonaro não se preocupa nem mesmo em prestigiar seu ministro da Saúde, que tem feito até aqui um bom trabalho. Ao contrário, fez questão de menosprezar a recomendação de Mandetta de evitar aglomerações, ao participar de uma manifestação de apoiadores – e ainda levou a tiracolo o diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Antonio Barra Torres, que, como médico, certamente sabia que nem ele nem o presidente deveriam estar ali. Mas Torres parece ser mais bolsonarista que médico, e não seria surpresa se essa fidelidade fosse premiada com o cargo hoje ocupado pelo ministro Mandetta, que, inconveniente, só está ali para trabalhar.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 18.03.20

Vamos vencer a batalha? Depende.

Por Gaudêncio Torquato

Deu a louca no presidente Jair Bolsonaro. A entrevista coletiva para a qual convocou 9 ministros nada mais foi do que uma de suas tentativas para transmitir a ideia de que o país tem piloto, que não está a deriva, e é ele quem manda em matéria de ataque ao Covid-19, e não o ministro da Saúde, Luiz Mandetta.

Foram hilariantes as cenas da máscara, que sempre escapulia das orelhas quando Sua Excelência tentava recolocá-las depois de tirá-las para falar. Contrariou as indicações médicas para sua manipulação. O que revela apenas a intenção de convencer plateias de que é uma pessoa prevenida.

As revelações dos ministros, fora uma ou outra informação do ministro Paulo Guedes, planaram sobre as nuvens das generalidades. O evento, enfim, foi uma peça circense mal ensaiada. Uma pantomima. E não contribuiu para a maré de improvisação que assola pedaços do território, às voltas com carência de equipamentos essenciais para enfrentamento do coronavírus. Merece consideração o esforço do ministro Mandetta para pôr em ordem a estrutura da saúde, mas o porte do país e a agilidade como o vírus se propaga atrapalham a eficácia das ações.

A mensagem desesperadora de uma brasileira chegando no aeroporto de Guarulhos, vinda de Verona, resume a situação: “guarda, acabo de chegar da Itália, país que é o centro da epidemia na Europa e vocês nem medem nossa temperatura”? “Não, senhora, não temos equipamento para fazer isso”. Projeções de consultorias apontam que o Brasil, logo, logo, chegará aos 20 mil contaminados. Meados de abril.

Temos de considerar, para efeito de combate à pandemia, a precária situação das margens sociais, cercadas de carências: saneamento básico, proximidade de barracos e favelas, transportes abarrotados, estabelecimentos hospitalares sem equipamentos e condições de atendimento às demandas, entre outros fatores. Mas a questão de fundo, a permear a boa ou a má aplicação das orientações, é o ethos nacional, a maneira de ser, pensar e agir do brasileiro.

Por nossas plagas grassa a desconfiança, estiola-se a crença nas autoridades, quebram-se a todo o momento os elos da cadeia normativa. “É para fazer isso conforme prescreve a lei?” Mesmo tendo um olho no malfeito, o transgressor não quer saber. Pratica o que acha mais conveniente. E o bom senso não é respeitado? Apenas quando não fere o que a pessoa acha seu direito. Por isso mesmo, o advérbio talvez é mais apreciado do que a certeza impressa na cultura anglo saxã: sim, sim ou não, não. (Experimente perguntar a um brasileiro quantas horas trabalha por semana. Resposta tende a ser: “trabalho mais ou menos 40 horas”).

Em suma, há um mais ou menos induzindo a execução das orientações dadas para combate ao coronavírus. A margem de manobra exibe uma curva entre 30% a 50% ao que deve ser feito de acordo com as recomendações. Ora, se o presidente da República, no mais alto pedestal das autoridades do país, é o primeiro a descumprir regras, por que eu, simples cidadão, devo ser reto como uma régua? Esse argumento circula no sistema cognitivo nacional. (Lembrando: Bolsonaro se referiu ao coronavírus como “histeria”, “exagero da mídia”, “fantasia” e enxergou até uma luta clandestina de grupos que querem desestabilizar seu governo).

Dessa forma, a flexibilidade, nata no ethos nacional, como podemos ler em grandes autores, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, poderá ser um empecilho para o governo Jair Bolsonaro chegar a bom termo. As relações com o Congresso continuam tensas e não há no horizonte sinais de melhora. O entorno presidencial foi acometido da doença da onisciência que baixa nas cortes. Tudo que emana do pensamento do soberano vem adornado com o véu divino. Não pode ser contestado.

Pergunta de pé de página: “mas o Brasil poderá ser eficaz no combate ao coronavírus, mesmo sob o estardalhaço da linguagem bolsonariana?” Resposta: a depender do grau de conscientização da população. Para tanto, devemos nos livrar do enquadramento a que fomos jogados na moldura dos quatro tipos de sociedade no mundo: o primeiro é a sociedade inglesa, onde tudo é permitido, salvo o que for proibido; o segundo é a sociedade alemã, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; o terceiro é a totalitária, ditatorial, onde tudo é proibido, mesmo o que for permitido; e o quarto tipo é a brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que for proibido.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Sem compostura

Por Merval Pereira

Apalhaçado também é Trump, assim como foram Hitler e Mussolini, em comum todos de extrema-direita chegados ao poder em momentos críticos da vida de seus países e do mundo.

Vivendo na bolha virtual das redes sociais, o presidente Bolsonaro espanta-se quando os jornais independentes estampam nas manchetes sua falta de compostura. Diz que jornalista é raça em extinção, mas se incomoda quando identificam nele a contrafação do palhaço contratado.

Numa metalinguagem involuntária, um palhaço orientava o outro sobre que perguntas fazer para os jornalistas, enquanto bananas eram distribuídas. O que em Chacrinha era pura arte brasileira, em Bolsonaro e Carioca é a explicitação de uma visão de mundo apequenada pela atuação permanente no lado escuro da sociedade.

Beppe Grillo, o cômico italiano, youtuber e blogueiro, que criou um partido político de extrema-direita com influência importante na política italiana, é o que há de mais próximo de Bolsonaro na política internacional. Não por ser de extrema-direita, mas por ser palhaço.

Apalhaçado também é Trump, assim como foram Hitler e Mussolini, em comum todos de extrema-direita chegados ao poder em momentos críticos da vida de seus países e do mundo.

Como não podia deixar de ser, Bolsonaro enfrentou reações negativas sobre sua postura em relação ao resultado do PIB. "PIB? O que é PIB? Pergunta para eles (jornalistas) o que é PIB", disse Bolsonaro ao humorista Márvio Lúcio, conhecido como Carioca, caracterizado como o presidente, que chegou ao Palácio da Alvorada num carro oficial da Presidência, ao lado do chefe da Secom, Fabio Wajngarten.

Brincar com o crescimento pífio do PIB brasileiro é brincar com a taxa de desemprego, é menosprezar as conseqüências no cotidiano do cidadão de baixa renda ou sem renda.

Bolsonaro, de tão tosco, deixa pistas sobre suas impropriedades, e até mesmo suas ilegalidades, pelo caminho.

Ao levar a tiracolo um palhaço empregado da rede de televisão Record, depois de elogiar a chegada da franquia CNN Brasil, deixa claro o que considera imprensa que merece respeito.

Millor Fernandes já dizia que jornalismo tem que ser de oposição, ou então é secos e molhados.

Pois humor a favor não é humor, é propaganda. Uma velha lição jornalística foi dada por William Randolph Hearst, magnata da imprensa inspirador do Cidadão Kane de Orson Welles: “Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado. O resto é propaganda”.

Bolsonaro confirma candidamente que não gosta de críticas, repetindo um dos nossos ditadores militares, Costa e Silva, que retrucou a explicação de que as críticas jornalísticas eram “construtivas” também com sinceridade: “Prefiro elogios construtivos”.

O ex-presidente Lula também tinha dificuldade em separar o joio do trigo, e não gostava muito dessa definição de notícia. A ex-presidente Dilma também tinha sua contrafação, o comediante que fazia a Dilma Bolada e recebia, segundo diversas delações, pagamento mensal em “dinheiro não contabilizado” para tornar a presidente em figura simpática popularmente, missão de resto impossível.

Nunca houve, no entanto, presidente algum que tenha levado a cabo com tanto entusiasmo a degradação da função presidencial, querendo adaptar os usos e os costumes republicanos ao seu modo de vida à margem das instituições, utilizando-se delas para tentar destruí-las.

Mau soldado, segundo o ex-presidente Ernesto Geisel, foi acusado de planejar atos terroristas à guisa de reivindicação salarial nos quartéis. Mau político, anda às voltas com denúncias de divisões salariais ilegais em seus escritórios e no de seus filhos, a chamada “rachadinha”. Em 27 anos como deputado federal, só aprovou dois projetos na Câmara.

Presidente eleito por uma maioria de mais de 57 milhões de votos, hoje representa um núcleo extremista da sociedade que incentiva a ir às ruas contra as mesmas instituições que jurou proteger. Não tem noção do que seja decoro, na vida privada e na pública, nem respeita a “liturgia do cargo”.

Em 21/12/2019 foi publicada a primeira coluna com este título, (Sem compostura).

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 06 de Março de 2020.

O pânico se instala

Por Gaudêncio Torquato

A vida é um eterno recomeço. Fosse escolher a lenda que mais se assemelha à sua vida, provavelmente o povo brasileiro colocaria a história do castigo de Sísifo entre as preferidas. Sísifo, que viveu vida solerte e audaciosa, conseguiu livrar-se da morte por duas vezes, sempre blefando. Rei de Corinto, não cumpria a palavra empenhada, até que Tânatos veio buscá-lo em definitivo. Como castigo, os deuses o condenaram impiedosamente a rolar montanha acima um grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desaba montanha abaixo.

A maldição de Sísifo é recomeçar tudo de novo, tarefa que há de durar eternamente.

O povo se sente no estado de eterno recomeço. Padece das previsíveis tragédias provocadas por chuvas, com mortes que sobem no ranking das catástrofes; angustia-se nas filas do INSS; vê o dinheiro sumindo do bolso com a economia em recuo; e, agora, passa a temer com a foice da morte, que aparece aqui e ali escondida na forma de um vírus, de nome coronavírus, que não escolhe vítimas, atacando ricos e pobres. O mundo todo está tomado de pavor.

O pânico que começa a se alastrar deflagra uma cadeia de eventos e situações inesperadas. O corpo social é ferido de todos os lados. Suspensão de aulas, com efeitos sérios sobre o cronograma da vida escolar; diminuição de aglomerados e mobilizações de ruas e ambientes fechados, apesar de grupos com a síndrome do touro (arremetem com a cabeça e pensam com coração) não se incomodarem com isso; isolamento em casa ou em estabelecimentos hospitalares em quarentena, com semanas perdidas de trabalho; paralisação parcial de setores vitais da produção e dos serviços, perdas monumentais para a economia; débâcle das bolsas mundiais e da brasileira, que já perdeu cerca de 1 trilhão de reais com a desvalorização das companhias ali presentes; falta adequada de respostas à pandemia, seja por insuficiência das estruturas de saúde governamentais e privadas, seja por ausência de planejamento para enfrentar a crise.

Ao fundo desse panorama de desolação, enxergam-se paisagens de destruição, pequenas e grandes catástrofes: afundamento de barcos nos rios, quedas de barreiras nas rodovias e desabamento de casas; escândalos envolvendo governantes, políticos e empresários; ameaça de novos impostos; tensões acirradas entre os três Poderes; politicagem que se acentua em ano eleitoral, entre outros.

Os efeitos são catastróficos, pois o sistema de vasos comunicantes acaba contaminando os poros da alma nacional, inviabilizando aquele espírito público, fonte primária do fervor pátrio, que Alexis de Tocqueville, há quase 200 anos, constatou no clássico A Democracia na América: “existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde o homem nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.

Que amor à Pátria pode existir em espíritos tomados pelo pavor, pela violência de tiros a esmo, mortes por balas perdidas, marginalidade comandada de dentro das prisões? Que espírito público pode vingar no seio das massas quando grupos polarizados teimam em querer dividir o país em duas bandas, impulsionando os eixos da discriminação e bradando contra a liberdade de imprensa?

Brasileiros motivados a emigrar para realizar o sonho de uma vida melhor na América do Norte voltam à terra, expulsos, algemados, estampando frustração. Emigrar foi para eles a opção de milhares nesses tempos bicudos. Hoje, retornam à casa sob angustiante interrogação: o que vou fazer?

Onde e quando chegaremos ao andar da estabilidade? Por que a economia não melhora o nosso viver? Um fato: as margens embolsam seu dinheirinho no início de cada mês e, ao final, contam migalhas. Para piorar, com esta crise nas bolsas, viver sob a ilusão de ganhos inflacionários já não mais faz a cabeça do poupador.

A verdade é que o fator econômico dá o tom das nossas vidas. Consequentemente, os serviços sociais ficam com poucos recursos. O processo de reformas nunca chega ao fim. Mudanças na política? Quem sabe? Poderemos ver mais um levante em outubro próximo. Parecido com o que vimos em 2018.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Cabotinismo

Ficará para a história a desfaçatez de um presidente que usa um momento tão delicado da vida nacional para se promover e para inventar inimigos, em especial a imprensa, com indisfarçáveis propósitos autoritários.

Foi um espetáculo constrangedor, protagonizado pelo presidente Jair Bolsonaro, a entrevista coletiva realizada na quarta-feira para detalhar as ações do governo no combate ao coronavírus. Alguns de seus ministros até tentaram esclarecer os jornalistas a respeito dos esforços para lidar com a crise. Já o presidente só tinha uma preocupação: chamar a atenção para si mesmo e capitalizar politicamente o desempenho do governo, que para ele é ótimo. De quebra, usou a ocasião para, mais uma vez, atacar a imprensa.

No auge do cabotinismo, o presidente declarou, triunfante: “Nosso time está ganhando de goleada. Duvido que quem vier me suceder um dia, acho muito difícil, consiga montar uma equipe como eu montei. E tive a coragem de não aceitar pressões de quem quer que seja. Então, se o time está ganhando, vamos fazer justiça, vamos elogiar seu técnico, e seu técnico se chama Jair Bolsonaro”. O mau português é o menor dos problemas de tal declaração, que resume o grau de alheamento do presidente.

Até o momento em que resolveu aparecer com seus ministros para prestar esclarecimentos sobre o que o governo estava fazendo contra a galopante disseminação do coronavírus, Bolsonaro insistia que a crise era fruto da “histeria” alimentada pela imprensa, mesmo quando já estava clara a dimensão terrível da pandemia.

Diante da patente incapacidade de Bolsonaro para lidar com a situação e cansados da fabricação diária de conflitos desde sua posse, os brasileiros começaram a protestar, promovendo panelaços em diversas cidades. Ademais, a popularidade do presidente nas redes sociais, outrora um território que o bolsonarismo dominava, começou a derreter na mesma proporção em que crescia a certeza da inépcia de Bolsonaro.

Certamente foram esses os motivos que levaram o presidente a armar o circo travestido de “entrevista coletiva”, em que não faltaram nem mesmo as máscaras protetoras que só devem ser usadas por quem apresenta os sintomas da covid-19 ou é profissional da saúde, conforme instruções do próprio Ministério da Saúde. Ou seja, não havia nenhuma necessidade de o presidente e os ministros usarem as máscaras, a não ser que o objetivo fosse meramente cenográfico – o que se pôde constatar diante das evidências de que nenhum deles sabia direito como manuseá-las, acentuando o caráter picaresco do evento e, por extensão, do desgoverno de Bolsonaro. São imagens que ficarão para a história.

Também ficará para a história a desfaçatez de um presidente que usa um momento tão delicado da vida nacional para se promover e para inventar inimigos, em especial a imprensa, com indisfarçáveis propósitos autoritários. Na entrevista em que deveria detalhar seus planos contra a pandemia, Bolsonaro gastou energia para tentar jogar a opinião pública contra jornalistas e mentiu mais de uma vez – ao dizer que estava preocupado com o coronavírus desde fevereiro; e ao negar que tenha convocado manifestações contra o Congresso mesmo diante da recomendação do Ministério da Saúde de que não houvesse aglomerações. De quebra, aproveitou o ensejo para convocar seus apoiadores a fazer um panelaço para se contrapor a mais um protesto contra seu governo, ocorrido anteontem.

Tudo isso em meio à devastação social e econômica causada pela pandemia, que deixa aflitos todos os brasileiros, em especial os mais pobres e aqueles que estão no mercado de trabalho informal. A aflição aumenta ainda mais diante da confirmação de que não temos presidente de verdade, e o que temos tudo faz para atrapalhar o próprio governo e, por extensão, o País. Nisso está sendo auxiliado pelo deputado Eduardo Bolsonaro, seu filho mais novo, que, macaqueando o presidente norte-americano, Donald Trump, atribuiu à China a “culpa” pela crise, criando um atrito diplomático gratuito e desnecessário com nosso maior parceiro comercial justamente nesta hora de grande vulnerabilidade.

Cientistas de todo o mundo lutam para encontrar tratamento para a covid-19. No Brasil, constata-se que a incompetência do atual governo é incurável.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 20.03.20

Mulheres

Por Vera Magalhães

Ser jornalista mulher nos dias de hoje traz desafios e mudou minha relação com a data

Sou daquelas que nunca deram bola para o Dia Internacional da Mulher. Cheguei a soar grosseira ao vivo no rádio com o querido Joseval Peixoto, quando ele me parabenizou pela data e eu disse que ela não significava muito para mim.

O machismo segundo as mulheres do poder

Mas minha relação com o feminismo vem mudando ao longo dos anos. Que bom que podemos nos atualizar, rever conceitos e convicções arraigadas ao longo do tempo. Ou então envelhecer seria apenas perder colágeno e massa muscular, ver os cabelos embranquecerem e as rugas aparecerem, e não seria nem um pouco justo ou divertido.

Não sou nem serei nunca uma militante feminista. Não é da minha natureza militar por esta ou aquela causa, nem me encaixar em coletivos ou agremiações. Mas hoje eu compreendo muito melhor que há alguns anos os estigmas, os riscos e as dificuldades que ainda hoje, em pleno século 21, recaem sobre as mulheres pelo simples fato de sermos quem somos, do gênero feminino. E isso não é algo a respeito do que quem tem uma posição pública pode calar.

Tempos anormais têm o efeito de nos tirar da nossa zona de conforto. E se isso traz grandes perturbações e muitos dilemas, também leva a descobertas reconfortantes. Ser uma jornalista cobrindo o governo de um presidente que afronta diariamente a imprensa e, especificamente, as mulheres, ofendendo, difundindo fake news, tentando intimidar repórteres ou silenciar perguntas é um desses desafios.

Passei esta semana repensando minha relação com a efeméride, seu significado. Na última quarta-feira fui convidada pela atriz Regina Duarte para sua posse na Secretaria de Cultura. Viajei a Brasília para isso e, quando disse a amigos e colegas que iria ao Palácio do Planalto, as reações se assemelharam às que eu esperaria ouvir se anunciasse que estava indo me internar num hospital de Wuhan para cobrir sem máscara o surto do novo coronavírus. “Mas você vai ao PALÁCIO? Sozinha?”

Cubro política há 27 anos. Desde 2000 frequento o Palácio do Planalto, durante dez anos em bases diárias, depois eventualmente. Não é razoável que a ida de uma jornalista de política à sede do governo do País cause inquietação. Fui, sozinha, e virei alvo de alguns olhares engraçados, mas, como é o normal, nada de errado ocorreu. Mas, ao fim da cerimônia, encontrei os colegas que voltavam da portaria do Alvorada e tinham acabado de ser submetidos ao escárnio presidencial, com o patético show de Bolsonaro e seu cosplay Carioca a bordo do carro oficial. E isso é, sim, anormal numa democracia.

Jornalistas mulheres que cobrem o dia a dia da residência oficial da Presidência sofrem agressões diárias e estão sendo poupadas pelas chefias da cobertura, pois são hostilizadas por uma claque feérica que se sente autorizada pelo comportamento do mandatário. E isso não é, de forma alguma, menor ou aceitável.

Jornalistas são retratadas como prostitutas em vídeos, memes e na voz do presidente, em pessoa. Isso só ocorre pela sua condição feminina, e o método não é replicado com nossos colegas homens, por mais incômodas que sejam as reportagens que produzam. Isso não é tolerável.

Então, neste Dia Internacional da Mulher, esta coluna é para conversar com o leitor e dizer que, se ele minimiza esses ataques, ele relativiza o próprio valor da democracia e da igualdade de gêneros, tão duramente conquistadas.

Essa dose cavalar e oficial de misoginia, machismo e sexismo não vai calar a voz de milhares de jornalistas mulheres que escolheram a profissão sabendo que iriam amassar barro, quebrar pedra, cobrir guerras e eventualmente se ver diante de situações de risco institucional. É para isso que estamos aqui, hoje e todos os dias.

Parabéns a todas as mulheres. Vamos juntas!

Vera Magalhães é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente pelo O Estado de S.Paulo, edição de 08.03.20

A pequenez da Presidência

Bolsonaro parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo e, assim, não vê alternativa a não ser rebaixar a instituição para nela caber um presidente que precisa conclamar diretamente – e em tom épico – atos públicos para demonstrar a sua força talvez não seja tão forte assim, ou ao menos não o quanto imagina ser.

É fato que Jair Bolsonaro não conta mais com a ampla rede de apoio que alçou um então inexpressivo deputado à Presidência da República em 2018. Ao longo do ano passado e no início deste ano foram realizadas pesquisas de opinião por diferentes institutos que atestam que o presidente não corresponde mais aos anseios de uma expressiva parcela de brasileiros que confiaram nas promessas do então candidato e, principalmente, viram em Jair Bolsonaro um anteparo à mão para interromper o ciclo de desmandos do PT.

A cisão pode ser observada mesmo em grupos antes mais ligados ao presidente. Como revelou o Estado, as lideranças desses grupos não se entendem sobre a pauta a ser levada às ruas no próximo dia 15.

De um lado, estão os bolsonaristas “puros”, ou seja, os que defendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o “mito”. De outro, os lavajatistas, que em 2018 viram em Bolsonaro o candidato certo para levar adiante a pauta do combate à corrupção. Ambos os grupos estiveram juntos na eleição, mas hoje divergem quanto à natureza do apoio que dão ao governo federal. A arena dessa contenda são as redes sociais.

Integrantes da “República de Curitiba”, grupo de apoio à Lava Jato, têm sido acusados por membros do “Movimento Conservador” de “sabotar” a pauta dos atos marcados para o dia 15, incluindo na agenda a defesa de temas que não estão diretamente ligados à defesa incondicional do presidente Jair Bolsonaro, como a prisão após condenação em segunda instância.

Movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL), bastante ativos no impeachment de Dilma Rousseff e nas manifestações que, ao fim e ao cabo, serviram para galvanizar a candidatura de Bolsonaro à Presidência da República, nem sequer participarão dos atos, embora defendam as propostas caras ao ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, e à Lava Jato.

Evidentemente, não se pode antever o resultado das manifestações em prol do presidente Jair Bolsonaro, tampouco o dos atos contrários, marcados por grupos de oposição para o próximo dia 18. Talvez o apoio popular ao presidente não seja mais o mesmo, e por isso ele sinta necessidade de se envolver direta e pessoalmente na convocação da manifestação do dia 15, afrontando a Constituição e o Congresso Nacional.

Outra mostra eloquente do esvaziamento da palavra do presidente da República – e de sua força como chefe do Poder Executivo – foi a manifestação de governadores de ao menos seis Estados indicando que iriam estudar solução jurídica para enviar ao Ceará policiais militares sob seus comandos caso o presidente Jair Bolsonaro não prorrogasse a Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Estado nordestino. Bolsonaro indicou que não o faria durante um de seus pronunciamentos semanais nas redes sociais. Como se sabe, o Ceará está desprotegido desde que um grupo de policiais militares decidiu se amotinar, há cerca de duas semanas. Seria absolutamente temerário não prorrogar a GLO, deixando a população local à mercê dos bandidos, fardados ou não. Confrontado pela reação dos governadores, Jair Bolsonaro decidiu prorrogar a operação, que venceu ontem, por uma semana.

Por seus desatinos, por sua predileção pelas redes sociais, que não raro turvam a visão que um mandatário tem sobre a realidade, por suas injúrias e grosserias, pouco a pouco, Jair Bolsonaro tem apequenado não só sua voz de comando, mas a própria Presidência da República. Parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo que ocupa e, assim, não vê alternativa a não ser rebaixar a própria instituição para nela caber. Não surpreende o protagonismo que o Congresso Nacional passou a ter desde a posse presidencial. Isso explica – mas absolutamente não justifica – a hostilidade com que o governo e seus grupos de apoio tratam o Poder Legislativo.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.02.20

Haja confusão

Por William Waack

É óbvio que um presidente contracenando com humoristas faz parte do arsenal de promoção de imagem “humana” ou “popular” em qualquer lugar – Barack “Late Night Show” Obama que o diga. Mas quando Jair Bolsonaro divide a cena com um humorista fantasiado de presidente do Brasil diante do Alvorada (um edifício oficial) – como ocorreu ontem –, a quem encarrega de responder a perguntas de repórteres, e depois o próprio presidente divulga o vídeo em redes sociais, sugere uma confusão: afinal, quem é o comediante?

Pode-se até acreditar que confusão seja uma arma conscientemente empregada por Bolsonaro para desequilibrar adversários, mas não se pode fugir à constatação de que virou uma de suas características permanentes. Para focar no que é mais recente, é confusa a pauta da manifestação que ele apoia (ou não?) para o dia 15, além da palavra de ordem mais abrangente de prestigiar o presidente.

Ficou confusa também a demanda, do ministro da Economia, Paulo Guedes, para que participantes do ato “defendam reformas”. No caso da tributária, qual a ser defendida? Existe uma do governo? Qual das várias que tramitam no Legislativo? Qual se deveria pedir em primeiro lugar? A PEC emergencial, talvez?

A favor de Bolsonaro deve-se assinalar que não é o único, de propósito ou não, a criar confusões. Na raiz da queda de braço entre Legislativo e Executivo para disputar migalhas do Orçamento (afinal, mais de 90% já estão comprometidos em despesas obrigatórias), está uma confusão política de autoria dos próprios parlamentares.

O fundo da questão não era o Orçamento impositivo, mas a esdrúxula criação do dispositivo que permitiria a um relator dispor de R$ 30 bilhões do Orçamento. Os parlamentares criaram uma perigosa confusão entre “legisladores” e “executores” do Orçamento. Que o governo, confuso, demorou para perceber.

Nos desdobramentos da original criou-se mais uma confusão espetacular. Os que apoiaram a manutenção de vetos presidenciais (que o Planalto havia negociado, depois repudiado, depois renegociado) à “emenda do relator” eram em boa parte senadores conhecidos pela oposição ao governo, mas cientes de uma confusão de interesses dentro do próprio Congresso. Querendo arranjar um jeito de continuar onde estão além do fim do ano, os dois presidentes das casas legislativas tinham topado uma manobra (a tal “emenda do relator”) de políticos aglomerados numa massa em geral amorfa (o tal “Centrão”), ao preço de deslegitimar a própria instituição.

Desembarcar de acordos “meia boca” discutidos em conversas de bastidores não ficou fácil pra ninguém dos dois lados da praça. Mesmo a projetada tramitação “normal” e seguindo ritos daquilo destinado a eliminar confusões – os projetos do governo regulamentando a execução de emendas, parte dos “acordos” – não diminuiu as ansiedades. Raposas felpudas no Congresso alertam para o fato de que na Comissão Mista Orçamentária, que vai examinar os tais projetos, jabuti sobe em árvore. Em outras palavras, não consideram letra morta a esdrúxula “emenda do relator”, pois é o “Centrão” seu motor e a grande força no Congresso.

De novo a favor de Bolsonaro deve-se reconhecer que ele tinha de proteger seu ministro da Economia ao retirar dele poderes para movimentar o Orçamento – que mais fazer, diante da confusão sobre aplicação e alcance do Orçamento impositivo? Note-se, porém, que, ao se evitar uma confusão dessas, torna-se ainda mais evidente uma outra de imensa abrangência na economia: a da insegurança jurídica. Fora a ironia do fato de Guedes ter ingressado no nutrido clube de gestores públicos que preferem nada decidir, pois temem ver seu CPF envolvido numa averiguação de órgãos de controle.

Nesse cenário, talvez só o PIB de 1,1% em 2019 não confunda. É muito pouco.

William Waack é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 05.03.2020

Tereza e Mandetta, dois êxitos

Eles são apenas normais. Cuidam do expediente e evitam brigas públicas

Por Élio Gáspari

Tereza Cristina e Luiz Henrique Mandetta são dois ministros de Jair Bolsonaro que abrem a quitanda às seis da manhã com berinjelas para vender e troco para as freguesas. Ela, desde os seus primeiros dias no Ministério da Agricultura. Ele, na Saúde, administrando o problema do coronavírus. Pode-se discordar de algumas de suas ideias, ou mesmo de todas, mas deve-se reconhecer que fazem seus serviços. Ambos pertencem à escola do centroavante Dario (o preferido do general Emílio Médici para a seleção de 1970). Numa época em que se falava muito em problemática, ele informou: “Eu dou a solucionática”.


A biografia e o comportamento de Tereza Cristina e Mandetta são uma aula de política e de administração.

Começando pela biografia. Ela vem da cepa oligárquica dos Corrêa da Costa. Desde a Regência, eles governaram Mato Grosso 11 vezes. Sabe-se lá quando a primeira Corrêa da Costa conseguiu um diploma universitário, mas Tereza Cristina formou-se em Engenharia Agronômica e tocou sua empresa. Mandetta vem de uma cepa neo-oligárquica, primo de senador, de deputado e do prefeito de Campo Grande. Um irmão meteu-se em negócios com o rei do jogo no estado. Ele formou-se em Medicina, é ortopedista, trabalhou em hospitais e dirigiu a Unimed de seu estado.

Os dois foram deputados. A atividade parlamentar obriga a ouvir e negociar. Um deputado pode saber que tem razão e que está sendo contraditado por um larápio ignorante, mas aprende a se comportar como se estivesse diante de Rui Barbosa. O Congresso educa, mesmo não se podendo dizer que o deputado Bolsonaro tenha aprendido muita coisa. Lá, o vencedor tonitruante é um bobo. (Eduardo Cunha ganhou todas, está em Curitiba.)

Esses dois ministros bem-sucedidos trabalharam em rotas diferentes. Ela, costurando por dentro, acalmou os ânimos com a China e reabriu o mercado americano para a carne brasileira. Carrega o piano sabendo que tem agrotrogloditas por perto e um ministro do Meio Ambiente que repete coisas que não deveria nem ouvir.

Diante do coronavírus, Bolsonaro entrou em campo dizendo que custaria muito caro repatriar os brasileiro que estavam na China. Fez isso depois de se reunir com quatro ministros. Mandetta (que não estava na reunião) coordenou com clareza as ações do seu ministério e valorizou os profissionais dos estados. Além disso, passou mais tempo diante das câmeras falando do coronavírus do que o general da reserva Augusto Heleno e o doutor Paulo Guedes em todas as suas vidas. Não criou atritos e satisfez quem o ouviu.

Tereza Cristina e Mandetta estão fora da linha de exibicionismo e evangelização que enferruja o governo. Com jeito de quem não queria nada, o ministro da Saúde disse que a construção relâmpago de um hospital na China foi um exagero e que lavar as mãos é proteção mais eficaz do que o uso de máscaras.

Ao estilo Guedes-Heleno, poderia ter dito o seguinte:

“O que os chineses fizeram foi uma palhaçada típica dos regimes comunistas (Heleno) e social-democratas (Guedes). Brasileiro tem que aprender a lavar as mãos (ambos).”

Isso para não se falar no que diria Abraham Weintraub: “Petistas estão indo aos hospitais simulando sintomas para provocar pânico na população”. Já o ministro Sergio Moro chegaria para a entrevista coletiva dirigindo uma ambulância.

Pode parecer que Tereza Cristina e Mandetta são excêntricos, mas excêntricos são os tempos em que se vive. Eles são apenas normais. Cuidam do expediente e evitam brigas públicas. Num governo que vive em loucas cavalgadas para nada, isso até espanta.

Élio Gáspari é Jornalista e Escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 04.03.2010

Sem bicho-papão

Por Eliane Cantanhêde

Não há clima, maiorias e lideranças para dar golpes nem articular impeachment

Deveria causar escândalo, mas conseguem no máximo gerar preguiça e cansaço a facilidade e a frequência com que as pessoas fazem duas perguntas perigosas, mas tratadas como corriqueiras, parte da paisagem: Vai ter golpe? Ou vai ter impeachment?

A cada ataque do presidente Jair Bolsonaro, do seu entorno e da sua tropa da internet ao Congresso, a governadores, à mídia, a jornalistas (geralmente mulheres...), a presidentes estrangeiros, a ambientalistas, a ONGs, a pesquisadores cresce a percepção de que há uma escalada autoritária, um teste de limites.

Se fosse apenas questão de estilo, já seria péssimo, mas todos esses ataques vêm num contexto em que Bolsonaro enaltece ditadores sanguinários, seu filho admite a volta do AI-5 (toc toc toc) e já disse, sem a menor cerimônia, que bastaria “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo.

Assim, quando Bolsonaro transforma o Planalto num QG, o general Augusto Heleno xinga os parlamentares e fala em “povo na rua” e o governo deixa de condenar com a devida veemência o motim de PMs no Ceará... a lista começa a ficar grande e preocupante.

Só faltava o presidente da República convocar pelo WhatsApp uma manifestação que tem entre os objetivos protestar contra o Congresso e o Supremo. Divulgados os vídeos pela colega Vera Magalhães, o que fez o presidente? Mentiu! Mentiu ao dizer que se tratava de peças de 2015. Com imagens da facada? Foi em 2018. Com o brasão da Presidência? A posse foi em 2019.

Esse roteiro sugere um teste, um avança e recua, de olho nas reações das Forças Armadas e das redes sociais. E é aí que surge um fato novo depois que o Planalto aumentou o tom contra o Congresso: a maioria militar silenciosa, particularmente do Exército, começou a demonstrar desconforto e a dizer algo assim: “Aí, não!”

Assim, mesmo que houvesse algum projeto ou sonho golpista, fica-se sabendo que não há, em absoluto, unanimidade na área militar. Se há algo próximo a unanimidade é em sentido contrário: ninguém quer ouvir falar em golpes. Marinha e Aeronáutica estavam e continuam mudas e o Exército começa a perceber que tem muito mais a perder do que a ganhar, inclusive historicamente, ao se confundir com arroubos autoritários tão fora de tempo e de propósito.

Mais do que isso, porém, nunca é demais repetir o que está registrado em várias oportunidades aqui neste mesmo espaço: o Brasil não é uma Venezuela. Tem instituições, mídia, opinião pública, enorme capacidade de reação, ou, antes, de dissuasão de projetos tresloucados. Há uma rede de resistência.

Quanto a impeachment, não custa lembrar que isso não é como aspirina, que se usa a qualquer hora, para qualquer eventualidade. O Brasil passou por dois afastamentos de presidentes no curto espaço de tempo desde a redemocratização e não se ouve absolutamente ninguém com um mínimo de liderança e de responsabilidade admitindo e muito menos discutindo essa hipótese.

Aliás, o presidente chamou atenção na live de quinta-feira também ao, do nada, em bom e alto som, anunciar: “Não vou renunciar ao meu mandato!”. Quem disse que iria? Ninguém. Trata-se de uma frase que oscila entre o político e o psicológico, expondo uma característica de Bolsonaro: a mania de perseguição. Ao ver inimigos por toda parte, ele se antecipa e parte para o ataque antes de saber se seria atacado.

E fica falando sozinho. Nem o seu maior adversário aventa a hipótese de renúncia, ou de impeachment, assim como boa parte dos seus apoiadores militares não quer nem ouvir falar em golpe. A saída é outra, é o presidente se comportar como... presidente. E focar no essencial, a economia, a estabilidade, o País.

Eliane Cantanhêde é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 03 de março de 03.03.20.

Com os nervos à flor da pele

Os cidadãos não suportam mais um governante que tudo faz para politizar a epidemia, agravando uma situação que já é crítica.

Num gesto espontâneo, cidadãos foram à varanda de seus apartamentos na noite de terça-feira em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília e outras cidades para protestar contra o presidente Jair Bolsonaro.

São brasileiros cansados de um presidente cujo único talento parece ser a capacidade de ampliar as crises que deveria administrar e conter. O valor simbólico dessa manifestação, independentemente de sua dimensão, é muito maior do que o ato golpista de domingo passado, em que grupos bolsonaristas, insuflados pelo presidente, foram às ruas em algumas cidades para pedir o fechamento do Congresso e a prisão de políticos e de ministros do Supremo Tribunal Federal.

No domingo, Bolsonaro festejou o que chamou de manifestação “espontânea” de seus apoiadores, e disse que lá estava o “povo”. Esse devaneio populista começou a ser desfeito na noite de anteontem, quando o presidente experimentou a exasperação sincera de quem está cansado de suas patranhas e resolveu demonstrar publicamente essa insatisfação.

Além disso, Bolsonaro vem perdendo popularidade de forma acelerada nas redes sociais, segundo a percepção do próprio entorno do presidente, como informou o Estado. Como se sabe, a única coisa que Bolsonaro leva a sério são os cliques e as interações do mundo virtual, que ele toma por real. Ante a perspectiva de perder o controle no ambiente em que até agora navegava soberano – por ter menosprezado uma epidemia letal e que está causando imensos transtornos e incertezas para todos os brasileiros –, Bolsonaro tentou parecer mais cordato. “Superar esse desafio depende de cada um de nós”, escreveu no Twitter, pregando “serenidade” e pedindo que “população e governo, junto com os demais Poderes”, somem “esforços necessários para proteger nosso povo”. Vindo de quem até horas antes se dizia vítima de um “golpe”, denunciava a “disputa de poder” por parte “desses caras”, em referência aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, e criticava as medidas sensatas dos governadores para conter a pandemia, foi um avanço. Resta saber até onde irá a “moderação” de Bolsonaro.

Na mesma frase em que pregava a união de todos para enfrentar a crise, o presidente disse que “o caos só interessa aos que querem o pior para o Brasil”. Ou seja, mesmo quando precisa demonstrar que governa para todos e no interesse coletivo, continua a valer-se de suas fantasias conspirativas para propagar sua mensagem divisionista e de ódio, com a qual construiu sua carreira política e chegou à Presidência. O lobo pode até perder o pelo, mas jamais perderá o vício.

Se estivesse realmente empenhado em se emendar e agir como presidente da República, e não como chefe de facção, Bolsonaro teria condenado categoricamente a convocação, pelas redes bolsonaristas, de uma nova manifestação governista, marcada para 31 de março, aniversário do golpe de 1964, explicitamente destinada a defender um novo golpe. Até agora não o fez. Pior: pelo Twitter, informou que ontem haveria um “panelaço” a favor de seu governo, como resposta aos protestos daqueles que, presos em suas casas por causa da quarentena imposta pela pandemia e com os nervos à flor da pele, não suportam mais um governante que tudo faz para politizar a epidemia, agravando uma situação que já é crítica.

Assim, de nada vale o mise-en-scène patético de um presidente que agora aparece com seus ministros, todos com máscaras, para tentar mostrar serviço, pois a presença de Bolsonaro já foi dispensada por aqueles que estão à frente dos esforços contra a pandemia, inclusive no próprio governo. Hoje, está claro que Bolsonaro não é um presidente, mas um estorvo. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem feito até aqui um bom trabalho, corre o risco de perder o emprego para o diretor da Anvisa, Antonio Barra Torres, um médico bolsonarista que, para agradar ao chefe, não viu nenhum risco de contaminação da covid-19 numa manifestação governista da qual participou o presidente.

Até aqui, Bolsonaro viveu de inventar crises. Na primeira crise real de seu governo, mostrou do que é feito.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 19.03.20

Como evitar o bolsovírus

Por Ruth de Aquino

Não seja cobaia do ódio

Ao compartilhar as mensagens do presidente, pense com autonomia e tecle com moderação Cuidado. Há no ar e nas redes o perigo de uma contaminação crescente de ignorância, alienação, truculência e cinismo. O foco do bolsovírus (BoV) é o Palácio do Planalto – e também o da Alvorada. Há suspeita de hospedeiros intermediários em condomínio da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O BoV é uma ampla família de vírus à qual pertencem as cepas que causaram nos EUA o trumpvírus e o olavírus.

Como se prevenir? Evite abrir mensagem de cunho pessoal do WhatsApp do presidente da República, de seu guru Olavo de Carvalho ou dos Irmãos Metralha. Se abrir, não compartilhe. Se compartilhar, pode estar contribuindo para um estado de emergência que escapará a seu controle, como cidadão íntegro, racional, democrata e pacífico. Evite também o Instagram desses propagadores. Eles estão aqui de passagem. Você quer sobreviver, não?

Quais são os principais sintomas? O entorpecimento da razão. O ódio pulsando na veia e no riso. O descontrole. Delírios persecutórios contra moinhos de vento. O autoengano. Achar que capitão manda em general. Imaginar que a bandeira brasileira pertence a um político, ou representa uma ideologia. Confundir o povo com a claque. Espalhar fakenews e infâmias. Manipular a fé. Apelar compulsivamente para palavrões, piadas sexuais e gestos indecorosos.

Atenção: a pessoa infectada começa a fazer sinais de armas com as mãos, dar bananas e agir de maneira egocêntrica e hostil. Compara os juízes do Supremo a hienas. Investe contra a Constituição. Insulta os presidentes da Câmara e do Senado. Confunde ai, ai, ai com AI-5.

Alguns casos foram erradicados no Brasil. Houve um secretário que se fantasiou de Goebbels e foi defenestrado com pesar por quem prefere o chapéu de duas pontas de Napoleão. E ainda não era carnaval. Deve estar numa quarentena. Outros casos detectados, que trocam ss por c e fingem ser Gene Kelly, em breve dançarão e serão confinados em universidades públicas. Contraprova do Enem é que não falta. Está na mira da OMS quem considera a Terra plana.

A corrida por máscaras não se justifica, dizem especialistas. Li no “Globo”. Na verdade, muitos disseminadores do bolsovírus já tiraram a máscara. Outros estão por aí disfarçados. Não aperte a mão deles! Mas converse! Ainda não há motivo para a população entrar em pânico, dizem os médicos. Não tenho mais tanta certeza disso.

Não conhecemos bem o vírus para saber se vai sofrer alguma mutação e evoluir para algo mais grave. O mais grave a gente conhece de outros carnavais. A ditadura, a desordem, as torturas, a perda da liberdade, a bancarrota da civilidade. Ainda não há vacina contra o bolsovírus, achávamos que o Brasil estava vacinado. O surto faz eclodir um mal insidioso: o medo.

Quando um caso perdido que mora em Virginia, EUA, roubou há dias uma canção dos Titãs, “O pulso”, para ilustrar uma montagem de alto teor de infecção, com ofensas indizíveis a personagens da República, os músicos protestaram e acionaram o doente para retirar o vídeo do ar. A advogada dos Titãs me pediu que eu não publicasse nada. Ela queria evitar “a reação virulenta dos bolsonaristas”. Não pude crer que uma banda símbolo de rebeldia tivesse contraído o medo. Mas o titã Tony Bellotto desautorizou o pedido. Autocensura, não.

Enquanto, no coronavírus, se recomenda lavar as mãos com água e sabão, no bolsovírus é essencial lavar a boca com água e sabão, pensar com autonomia e teclar com moderação. A mão deve ser colocada na consciência. Em nome do Brasil.

Ruth de Aquino é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 27.02.20

Qual é a sua laia?

Por Vera Magalhães

Debate democrático saudável pressupõe que as pessoas saiam dos seus guetos

"Vera Magalhães, eu não sou da sua laia." Esta foi, provavelmente, a única verdade proferida pelo presidente Jair Bolsonaro em sua última live, na quinta-feira, em que dedicou longos minutos a me atacar pessoalmente e a mentir de forma nonsense a respeito da informação que divulguei dois dias antes de que ele compartilhou dois vídeos, durante o carnaval, convocando para as manifestações do dia 15 de março a favor de seu governo e contra o Congresso.

A refutação passo a passo do besteirol de Bolsonaro a respeito dos vídeos eu já fiz no BR Político, neste jornal e nas redes sociais, e outros veículos jornalísticos a divulgaram com destaque, o que mostra a força da imprensa diante das tentativas de enfraquecê-la. Então, esta coluna não é sobre isso.

Mas a palavra “laia”, proferida com o costumeiro ódio pelo capitão, ressoa na minha cabeça desde então. Pela definição do dicionário, laia significa “categoria de seres ou coisas agrupados segundo determinada característica; classe, espécie, gênero, tipo”.

A conotação que Bolsonaro quis dar ao dirigi-la a mim foi pejorativa. Mas ela me atingiu nos brios, me remeteu a origem, a princípios. Afinal, qual é a minha laia? A minha é a laia dos jornalistas, a que pertenço há 27 anos e contando. É uma laia que apanha de todo lado, mas não verga. É uma laia que busca, sim, o furo, já que a notícia e a informação são a fonte que vai adubar o solo da história e fornecer a matéria-prima para que a sociedade mude, evolua.

E você, leitor, qual a sua laia? Nesses dias de debate ainda mais acalorado que me vi impelida a travar na ágora moderna das redes sociais, houve muita solidariedade e empatia, mas também veio à tona, como um refluxo, a crítica segundo a qual eu, outros jornalistas e a imprensa seríamos “culpados” por termos “normalizado” Bolsonaro e feito “falso paralelismo” entre ele e o PT, e, por isso, “mereceríamos” os ataques que sofremos.

O papel da imprensa é expor os fatos a respeito de qualquer governo, de qualquer partido. Os arroubos autoritários de Bolsonaro nunca foram ignorados nem “normalizados” (urge achar palavra melhor) pela imprensa. Não houve paralelismo entre esse e os demais inúmeros problemas de Bolsonaro e os reais e diversos problemas do PT.

Os vícios do PT no poder foram dilapidar a economia, pilhar os cofres públicos, aparelhar todos os espaços com amigos, traçar um projeto de poder e colocar em ação uma máquina para perpetuar esse projeto por meio da corrupção.

Os desvarios de Bolsonaro não apagam nada disso. E lembrar esses fatos não é passar pano ou fazer falso paralelismo, mas entender parte do fenômeno histórico que nos trouxe até aqui.

A imprensa teve erros? Teve, sempre tem. Ter subestimado a força de Bolsonaro, não ter percebido que ele estava inserido no movimento global de fortalecimento da far-right reacionária e falsamente conservadora e não ter mapeado suas conexões no empresariado, no meio evangélico e no submundo das redes sociais, vitais para sua consolidação.

Mas não houve “normalização”. Isso é viagem de ácido de uma esquerda que está presa num discurso antigo. O lado “anormal” de Bolsonaro foi justamente o mais destacado em debates, entrevistas e perfis, e as pessoas votaram nele POR ISSO, e não APESAR DISSO.

“Ah, então por que vocês se espantam com os absurdos de agora, se era uma escolha muito difícil?”, manda o arrogante ironicão no Twitter. Não é espanto: é cobrar de quem ocupa a Presidência que se institucionalize, sob pena de ser enquadrado pelo sistema de freios e contrapesos da Constituição.

É preciso que este seja o foco do debate público, sob pena de que ele fique, de fato, preso à armadilha em que os guetos querem confiná-lo.

Vera Magalhães, Jornalista, é comentarista de Política em O Estado de São Paulo e apresentadora do Roda Viva (TV Cultura). Este artigo foi publicado originalmente no Estado de São Paulo, edição de 01.02.20

Retroescavadeira e bala

Por Carlos Andreazza

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política

Retroescavadeira e bala. Essa — a do aterramento, do excludente de ilicitude moral — é a linguagem brasileira corrente. O próprio espírito do tempo. Retroescavadeira e bala. Remover entulho — para a nova ocupação de espaços de poder outrora políticos — e atirar, a imposição de um modo de comunicar instigador de violências e que não se acanha ante a possibilidade de matar.

É onde estamos: a truculência que se pretende manifestação política; que despertou — que anima — a alma ressentida dos que dão corpo à febre reacionária; que faz sentido, vende transgressão, a uma juventude desesperançada em busca de formas para existir.

Retroescavadeira e bala. As forças de destruição que materializam a percepção da democracia como empecilho. O próprio espírito do tempo. O Zeitgeist que autoriza — não pense que sem encadeamento, leitor — jornalista a dar na cara de entrevistado; que legitima parlamentar a se valer de calúnia para disseminar a misoginia característica do reacionarismo que capturou o imaginário nacional; que endossa o investimento do presidente da República contra a imprensa, difamando uma mulher, como se o ofício fosse prostituição; que impulsiona o chefe do Executivo federal a desafiar governadores; que estimula um general do Exército — chefe da inteligência institucional do governo — a apostar na instrumentalização do povo nas ruas para emparedar o Poder Legislativo; que fundamenta o sentimento da elite financeira que visita a China e volta encantada com aquele tipo de sistema em que tudo se ergue com rapidez, no que vai contida, embora não declarada, a ideia de que a vida seria mais fácil sem essas chatices de democracia representativa e de estado de direito.

Retroescavadeira existe — Cid Gomes sabe — para limpar terreno; esvaziá-lo do indesejado. Avaliemos, pois, a mensagem difundida por seu uso contra pessoas. Avaliemos a mensagem disseminada por seu uso — nas mãos de uma autoridade, contra cidadãos — como ferramenta de ação política. Ou alguém duvidará de que o recurso empregado pelo senador — ex-governador — contra os policiais cearenses fora pensado como um gesto político para efeito midiático? Decerto calculou que sairia do teatro como um corajoso herói em nome do povo. Esse é o lugar autoritário em que a razão se acoelhou: o do trator como expressão do discurso político.

Veja, leitor, a gramática da negociação que prepondera: um senador da República que trata policiais grevistas tentando lhes passar o trator por cima; uma polícia amotinada que tapa o rosto e reage metendo bala num senador da República.

Não é pouca a ousadia desses agentes da segurança pública, os primeiros a violar a fronteira — a da prudência — que separa Estado e bandidagem. A Constituição veda qualquer tipo de movimento grevista por policiais — o Supremo foi expresso a esse respeito em decisão de 2017. Aqueles policiais, no entanto, não apenas se amotinaram em greve; mas foram às ruas para promover o terror — determinar toque de recolher, mandar fechar o comércio, como fazem os traficantes — e ameaçar a população que juraram proteger. Mais precisamente: usaram a vida da população para chantagear governante.

Para que não reste dúvida: um sujeito, armado pelo Estado como prerrogativa de sua função profissional, que atira — que usa sua condição de vantagem — não em defesa da sociedade, sob o que regra a lei, mas em benefício de interesses corporativos, não é policial. É miliciano.

Não tardaria, entretanto, para que os teóricos da revolução reacionária começassem a ensaiar — aliás, assim como quando da greve criminosa dos caminhoneiros — o texto de que o terrorismo dessa milícia seria manifestação popular de liberdade... A quem interessa incentivar — dar lastro intelectual — a levantes policiais Brasil adentro? A quem interessaria — senão a um projeto autocrata — o enfraquecimento dos governos estaduais?

Atos como os havidos no Ceará — conjunto de erros alarmante — ilustram o conceito de que, testada com rara frequência, esticada sob intensidade sem precedentes em tempo democrático, a corda da democracia, quando brevemente afrouxada, nunca volta ao lugar anterior. As imagens de um senador que pretendeu tratorar indivíduos, os quais poderia matar, e que recebe como resposta tiros disparados a esmo, em meio à multidão, por policiais em atitude de milícia, corroboram isso; são a expressão de que os envolvidos — todos os enredados na barbárie de Sobral — já se moviam num terreno avançando da regência autoritária, e sem necessariamente perceber.

A ideia de que se deva tomar partido no que é — de qualquer possível lado — barbárie absoluta representa a falência do equilíbrio político entre nós. A brutalidade tribalista é a régua identitária mais atraente que há.

Carlos Andreazza é editor de livros. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 25.02.20

A caminho da folia

Por Vera Magalhães


Pensei que a coluna mais grave que escreveria para jogar água no chope do carnaval do leitor seria a do último domingo, quando apontei as muitas semelhanças entre os últimos passos do bolsonarismo e o chavismo venezuelano.


A militarização do Palácio do Planalto e o incentivo declarado do presidente Jair Bolsonaro e de sua família a levantes inconstitucionais, com características de motim, das polícias militares eram as evidências mais recentes.


Mas o presidente da República resolveu fornecer mais lenha para a fogueira em que ele e seu governo queimam a institucionalidade um pouco a cada dia.


Usando o WhatsApp de seu celular pessoal, com o brasão da República como avatar, o presidente aproveitou a folga carnavalesca deste ano não para compartilhar vídeo de golden shower, mas para algo mais grave: compartilhar um vídeo em que é apresentado como candidato a mártir, que teria arriscado a vida e quase morrido para salvar o povo, e ao qual o mesmo povo deveria uma recompensa: ir às ruas no próximo dia 15 de março se manifestar contra o Congresso.


Obtive a postagem presidencial e publiquei o print e a íntegra do vídeo de inspiração golpista, que usa o Hino Nacional como trilha sonora, no BR Político (produção exclusiva de O Estado de São Paulo para assinantes) nesta terça-feira.


No texto que envia juntamente com o vídeo, o presidente escreve:


“- 15 de março.


Gen Heleno/Cap Bolsonaro.


O Brasil é nosso,


Não dos políticos de sempre.”


Nas legendas intercaladas a imagens entre vitimizadoras e triunfalistas de Bolsonaro, aparecem frases como “Ele foi chamado a lutar por nós. Ele comprou a briga por nós. Ele desafiou os poderosos por nós. Ele quase morreu por nós. Ele está enfrentando a esquerda corrupta e sanguinária por nós”.


Bolsonaro seria a “única esperança” de dias melhores e, por isso, as pessoas precisariam ir às ruas mostrar que apoia Bolsonaro e rejeita os “inimigos” do Brasil.


O ato do dia 15 foi convocado imediatamente após o vazamento, no sistema de som do próprio Planalto, de uma conversa em que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chama os congressistas de “chantagistas”, manda um palavrão e sugere que as pessoas deveriam ir às ruas se manifestar contra o Congresso.


Nas convocações que circulam pelas redes sociais, Heleno, o vice-presidente Hamilton Mourão e outros generais aparecem fardados e textos dizem que eles aguardam “ordens do povo”. E exortam: “Fora Maia e Alcolumbre”.


Responsável pela área de inteligência do governo, é no mínimo irônico que Heleno tenha se “descuidado” sabendo que o evento do qual participava estava sendo transmitido ao vivo.


A rapidez e coordenação da convocação para o ato, bem como a produção bastante cuidadosa do vídeo, mostram uma correia de transmissão que chega ao presidente da República.


Ele faz a convocação em seu nome e de Heleno, mas faz questão de usar suas patentes militares, e não seus cargos civis. O presidente da República se apresenta como “capitão” e estende o convite ao seu ministro mais próximo, chamado de “general”.


É de uma gravidade inaudita até para os padrões bolsolavistas o que aconteceu nesse carnaval. Trata-se de o presidente, sem intermediários das milícias virtuais a soldo, conclamando as pessoas a participarem de um ato contra o Congresso Nacional.


Bolsonaro instiga a rua contra os demais Poderes, algo inadmissível numa democracia e em plena vigência da Constituição.


Não é a primeira vez que escrevo isso, mas insisto: já passou da hora de as instituições colocarem freios não só na língua e no zap do presidente, mas em suas ações. Sob pena de que, quando decidirem fazê-lo, tenham perdido essas condições legais e políticas.


Vera Magalhães, Jornalista, é comentarista de política e apresentadora do Roda Viva (TV Cultura). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.02.20

Moralidade e ética

Por Ruy Altefender

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu no artigo 37 que a administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

O Estado, como pessoa, é uma ficção. Não faria sentido falar em Estado ético ou em Estado aético. Éticos ou aéticos são os seres humanos que integram o Estado.

A administração pública brasileira, como vimos, submete-se ao princípio da moralidade. O Estado brasileiro tem a obrigação de se conduzir moralmente por expressa determinação constitucional. Não poderá transigir com o princípio da moralidade, seja no desempenho de suas funções primárias e diretas, seja na área de atuação que assumiu para corresponder à vocação do Estado de bem-estar, seja nas atribuições ordenatórias e fiscalizatórias da atividade privada. Em tudo isso, como adverte José Renato Nalini, o poder público pode vir a ser responsabilizado se não estiver gerindo a coisa comum de maneira eticamente irrepreensível (cf. José Renato Nalini, Ética Geral e Profissional, pág. 374)

Hely Lopes Meirelles, no seu clássico livro Direito Administrativo Brasileiro, lembra que a moralidade administrativa é pressuposto da validade de todo o ato da administração pública. “O agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.”

Foi o que inspirou o constituinte de 1988. Fazer o administrador refletir sobre os aspectos éticos de sua atuação. Perquirir se a alternativa adotada está conforme com os ditames da moral, que, por ser administrativa, não precisa ser ontologicamente diversa da moral coletiva. Ao contrário, o administrador há de refletir os valores de sua época e não poderá contrariá-los.

O chamado salto qualitativo ético só virá quando toda a sociedade estiver desperta para a fiscalização do trabalho do governo. Este, como ressalta Nalini, só se legitima se estiver a serviço do povo. O mandato do governante foi outorgado pelo povo, titular da soberania.

Ives Gandra da Silva Martins, em mais um de seus notáveis artigos, lembra que cada brasileiro deve ter consciência de que o governante está a seu serviço, e não ele a serviço do governante, e de que é bom governante aquele que tem como meta exclusiva servir ao cidadão (Folha de S.Paulo, 26/1/1997, pág. 1/3). O Estado precisa encontrar fórmulas para se relacionar com o povo, retomar o caminho da ética.

Os governantes têm o dever de zelar pela observância da ética pública, enquanto os cidadãos têm o direito de exigir e reclamar dos governantes os deveres da ética privada (conteúdos e condutas).

Em 1999 foi criada no Brasil a Comissão de Ética Pública, vinculada ao presidente da República, competindo-lhe dentre outras funções, elaborar o código de conduta das autoridades no âmbito do Poder Executivo federal.

O código trata de um conjunto de normas às quais se sujeitam as pessoas que são nomeadas pelo presidente da República para ocuparem qualquer dos cargos nele previstos, sendo certo que a transgressão dessas normas não implicará, necessariamente, violação de lei, mas, principalmente, descumprimento de um compromisso moral e dos padrões qualitativos estabelecidos para a conduta da alta administração. Em consequência, a punição prevista é de caráter político: advertência e “censura ética”. Além disso, é prevista a sugestão de exoneração, dependendo da gravidade da transgressão.

Como adverte o ex-presidente da Comissão de Ética Pública Américo Lourenço Masset Lacombe, “tendo a Constituição juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana. A função de uma comissão de ética pública vai além da obrigação de alertar o Poder Executivo de eventuais desvios de seus auxiliares. Tem ainda uma função de afastar o ceticismo e desconfiança da sociedade com os poderes públicos. Para tanto, deve lutar para que a postura ética impere sobre toda a administração. Nada pode ser mais nocivo ao desenvolvimento de uma sociedade do que a falta de confiança nos poderes constituídos, do que a descrença na sua própria capacidade de superar as dificuldades, do que a falta de amor próprio, de orgulho do seu passado e de crença no futuro”.

Rui Altefender é Presidente do Conselho Superior de Estudos Avançados da FIESP e membro do Conselho de Ética da Presidência da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 23.02.20

A retro escavadeira

Por Eliane Cantanhede

Policiais militares, armados e encapuzados, fazem greve ilegal, aquartelam-se e usam mulheres e filhos como escudo. Um senador, exibindo-se pateticamente heroico, aboleta-se numa retroescavadeira, ameaça lançá-la contra o quartel, os policiais e suas famílias e leva dois tiros. Tiros para matar. Típica história em que não há mocinhos e ninguém tem razão.

Todo o enredo ganha ainda mais dramaticidade pelo momento e pela simbologia: policial versus político, justamente no mesmo dia em que emergiu a fala do general Augusto Heleno (GSI) atacando os parlamentares como “chantagistas” e dedicando-lhes um sonoro palavrão.

Como tudo, o conflito no Ceará foi para as redes sociais como Fla-Flu, com a torcida vermelha aplaudindo o senador Cid Gomes (PDT-CE), que é oposição ao governo federal e situação no seu Estado e apresentou-se ensandecido, autoritário e ridículo, dando cinco minutos para os policiais, ou jogaria a escavadeira em cima de todos.

Alguém entre os policiais grita uma pergunta pertinente: “Qual a sua autoridade para exigir isso?” E outro alguém dispara uma, duas vezes, mirando o coração. Não foi para dar susto.

Já para a torcida verde, ou verde-oliva, o único culpado, o único alvo, é o senador cearense, irmão do também destemperado Ciro Gomes (PDT), um dos adversários do presidente Jair Bolsonaro em 2018. Quem atirou agiu em “legítima defesa, para salvar vidas”. Um tiro perfurou o pulmão e o outro, a clavícula, mas o time acha pouco. “Tinha de ser no meio da testa”, diz um torcedor.

De cabeça fria, olhando a Constituição, ninguém ali merece torcida nem perdão. Não existe greve de categoria armada. É motim, não greve; questão militar, não sindical. Como, aliás, destacaram as Forças Armadas quando o então presidente Lula insistia em tratar a rebelião dos sargentos controladores de voo como greve de sindicalistas, não como motim que era. Só quando a coisa fugiu totalmente ao controle Lula autorizou e o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, fez o que tinha de ser feito: enquadrou todos eles e botou ordem na bagunça.

Do outro lado, o que dizer de um senador que não tem cargo executivo nem autoridade para gerenciar greve, muito menos motim, e assume uma retroescavadeira para jogar em cima de pessoas, ou melhor, famílias? Seria cômico, não fosse trágico. Seria surpreendente, não fossem os irmãos Gomes, os valentões de Sobral.

Toda essa história vem num contexto de radicalização política, com o presidente da República jogando sua retroescavadeira verbal contra tudo e todos, enaltecendo armas e empoderando as polícias – que, aliás, conquistaram assentos no Congresso e acabam de receber um aumento de 41% em Minas Gerais, um Estado quebrado.

Aguarda-se agora o efeito, tanto do aumento em Minas quanto dos tiros no Ceará, em outras unidades da Federação, como Paraíba, já em crise, e o Espírito Santo, que já passou por isso em 2017, quando PMs jogaram suas mulheres no teatro de operações para exigir aumentos e vantagens. Sem segurança, o Estado viveu o caos, com centenas de mortes.

A expectativa, porém, é de que se repita no Ceará o que ocorre em geral nesses casos, inclusive no Espírito Santo: julga-se daqui, julga-se dali e nunca dá em nada, com as assembleias também dando cobertura aos crimes e aos criminosos.

Em resumo: policiais cometeram crime, um insano ameaçou jogar uma retroescavadeira sobre pessoas, um senador foi atingido por dois tiros. E o que vai acontecer? Nada. A boa notícia é que o governo Bolsonaro e o governo do PT do Ceará acertaram o uso da GLO, mas tem risco: o confronto do Exército e Força Nacional com PMs amotinados, inconsequentes e perigosos.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 21.02.20

A Desumanização

Por Elena Landau

A Desumanização é o título de um lindo livro de Valter Hugo Mãe. Em tempos de discussão sobre gravidez precoce, sua leitura é imperdível. Mostra numa escrita quase poética as consequências cruéis da falta de acolhimento familiar nesses casos. Roubei para usar aqui no seu sentido literal. Cai como uma luva para ilustrar a falta de humanidade deste governo, intolerante aos diferentes dele.

Presidente, filhos, ministros e colaboradores perderam a censura e com ela a cortesia. Pode ser bom que revelem o que realmente pensam, sem disfarces. Mas choca porque estão no comando de políticas públicas para todos os brasileiros, e não apenas seus eleitores. Políticas que deveriam ser desenhadas para integrar, unir, gerar oportunidades a quem não tem.

Essa é a essência do liberalismo. Mas este governo teima em separar, desunir e antagonizar.

Cada vez parecem se sentir mais à vontade para suas impropriedades, e vão subindo o tom. Não é só o conteúdo que ofende, mas a forma, que amplifica a ofensa. Gestos impróprios na porta do Palácio, # com palavrões, xingamentos a seguidores nas redes sociais. A agressividade dos seus apoiadores é estimulada pelo exemplo de cima, transformando a internet em uma praça de guerra.

Não deveria ser surpresa. Afinal, Bolsonaro começou sua campanha na votação do impeachment homenageando Ustra. Nada mais desumano e covarde que a tortura.

Todo dia é um 7 a 1. Compartilham ataque covarde e sexista a uma jornalista. Outra foi mandada de volta para o Japão. Debocham das aparências das mulheres. Aplaudem vídeos nos quais o homossexualismo é apresentado como origem de perversidades e dizem que portadores de HIV pesam no orçamento. Se divertem quando jornalista do “círculo do poder” faz chacota de brasileiro em palestra. O Goebbels tupiniquim só foi demitido, a contragosto do chefe, porque se sentiu tão à vontade que saiu do armário. Na Fundação Palmares está alguém que acha que a escravidão foi uma bênção para os negros. Um ministro, que nos remete ao personagem Justo Veríssimo, acha que pobre não sabe poupar, destrói o meio ambiente e não pode ir a Miami. Vivem numa bolha. E partilham das mesmas ideias.

Tudo isso é condenável, não porque atrapalha andamento das reformas ou nos faz passar vergonha em fóruns internacionais. A falta de empatia, combinada com uma tendência autoritária, é perigosa.

Os exemplos desses despautérios são muitos. Vou me concentrar na questão da Aids, porque revela não só preconceito, mas total falta de preparo para analisar e implementar políticas públicas

O programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids é reconhecido mundialmente pela sua excelência. Iniciado em meados dos anos 90, permitiu reverter as projeções mais pessimistas do início daquela década.

O plano se baseia em distribuição gratuita de medicamentos e camisinha; testes gratuitos; profilaxia para a pré-exposição de pessoas que se relacionam com infectados. Há muito preconceito nessa área. A testagem é importante para reduzir o risco de transmissão e fundamental para melhorar a qualidade e expectativa de vida do portador. Exames para diabetes e colesterol são feitos com naturalidade, já HIV não faz parte da rotina, mas deveria. A prevenção é a chave.

Quando o coquetel foi descoberto, em 1995, o Brasil e a África do Sul tinham a mesma porcentagem de sua população infectada pelo HIV. Os dois países seguiram estratégias diferentes. Hoje são 10% de sul-africanos, maiores de 15 anos, portadores. Porcentual que aplicado ao Brasil equivaleria a 17 milhões, em lugar dos 800 mil brasileiros infectados hoje. É resultado da distribuição gratuita de medicamentos, que reduzem a carga viral e a transmissão. São milhões de vidas poupadas.

A distribuição de medicamentos custa aos cofres públicos apenas R$ 1,8 bilhão ao ano. Seria importante registrar também as despesas evitadas para tratamento da doença no SUS. A quebra de patentes e o uso de genéricos permitiu a redução sistemática do custo dos medicamentos antirretrovirais, que significa hoje menos de 0,06% dos gastos públicos anuais.

Apesar disso, o presidente Bolsonaro declarou em entrevista que “pessoa com HIV é despesa para todo o Brasil”. Faz dobradinha com o ataque ao jornalista com “cara de homossexual terrível”.

Todo tratamento, de qualquer doença, é despesa, seja pressão alta, diabetes ou sarampo. Com sua forma peculiar de fazer política pública, a declaração foi baseada no relato de uma obstetra amiga. Palpite caseiro. Ao ser cobrado pela imprensa, deu uma banana para os jornalistas. Por todo conjunto de sua obra, parece evidente que o problema do presidente com o HIV não é o custo do tratamento.

Já é lugar comum apontar as impropriedades ditas por este governo. Às vezes, voltam atrás, mas, na maioria dos casos, colocam a responsabilidade na imprensa. As falas são sempre retiradas do contexto. A culpa é sempre dos outros.

Mas as palavras ficam.

Elena Landau é economista e advogada. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 14.02.20

Como as democracias adoecem

Por Paulo Delgado

Para saber como as democracias morrem há legistas mais capazes na autópsia. Mas para diagnosticar como adoecem melhor observar o mal-estar dos fatos polêmicos à luz da ousadia pessoal dos influentes que os cometem e da letargia cívica com que os influenciados reagem a eles. Lesões oportunistas são obra de ideologias diversas que enfraquecem uma nação e comprometem sua saúde democrática.

Neste artigo olho um período cheio de egolatrias em que ficamos à mercê da marca do outro. Assim como a gula, apetite sem limite de quem se sente situado no topo da cadeia alimentar, a voracidade é mecanismo próprio do mau instinto de quem não tem predador natural.

Se todos têm suas próprias razões no que fazem e estão tão mergulhados de interesse nelas, não se trata de liberdade de pensamento e é difícil imaginar reflexão de boa-fé. Existem ficções e existem fatos concretos. Embora pouco praticada entre nós, a psico-história da política costuma ser mais hábil para entender os venenos sutis que alimentam a ambição dos que são notícia.

Anda, evidente, muito mal conduzida nossa democracia. Mas isso não significa que tenha morrido. Lembra mais a lenda brasileira de que ninguém presta e não vai dar em nada. Lenda que impulsiona o caráter arbitrário do tipo que manda ver. Um costume primitivo, institucional, cuja dimensão ainda não compreendemos inteiramente. É onde estacionou a curva da civilização brasileira e dali jamais passou. Ali onde o mundo em que são cometidos crimes e as aberrações legais ameaça ficar parecido com o mundo onde deveria ser possível corrigir suas consequências.

Assim se pode inferir um pouco da hilária história do escritório especialista em convencimento, dissuasão e oferecimento de conduta sobre dívida, confusões financeiras e contábeis de países e instituições enroladas, descuidadas da responsabilidade pública e coletiva. Era uma auditoria nacional ou uma exigência extraterritorial? Bem, depende de onde importa a justiça para o caso. Se é preciso limpar a barra nos EUA, o ônus da prova cabe ao acusador. Eu escolheria Londres, onde o ônus da prova cabe ao acusado e se evita a promiscuidade do advogado com o cliente. Todos sabem que em negócio corrosivo a ferrugem parece não corromper o ferro. E os zelosos guardiões do fundo que ampara o trabalhador acabaram pagando, de fato, um milionário honorário de sucumbência.

Bem, sobre a turma do entretenimento fácil tivemos um cardápio variado. Permanece a sina de que o lucro velhaco e a guerra pelo mercado brasileiro fazem da internet uma trincheira, com essa mania de viciar idiotas em aplicativos, vídeos e competições arranjadas. Manifestos em forma de ficção política e humorística ofereceram insultos em vertigem à democracia e ao espírito do País. Do mesmo naipe que o empréstimo bancário expatriado saiu pela porta dos fundos. Está fácil açoitar o nazareno, pois romanos sempre gostaram de rir de judeus. Tudo converge para dois martírios: o do sagrado pela piada grossa que quer ser humor e o da opinião pessoal que quer ser história.

E assim, glória do inadmissível, chegamos à encruzilhada de a liberdade de imprensa receber goela abaixo hacker como fonte. Dá vontade de rir recorrer a jornais estrangeiros para ampliar o ilícito! Outra vez o estilo manda ver dando a linha que já destruiu ideais na esquerda por achar que causa justa limpa conduta suja.

Em seguida, em movimento digestivo aquoso e rápido, próprio do apetite de mandar, relembro a amarga definição de um ex-presidente do Supremo, quando saiu a decisão do presidente interino: o STF é uma porta que só abre por dentro. O elo mais alto da cadeia alimentar da Justiça joga no lixo decisão do Congresso exigindo dos representantes do povo o princípio da obediência devida, pois não há mais garantia em juiz. A desordem de princípios e a falta de domínio de si de magistrados são adoecimentos.

Não me parecem dilemas morais ou políticos. Estamos afundados é na era em que os que comem sentem fome. E até Regina, admirada por ser sempre a mesma, é atacada por tutores ideológicos que a querem outra e aproveitam para descarregar sua alma empanturrada de ênfases sobre ela. Bem, a volta ao mundo em 12 dias pelo interino voador, usando um avião da FAB como uber, resume tudo, pois lembra assustadoramente o fastio de viver do filme A Comilança.

Olhando bem, a marca atual é a de que cada um só faz servir a si próprio. Nossa época está melhor se ajustando a um tipo de racismo não estudado pela antropologia, uma etnia específica do cara de pau. O pode-tudo da ficção vivida como realidade é geral. Um jogo de fascismos, essa certa visão de si mesmo que provoca disputa e cria rivais. Mas como o campo gravitacional da luta mudou de lado na última eleição, a autoanálise dos derrotados é mais indicada do que o desencanto ou manipulações.

O poder arbitrário continua um obscurantismo que cumpre a função de agravar ou criar uma fragilidade identitária nas pessoas. Para ganhar adeptos para a fantasia de imperfeição, grosseria, desconfiança e desânimo que adoece a democracia.

Paulo Delgado é sociólogo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 12.02.20.

Bomba-relógio fiscal

A relutância do governo em negociar suas propostas no Congresso – ou seja, em fazer política – está pondo a máquina pública na rota do colapso. O crescimento da dívida pública funciona como uma bomba-relógio que só pode ser desmontada por amplas reformas de Estado. O desmonte começou com a reforma da Previdência e só será consumado com outras, como a administrativa e a tributária, mas enquanto não for, o País precisa de mecanismos emergenciais para desacelerar a contagem regressiva. A isso serve a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, alcunhada não à toa “Emergencial”. Encaminhada ao Senado em novembro, ela está há quase dois meses atolada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Duas disposições constitucionais garantem a sustentabilidade fiscal do poder público: o Teto de Gastos, pelo qual a máquina pública não pode gastar mais do que um determinado valor, e a Regra de Ouro, pela qual não se pode endividar para pagar despesas correntes. Ocorre que, devido às disfunções da máquina pública, os gastos obrigatórios com salários e aposentadorias não param de crescer, comprimindo os gastos discricionários com infraestrutura, inovação e outros. Para dar uma ideia, em 2014 os investimentos públicos corresponderam a 1,4% do PIB. Em 2019, foram inferiores a 0,5%. Ou seja, na rota em que está, a única função do Estado será cobrir os custos com o funcionalismo. Como esses custos só crescem, será preciso arrecadar cada vez mais impostos ou se endividar cada vez mais.

A PEC Emergencial estabelece mecanismos de ajuste fiscal sempre que as despesas superarem 95% das receitas. Esses mecanismos impedem a criação de novas despesas obrigatórias através, por exemplo, do bloqueio de promoções de carreira, concursos e criação de cargos, ou da redução da carga horária e do salário dos servidores.

Na abertura dos trabalhos legislativos, o presidente Jair Bolsonaro disse esperar que a PEC Emergencial e as outras propostas que integram o Plano Mais Brasil sejam aprovadas rapidamente pelo Congresso. A rigor, o Planalto não tem feito mais do que isso: esperar. Mas não é isso que a população espera de seu presidente. Enquanto ele espera, as despesas de 13 Estados já superam 95% das receitas. Logo eles serão acompanhados por outros. A contagem regressiva não só avança, como se acelera.Quem não está esperando são as corporações do funcionalismo, que têm as bancadas mais sólidas no Congresso. O seu poder de mobilização pode ser verificado na própria consulta pública lançada pelo Senado, que indica apenas 1,8 mil votos favoráveis à PEC contra quase 100 mil contrários. A oposição, por sua vez, consolida a narrativa da inconstitucionalidade da PEC.

As vozes mais sensatas e preocupadas com a coisa pública além de seus interesses partidários e corporativos têm cobrado o protagonismo do governo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, talvez o principal responsável pela aprovação da reforma da Previdência, advertiu recentemente que a condução das reformas não pode ser jogada “nas costas do Parlamento”. Até agora essa tem sido a principal “estratégia” do governo com o Congresso: inundá-lo com propostas e depois abandoná-las à sua própria sorte. Foi assim na reforma da Previdência. Ocorre que, neste último caso, os efeitos só se farão sentir a médio e longo prazos. Sem a PEC Emergencial, contudo, o Teto será rompido já este ano pela União e por Estados e municípios em todo o País. Como as dívidas dos entes subnacionais são garantidas pela União, estas bombas estourarão na cara do governo. Como sabem os congressistas, à medida que o tempo passa, a emergência só se torna mais emergencial. “Velha” ou “nova”, a política real, na hora do aperto, saberá cobrar o seu preço.

Em outras palavras, a PEC deveria ser aprovada o quanto antes pelo bem da Nação. Mas o governo Bolsonaro deveria se dar conta de que precisa dela para o bem de seu próprio projeto de poder. Não é o melhor motivo, mas se servir para aprovar a PEC, será suficiente.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 10.02.20

O reboco da retrofit

Por Gaudêncio Torquato

A arquitetura política no Brasil precisa de grande reformulação, a começar pelo reforço das identidades partidárias, hoje esgarçadas como pano roto imprestável. Partidos abandonaram seus programas iniciais, arrastados pela débâcle das ideologias, cujo marco foi a derrubada do Muro de Berlim.
O socialismo clássico perdeu as estribeiras, o liberalismo mais parece uma parede rebocada a todo momento, ao gosto do experimentalismo de governantes sem rumo fixo, enquanto a social-democracia se estiola, perdendo substância.

Por aqui, o esforço de renovação tem se concentrado na superfície, mais claramente no nome da sigla. O DEM, que substituiu o PFL, se esforçou para apagar sua ligação com a ditadura militar. O PMDB, mais recentemente, tirou o P de partido, mas não conseguiu acender a velha chama que Ulisses Guimarães carregou por anos a fio, sob os hinos da liberdade, dos direitos humanos e da democracia. Bolsonaro tenta criar um partido para chamar de seu, o Aliança pelo Brasil, cujo escopo aponta para três Bs: boi, bíblia e bala.

Cheguemos perto do PT. Onde está a coluna vertebral do ente criado em fins dos anos 80 no ABC Paulista, sob o calor do chão de fábricas, o grito rouco de Lula, a bandeira vermelha do socialismo e a corrente uníssona de trabalhadores? Hoje, o PT está no epicentro da crise política que, há tempos, massacra a imagem de protagonistas, muitos expulsos da vivência congressual pelo voto, alguns detidos e outros respondendo a processos.

O PT está na caldeira fervente da Operação Lava-Jato. A sigla saiu da redoma do exclusivismo ético e moral em que se refugiou por muito tempo. Já não tem credibilidade para fazer a pregação entre “nós e eles”. O PT, como outros entes partidários, pode fazer algo para limpar sua fachada?

O governador do Maranhão, Flávio Dino, apontou uma pista. Estreita, mas pode ser o início de ampla remodelagem. Sugeriu a mudança de nome. Surgiu até a expressão “retrofit”. Esse termo, surgido na Europa e Estados Unidos, significa "colocar o antigo em forma" (retro do latim "movimentar-se para trás" e fit do inglês, significando adaptação, ajuste). Na arquitetura, abriga um conjunto de ações de modernização e readequação de instalações. O objetivo é preservar o que há de bom na velha construção e adequá-la às exigências atuais.

Fiquemos, por enquanto, na mudança de nome. Dará resultados? Depende. Colocar uma embalagem nova num produto desgastado mais parece um drible para enrolar eleitor. Mudar nome de partido sem mudar as pessoas ou reinserir um programa ideológico é querer dar uma solução perfunctória, inútil. Como se diz no vulgo: tapar o sol com peneira. Mas pode ser a chave para abrir a porta.

Nesse ponto, convém lembrar o conceito de identidade e de imagem. Identidade é a soma do escopo programático, tradição, lutas, história de sucesso e insucesso, quadros, enfim, tudo que lembre a grandeza do partido. Imagem, por sua vez, é a projeção da identidade, a percepção sensitiva captada pelos cidadãos, a ideia que se tem da agremiação.

A imagem dos partidos brasileiros está no fundo do poço. E sua elevação para níveis satisfatórios não se dará apenas por meio de artifícios do marketing, o que chamo também da cosmética partidária. Voltemos ao exemplo da parede. Pintar uma parede velha sem mexer no reboco poderá deixá-la bonita por pouco tempo. Desabará se não receber massa para sustentá-la.

Mais que retrofit imagético, os partidos deverão mexer em sua completa engenharia, montando uma base de conceitos e programas, um arsenal de compromissos, estruturas sólidas capazes de suportar as tempestades da política. E o que acontecerá se as siglas não se vestirem com o manto de conteúdos? Ora, afastamento progressivo da sociedade. Os eleitores acabarão votando em figuras do momento, aventureiros, impostores, perfis canhestros e sem preparo.

Sob essa teia, entraremos nas próximas rodadas eleitorais. Não se percebe no horizonte nenhum sinal de renovação partidária, a partir das premissas aqui expostas. Um ou outro partido, como o Novo, engatinham na trilha mudancista. Mas uma andorinha só não faz verão. E tem faltado a essa sigla capacidade de comunicação e de articulação social.

O momento sugere seguir os passos de Zaratustra, o profeta de Nietsche: "novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga. Cansei-me das velhas línguas. Não quer mais o meu espírito caminhar com solas gastas."

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

A democracia não é mais aquela

Por Ascânio Saleme

Tem muita gente festejando o resultado da pesquisa da Universidade de Cambridge que mostra descontentamento crescente com a democracia em todo o mundo. Segundo a pesquisa, 58% das pessoas entrevistadas em 154 países estão insatisfeitas com este sistema de governo. No Brasil, apenas 20% das pessoas ouvidas aprovam o regime democrático. Os que comemoram este péssimo resultado são aqueles que acreditam que um regime totalitário pode ser mais útil ao país, acreditando que um governo de força acabaria com a corrupção e a violência, entre outros problemas.

A História prova que eles estão enganados, e a pesquisa revela as limitações dos que pensam assim, não importando de que ângulo enxergam o cenário. No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda. Aqueles bolsonaristas que aplaudem de modo entusiasmado tanto os acertos do governo quanto seus erros grosseiros e antidemocráticos imaginam que um regime totalitário salvaria o Brasil. Da mesma forma, há lulopetistas que prefeririam um governo centralizador, sem o contraditório, sobretudo sem imprensa, como imaginou um dia José Dirceu.

Supor que um governo não democrático acabaria com a corrupção é o mesmo que acreditar que há democracia na Venezuela e que os generais de Maduro não são os mais corruptos da América Latina. Pensar que um regime fechado terminaria com a violência é tão absurdo quanto ignorar o poder global da máfia russa, a mais cruel e sanguinária do mundo.

A pesquisa mostra que as pessoas não confiam em regimes democráticos em razão dos sucessivos escândalos de corrupção e nepotismo que produziram, sobretudo na América Latina, pela sua incapacidade em lidar com a criminalidade e por se revelarem inúmeras vezes incompetentes na busca de soluções para crises econômicas. O problema não é apenas enxergar a democracia por esta ótica. Mais grave é imaginar que há solução mágica fora dela. No Brasil, por exemplo, a pesquisa demonstra que 37% dos entrevistados acreditam que um golpe militar resolveria os problemas de corrupção e seria capaz de reduzir os índices da violência urbana.

Rematada bobagem. Nostalgia da ditadura brasileira revela não apenas desconhecimento histórico, mas também ignorância antropológica, por ser impossível comparar qualquer dado dos anos 60 e 70 com seus similares de hoje. Para começar, o Brasil de 1970, por exemplo, tinha 93 milhões de habitantes, sendo que 42% viviam na zona rural. Hoje, o Brasil tem 215 milhões, e 85% habitam as cidades. São obviamente dois países distintos. Mesmo os que acreditaram cegamente no regime militar daqueles anos não conseguiriam explicar de que forma ele se cristalizaria em 2020.

No mundo, segundo a pesquisa da Universidade de Cambridge, o desencanto com a democracia cresceu exponencialmente na última década em razão da crise econômica de 2008, por causa da insolúvel crise dos refugiados, em razão da polarização política e pela falta de respostas dos governos em atender questões sociais urgentes. Claro que o regime de governo não é o culpado por estes problemas, mas os entrevistados não pensam assim.

Somam 2,4 bilhões as populações dos países ouvidos na pesquisa. China e Cuba obviamente não foram consultados. Da mesma forma que há quem apoie uma ditadura militar, há também quem defenda o modelo de meritocracia do Partido Comunista chinês, onde os melhores ascendem na burocracia chinesa depois de serem testados em várias instâncias administrativas. Outros acham perfeito o regime cubano, onde escolas e hospitais funcionam melhor que no Brasil e o acesso é universal. Tudo bem, mas tente discordar de uma decisão de um chefe de quarteirão em Havana. E vai ver como funciona o mercado popular de Wuhan.

Ascânio Saleme é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 01.02.20.

Inimigos por toda parte

Por Eliane Cantanhêde

Pode espantar os bolsonaristas e preocupar o núcleo militar do governo, mas não há surpresa nos ataques e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao ministro Sérgio Moro, como não há certezas sobre o que vai acontecer com a pasta da Justiça. O Ministério da Segurança Pública será recriado? E o futuro da Polícia Federal e da sua direção-geral? No primeiro escalão e no próprio gabinete de Moro, a resposta é direta: “Tudo é imprevisível”.

É assim porque o presidente da República é imprevisível. Pode até momentaneamente voltar atrás, mas no Alvorada, no Planalto, no avião presidencial, ele certamente fica ruminando sobre como baixar a crista desse tal de Moro e como botar alguém “de confiança” no lugar do delegado Maurício Valeixo na poderosa (e, para alguns, ameaçadora) PF. Afinal, “quem manda sou eu”.

Assim como tem fixação em enfraquecer Moro, Bolsonaro já partiu para cima dos governadores do Rio, Wilson Witzel, e de São Paulo, João Doria, do apresentador Luciano Huck e até do vice-presidente Hamilton Mourão, general de quatro estrelas. O que há em comum entre eles? São os nomes que se colocam, ou são colocados, como opções do centro à direita para a Presidência. Ou seja: adversários potenciais de Bolsonaro. No mundo dele, inimigos.

Moro já levou para casa a desfeita com Ilona Szabó, a cara de tacho enquanto Bolsonaro espanava para o lado o pacote anticrime, o não veto ao juiz de garantias. Só não voltou para casa em 2019 porque, finalmente, ganhou uma: manter Valeixo na PF. E ganhou porque os generais do governo entendem e tentam convencer Bolsonaro da importância política, simbólica e objetiva de Moro. Mexer com ele é rachar drasticamente a base bolsonarista.

“Se demitir Moro, seu governo cai”, alertou o general Augusto Heleno, em agosto passado, depois de esgotar o seu estoque de convencimento na base do bom senso. A passagem é relatada no livro Tormenta, da jornalista Thaís Oyama, que não traz revelações novas, mas acrescenta ambientes e frases a momentos decisivos e capta algo essencial: a psicologia do presidente.

Ficam claras as fragilidades intelectuais, políticas e pessoais de Bolsonaro, mas sobretudo seus vícios. Se não fuma e bebe pouquíssimo, ele tem mania de perseguição. Não confia em ninguém, vê esquerdistas e inimigos em toda parte e não se sente seguro nem nos jardins do Alvorada. Vai que apareça um drone... O gesto de simular uma arma com as mãos não foi só de campanha e não é só para defender a população armada por aí. É também para mirar os “inimigos”, como os adversários potenciais de agora e de 2022, estejam eles de costas ou bem ao lado do presidente.

Mourão leva tudo na esportiva, com a postura superior de cara culto, leitor voraz, mas também leva suas lambadas. Ele está saindo dos meses autoimpostos de sombra e voltando à luz do sol, com enormes vantagens sobre os “concorrentes”. Diferentemente de Moro e Heleno, não é subordinado nem demissível. Diferentemente de Doria e Witzel, não precisa de verbas federais para seus Estados e pretensões políticas. Diferentemente de Huck, tem espaço político garantido. A única coisa que Bolsonaro pode fazer é suportá-lo.

Enquanto, claro, 2022 não vem. Aí, o jogo recomeça do zero e Mourão pode ser forçado a guerrear pela vaga na chapa, Moro terá de decidir o que quer ou catar o que sobrou, Doria e Witzel precisarão medir seu tamanho e Huck, sair do “ser ou não ser”. Até lá, o comando bolsonarista atualiza a ameaça de 2018: ou engolir qualquer absurdo de Bolsonaro ou trazer o PT e Lula de volta. Isso, porém, não depende dos inimigos, das esquerdas e da mídia. Depende do “capitão” e das assustadoras bobagens que ele não para nem de falar nem de fazer.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.01.2020.

O Brasil e o espírito do capitalismo

Por Fernão Lara Mesquita

Para desmentir os que vivem alegando intransponíveis “impedimentos culturais” para justificar sua omissão em participar de qualquer esforço concreto para desatolar o Brasil está aí o rápido avanço do protestantismo sobre a hegemonia católica, que vinha sendo mantida a ferro e fogo desde a Primeira Missa, rezada em 26 de abril de 1500 em Santa Cruz Cabrália.

Bastou dar a conhecer à massa dos brasileiros uma outra forma de se relacionar com deus e uma boa parte dela passou batida por cima da ameaça do inferno e de 400 anos de monopólio da educação jesuíta para adotá-la como a adotaram todos quantos, pelo mundo afora, viram na releitura da Bíblia depois de Lutero uma narrativa mais honesta e menos opressiva e conflitante com a natureza humana.

De 1991 a 2010 a proporção de católicos vem caindo 1%, ao passo que a de evangélicos vêm subindo 0,7% ao ano. Hoje 50% dos brasileiros declaram-se católicos e 31% evangélicos. Os pesquisadores calculam que a hegemonia estará invertida em 12 anos. A onda protestante é mais forte nas Regiões Norte e Centro-Oeste (39%), as “califórnias” onde se concentram os mais recente e meritocraticamente bem-sucedidos self made men do País, e mais fraca no Nordeste (27%), a região onde os “direitos especiais” da privilegiatura estão há mais tempo estabelecidos e intocados.

Está dando a lógica de ponta a ponta, portanto. Aqui, como em toda parte, a força do impulso democrático é inversamente proporcional à proximidade da Europa e à antiguidade do “privilégio adquirido” nos moldes do absolutismo monárquico a ser defendido. E não foi a maneira de ver as coisas do povo brasileiro que mudou por algum impulso misterioso. Nosso equipamento cognitivo continua o mesmo do resto da humanidade. O fator decisivo dessa “disrupção” foi o rompimento da censura e a apresentação, pela primeira vez em 500 anos, de uma alternativa à massa dos brasileiros pelos pastores televisivos. Vencida a censura, ela reagiu como tem reagido o resto da humanidade ao mesmo estímulo desde que a Inglaterra de Henrique VIII, pela primeira vez na História, ainda que por caminhos tortos, sancionou a convivência pacífica com a diversidade de crenças.

Ao longo das duas primeiras décadas do século 20 Max Weber, alemão, um dos “pais” da sociologia, começando por uma viagem de estudo aos Estados Unidos, iniciou a publicação dos ensaios que viriam a constituir a sua obra clássica, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, em que aponta as “afinidades eletivas” entre a moral protestante e a conduta capitalista. A “vocação”, em Lutero, é “uma missão dada por deus”. Logo, o trabalho deixa de ser uma pena pelo pecado original e a riqueza, pela primeira vez na história das religiões, um indicador dos pecados cometidos (“É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no reino de deus”). Passa, ao contrário, a ser vista como prova da eleição do indivíduo para a salvação, desde que conquistada honestamente, com suor e disciplina, para a glória de deus, e não pela mera fruição de luxos e prazeres (ascetismo).

Ao pesquisar as razões da derrota na eleição paulistana em 2016, a Fundação Perseu Abramo, o think tank do PT, colheu em centenas de entrevistas para a pesquisa Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo (reproduzida em www.vespeiro.com) uma coleção de respostas dos eleitores mais pobres da cidade, de maioria evangélica, que ecoam com impressionante precisão aquelas que, um século antes, embasaram a tese de Max Weber, dando conta da descrença no “vitimismo” para explicar o fracasso individual, da fé no merecimento pelo trabalho como único instrumento de resgate da miséria e da denuncia do assistencialismo populista, “pai da corrupção”, como o inimigo a ser combatido, e não como o remédio a ser reivindicado. Desde então os intelectuais do PT sabem a profundidade do buraco e reconhecem reservadamente (porque ainda é proibido contradizer o chefe) que a aproximação com os evangélicos (e, portanto, com a massa de eleitores das periferias, sem a qual não se chega “lá”), no mínimo, “é complexa e de longo prazo”...

Os lulistas, porém, resistem a dar o braço a torcer. Na edição de 11/1 o jornal Valor trazia uma página inteira de matérias em que, de Lula para baixo, entrevistadores e entrevistados saltavam, perplexos, de uma para outra das três primeiras das “cinco fases do luto” de Elisabeth Kubler-Ross: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

“Não é a mensagem, é o meio” (o acesso à televisão). “Nem a esquerda, nem a direita conseguem hoje chegar às periferias; Bolsonaro conta só com o apoio das cúpulas das igrejas”. “A perspectiva dos evangélicos é converter todo mundo daí a única aproximação entre eles ser a pauta moralista” (onde reconhecem ter a “pauta moralista” apelo universal). Não há, enfim, qualquer incompatibilidade de fundo. Nada de rever posições. Tudo o que é preciso é “criar um antídoto contra as ‘fake news’ que essas igrejas espalham para ligar os partidos de esquerda ao comunismo maligno”. “... criar ao menos alguma confusão ... traçar estratégias de ação para fortalecer espaços de atuação e formação de evangélicos, filiadas, filiados e simpatizantes ao PT”. Enganar e não convencer, enfim. Com precisão científica, se possível…

Dirão os partidários da opção preferencial pela omissão que é abissal a distância que vai entre as éticas luterana e calvinista e os nossos bispos televisivos. Tanto quanto a que vai entre a palavra de Jesus e as “narrativas” que têm sido feitas dela para justificar milênios de barbaridades. A importância das igrejas não está nos “papas” pervertidos e corruptos que historicamente as têm explorado para realizar seus delírios de poder e riqueza, mas na chave de interpretação da vida que elas oferecem ao culto dos seus fiéis e nos efeitos que essa chave produz na arrumação das sociedades humanas para uma vida de menos exploração, menos miséria e menos crimes.

O Brasil está reembarcando no trem da História, que o lulismo definitivamente perdeu.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www. vespeiro.com - este artigo foi publicado em O Estado de São Paulo, edição de 21.01.2020.

Para que haja menos partidos

Por Carlos Pereira

A formatação de sistemas políticos e partidários é fruto de escolhas que sociedades fazem ao longo da sua história. Essas escolhas se dão por tentativa e erro, com adaptações e correções de potenciais problemas que vão sendo identificados por gerações futuras.

O sistema político brasileiro é conhecido pela grande permissividade de suas regras eleitorais. Uma combinação de representação proporcional com lista aberta em distritos de grande magnitude, que tem estimulado a inclusão dos mais variados interesses da sociedade no jogo político, gerando assim fortes incentivos para a criação de muitas legendas partidárias. A escolha por esse sistema inclusivo foi uma resposta aos efeitos negativos dos partidos regionais oligárquicos da Primeira República decorrentes do voto distrital majoritário.

Entretanto, os partidos, na grande maioria, não têm sido veículos de agregação ideológica ou mesmo programática, mas fundamentalmente organizações políticas que unem interesses eleitorais. Daí porque os eleitores terem tanta dificuldade de identificá-los e diferenciá-los entre si.

Atualmente, 30 partidos ocupam pelo menos uma cadeira na Câmara dos Deputados. A fragmentação é alta mesmo quando a medimos a partir do número efetivo de partidos (NEP), que leva em consideração não apenas o número de siglas partidárias, mas também o tamanho do partido em relação ao total de cadeiras do Parlamento e às demais bancadas partidárias. E, portanto, considera também a dispersão/concentração do mercado partidário. Entre 1989 e 2010, por exemplo, o NEP ficou em torno de 9, passou para 13 em 2014 e pulou para mais de 16 partidos em 2018, tornando o Brasil a democracia presidencialista mais fragmentada do mundo.

A decisão da Suprema Corte permitindo a mudança de legenda sem a perda de mandato do parlamentar como decorrência da criação de um novo partido também tem contribuído para a criação de novas legendas e o aumento da fragmentação. Além disso, a criação dos fundos eleitoral e partidário também gerou estímulos à fragmentação, pois a possibilidade de acesso e de controle desses novos recursos públicos tem incentivado políticos a querer ter um partido para “chamar de seu”.

Diante desta pletora de partidos políticos, duas grandes reformas foram implementadas recentemente visando ao enxugamento do sistema: a cláusula de desempenho, que já teve início nas eleições de 2018, e o fim das coligações proporcionais, que terá início nas eleições municipais de 2020.

A cláusula de desempenho estabelece que o partido obtenha ao menos 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação (9 unidades), com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas, para ter acesso ao Fundo Partidário e ao tempo gratuito de TV e rádio de propaganda eleitoral. Nas eleições de 2022, a exigência de desempenho eleitoral será ainda maior, de 2%.

Nas eleições de 2018, 14 partidos não conseguiram cumprir tais exigências da nova legislação. Mesmo que esses partidos ainda recebam recursos do Fundo Eleitoral em anos de eleições, dificilmente terão condições de sobreviver, pois terão que concorrer em desigualdade de condições em função de terem perdido acesso ao fundo partidário e ao tempo de rádio e televisão.

Portanto, é esperada uma redução no número absoluto de partidos políticos com a fusão/extinção de legendas que não tenham alcançado o desempenho mínimo nas últimas eleições. Entretanto, pelo menos no curto prazo, a cláusula de desempenho tende a não ter o mesmo efeito de diminuir os partidos mais relevantes, que continuarão a ser numerosos mesmo com a ocupação relativamente menor de cadeiras no Legislativo.

Dessa forma, embora o sistema partidário possa parecer mais enxuto, o presidencialismo brasileiro continuará fragmentado, necessitando de um presidente que saiba montar e gerenciar coalizões com partidos efetivos para ter condições de governar.

Carlos Pereira é professor titular da Fundação Getúlio Vargas / Ebape. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 19/01/2020.

Bolsonaro e sua circunstância

Não causa surpresa o derretimento acelerado da popularidade do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemente divulgada. O levantamento mostrou que, em um ano, a expectativa positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuais, de 63% para 40%. O índice de entrevistados que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Pode-se dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra.

O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiros a sensação de que suas decisões estapafúrdias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalidade, não são meros acidentes ou fruto de circunstâncias passageiras, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é.

Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldade que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiência de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredita deliberadamente o exercício da Presidência porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperável, convenceu-se de que foi eleito para desmoralizar a política e sua liturgia institucional, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospectiva, a reunião ministerial em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificada) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas.

Num dia, o ministro da Educação aparece num vídeo dançando com um guarda-chuva, numa imitação circense do filme Dançando na Chuva, para acusar seus críticos de difundirem fake news; noutro, o secretário da Cultura toma emprestado trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista, para anunciar o advento de uma cultura “nacional” financiada pelo Estado, causando horror e estupefação no País e fora dele. Entre um e outro desses momentos nada edificantes de seus assessores, o próprio presidente Bolsonaro achou tempo e oportunidade para fazer piadas de mau gosto sobre um vasto cardápio de temas grosseiros, como se estivesse em um churrasco com amigos.

Enquanto isso, sempre que pressionado a tomar decisões realmente relevantes para o País, como autorizar privatizações potencialmente polêmicas, cortar privilégios de servidores públicos e reduzir subsídios, o presidente hesitou. Mesmo a reforma da Previdência, que o governo celebra como um feito de Bolsonaro, foi sabotada em vários momentos pelo presidente, tendo sido aprovada graças à mobilização de parlamentares e alguns técnicos do governo. Preocupado em construir seu próprio partido e sua candidatura à reeleição, sobre a qual fala quase todos os dias, Bolsonaro dedica todo o seu tempo não a pensar em maneiras de promover o desenvolvimento do País, mas a alimentar polêmicas de cunho claramente eleitoreiro, enquanto assina medidas destinadas à irrelevância – mas só depois de causar tumulto e insegurança jurídica no País.

Quando confrontado pelos jornalistas a respeito disso ou a respeito dos cada vez mais volumosos problemas do clã Bolsonaro e de alguns de seus assessores mais próximos com a Justiça ou com a lisura administrativa, o presidente reage de forma truculenta. Mais recentemente, disse que os jornalistas são uma “espécie em extinção” e mandou que a imprensa tomasse “vergonha na cara” e tratasse de “deixar o governo em paz”. (Ver editorial A tenacidade da imprensa.)

Não são rompantes, e perde tempo quem acredita na possibilidade de que, com o tempo, Bolsonaro vá temperar seu comportamento. O assessor que se inspirou em Goebbels para anunciar o “renascimento da cultura nacional” só foi exonerado porque houve uma grita generalizada diante de tamanho absurdo. Noves fora o plágio nazista, o conteúdo da fala que custou o cargo ao tal secretário é essencialmente o que Bolsonaro já disse e repetiu inúmeras vezes, mesmo antes da eleição. Portanto, ninguém pode se dizer surpreendido, nem mesmo os eleitores mais ingênuos. Bolsonaro é Bolsonaro há muito tempo...

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 18.01.20

Governo perdido

No início de seu segundo ano, o governo de Jair Bolsonaro dá claros sinais de estar sem rumo definido. A cada semana surgem novas medidas e ações, absolutamente pontuais e sem um objetivo comum. Além de tirar eficácia da ação estatal, essa falta de coordenação provoca atritos e tensões absolutamente desnecessários entre órgãos do governo. Não há tempo a perder. A situação econômica e social do País exige um governo federal capaz de definir e enfrentar as prioridades nacionais, sem desperdiçar energias em ações que não apenas não trazem benefícios relevantes, como são, em muitos casos, atalhos para o atraso.

Por exemplo, o presidente Bolsonaro deseja conceder subsídio na conta de luz para templos religiosos de grande porte, revelou o Estado. Para tanto, Bolsonaro solicitou ao Ministério de Minas e Energia a minuta de um decreto contendo o agrado às igrejas. A ideia é que os templos paguem tarifas mais baratas no horário de ponta, semelhantes às cobradas durante o dia. O valor que as igrejas deixariam de pagar seria custeado por outros consumidores.

Como era previsível, a equipe econômica manifestou resistência à proposta do subsídio na conta de luz para as igrejas. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sempre defendeu a necessidade de reduzir esse tipo de benefício. A benesse às igrejas tem um impacto tarifário direto, sendo a energia um dos insumos fundamentais para a atração de investimentos e, consequentemente, para a retomada do crescimento econômico. Estima-se em R$ 22 bilhões anuais o total dos benefícios embutidos na conta de luz e repassados para os consumidores. Também contrário ao subsídio, o Tribunal de Contas da União (TCU) já orientou o Poder Executivo, em outras ocasiões, de que não pode ser criado benefício sem dotação orçamentária.

Outra medida, absolutamente pontual e sem nenhuma conexão com as prioridades do País, foi a extinção do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), decretada por meio da Medida Provisória (MP) 904/19. O seguro oferece coberturas para danos por morte e invalidez permanente, bem como reembolso de despesas médicas e hospitalares, em razão de acidentes de trânsito.

Em dezembro, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a eficácia da MP 904/19, por entender que a matéria deve ser regulada por lei complementar, não cabendo alterá-la por meio de MP. Agora, durante o período de recesso do Judiciário, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, deu outra liminar sobre o caso, reconhecendo a competência do Conselho Nacional de Seguros Privados para reduzir o valor do DPVAT.

Por iniciativa do governo, instaurou-se uma confusão absolutamente desnecessária sobre o DPVAT. Vale lembrar que a extinção do seguro também desorganizava a emissão dos papéis relativos à documentação de veículos em todo o País. Por força de convênio com o Denatran, a Seguradora Líder era responsável por emitir esses documentos. Com a MP 904/19 em vigência, não se sabia quem ficaria encarregado dessa atribuição.

O governo precisa ter cuidado com suas ações. Construir exige tempo, plano, recursos e execução adequada. Destruir ou desorganizar é muito mais fácil. Além disso, medidas descoordenadas produzem danos muito além de suas respectivas áreas.

No início do segundo ano de mandato, era de esperar que o presidente Jair Bolsonaro, com a experiência adquirida em um ano no Palácio do Planalto, estivesse mais apto a dar um rumo para o governo. Até agora, isso não foi visto. Jair Bolsonaro fez ultimamente várias ações; por exemplo, editou MP para aumentar benefício de alguns delegados federais; interferiu por MP nas regras de escolha dos dirigentes das universidades federais; comprometeu-se a dar reajuste aos agentes de segurança do DF. No entanto, tais medidas, em vez de mostrarem que o governo federal está enfrentando os problemas nacionais, transmitiram a mensagem inversa.

São abundantes os sintomas de que o governo está perdido. Mas há reformas a serem feitas, e este é o caminho óbvio que o País deve seguir. Há um país a ser governado. Basta querer fazê-lo.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 13.01.2010

Os representantes do povo brasileiro

Por Adilson Abreu Dallari

Conforme dispõe o parágrafo único, do Art. 1º da CF, “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O problema está nos “representantes eleitos”, que não representam coisa alguma, pois as eleições parlamentares são deliberadamente viciadas, a partir do Art. 17 da CF, que afirma ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Essa fantástica liberdade era reafirmada no §1º desse mesmo artigo, em sua redação original: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias”. Note-se que o único dever é ineficaz, pois não tem sanção alguma.

Esse §1º foi mais detalhado com a redação dada pela EC nº 97/17: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”. Note-se que o dever de fidelidade partidária continua inócuo, e, pior que isso, foi introduzida uma possibilidade de que os partidos (que deveriam ser nacionais – Art. 17, inciso I) possam compor diferentes coligações, nos estados e municípios.

Já salientamos, em dois artigos publicados nesta coluna (“Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva”, em 27/04/17 e “A atual política é incompatível com uma autêntica democracia”, em 16/08/18) que os artigos da CF que cuidam dos partidos políticos foram escritos para atender aos interesse pessoais dos membros do Congresso Constituinte, que legislaram para si mesmos, numa cumplicidade geral e irrestrita. Tudo foi articulado para favorecer enormemente a reeleição dos então parlamentares. Isso só piorou com o tempo, motivo pelo qual voltamos ao assunto, agora em 2020. O fundo partidário e o escandaloso fundo eleitoral são apenas mais aparentes, mas, na verdade, há outras formas de utilização de recursos públicos em campanhas eleitorais, sempre visando o objetivo absolutamente primordial de qualquer parlamentar: a reeleição.

As normas constitucionais sobre orçamento público foram alteradas, nos últimos anos para favorecer pessoas e campanhas. A CF, no Art. 165, estabelece um elogiável sistema de planejamento orçamentário, que compreende a elaboração do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais. Não obstante cuidadosamente planejadas, as dotações orçamentárias não são de cumprimento obrigatório; não são impositivas. (Parêntesis; em nossa opinião, as dotações orçamentárias são de cumprimento obrigatório, conforme dissemos em “Orçamento Impositivo”, publicado em Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff (coordenadores), Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, p. 309 a 327). O fato é que, em absoluta contrariedade ao que dispõe a CF, predomina o entendimento firmado durante a vigência do Código de Contabilidade da União, de 1922, no sentido de que dotações orçamentárias são meras autorizações de gastos. Salvo no tocante a dotações de interesse dos paramentares: estas são vinculantes.

Os parágrafos 9º, 10, 11 e 12, do Art. 166 da CF (com a redação dada pelas EC nº 86/15 e EC nº 100/19) declaram a obrigatoriedade da execução, pelo Executivo Federal, das dotações orçamentárias decorrentes de emendas individuais de parlamentares e de emendas de bancadas estaduais. Não é o caso de um exame mais detalhado, mas, pelo menos, essas emendas tinham alguns condicionamentos. Agora piorou muito. Com o advento de EC nº 105, que agregou ao texto da CF o Art. 166-A, aquelas dotações impositivas de parlamentares podem ser diretamente transferidas aos orçamentos dos Estados, Distrito Federal e Municípios. O consagrado José Maurício Conti, em texto publicado no informativo JOTA – Coluna fiscal, de 26/12/19, observou: “Na emenda aprovada, a modalidade de “transferência especial” prevê o repasse “independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere”, e os recursos “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira”. As transferências passam a ser, por conseguinte, da modalidade “incondicionada”, e a titularidade fica para o ente federado beneficiário, o que transfere o controle para o sistema de fiscalização financeira a que está sujeito – estadual, distrital ou municipal”.

Resumindo: os atuais parlamentares, com base em Emendas Constitucionais que eles mesmos fizeram, podem usar recursos da União para favorecer suas bases eleitorais, seja mediante o cumprimento, pela União, das dotações orçamentárias que eles (parlamentares) livremente escolheram, seja para que recursos da União sejam simplesmente transferidos para os cofres estaduais, distritais ou municipais de livre escolha dos mesmos parlamentares. Ninguém é tão ingênuo a ponto de não perceber o enorme efeito político eleitoral do uso desses recursos públicos. Obviamente, essa prática viola diversos princípios constitucionais fundamentais.

Mas os parlamentares recebem (além da remuneração pelo exercício do mandato) dotações que podem ser utilizadas livremente, conforme informou o jornal O Estado de São Paulo, de 03/12/19, em editorial com o sugestivo título de “A farra das notas fiscais”: “Cada um dos 513 deputados têm à disposição uma verba mensal que varia entre R$ 39 mil e R$ 44 mil, a depender do Estado pelo qual o deputado foi eleito. A chamada Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap) destina-se, como o nome indica, ao custeio dos gastos de gabinete inerentes à atividade parlamentar, entre os quais passagens aéreas, serviços postais, manutenção de escritórios de apoio, locação de veículos, contratação de consultores técnicos”.

São muitos os desvios tolerados com o uso dessa verba. O mais simples é a manutenção de escritórios de apoio em suas bases políticas, verdadeiros comitês eleitorais permanentes, desequilibrando claramente a disputas com outros candidatos. Outro fator de desequilíbrio é a contratação de gráficas, para a impressão de folhetos e informativos, por valores fantasticamente elevados e, muitas vezes, “comprovados” por notas fiscais emitidas por gráficas inexistentes nos endereços indicados nos documentos.

Muito mais escandalosos são os gastos com a contratação de escritórios de advogados, que podem funcionar até como lavanderias. O mais comum, porém, é o pagamento de honorários a advogados que, “coincidentemente”, trabalham também em causas particulares de parlamentares e, até mesmo, para empresas dos mesmos parlamentares, inclusive na Justiça do Trabalho (confira-se reportagem de Patrik Camporez, publicada em O Estado de São Paulo, de 04/11/19, com o título “Câmara paga advogados do PSL”). A justificativa, evidentemente falsa, é a necessidade de contratar advogados para subsidiar o exercício da atividade parlamentar. Como se sabe, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, são providos de competentíssimas Consultorias Legislativas, cujos integrantes são efetivamente dotados de larga experiência nas diversas áreas de atuação parlamentar. Não é demais lembrar que muitos renomados juristas colaboram “pro bono”, tanto na elaboração de projetos, quanto no exame de projetos em andamento, além de prestar assistência às comissões técnicas e de inquérito.

Ninguém ignora que os gabinetes parlamentares contam com verdadeiros exércitos de servidores, que podem ser titulares de cargos de assistentes parlamentares, de provimento em comissão, muitos dos quais são simplesmente fantasmas. Além disso, podem ter funcionários de carreira em afastamento junto aos gabinetes (nos termos do Art. 93, da Lei nº 8.112, de 11/12/90), ou, ainda, podem ter servidores de órgãos e entidades públicas, inclusive de empresas estatais, simplesmente postos à disposição do parlamentar. Uma significativa parte desse pessoal exerce, pura e simplesmente, as funções de cabos eleitorais.

Até aqui falamos de vantagens havidas como lícitas, mas não é possível deixar de dizer alguma coisa sobre a prática conhecida como rachid ou rachadinha, consistente na contratação de pessoal que recebe a remuneração pela função exercida no gabinete parlamentar, mas repassa o valor recebido, no todo ou em parte, ao próprio parlamentar. Nos últimos tempos, esse assunto rendeu quilômetros de linhas nos jornais, mas com o foco exclusivamente na atuação do filho do Presidente da República, Flávio Bolsonaro, quando exercia o mandato de Deputado Estadual no Rio de Janeiro. Com a franqueza e a coragem que a caracterizam, a ilustre Professora de Direito Penal e Deputada paulista, Janaína Paschoal, declarou em entrevista a João Ker, no jornal O Estado de São Paulo, em 26/12/19: “Ao que tudo indica, infelizmente o Flávio cometeu peculato e utilizou funcionários para desviar dinheiro público”. “Ele tem que responder. O meu desejo é que o Ministério Público Federal faça com os outros naquela lista da ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) o que está fazendo com o Flávio”. Fica a pergunta: e o resto? e os outros parlamentares em todos os níveis de governo?

Diante de tudo quanto foi exposto, cabe voltar ao título deste artigo e perguntar: Quem são os representantes do povo? será que são representantes do povo ou de si mesmos? Já questionamos a representação popular em outro artigo publicado neste informativo (“Renovação na composição do Congresso Nacional nas eleições de 2018”, publicado em 25/01/18). Naquela ocasião havia uma expectativa de renovação dos quadros parlamentares, que acabou ocorrendo em parte, mas não pela melhoria do sistema eleitoral e partidário, mas, sim, graças ao fenômeno Bolsonaro, que transformou o nanico PSL na segunda maior bancada da Câmara dos Deputados. É altamente questionável (para dizer o mínimo) a representatividade dos deputados eleitos nessa onda, por impulso e sem convicção.

Em síntese, há um longo caminho a percorrer para que o disposto no parágrafo único, do Art. 1º da CF se transforme em uma realidade concreta; para que tenhamos verdadeiros representantes do povo.

Dilson de Abreu Dallari é Advogado e Professor de Direito. Este artigo foi publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico, edição de 09.01.2010.

A guerra contra privatizações só dá lucro aos parasitas do Estado

Por JR Guzzo

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acaba de dar ao público uma lição prática de como o Brasil não vai para frente. Ou melhor: ir para a frente até que vai, mas vai a um ritmo muito mais lento do que poderia ir, beneficia muito menos gente do que poderia beneficiar e, no fim das contas, custa muito mais caro do que poderia custar.

Bolsonaro estava falando sobre os Correios. Se a questão dependesse dele, afirmou, privatizaria os Correios hoje. Mas a questão não depende dele — e o resultado é que provavelmente não vai privatizar nunca.

Quem paga por isso? Você, é claro: o correio estatal é um monstro montado para dar errado e para dar prejuízo, e o dinheiro para pagar isso sai do seu bolso, a cada vez que você recolhe um centavo em imposto em qualquer coisa que faça na vida.

Ser corrupto no Brasil sempre foi uma maravilha. Hoje, não é mais
Quem ganha é o condomínio de burocratas, políticos e piratas que vivem se entupindo, há décadas, com toda essa montanha de dinheiro. Mas e os funcionários, coitados? E os pobres dos carteiros? E toda essa gente humilde que trabalha por trás do balcão para lhe atender? Será que esse povo todo pode ser esquecido e perder os seus modestos empregos com a privatização?

Os “funcionários” são a última coisa que interessa aos inimigos do esforço para privatizar os Correios. Os seus empregos e o seu bem-estar são unicamente a desculpa de que os peixes graúdos se utilizam para deixar tudo como está.

Todo trabalhador que desempenha alguma função útil no serviço postal seria aproveitado e manteria a sua posição numa empresa privada de correios; só iriam embora os que não são mais necessários, como acontece em todo o resto da economia.

Você, por acaso, paga os salários dos trabalhadores que perderam seus empregos na indústria automobilística ou nas fábricas de tecidos, porque as suas funções se tornaram inúteis em consequência da automação e outras razões? Por que diabo, então, tem de pagar os empregados dos correios cujo trabalho deixou de ser necessário?

A guerra contra a privatização, dos Correios ou de qualquer estatal só tem um lado que fica no lucro: o dos parasitas do erário público. São estes os responsáveis diretos pela concentração de renda no Brasil, ao enfiar no bolso os bilhões em impostos que deveriam ser gastos em benefício de todos.

JR Guzzo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente no saite Metrópolis.com, hoje, 09.01.2020.

A imparcialidade da Justiça

A Operação Lava Jato não apenas inaugurou um novo patamar de eficiência no combate à corrupção. Ela trouxe o Direito Penal e o Direito Processual Penal para o centro do debate público. Basta ver a repercussão gerada nas últimas semanas pela criação, por meio da Lei n.º 13.964/2019, da figura do juiz das garantias. Poucas vezes se viu uma alteração da legislação processual penal suscitar tamanha celeuma. Se é extremamente positivo o envolvimento da população com temas de evidente interesse público, como é o caso, ao mesmo tempo é necessário não se distanciar dos fatos.

Tratada por alguns como um retrocesso no combate à corrupção e à impunidade, a figura do juiz das garantias, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais”, como dispõe a nova lei, é um evidente aperfeiçoamento do sistema penal, ao garantir a imparcialidade do magistrado. O juiz das garantias, também conhecido em muitos países como juiz de instrução, não traz nenhum empecilho para a eficiência da persecução penal.

Vale ressaltar, em primeiro lugar, que a nova lei não produz nenhum efeito retroativo. Todos os casos julgados sob a égide da lei anterior continuam perfeitamente válidos. A Lei n.º 13.964/2019 não acaba, portanto, com a Lava Jato e tampouco dá margem a questionamentos sobre atos anteriores, como se fosse uma jogada de quem tem interesse em procrastinar o andamento de processos já instaurados.

Ao criar o juiz das garantias, a Lei n.º 13.964/2019 simplesmente estabeleceu uma divisão da competência funcional do magistrado. A legislação penal passará a exigir que um juiz acompanhe a fase preliminar de investigação – o juiz das garantias – e outro, diferente dele, assumirá o processo após o recebimento da denúncia. Este segundo magistrado será o responsável por proferir a sentença.

Com isso, o sistema penal torna-se mais imparcial. O juiz que autorizou a produção de provas não será quem avaliará essas mesmas provas. Vislumbrar nessa nova divisão de competências algum retrocesso é exercício de ficção. Para ser implantada em algumas comarcas, a medida envolverá custos adicionais em relação ao funcionamento da Justiça atual. Mas isso não transforma a figura do juiz das garantias em um entrave para o bom funcionamento do sistema penal.

Chama a atenção a reação desproporcional de algumas associações de juízes contra a novidade trazida pela Lei n.º 13.964/2019. Ora, a medida representa um controle mais efetivo da legalidade e do respeito aos direitos individuais. Por força do ofício que exerce, nenhum juiz pode ser contrário a melhorias nesse campo. Seu papel é defender a lei e os direitos.

Também não se deve exagerar nos custos e na complexidade da implantação do juiz das garantias, tendo em vista o alto porcentual de informatização dos processos. Segundo o relatório Justiça em Números 2019, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a informatização na Justiça Federal é de 81,8% e, na Justiça Estadual, de 82,6%. Não faz sentido barrar uma relevante inovação, que melhora a qualidade da decisão final, alegando uma complexidade que já não existe na realidade.

Ainda que a novidade do juiz das garantias seja muito bem-vinda, um ponto merece ressalva. A Lei n.º 13.964/2019 entrará em vigor 30 dias após a sua publicação. É inviável implantar em todo o País a nova divisão de competência funcional em prazo tão exíguo. Mas esse descuido da lei não torna a nova medida, em nenhum momento, um problema a ser combatido. Antes, é uma novidade a ser bem implementada e, por isso, deve o Judiciário dispor de tempo hábil para tomar as providências devidas.

Houve quem dissesse que a figura do juiz das garantias seria inconstitucional. Ora, a Constituição, em seu artigo 5.º, estabelece o princípio do juiz natural, com a fixação de regras objetivas de competência jurisdicional para garantir precisamente a independência e a imparcialidade do magistrado. Sob esse aspecto, a Lei n.º 13.964/2019 cumpre rigorosamente a Carta Magna. Agora, cabe a todos cumprir a nova lei. Bem aplicada, ela pode evitar muitas dúvidas de isenção, reforçando a autoridade e o bom nome do Judiciário.

Editorial de O Estado de S. Paulo, em 06.01.20

O futuro do Supremo

Por Luíza Oliver

Quando o general Villas Bôas, em abril de 2018, ameaçou uma intervenção do Exército caso o Supremo Tribunal Federal (STF) concedesse determinado habeas corpus, o ministro Celso de Mello repudiou veementemente as falas, qualificando-as de “claramente infringentes do princípio da separação de Poderes” e alertando: “Parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional”.

Também quando Eduardo Bolsonaro ameaçou fechar o Supremo, o decano da Corte veio a público para dizer que “essa declaração, além de inconsequente e golpista, (...) só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República”. Já quando o mesmo Eduardo Bolsonaro ameaçou com a edição de um “novo AI-5”, o ministro Marco Aurélio Mello alertou para os “tempos mais do que estranhos quando há essa tentativa de esgarçamento da democracia. Ventos que querem levar os ares democráticos”.

Mais recentemente, quando o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, tuitou um vídeo comparando o STF a uma hiena, o ministro Celso de Mello, em carta pública, lembrou que “nem mesmo o presidente da República está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”, por não ser “um monarca presidencial (...) com poderes absolutos e ilimitados”.

Ambos os ministros se aposentam nos próximos anos. A saída de juízes de tamanha envergadura, coragem e técnica seria lamentosa em qualquer cenário. Mas no contexto atual é alarmante.

Caminhamos a passos largos para o negligenciar de garantias básicas pelo Poder Judiciário. Princípios consagrados há décadas vêm, repetida e crescentemente, sendo desrespeitados e flexibilizados em prol de um discurso punitivista midiático. A Operação Lava Jato, em que pesem os inegáveis avanços que possibilitou, abriu as portas para toda sorte de abusos. Criou-se uma “casta” de promotores, procuradores e juízes que, travestindo-se da figura de heróis, vão na contramão do que o ministro Marco Aurélio lembra há tempos: no processo penal os fins jamais justificam os meios.

Garantir que a lei seja cumprida e que os direitos individuais sejam respeitados virou ofensa, pecha de mau juiz ou de conivente com a corrupção. O Judiciário teme a opinião pública e tem se tornado refém dela.

Ao longo dessa perigosa escalada de autoritarismo, o Supremo tem tido o papel fundamental de frear os excessos do Estado. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello são expoentes desse movimento e vozes firmes na manutenção do Estado de Direito. Ainda em 2013, no rumoroso caso do mensalão, o decano da Corte declarava: “Em 45 anos de atuação na área jurídica, como membro do Ministério Público e juiz do STF, nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação social buscando, na verdade, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz”.

De lá pra cá a coisa só piorou. O Supremo tem enfrentado a fúria punitivista das ruas, é alvo de protestos e de passeatas que, sob o slogan “vem para a rua salvar a Lava Jato”, bradam contra a Corte, contra os ministros que julgam de maneira diversa de parte da opinião pública, ainda que na estrita aplicação da lei e da Constituição.

O STF e seus membros se tornaram, assim, alguns dos principais alvos do “ódio cego e visceral”, da “irracionalidade do comportamento humano e do fundamentalismo político”, como ressaltou Celso de Mello ao responder a manifestação de uma advogada que, por discordar de uma decisão do pleno do Supremo, pedia: “Estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”.

Parte da população busca, no grito e pela via do Judiciário, alterar leis democraticamente votadas por representantes do povo inteiro. Num cenário fervente como esse, mais do que nunca é necessário ter o que o ministro Gilmar Mendes qualificou como a mais importante característica de um magistrado: coragem. Conforme lembrou quando ainda exercia a presidência da Corte (2008), a “jurisdição constitucional é um modelo antimajoritário. Quem quiser exercer essa função tem que ter coragem de arrostar aquilo que se chama de opinião pública em um dado momento”.

Foram muitos os exemplos de coragem dados por ambos os ministros ao longo de toda a sua judicatura, mais especialmente nos rumorosos feitos julgados nos últimos anos pela Suprema Corte, sob o escrutínio fervoroso da mídia e da opinião pública, que, ao vivo e em cores, acompanham os julgamentos pela TV Justiça. Basta lembrar seus votos nos casos relativos às conduções coercitivas, à competência da Justiça Eleitoral, à prisão em segundo grau, ao sigilo dos dados do Coaf e à necessidade de respeitar a ordem das alegações finais.

Em que pese a enorme pressão popular por decisões contrárias ao texto da lei e da Constituição, os votos de ambos pautaram-se pela tecnicidade e pela serenidade. Tiveram a coragem de julgar de acordo com a lei. Coisa rara atualmente.

Como disse o ministro Celso de Mello em seu voto proferido no julgamento relacionado às prisões em segunda instância, o STF constitui, “por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais” e seus julgamentos, “para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal”.

A importância institucional de ambos os ministros vai muito além dos votos que proferem. O Estado de Direito sentirá falta de ministros terrivelmente corajosos e garantistas.

Luíza Oliver é advogada criminalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.01.2010

Quanto e qual poder de cautela para o TCU?

Por Eduardo Jordão

Desejo para 2020: que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) levem mais a sério a disciplina constitucional do poder de cautela da Corte de Contas.

A compreensão atual, seguindo acórdão originário do STF de 2004, é de existência de um “poder geral de cautela” implícito nos poderes corretivos que a Constituição Federal (CF) prevê ao TCU, como forma de torná-los efetivos.

Mas a ideia de competências constitucionais implícitas só faz sentido se for compatível com o sistema de competências atribuído explicitamente pela Constituição.

Ora, a Constituição não foi silente sobre a existência de poder cautelar ao TCU. Ela o previu expressamente.

O art. 71, X, da CF prevê que o TCU poderá determinar a sustação dos efeitos de atos administrativos irregulares. Esta sustação é justamente uma medida cautelar: não anula o ato administrativo nem decide definitivamente sobre sua regularidade.

Consiste em providência para evitar que se realizem os efeitos de ato que causaria danos ao erário público até a solução denitiva da questão – medida cautelar, portanto.

Só que a CF não apenas previu qual competência cautelar deteria o TCU, mas também disciplinou o seu exercício. A leitura combinada dos arts, 71, IX e X deixa claro que a sustação dos efeitos de atos irregulares pelo TCU (i) será precedida do esgotamento de prazo que o próprio TCU assinar para que as autoridades pertinentes adotem as soluções cabíveis e (ii) será seguida da comunicação da decisão de sustação à Câmara e ao Senado.

Esta é a extensão do poder cautelar concedido ao TCU e este é o procedimento que deve ser seguido para exercê-lo.

Reivindicar poder geral de cautela que permita ao TCU (i) aplicar outras medidas cautelares ou (ii) suspender atos administrativos sem seguir este procedimento não é identicar implicitamente competências que o próprio constituinte teria pretendido estabelecer – é desmantelar e ignorar a sistemática especíca que ele previu para a hipótese.

Argumento muito utilizado para defender tal poder geral de cautela é que a atuação preventiva do TCU evitaria dano ao erário. Mas esse argumento tem que ser colocado em perspectiva.

Em primeiro lugar, nos casos em que o TCU entender haver uma ilegalidade num projeto de infraestrutura, por exemplo, o que se tem não é necessariamente um prenúncio de dano, mas apenas um entendimento de uma entidade neste sentido. Mas haverá também entendimento de outra instituição (da administração pública) em sentido contrário.

Em segundo lugar, mesmo que o TCU tenha razão, não é possível supor que a negação a este órgão de um poder geral de cautela implique necessariamente a concretização do dano. É que o direito prevê os remédios para que eles não ocorram.

Os interessados em evitá-lo devem recorrer ao Poder Judiciário para obter um provimento liminar cautelar neste sentido. É o Poder Judiciário que, na sistemática constitucional, tem poder geral de cautela.

Reconhecer “poder geral implícito de cautela” ao TCU não é criar solução jurídica para uma situação em que o direito não prevê nenhuma: é substituir a solução prevista pelo direito por outra que se julga mais adequada.

EDUARDO JORDÃO – Professor da FGV Direito Rio e sócio do Portugal Ribeiro Advogados. Doutor pelas Universidades de Paris e de Roma. Mestre pela USP e pela LSE. Foi pesquisador visitante em Harvard, Yale, MIT e Institutos Max Planck.

Lula preso valia mais politicamente que Lula livre

Por Merval Pereira

O novo ano começa como os últimos, com esperanças de que o país recupere sua capacidade de crescimento econômico. As perspectivas desta vez são melhores do que já foram, especialmente porque o governo, eleito pelo voto popular, mantém seu projeto reformista, avalizado pela aprovação da reforma da Previdência.

O governo Temer, um intervalo entre o petismo e o bolsonarismo, chegou a ter o controle político do Congresso, mas perdeu a chance de aprovar a reforma da Previdência devido à crise desencadeada pelo diálogo gravado com o empresário Joesley Batista.

Temer teve que trocar o apoio que tinha no Congresso pela manutenção de seu cargo, perdendo força para aprovar as reformas. Hoje, temos pela primeira vez um Congresso renovado que comprou a ideia de que é preciso reformar estruturalmente o país, e um governo que mantém o objetivo de aprovar as reformas tributária, administrativa, do pacto federativo.

O parlamentarismo branco faz com que o Congresso module as reformas propostas pelo Executivo, às vezes avançando, principalmente na economia, em outras as adequa a seu perfil, como no pacote anticorrupção. Sempre, porém, tem havido progressos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu para si garantir a governabilidade do país, num estranho pacto entre os Três Poderes que não reflete obrigatoriamente o pensamento da maioria de seus pares.

Como quando seu presidente Dias Toffoli blindou a presidência da República sustando a investigação sobre o suposto esquema de lavagem de dinheiro envolvendo o hoje senador Flavio Bolsonaro quando era deputado estadual no Rio e tinha o famigerado Queiroz como seu assessor de confiança. O calcanhar de Aquiles do governo.

Toffoli teve que voltar atrás e aderir à decisão da maioria que avalizou a atuação do antigo Coaf e da Receita Federal. Apesar dos êxitos na área econômica e da popularidade do ministro Sérgio Moro, identificado pela opinião pública com o combate à corrupção e ao crime organizado, a presidência de Bolsonaro consegue reduzir suas próprias conquistas com a obsessão de aniquilar a esquerda e produzir embates quase diários para manter a polarização com o PT.

Assim como Lula já definiu como seus alvos principais os ministros Guedes e Moro, justamente as áreas mais bem sucedidas do ministério, também Bolsonaro empenha-se em colocar-se mais uma vez como o antiPT, na suposição de que esse é seu principal ativo político.

As crises políticas que alimenta podem representar obstáculos intransponíveis a qualquer momento. Bolsonaro pode também estar equivocado, mantendo a chama acessa do lulismo, que até o momento não se mostra capaz de mobilizações populares como antes da prisão do ex-presidente.
Lula preso valia mais politicamente que Lula livre.

Merval Pereira, Jornalista, é membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo-RJ, edição de 02.01.2020.

Mais trabalho, menos ideologia

Dois mil e vinte projeta-se como um ano promissor para a pasta da Infraestrutura. O ministro Tarcísio Gomes de Freitas afirmou que o governo federal deverá leiloar 2 ferrovias, 7 rodovias, 22 aeroportos e vários terminais portuários no ano que vem. De acordo com as projeções do Ministério da Infraestrutura, as concessões podem representar cerca de R$ 100 bilhões em investimentos no País nos próximos anos.

O ministro estima que serão realizados entre 40 e 44 leilões no ano que vem. O maior deles será o do trecho da Rodovia Presidente Dutra (BR-116) que liga São Paulo e Rio de Janeiro, concedido à Nova Dutra em 1995, durante o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo prazo de 25 anos. O governo federal espera “investimentos relevantes” neste leilão, ainda que “a preocupação principal não seja com a arrecadação”, disse o ministro Tarcísio Gomes de Freitas. Espera-se para daqui a poucos dias a abertura de consulta pública sobre o projeto pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Outra boa promessa para o ano que se avizinha é o leilão da chamada “BR do Mar”, que tem por objetivo impulsionar o transporte de cabotagem no Brasil, ou seja, o transporte de cargas por via marítima ao longo da vasta costa brasileira. De acordo com dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), 162,9 milhões de toneladas foram transportadas em 2018 por meio da navegação de cabotagem. Embora represente um aumento de 4,1% em relação ao ano anterior (2017), isso equivale a apenas 11% do total de carga transportada no País. É enorme, portanto, o potencial de crescimento deste modal, especialmente tendo-se em vista a imensidão do mar territorial brasileiro.

O Estado de São Paulo tem um papel preponderante na formatação final do projeto da “BR do Mar” a ser apresentado ao Congresso Nacional em 2020. O Palácio do Planalto negocia com o governador João Doria (PSDB) a redução a zero da alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do combustível para navios de cabotagem, que hoje é de 12%.

Frequentemente, a pasta comandada pelo ministro Tarcísio Gomes de Freitas é referida como um “oásis” ou uma das “ilhas de excelência” do governo de Jair Bolsonaro. A qualificação, bastante apropriada, é facilmente explicável. Não se teve notícia de declarações polêmicas, ataques a pessoas ou instituições ou da paralisia administrativa que marcaram este ano em outros cantos da Esplanada dos Ministérios. Ao contrário. Em 2019, o Ministério da Infraestrutura capitaneou 27 leilões de concessão. Foram 13 terminais portuários, 1 trecho da Ferrovia Norte-Sul, as Rodovias BR-364 e BR-365 e 12 aeroportos situados nas Regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Apenas com os 12 aeroportos, o governo federal arrecadou R$ 2,377 bilhões, sendo R$ 2,158 bilhões (90% do valor) correspondentes ao ágio pago pelos proponentes vencedores dos certames.

O destaque obtido em 2019 não deve ser creditado a uma fórmula mágica ou alguma especificidade do Ministério da Infraestrutura que não possa ser replicada em outras pastas. O que se observa é um ministro preparado para o cargo que ocupa e com disposição para se cercar de técnicos que o auxiliem na dura tarefa de reduzir o abissal déficit na área de infraestrutura do País.

Se o profissionalismo que marcou a atuação do Ministério da Infraestrutura em 2019 – e projeta um novo ano de bons resultados em 2020 – fosse também observado em pastas como Educação, Relações Exteriores e Cidadania, entre outras, o presidente Bolsonaro teria tido bem menos dores de cabeça e talvez terminasse o ano mais bem avaliado. Curioso é que o mesmo presidente que dá à Infraestrutura liberdade para agir pautada por critérios técnicos impregna as outras pastas com sua ideologia.

A lição que o Ministério da Infraestrutura dá às demais pastas é que o trabalho deve se sobrepor às narrativas, que os critérios técnicos prevaleçam sobre os ideológicos. Se será assimilada, veremos. O País só tem a ganhar se isso ocorrer. Consequentemente, também o presidente Jair Bolsonaro.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 30.12.19

Virtudes cristãs para um mundo melhor em 2020

Por Luiz Felipe D’Ávila

Dia de Natal é uma ótima ocasião para refletir sobre os valores cristãos. Jesus nos deu apenas dois mandamentos: amar a Deus acima de tudo e amar ao próximo como a ti mesmo. O amor está no epicentro do cristianismo. Ele é a fonte da misericórdia divina. Para Deus nos perdoar, é preciso termos consciência das nossas faltas e pecados. Por isso, culpar o outro e julgar o próximo, ao invés de reconhecer os próprios erros, é a maneira pela qual endurecemos o coração, renunciando ao poder transformador do amor e da compaixão. A misericórdia divina se revela quando somos capazes de perdoar os outros e a nós mesmos.

Nem a misericórdia divina é capaz de perdoar o pecado dos corações endurecidos pelo orgulho, pela soberba, pelo poder e pela incapacidade de reconhecer os seus erros e fraquezas. Por isso, Jesus condena a hipocrisia dos fariseus: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro eles estão cheios de ganância e cobiça”. Esse mesmo sentimento de indignação deveria nos inspirar a nos mobilizarmos contra os fariseus dos nossos tempos: os populistas.

Assim como os fariseus, os populistas se arvoram de ser a única voz legítima da vontade popular. Eles usam o poder para destruir a credibilidade das instituições e das leis; cerceiam as liberdades individuais, dividindo a nação entre “nós e eles”, e se apresentam como salvadores da pátria e restauradores da ordem, da direção e da proteção do povo contra os inimigos internos e externos do país. Esses fariseus modernos precisam ser destruídos por meio do exercício das virtudes cristãs.

Em 2020, vamos nos comprometer a restabelecer o diálogo e a tolerância com aqueles que pensam diferente de nós; vamos combater o radicalismo criando espaço para o entendimento e reconhecendo os pontos comuns que nos unem, mas também as diferenças que nos separam. Deixemos de lado o impulso primitivo de jogar pedra nos outros, de julgar e condenar aqueles que não pertencem à nossa tribo e não comungam das nossas crenças.

Será preciso muita coragem para construirmos pontes numa época dominada pela polarização, pelo ódio e pelo obscurantismo. Ao mostrar a capacidade de dialogar com os “adversários”, seremos considerados traidores pelos membros da nossa tribo. Ao reconhecer a legitimidade e as reivindicações do “inimigo”, seremos acusados de fracos e de ingênuos. Ao buscar o entendimento e a paz, despertaremos o ódio dos fanáticos que só encontram a razão de existir no mundo simplista do “nós e eles”.

Jesus foi um construtor de pontes. Mostrou que a misericórdia e o perdão dos pecados não eram privilégios do povo judeu, mas também dos pagãos que se convertessem à fé. Os seus milagres foram estendidos aos pobres e ricos, judeus e pagãos que demonstraram fé em Deus. Foi assim que Jesus transformou o cristianismo numa crença universal, e não apenas no privilégio de um povo ou de uma raça.

O mundo moderno precisa de construtores de pontes; de menos tribalismo e mais civilidade; de menos acusação e mais diálogo; de menos arrogância dos “donos da verdade” e de mais humildade para compreender os outros. Nossa missão é construir consenso em torno de um mínimo denominador comum que sustenta a civilização ocidental e suas virtudes: a democracia, a liberdade e o Estado de Direito. Esses são os pilares que criaram as condições necessárias para o progresso da humanidade. As virtudes cristãs – como a tolerância, a compaixão e o perdão – moldaram as leis, a arte, a cultura, a ética, assim como o comportamento e as crenças que deram vida e sentido aos valores e princípios que prezamos. A democracia permitiu a criação de uma sociedade livre. A liberdade nos ensinou a exercer o livre arbítrio e a conviver numa sociedade na qual o respeito à lei, à liberdade de expressão e à diversidade de crenças, raças e opiniões moldou o espírito cívico e a consciência coletiva de que o destino da nação está em nossas mãos e na qualidade das nossas escolhas.

Da união da liberdade com a democracia nasceu o capitalismo. Após as desastrosas experiências do comunismo e das diversas versões do nacionalismo econômico – que sempre empregou a mão de ferro do Estado intervencionista para adulterar as leis de mercado –, o mundo abraçou o capitalismo no final do século 20. Nos últimos 40 anos, o capitalismo produziu o maior milagre social: tirou 80% da população mundial da miséria por meio da profusão da inovação, do empreendedorismo, da criação destrutiva, da abertura dos mercados globais, da queda das barreiras protecionistas e do advento da globalização. Essas mudanças transformadoras geraram prosperidade material, econômica e social entre nações ricas e pobres, economias desenvolvidas e mercados emergentes.

Todas essas benesses que a liberdade, a democracia e o capitalismo produziram em quase meio século correm o risco de serem deformadas pelo poder maligno do populismo. Os populistas são destruidores da civilização e da civilidade. Num mundo que derrubou muros, eles querem voltar a reerguê-los. Numa era marcada pela abertura do fluxo de gente, ideias e capitais, os populistas buscam edificar as muralhas do protecionismo e do nacionalismo que sempre geraram riqueza para poucos e miséria para muitos. Numa época em que a força da imigração e da diversidade foi fundamental para fomentar a inovação, o empreendedorismo e a revigorar a economia por meio do trabalho duro e da vontade de prosperar, os populistas reinventam o nativismo nacionalista que gera preconceito, ódio e discriminação.

Portanto, a nossa missão é combater o populismo e prosseguir com as reformas graduais da democracia e do capitalismo para que continuem a produzir bons frutos para a próxima geração. O contra-ataque começa nas urnas em 2020.

Luiz Felipe Dávila, fundador do Centro de Lideerança Pública (CLP), é autor do livro "10 Mandamentos - do País que somos para o Brasil que queremos". Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 25.12.19

A insatisfação com Bolsonaro

O primeiro ano de governo não foi positivo para a popularidade do presidente Jair Bolsonaro. Ao longo do ano verificou-se uma crescente insatisfação com sua gestão, revela a mais recente pesquisa CNI/Ibope. Em abril, 27% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo. Em junho, 32%. Em setembro, 34%. Agora, em dezembro, o porcentual de insatisfeitos chegou ao seu maior índice – 38% dos brasileiros avaliaram negativamente o governo Bolsonaro.

Tal insatisfação é corroborada pelo decréscimo contínuo dos que aprovam a gestão de Jair Bolsonaro. Eram 35% em abril, 32% em junho, 31% em setembro e 29% em dezembro.

Quando questionados se aprovam ou desaprovam a maneira de o presidente Bolsonaro governar o País, 53% disseram que a desaprovam. No levantamento anterior, esse porcentual foi de 50%. Ao mesmo tempo, diminuiu o porcentual dos que aprovam o jeito de Jair Bolsonaro governar. Antes, eram 44%. Agora, são 41%.

A pesquisa CNI/Ibope foi realizada entre os dias 5 e 8 de dezembro. Ou seja, a população foi ouvida antes de virem a público os recentes desdobramentos da investigação envolvendo o senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente Bolsonaro. É provável, portanto, que os porcentuais de aprovação do governo sejam hoje um pouco piores do que os medidos no início do mês pelo Ibope.

De toda forma, ao observar as variações ao longo do ano, fica evidente que a insatisfação com o governo não foi causada por um evento específico. Há uma clara tendência de queda gradativa na avaliação positiva e de aumento da insatisfação da população. A conclusão é cristalina. No primeiro ano de mandato, o governo de Jair Bolsonaro não atendeu às expectativas e aos anseios da maioria da população.

Tal fato contraria a promessa feita pelo presidente Jair Bolsonaro de que não governaria em favor de grupos minoritários, mas na defesa dos interesses e sentimentos da maioria da população. Sua retórica ao longo da campanha, e também depois da posse, foi a de que o povo brasileiro não estaria satisfeito com o aparelhamento da máquina pública realizado por setores da esquerda e de que o seu papel como presidente da República seria precisamente devolver o Estado aos brasileiros.

As pesquisas de opinião revelam com indubitável clareza que, se o presidente Jair Bolsonaro se dispõe a entrar em sintonia com a maioria da população brasileira, deve ele mudar o quanto antes suas falas e suas ações. O que o presidente Jair Bolsonaro fez ao longo do primeiro ano – eis o dado incontroverso – agradou apenas a uma minoria da população. Diante de críticas e questionamentos, não cabe ao presidente dizer que governa em prol da maioria. Não foi o que se viu ao longo desses 12 meses.

Em algumas ocasiões, a defesa dos interesses nacionais deverá levar um presidente da República a tomar decisões desagradáveis para parte considerável da população. Especialmente em situações de crise, há necessidade de remédios amargos, e o exercício responsável do poder está precisamente em o governante não se guiar exclusivamente pelo critério da popularidade. Mas o crescimento da insatisfação com o presidente Jair Bolsonaro, observado ao longo de todo o ano, não tem relação com decisões difíceis tomadas por força de necessidades prementes do País. A erosão da aprovação do presidente Jair Bolsonaro está vinculada a uma condução sectária do governo, fustigando adversários, ampliando divisões e agindo sem o decoro e a responsabilidade que o cargo exigem. Além disso, a população ainda está à espera de uma retomada da economia e do emprego que lhe dê confiança quanto aos tempos futuros.

Faltam ainda três anos de mandato. Há tempo suficiente para, se assim quiser, o presidente Jair Bolsonaro emendar-se, atuando como o cargo exige e, não é demais repetir, como a imensa maioria da população espera. O exercício do cargo de presidente da República exige especial cuidado. Ainda que entusiasmem hordas virtuais, extravagâncias e despautérios não resolvem os problemas que precisam ser enfrentados. O ano de 2020 pode – e deve – ser diferente.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.12.198

Dia Internacional de Combate à Corrupção

Por Modesto Carvalhosa
Neste mês de dezembro inúmeras manifestações e eventos marcam o Dia Internacional de Combate à Corrupção. Sobre esse grave delito, que afeta, empobrece, mantém na miséria e mata milhões de pessoas em todo o planeta, muito se poderia relatar trazendo uma lista significativa de medidas e de campanhas que no Brasil, em 2019, têm procurado neutralizar e mesmo destruir as instituições e as pessoas dedicadas ao seu combate.

Por outro lado, seria possível ressaltar o entusiasmado apoio que o povo brasileiro tem dado aos agentes públicos encarregados da difícil tarefa de enfrentar esse crime contra a humanidade de cujas vítimas não conhecemos o rosto, mesmo porque pertencem a nada menos que dois terços da humanidade. Os efeitos devastadores da corrupção são evidentes em todo o mundo. Por isso é necessário pensar nas causas desse flagelo.

No âmbito dos diversos países verifica-se uma diferença grande na prática desse tipo de ilicitude. Nas nações civilizadas, com presença marcante da sociedade civil nos destinos do país e ordenamento jurídico fundado na ética e no interesse público, a corrupção é episódica e não sistêmica. Já nos países com fraca presença da sociedade civil, ou seja, com a onipresença do Estado, a corrupção é claramente sistêmica, ultrapassando as práticas criminosas das propinas para se instituir nas leis e na própria Constituição.

Afinal, o que é um fenômeno sistêmico? É o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão. Reproduz-se naturalmente. Essa corrupção sistêmica acaba por se tornar estrutural, fazendo parte dos fundamentos e das bases do Estado.

Nos países do terceiro mundo e nos emergentes temos três espécies de corrupção sistêmica: a corrupção constitucionalizada, a legalizada e a criminalizada.

E o que se entende por estrutural, nesse contexto?

São as bases institucionais que condicionam a vida social, mediante o modelo político expresso no sistema normativo-administrativo.

No Brasil a corrupção é claramente sistêmica e, por isso, estrutural a partir exatamente do modelo institucional, como se pode ver na Carta de 1988.

Sem uma profunda reforma política e administrativa será muito difícil mudar a fonte da corrupção. Pode-se combatê-la eficientemente, como se tem feito no Brasil nos últimos cinco anos. Dificilmente, no entanto, teríamos bases estruturais capazes de mudar a cultura dessa prática criminosa, que destrói vidas, oportunidades e esperanças. Para tanto cabe desde logo lembrar a necessidade de extinção do foro privilegiado por exercício de função, fonte de impunidade que produz todas as práticas corruptivas dos potentados da política.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser estabelecido que os ministros serão automaticamente nomeados pela regra do decanato, com um mandato de oito anos. Ou seja, as vagas serão preenchidas pelos ministros mais antigos em exercício no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A mesma regra de decanato valerá para os demais tribunais superiores. Nada de nomeação política, como atualmente. Também o STF terá competência unicamente de declaração de constitucionalidade das leis, deixando de ser uma instância recursal que trata de todas as demandas, incluídas as de habeas corpus.

A outra medida é proibir a reeleição para qualquer cargo eletivo nas eleições seguintes. A reeleição é nefasta por várias razões, principalmente por propiciar as mais variadas formas de corrupção.

Deve ser vedada a qualquer representante eleito a nomeação para cargo de ministro de Estado ou para qualquer outra função no âmbito do Poder Executivo. A mesma proibição se aplica nas esferas dos Estados e municípios.

Outra mudança estrutural necessária: o voto distrital puro, permitindo o controle dos eleitores sobre seus eleitos, inclusive com o direito de recall a cada dois anos, por ocasião das eleições gerais e municipais. Também as candidaturas independentes se impõem, para se dissolver a partidocracia instituída pela Constituição de 1988.

A eliminação do Fundo Partidário e do fundo eleitoral são medidas de moralização pública, fazendo com que os partidos políticos assumam o seu papel institucional e recobrem a sua relação com a sociedade civil e os seus eleitores, que deverão ser a única fonte de seus recursos. Outra providência constitucional imprescindível: a extinção das emendas parlamentares, fonte sistêmica de corrupção.

Por outro lado, o seguro de obra, de 100% do seu valor (performance bonds), adotado nos Estados Unidos desde l896, constitui o antídoto para a corrupção em obras públicas, pois quebra a interlocução direta dos agentes públicos com os empreiteiros licitantes e contratados. A seguradora assume, ademais, o prosseguimento da obra em caso de inadimplência da construtora.

Ainda no aspecto da administração do Estado, é fundamental que se declare que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse público no que tange aos agentes públicos. O Banco Mundial, no seu célebre relatório de 2017, apontou esse direito como o maior responsável pelos enormes e absurdos privilégios dos agentes políticos e administrativos em nosso país.

Nesse mesmo assunto, a extinção da estabilidade ampla, geral e irrestrita dos 13 milhões de servidores públicos se impõe, para que se possa estabelecer um regime de isonomia de direitos entre os que trabalham no setor público e no privado.

E, finalmente, o regime de transparência das atividades governamentais, a tempo presente e com leitura prévia, deve ser aprofundado com o sistema de robotização, capaz de abranger todos os setores da administração pública a um só tempo.

A lista não se esgota aqui. Contudo essas medidas acima devem ser adotadas para que o Brasil saia da lista dos países sistemicamente corruptos.

Uma nova Constituição cada vez mais se faz necessária.

Modesto Carvalhosa é Advogado. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.12.19

De como o óbvio é revolucionário

Por Fernão Lara Mesquita

"O Brasil não funciona porque a avaliação do setor público independe da ‘satisfação do cliente’

Domingo agora, J. R. Guzzo escreveu neste jornal que “a igualdade não é um direito, é o resultado do que o cidadão aprendeu”, que “é inútil querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos” e que “não há como ser igual nos méritos se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais”. Conclusão: “ainda não foi inventada no mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente”.

Mas como arrancar a educação pública brasileira dos dois atoleiros aos quais está presa, a corrupção inerente ao ambiente estatal e o serviço a um projeto de poder? Ontem, falando de corrupção, Modesto Carvalhosa lembrou nesta página que “um fenômeno sistêmico é o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão”. Mas pode haver uma versão virtuosa disso. Eu tenho fascínio pela instituição da eleição direta do school board das escolas públicas em todos os países de colonização inglesa. É a peça mais básica da democracia moderna, que é a que foi reinventada por eles. É ali que se dá a intersecção mais concreta do público com o privado e que se define, no nível mais próximo do cidadão comum, a relação hierárquica que há entre ele e o seu representante eleito, de modo a criar a sua própria continuidade.

Sendo a base de tudo na democracia moderna a necessidade de ela ser “representativa” e o sistema distrital puro de eleição a única maneira sem tapeações de prover essa representação de modo aferível, preto no branco, o bairro, a menor célula do sistema, elege obrigatoriamente entre candidatos que moram nele (pais de alunos) o conselho gestor da escola pública local. Nos Estados Unidos esses boards têm, tipicamente, sete membros para que não haja empate em suas decisões, com duas “metades”, uma de três outra de quatro membros, eleita a cada dois anos, para mandatos desemparceirados de quatro anos. Como todo funcionário eleito, também estes estão sujeitos a recall a qualquer momento que seus eleitores se sentirem mal representados. Esse conselho tem por atribuição contratar e demitir o diretor da escola e aprovar ou não os seus orçamentos e planos de voo anuais.

A esta altura os leitores ainda sujeitos ao complexo de vira-latas já estão pensando como o brasileiro das favelas ou lá dos fundões poderá mandar na educação (de seus filhos) com bons resultados. A função do school board, assim como a da democracia como um todo, não é imprimir sofisticação aos currículos, é estabelecer o filtro contra a mais mortífera de todas as doenças que acompanham a humanidade ao longo dos tempos neste vale de lágrimas, que é a corrupção pelo poder, e tornar a escola pública “orientada para o cliente”. Hoje, com as exceções que confirmam a regra, ela está orientada para servir a seus servidores e manter para sempre nas mãos dos próprios privilegiados o controle sobre a distribuição de privilégios pelo Estado, que é ao que se resume, despido de sua fantasia século 20, todo o blablablá em torno da estatização ou não do que quer que seja.

Qualquer pai terá condições de saber quem são as pessoas mais capacitadas para fazer parte desse board na sua comunidade e, sendo o voto secreto, de defender-se de pressões indevidas. E qualquer ser humano em poder de suas faculdades saberá avaliar a razoabilidade ou não de um orçamento a partir da segunda vez que tiver de tratar do assunto. Além disso, como todos, esse sistema gera os seus próprios meios de tornar-se “sistêmico” e autorreproduzir-se: centros de apuração e difusão de melhores práticas, cursos de aperfeiçoamento de membros de school boards, etc.

Nenhum prejuízo colateral será maior que o de manter o controle das verbas e das decisões na área de educação nas mãos de quem terá o poder de transformá-las no próprio salário e o de deixar a avaliação de quem deve preparar um país inteiro para a competição global a indivíduos que não têm, eles próprios, de competir por seu lugar ao sol. Ontem mesmo, aliás, editorial na página ao lado desta constatava que há mais professores do ensino básico sendo formados no Brasil de hoje, onde eles já são 3,1% da força de trabalho e 20% das mulheres com ensino superior, que alunos a demandá-los. Por que seria, se os salários são tão baixos? Porque o magistério público atrai pessoas de famílias paupérrimas e, no quadro da miséria nacional, ser professor prestando um vestibular de Pedagogia é um modo mais fácil que o vestibular de Medicina, por exemplo, para disputar uma posição de segurança vitalícia num emprego estatal.

Não é, portanto, aumentando salários num ambiente regido pela regra da isonomia – aquela que afirma: “eu merecerei ganhar mais sempre que outra pessoa fizer por merecer ganhar mais” – que se vai resolver o problema da qualidade da educação básica no Brasil. E a solução passa obrigatoriamente pelo rompimento com a “mentira analítica”: a crítica do sistema tem de ser feita pelo consumidor, e não pelo fornecedor de educação pública, como geralmente acontece até mesmo nas bancas (quase exclusivamente compostas por professores de universidades públicas) que os jornalistas convocam para debater o problema.

Nada disso, porém, pode ocorrer isoladamente. Se quisermos viver numa democracia, o school board é só a peça mais básica. Um certo número de distritos eleitorais escolares (bairros) comporá um distrito eleitoral municipal, um conjunto destes fará um distrito estadual e outro múltiplo deles fará um distrito federal, que elege um deputado federal, todos eles diretamente atrelados a eleitores específicos e sujeitos a recall, ou seja, submetidos à mesma meritocracia sob a qual vivem os seus representados.

Não é só o sistema de educação pública. O Brasil inteiro não funciona porque a avaliação e a condição de permanência, seja no emprego, seja no poder públicos, é absolutamente independente da “satisfação do cliente”.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro. com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 10.12.19

Uma mentira puxa a outra

Por Fernão Lara Mesquita

Uma mentira puxa a outra. Até o Lula sabe disso e, excepcionalmente, confessa. O empilhamento de “erros” – e no Brasil a esmagadora maioria deles não passa de mentiras – é a maior maldição nacional. É daí que vem a obesidade mórbida da Constituição (245 artigos, 105 emendas) e essa legiferância desenfreada que nos estão matando. Arrotamos “direitos” sem parar, mas temos “cerca de” 200 mil leis em vigor (ninguém sabe o número exato), entre elas a que afirma que “ninguém pode alegar em sua defesa o desconhecimento da lei”...

O País real (99,5% da população) vai como vai o mundo da hipercompetição que ruge lá fora: corrigindo o mais rapidamente possível os seus erros porque contemporizar com eles é morte certa. Nada de mais. Até os animais irracionais funcionam assim. Mas não aquele Brasil isento de competição, com mandatos e empregos inabalavelmente “estáveis” (0,5% da população). Este desfruta uma combinação de prerrogativas capaz de corromper até o mais santo dos homens. Não só está dispensado de pagar pelos seus, como pode cometer “erros” em causa própria, fazer deles leis e normas constitucionais e impô-los, “petrificados” para todo o sempre, ao resto de nós.

Esse “erro” original da invulnerabilidade é o pai de todos os outros. E cada vez que é constitucionalmente “petrificado” mais um dos acertos entre grupos de poder para auferir benefícios ilícitos à custa dos outros que dela decorrem, uma nova e frondosa árvore de gambiarras legais começa a estender seus galhos sobre a Nação, de crise em crise, na vã tentativa de cercar os efeitos do “erro” original “imexível”.

Não é por acaso, portanto, que a alegação da “constitucionalidade” deste ou daquele movimento é tida pelo povo brasileiro como a mais segura prova da sua ilegitimidade. Assim como não é por acaso – e o freguês tem sempre razão! – que a imprensa que recorre a esses mesmos argumentos para declarar inconstitucional qualquer tentativa de corrigir essas distorções colhe do povo o mesmo repúdio que ele reserva aos toffolis e gilmares. A verdade no Brasil de hoje está sempre nas nuances...

O mundo todo, aliás, anda mergulhado na Babel da subversão conceitual. Muita gente vê como sinal de morte da democracia a epidemia de explosões sociais sem projetos utópicos que grassa no planeta. A Primavera Árabe (2010), o Occupy Wall Street (2011), o Brasil-2013 e, neste 2019, França, Chile, Líbano, Bolívia, Equador, Iraque e o mais compõem um feixe de casos que não poderia ser mais diversificado em matéria de liberdades democráticas e níveis de desenvolvimento e renda. O que eles têm em comum não é o “descrédito generalizado nas instituições de representação do povo que sustentam a democracia”. É, ao contrário, o repúdio às versões falsificadas, às democracias sem povo ou ao esvaziamento do poder do povo por via direta ou indireta mesmo nas mais avançadas.

Andar para trás na senda das conquistas econômicas e sociais é sempre explosivo, não importa a altura da qual se parta. Abertas às pressões populares, entre as quais as mais fortes estão sempre ligadas ao medo da perda do emprego, a grande diferença entre as democracias e as ditaduras onde o títere pode bancar sua “valentia” com o sangue dos outros é a covardia institucionalizada. Essas manifestações são os estertores de morte, sim, mas das classes médias meritocráticas, que, em qualquer canto do mundo, são as que primeiro aprendem a usar o poder de mobilização que as redes sociais proporcionam.

O poder de mercado chinês é, antes de mais nada, a projeção internacional de força do partido totalitário no poder. E tem tido enorme sucesso em dobrar e perverter o capitalismo democrático. Este tem de aprender com os socialistas a ser inflexível na sanção das manifestações em contrário. Em vez disso, citando Bolívar Lamounier, domingo, nesta página, vemos Hollywood aceitando a censura para não ser expulso do mercado chinês, a NBA fazendo rapapés a assassinos para se desculpar pela declaração de apoio de um único atleta às manifestações de Hong Kong, as 40 maiores empresas aéreas do mundo concordando em apagar de seus sites qualquer referência a Taiwan como país e, acrescento eu, democracias maduras revogando legislações antitruste para entrar na corrida de monopólios (e no consequente desembesto da corrupção) imposta por Pequim. Já são quase 40 anos de recordes sucessivos de fusões e aquisições...

Sempre a China totalitária impondo limites à liberdade de expressão e retrocessos às democracias, e não o contrário, como deveria ser, mediante a criação de impostos sistemáticos contra a violação de direitos humanos e de propriedade que ela perpetra impunemente sem parar para roubar empregos, no primeiro momento, e liberdades, no fim da linha, às classes médias meritocráticas ao redor do mundo.

Feito de pequenos avanços no prazo de gerações que tornam impossível que qualquer uma isoladamente tenha memória viva de modelos muito diferentes para cotejar, a única maneira de evoluir rapidamente na arte da construção de instituições é com estudos comparativos. Daí o zelo da censura que os inimigos da democracia exercem no Brasil contra a cobertura do funcionamento das ferramentas do sistema imunológico das mais adiantadas (primárias diretas, recall, referendo, iniciativa, etc.) que proporcionam aos seus povos o luxo de não estar nem aí para aquilo que querem nos apresentar como a essência delas, como é o caso de Donald Trump (que não manda nada) nos (próprios) Estados Unidos.

A resposta às explosões de descontentamento que pululam por aí é a que Sebastian Piñera está articulando no Chile: depois de cortar pela metade os salários dos políticos numa só tacada, eliminar os erros de raiz com uma nova Constituição elaborada do zero por constituintes especialmente eleitos para isso (e não pelos políticos usurpadores da constituição a ser reformada), seguida de referendo popular do documento que eles elaborarem.

A única reforma que funciona continua, portanto, sendo a mesma de sempre: “Power to the people”.

Fernão Lara Mesquita,é Jornalista, é o editor de www.vespeiro.com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.12.19

Guerra Imaginária

Foi espantosa a facilidade com que o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou, na segunda-feira passada, a hipótese de adoção de uma medida de exceção nos moldes do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) para conter eventuais manifestações violentas de oposição. Como se fosse algo trivial, o principal ministro do presidente Jair Bolsonaro considerou plausível e até natural que, a título de enfrentar uma “quebradeira” nas ruas, haja o clamor para que o governo emule o regime militar, fechando o Congresso e cassando liberdades individuais, pois foi isso o que aconteceu em dezembro de 1968 com a edição do AI-5, ora evocada.

Ao comentar recente discurso do ex-presidente Lula da Silva, que incitou a militância petista a “seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia” e “atacar, não apenas se defender”, o ministro Paulo Guedes declarou que “é irresponsável chamar alguém para rua para fazer quebradeira, para dizer que tem que tomar o poder”. Acrescentou que “quem acredita numa democracia espera vencer (as eleições) e ser eleito”, isto é, “não chama ninguém pra quebrar nada na rua”. E continuou: “Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”.

Que Lula da Silva aposta suas fichas no confronto com o atual governo, parece não haver dúvida. Seu discurso denota claramente essa disposição, que não seria novidade na trajetória belicosa do PT, principalmente quando está na oposição. Tampouco é novidade que junto com a “resistência” petista sempre vêm os baderneiros, que abusam da liberdade de manifestação para causar tumulto e que, quando reprimidos, posam de vítimas da “truculência” do Estado. Nada disso, contudo, justifica que se invoque a hipótese de cancelar direitos políticos e garantias individuais, o que só poderia acontecer em resposta a uma excepcionalíssima situação de rebelião interna – conforme os artigos 136 a 141 da Constituição, que versam sobre estado de defesa e estado de sítio.

Como o ministro Paulo Guedes não foi o primeiro entre os mais próximos do presidente Bolsonaro a falar em reedição do AI-5 – recorde-se a recente declaração do deputado Eduardo Bolsonaro a esse respeito –, preocupa a possibilidade de que tal flerte com a ruptura democrática esteja se disseminando no governo, a ponto de ser publicamente manifestado.

O presidente não quis comentar essas declarações de seu ministro da Economia (sobre outras declarações de Guedes, ver abaixo o editorial ‘Dólar em alta, mais um alerta’), mas é notória sua admiração pelo regime militar – para ele, “o único erro da ditadura foi torturar e não matar”. Logo, a referência ao AI-5 dentro de um governo inspirado por esse tipo de raciocínio não é casual nem inocente. Tanto é assim que o presidente Bolsonaro defende agora que as forças de segurança envolvidas em repressão a protestos tenham licença para matar – chamada de “excludente de ilicitude” para operações de Garantia da Lei e da Ordem. Para tanto, basta classificar a manifestação como “ato terrorista” caso haja algum episódio violento.

Um desavisado que chegasse hoje ao Brasil poderia imaginar, ouvindo esse discurso, que o País está à beira de um conflito civil. Esse estrangeiro estranharia, contudo, o fato de não haver nas ruas nenhum sinal de conflito – apenas o vaivém cotidiano dos cidadãos para cumprir seus compromissos. E diante disso talvez o visitante se perguntasse, com razão, o que pretende um governo que demonstra tanta preocupação com esse confronto imaginário, a tal ponto de parecer mesmo desejá-lo.

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena, do Estado de Direito e da estabilidade política e social deveriam se fazer a mesma pergunta. Mais do que isso: deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas de exceção como o AI-5, especialmente quando a tentativa parte de quem está no poder e que, mais que todos, deve dar o exemplo de respeito às liberdades democráticas gravadas na Constituição que jurou cumprir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, resumiu bem a questão: “Não dá para usar a expressão ‘AI-5’ como se fosse bom dia ou boa noite”.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 27.11.19

Inaptidão para a democracia

Não se pode confundir democracia com liberdade para afrontar os princípios básicos da convivência política e social. E isso tem acontecido com frequência preocupante desde que chegou ao poder um grupo político que, a título de recuperar os “valores e tradições” mais caros à sociedade brasileira, como prometeu o presidente Jair Bolsonaro em sua posse, vem intoxicando a atmosfera do País com truculência e intolerância.

Esses não são os valores mais caros à sociedade brasileira. Não era isso o que clamavam os que se enojaram da corrupção e da leviandade dos políticos na era lulopetista. Era o exato oposto: que fossem resgatados os valores frontalmente aviltados por mais de uma década de desfaçatez e autoritarismo protagonizada pelo PT de Lula da Silva, que dificultou o diálogo democrático mesmo na esquerda e fez da arrogância e da violência retórica – quando não física, como atesta o longo histórico de vandalismo do MST e seus congêneres a serviço do partido – um método para chegar ao poder e lá ficar para sempre.

E tudo isso, é sempre bom lembrar, sob o disfarce de partido campeão da ética, com o qual Lula e seus devotos pretendiam se apresentar como moralmente superiores e, assim, impor suas vontades ao resto do País. Quem ousava não votar no PT era desde logo estigmatizado como inimigo dos pobres, insensível ante a “revolução social” capitaneada pelo demiurgo de Garanhuns.

Foi contra esse crime continuado cometido pelo PT contra a democracia que os eleitores manifestaram, no ano passado, sonoro repúdio. Mas, por mais eloquente que tenha sido, tal voto certamente não trazia embutida nenhuma autorização para que os eleitos dessem vazão a seus instintos mais primitivos, como se a vitória eleitoral tivesse o condão de levantar todas as interdições que a civilização impõe àqueles que dela pretendem fazer parte.

Quando um deputado federal destrói parte de uma exposição na Câmara alusiva ao Dia da Consciência Negra, sob o argumento de que o que ali estava retratado vilipendiava os policiais militares ao acusá-los de promover um “genocídio da população negra”, a democracia é violentada – com a agravante de se dar nas dependências da chamada “Casa do Povo”. Quando esse mesmo deputado faz de seu ato insano um evento para suas redes sociais, como se fosse um gesto político legítimo, então é a barbárie.

E quando outro deputado, em defesa do gesto agressivo do colega, vai à tribuna da Câmara e diz que a Polícia Militar não pode ser responsabilizada pela morte de negros “porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado”, adentra-se o terreno em que inexistem padrões mínimos de convivência em sociedade. É o vale-tudo – o exato oposto da democracia.

Não é mera coincidência que esses parlamentares sejam correligionários do presidente da República, Jair Bolsonaro, que reiteradas vezes ao longo de sua trajetória política demonstrou escassa disposição de aceitar os ritos e costumes próprios da vida democrática, a começar pelo respeito a quem pensa diferente. Logo, nada mais fazem do que imitar o estilo do “mito”, na presunção de que isso deleitará os eleitores.

Pode até ser que alguns eleitores de fato vibrem com essas demonstrações cabais de menosprezo pela democracia e suas instituições, mas certamente a grande maioria se preocupa com a escalada de grosserias por parte dos bolsonaristas, pois esse comportamento jamais dá em boa coisa. Pelo contrário, é um indicativo claro de inaptidão para a democracia.

Não se pode tratar esses fatos como normais ou mesmo toleráveis. A naturalização da violência como instrumento político torna a sociedade mais vulnerável à ação dos liberticidas. É preciso demonstrar, de maneira clara, total repúdio a essa tentativa de transformar a política em rinha de galos. Muitos eleitores, com carradas de razão, ajudaram a defenestrar o PT do poder justamente por tentar criar uma insuperável divisão na sociedade; agora, espera-se que esses mesmos eleitores, com igual vigor, condenem aqueles que, a título de combater “esquerdistas” em toda parte, alimentam um clima de confronto crescente com o qual planejam minar a democracia e, assim, estender indefinidamente sua permanência no poder.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.11.19

Os desafios da República

Os 130 anos da proclamação da República são uma ocasião especial para refletir sobre o futuro do Brasil. A mudança de regime ocorrida em 1889 foi o resultado de um amplo movimento cívico, que teve a ousadia de pensar os problemas nacionais, apresentar propostas concretas e lutar por elas. Momento especial dessa trajetória foi o Manifesto Republicano de 1870, que conclamava, juntamente com o fim da monarquia, a ampliação dos direitos políticos, a melhora da educação e a instalação do federalismo.

Com sua história intimamente ligada à proclamação da República – foi fundado em 1875 com o objetivo de propugnar pela abolição da escravidão e pelo fim da monarquia –, o Estado está publicando nesta semana uma série de reportagens sobre os novos desafios da República. Para tanto, o jornal entrevistou 53 lideranças, de diversas áreas, fazendo a todos duas perguntas. Quais promessas da República foram cumpridas? Quais valores deveriam ser reafirmados em um novo manifesto republicano? A resposta mais frequente à segunda pergunta foi o combate à desigualdade.

Nas respostas, também foram muito mencionados os seguintes valores: promoção da democracia, educação, combate aos privilégios, reforma do Estado contra o nepotismo, o clientelismo e o patrimonialismo, igualdade perante a lei, promoção da liberdade, melhora da representatividade, igualdade de oportunidades e liberdade de expressão.

Ao reunir essas respostas, fica evidente que os valores mencionados são complementares. “A democracia e a liberdade exigem um complemento de natureza solidária, que espelhe a importância de lacunas que ainda temos. Igualdade de oportunidades e uma rede de proteção solidária são cruciais”, lembrou o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.

A convicção da complementaridade desses valores esteve muito presente na campanha pela instauração da República na segunda metade do século 19. A luta pelo fim da monarquia não se resumiu a destituir o imperador d. Pedro II ou a instaurar um novo regime de governo. Os dois princípios da República – a igualdade de todos e o governo das leis – eram encarados como os pilares de todo o desenvolvimento político, econômico e social do País.

Decorridos 130 anos são muitos os desafios que ainda não foram devidamente enfrentados. “Colocar a educação como eixo central do projeto de Nação nunca aconteceu”, disse Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação. Diante do muito que o Brasil ainda tem de caminhar para alcançar patamar mínimo de desenvolvimento, é urgente resgatar e revalorizar os dois princípios basilares da República. A igualdade e o regime das leis continuam sendo plenamente atuais e de enorme fecundidade. O que falta é aplicá-los em toda a sua profundidade.

Em artigo recente publicado no Estado (Constituição e a supremacia do governo das leis, 12/11/2019), o professor Celso Lafer lembrou, por exemplo, a rica concepção que os romanos tinham da lei. “Lex é uma palavra que tem como base a ideia de relação, de convenção, que liga os homens entre si e se efetiva, não através de um ato de força, mas sim politicamente através de um arranjo ou acordo mútuo. Daí, em matéria de governo das leis, a convergência republicana entre o consensus juris (o consenso do direito) e a communis utilitatis (a comum utilidade), que deve alcançar o povo como o destinatário do que deve ocorrer na res publica”, escreveu o professor da USP. Ter presente a dimensão relacional da lei e sua direta vinculação com o bem público pode contribuir para um renovado respeito ao Direito vigente, carência ainda tão marcante no Brasil dos dias de hoje.

A causa da República não terminou no dia 15 de novembro de 1889. Persistem no País profundas desigualdades e perversos privilégios. Ao mesmo tempo, é de justiça reconhecer o profundo impacto positivo do ideal republicano na trajetória do País. Muito se fez ao longo desses 130 anos. E ainda hoje os valores republicanos inspiram muitas iniciativas e projetos que trabalham pelo bem público. Que a República continue sendo um ideal capaz de unir todo o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 15.11.19

Como é na democracia – 2

Por Fernão Lara Mesquita

O primeiro artigo desta série mostrou com exemplos da eleição de terça passada (5/11) como os americanos decidem no voto tudo o que afeta a sua vida, num processo permanente de reformas de iniciativa popular.

Como garantem a segurança e a legitimidade desse processo?

A primeira preocupação dos Fundadores, fugitivos de uma Europa onde qualquer um podia ter seus bens confiscados ou até perder a cabeça apenas porque sua majestade acordou de mau humor, foi tornar invulneráveis o cidadão comum e os frutos do seu trabalho com regras tão simples, econômicas e transparentes que pudessem ser compreendidas até pelo menos ilustrado dos mortais.

O resultado é uma obra-prima sem precedentes nem sucessores na História do mundo, tão solidamente amarrada a verdades indestrutíveis por argumentos que desde então só pôde ser desafiada pela violência. Física primeiro, intelectual agora, quando os inimigos da democracia tratam de destruir o próprio conceito de verdade, o que é o reconhecimento último da identificação perfeita que veem entre uma coisa e outra.

As instituições americanas distinguem “direitos negativos” de “direitos positivos” e estabelecem uma hierarquia entre eles. Só os direitos negativos, “naturais e reconhecidos pelos homens de todos tempos”, estão inscritos na Constituição federal, aos quais todos os outros estão subordinados. São eles os que decorrem da inviolabilidade da pessoa e, portanto, exigem que seu beneficiário não seja sujeitado por atos do governo ou de outras pessoas para tê-los satisfeitos: o direito à vida (e à legitima defesa), à propriedade (ao produto do seu trabalho), à liberdade de crença, de pensamento e de expressão, etc.

São direitos positivos (artificiais) os que requerem aportes de recursos de outras pessoas, diretamente ou através do governo, para que o seu beneficiário possa desfrutá-los: o direito a um determinado nível de vida, à educação, à moradia, à estabilidade no emprego, a salários e aposentadorias privilegiados, etc.

Como todo direito positivo viola o direito negativo de todos de não ser expropriado, estes só podem ser instituídos numa democracia mediante o consentimento explícito (no voto) de quem vai pagar por eles. Por isso, lá, tais direitos só podem ser inscritos em leis e Constituições estaduais ou municipais depois da aprovação, no voto, da comunidade interessada.

Para que esse processo pudesse tornar-se operacional numa democracia na qual “todo poder emana do povo”, que, pela extensão do território envolvido, tem de ser necessariamente “exercido por seus representantes eleitos”, definir as regras para tornar essa representação a mais fiel possível é a tarefa mais essencial de todo o conjunto.

Nasce daí o sistema de eleição distrital puro. Nele o tamanho de cada distrito eleitoral é dado pela divisão do número de habitantes pelo número de representantes desejados em cada órgão de representação. A menor célula é o bairro, que elege o conselho diretor da escola pública local. A maior, o distrito federal, que elege um deputado federal. Com 340 milhões de habitantes e 435 deputados, cada distrito federal tem, lá, aproximadamente 780 mil habitantes. Cada distrito federal incorporará um determinado número de distritos estaduais, que incluirão uma soma de distritos municipais, por sua vez resultantes de uma soma de distritos escolares. Todos são desenhados sobre o mapa real de distribuição da população e só podem ser alterados em função do que o censo apurar a cada dez anos.

Como cada candidato só pode se oferecer aos eleitores de um distrito, todo representante eleito sabe exatamente, pelo endereço, quem é cada um dos seus “donos”.

Ao longo do primeiro século depois da Constituição de 1787, com a memória ainda viva do poder dos reis, prevaleceu a preocupação dos Fundadores de blindar os representantes eleitos contra tentativas do Executivo de dominá-los. Foi um erro fatal. Intocáveis enquanto durasse o mandato, não demorou para que se corrompessem a ponto de quase destruírem a jovem democracia.

Na virada do século 19 para o 20, com o país tão podre quanto está o Brasil hoje, eles importaram as ferramentas de controle usadas na Suíça que tornam os representantes eleitos sujeitos à reconfirmação da confiança dos eleitores a qualquer altura do mandato. Os direitos de retomada de mandato, iniciativa legislativa e referendo das leis dos Legislativos foram o “pé de cabra” com que outros direitos foram sendo arrancados ao “Sistema”. Despartidarização das eleições municipais e eleições primárias acabaram com a força dos caciques políticos e eleições de retenção de juízes jogaram por terra a resistência do Judiciário.

O princípio operacional é sempre o mesmo. Como todo representante tem “donos” conhecidos e toda lei tem um alcance determinado, até o nível estadual leis e representantes podem ser desafiados por qualquer cidadão. Se colher o número estipulado de assinaturas no seu distrito (em geral de 5% a 10% dos eleitores), é convocada nova eleição no distrito para retomar um mandato, rejeitar ou aprovar uma lei, propor ou recusar uma obra ou uma despesa pública específica. Tudo direto, preto no branco, com cada cidadão com sua pequena parcela de poder e nenhum indivíduo ou “movimento social” autorizado a decidir pelos outros. Desde então o contribuinte é quem decide que nível de imposto e remuneração dos servidores é justo, a vítima é quem decide qual a punição suficiente para cada crime e assim por diante. Os aperfeiçoamentos são introduzidos dia após dia, voto após voto, como mostraram os exemplos da eleição da semana passada.

Longe dos olhos, longe do coração. A medida da eficácia do sistema é a quantidade de liberdade, dinheiro, saúde, segurança e inovação que sobram por lá e faltam lancinantemente nos países que, isolados pela língua e tolhidos na sua capacidade de visão à distância (tele-visão), são mantidos ignorantes da única versão de democracia que põe o povo de fato no poder, e continuam vivendo numa condição medieval de insalubridade institucional.

Fernão Lara Mesquita, Jornalista, escreve em www.vespeiro. com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 12.11.19

O Brasil precisa de juízo

Uma das últimas visitas que Lula da Silva recebeu na cadeia, em Curitiba, foi a do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Paulo Rodrigues. Foi por Rodrigues que o chefão petista mandou dizer que sairia da prisão “mais à esquerda” do que quando entrou. A mensagem – cujo emissário não podia ser outro, considerando-se que Lula já designou o MST como um “exército” a seu serviço – dá a entender que o ex-presidente está disposto a radicalizar seu discurso.

Faz sentido. Com a imagem arruinada pelos seguidos escândalos de corrupção e pela desastrosa administração da economia no governo de Dilma Rousseff, o PT hoje só existe como contraponto aos radicais de direita que ascenderam ao poder justamente com o discurso de combate ao petismo. Os dois lados dessa porfia nada têm a oferecer ao País senão um antagonismo vazio, que se presta somente a excitar militantes nas redes sociais. Mais tempo e energia serão gastos inutilmente nas barricadas virtuais, com o único propósito de mobilizar a atenção do País para, desse modo, tentar ampliar o capital eleitoral de parte a parte.

Ao se dizer “mais à esquerda” agora do que antes, Lula veste o figurino de “radical” – personagem que não condiz nem um pouco com a do político que, ao longo de quase toda a sua trajetória, não se furtou a negociar com quem quer que fosse, desde que isso o ajudasse a chegar ao poder ou a nele permanecer.

Foi assim, por exemplo, que Lula, quando sindicalista, fazia discursos raivosos para os trabalhadores e, em seguida, confraternizava alegremente com empresários na Fiesp. Foi assim, também, quando Lula se aliou a Paulo Maluf para eleger seu poste Fernando Haddad prefeito de São Paulo em 2012. O denominador comum de toda essa história é apenas Lula da Silva – um “viciado em si mesmo”, como certa feita o classificou, argutamente, o escritor Millôr Fernandes. Assim, o discurso de Lula de radicalização “à esquerda” nada tem a ver com convicção ideológica. É tão somente um truque publicitário.

Do outro lado da trincheira, os bolsonaristas provavelmente desejam que Lula adote mesmo uma retórica incendiária, pois assim imaginam que o movimento em torno do presidente Jair Bolsonaro possa ganhar novo ímpeto, já que só existe por ser o perfeito antípoda do PT. Para o governo, este é o momento ideal para ser desafiado pelo lulopetismo, pois a anunciada agitação do demiurgo de Garanhuns pode ajudar a reunificar o bolsonarismo – que hoje enfrenta escancaradas divisões internas, traduzidas pela implosão do PSL, partido do presidente, e pelas seguidas discórdias causadas pelos filhos de Bolsonaro, quando não pelo próprio.

O resultado disso tudo é a retomada da polarização que tanto mal tem feito ao País nos últimos anos. O entrevero entre lulopetistas e bolsonaristas reduz a política a uma briga de rua, que só faz sentido para os valentões. Nos dois lados, não se discutem problemas reais, e sim mistificações e conspirações, que em nada colaboram para a construção de um País melhor. Ao contrário, interditam qualquer possibilidade de diálogo, única maneira de alcançar consensos mínimos para a adoção bem-sucedida de políticas públicas.

Mais do que nunca, é preciso que os partidos e movimentos que se posicionam mais ao centro consigam se manter vivos no ar rarefeito da radicalização e se façam ouvir em meio à gritaria dos que nada têm a oferecer ao País. É preciso reforçar o discurso da necessidade de entendimento, para que o curso das reformas não seja interrompido. Não se pode pretender superar a crise e recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento quando a verdade dos fatos dá lugar a palavras de ordem e gritos de guerra.

Tampouco se pode esperar que o País chegue a bom porto quando forças extremistas (e oportunistas) fazem pouco das instituições – seja quando Lula se diz vítima de perseguição política por parte da Justiça, seja quando o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, sugere a necessidade de adotar medidas de exceção “se a esquerda radicalizar”. A hora é de serenidade e de convicções democráticas firmes por parte dos brasileiros que não perderam o juízo.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 10.11.19.

O alerta que vem com o aumento da desigualdade

Era de se esperar que a aguda recessão de 2015/2016, legada ao país pelos governos lulopetistas, causasse estragos, alguns de efeito prolongado, como o contingente de desempregados — 12,5 milhões de pessoas em setembro, segundo o IBGE.

Mas este é só um sintoma da deterioração das condições de vida da população. Há outros. Um retrato contundente dessa realidade está exposto na pesquisa Síntese de Indicadores Sociais, divulgada na quarta-feira pelo IBGE.

Segundo o estudo, desde o início da crise econômica, em 2014, 4,5 milhões de brasileiros foram lançados na extrema pobreza, o que representa um aumento de 50% no número de miseráveis em quatro anos.

No ano passado, segundo a pesquisa, 13,5 milhões de brasileiros viviam na extrema pobreza — pelos critérios do Banco Mundial, com menos de R$ 145 por mês. Esse contingente, o maior da série histórica, corresponde a duas vezes a população da cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do país.

Entre essas famílias de miseráveis, o rendimento médio no ano passado foi de apenas R$ 69 por mês. De acordo com o estudo, embora em 2018 a economia tenha dado sinais de recuperação, essa ligeira retomada não interrompeu o aumento da miséria.

Não é apenas o quadro atual que preocupa, mas também as projeções para os próximos anos. O diretor da FGV Social, Marcelo Neri, diz que se o Brasil crescer 2,5% ao ano, sem que a desigualdade aumente, somente em 2030 o país retornará ao patamar de extrema pobreza que registrava em 2014 (9 milhões de miseráveis). O que torna difícil cumprir a meta pactuada em 2015 com a ONU, dentro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de erradicar a miséria no país até 2030.

Os números mostram ainda que a desigualdade no país tem se acentuado. Nos últimos quatro anos (2014-2018), a renda do 1% mais rico da população cresceu 9,4%, enquanto a dos 5% mais pobres caiu 40%. Um dos motivos para o declínio é o aumento da informalidade.

Nem mesmo políticas públicas voltadas a essa população, como o Bolsa Família, estão conseguindo mudar o quadro. Os R$ 89 mensais (por pessoa) pagos pelo programa estão abaixo do valor que delimita a pobreza extrema.

É preciso refletir sobre o aumento da desigualdade. Os números mostram o agravamento de uma situação que já era das mais complexas. Obviamente, retomar o crescimento é necessário, mas não suficiente. A desigualdade está se tornando condicionante política relevante para todos, como mostram indicadores e pressões sociais tanto no Brasil quanto no Chile, nos Estados Unidos, na França e no Oriente Médio.

No Chile, um simples aumento de tarifa de transporte deu origem a uma convulsão social que não se via no país há décadas. E expôs mazelas, entre elas a desigualdade, que estavam latentes.

É verdade que o governo tem avançado nas reformas — a da Previdência, por exemplo, tem potencial para reduzir desigualdades históricas. Mas há que se ir além. E o essencial é estancar esse processo que arrasta grandes contingentes para a miséria.

Editorial de O Globo, edição de 11.11.19.

Como é na democracia

Por Fernão Lara Mesquita

Hoje, 5 de novembro, é dia de eleições nos EUA. Nada de muito importante. Alguma coisa está sendo votada pelo povo quase todos os dias lá. Tem as eleições de calendário (de 2 em 2 anos), tem votações para retomar mandatos (recall), desbancar juízes (dois anos atrás West Virginia cassou os cinco da sua suprema corte), aprovar ou reprovar leis ou decidir outras questões pontuais de interesse de um ou mais distritos eleitorais.

Lá cada cidade pode escolher o tipo de governo que quer ter. A maioria nem tem mais prefeito. Tem um CEO e uma espécie de diretoria (council) de profissionais para cuidar de cada área importante, como abastecimento de água, saneamento, segurança, agricultura, zoneamento, etc. Cada cidade é livre para decidir quais quer ter. Cidades e Estados elegem “secretários de Estado” cuja única função é organizar essas eleições, “deseleições” ou votações localizadas convocadas pelos cidadãos.

A de hoje vai eleger governadores e renovar algumas dezenas de cargos executivos em 8 Estados e dezenas de municípios. Tomando carona nas cédulas, como ocorre em toda eleição por lá, 32 leis de iniciativa popular de alcance estadual e 141 de alcance municipal estão qualificadas para pedir um “sim” ou um “não” dos eleitores na de hoje.

Eis alguns exemplos:

Washington convocou o Referendo 88 para modificar a legislação estadual de “ações afirmativas”. É uma rara iniciativa popular para vetar outra iniciativa popular. A I-1000 conseguiu em 2018 assinaturas bastantes para ser submetida ao Legislativo estadual, que a aprovou num processo de Iniciativa Indireta (leis que nascem na rua e acabam aprovadas no Legislativo). Como o eleitor é a fonte suprema do poder, o Referendo 88 quer derrubar, agora no voto direto, o que o Legislativo local aprovou “contra o princípio que proíbe o Estado de discriminar seus empregados ou os destinatários dos seus serviços por raça, gênero ou nacionalidade”. Nada de STF. O povo vai decidir o que quer.

A Iniciativa Popular 976, também de Washington, proíbe a cobrança de taxa superior a US$ 30 (sim, trintinha...) para o licenciamento de veículos de menos de 5 toneladas.

A Proposição CC, no Colorado, quer autorizar o Estado a gastar acima do teto estabelecido para transporte e educação. Hoje o Estado é obrigado a devolver aos contribuintes todos os gastos que ultrapassarem esse teto definido anualmente com base na inflação. Esses limites são estabelecidos na Tabor (Taxpayer Bill of Rights) uma iniciativa pioneira do Colorado que em 1992 instituiu com a aprovação de 19 leis de iniciativa popular limitando drasticamente a liberdade do Estado de criar ou alterar impostos sem consulta no voto a quem vai pagá-los, a primeira “Carta de Direitos dos Contribuintes” do país. Desde então esse pacote foi copiado por dezenas de Estados.

Ainda no Colorado, um dos sete Estados mais sujeitos a seca do país, estará nas cédulas a Proposição DD, que legaliza casas de apostas em esportes cobrando 10% de imposto dedicado a obras contra a seca.

A Pennsylvania vai decidir a adoção ou não do pacote de leis contra o relaxamento de prisão e penas alternativas para criminosos sem a participação das famílias das suas vítimas nas audiências onde são decididas, conhecido como Marsy’s Law. A campanha foi lançada nos anos 90 pelo irmão de uma moça assassinada cuja mãe teve um colapso dentro do tribunal que aliviou a pena do assassino de sua filha após poucos anos de reclusão. Doze Estados já adotaram esse pacote, que está qualificado para subir também às cédulas de Wisconsin na eleição presidencial de 2020.

A Proposição n.º 4 do Texas pretende emendar a Constituição estadual para tornar virtualmente irreversível a proibição de cobrança de imposto de renda sobre pessoas físicas, que já vigora por lá.

No âmbito municipal tem especial interesse a Proposição 205 de Tucson, Arizona, que pode declarar-se Cidade Santuário de Imigrantes, contra a política oficial de Donald Trump (sim, o zé-povinho manda mais também que o presidente). A lei, se aprovada, proíbe a polícia local de interpelar pessoas sobre sua condição de imigração ou que agentes federais ajam nesse sentido em seu território.

A Questão Municipal n.º 1 será apreciada pelos eleitores da cidade de Nova York alterando o sistema local de eleições. Em vez de turnos sucessivos, os eleitores poderão inscrever cinco nomes em ordem de preferência em suas cédulas para diversos cargos de funcionários eleitos. Se aprovado, NY será a jurisdição mais populosa a adotar esse sistema.

São Francisco avaliará a Proposição F, restringindo contribuições de empresas com interesse relacionados a leis de zoneamento para campanhas para prefeito, promotor público e outros cargos. A lei também estabelece novas condições de disclosure (informação ao eleitor) para contribuições de campanha.

Da reforma da escola do bairro ou a construção de uma nova ponte até temas como esses acima, tudo lá é decidido no voto por quem paga a conta. Na virada do século 19 para o 20, saindo de uma guerra civil e enfrentando um amplo processo de disrupção introduzido pela urbanização desordenada e a corrupção desenfreada decorrente do conluio entre donos de ferrovias (a “rede” de então), políticos e empresários corruptos pelo domínio monopolístico de setores estratégicos da economia, os americanos importaram da Suíça as ferramentas de controle dos representantes eleitos com que desinfetaram sua política e domaram os famigerados “robber barons” com uma inteligente legislação antitruste que defendia o consumidor impondo níveis mínimos de concorrência. Vêm, desde então, reformando sua democracia “no voto” um pouco a cada dia, a única maneira possível de gerenciar a vida de um país de diversidade continental num mundo mutante.

Se o seu jornal ou a sua TV nunca lhe contou que isso existe nem mostrou como funciona, atenção: você esta sendo traído.

* No próximo artigo as regras que garantem legitimidade e proteção contra golpes na construção da democracia pelos eleitores.

Fernão Lara Mesquita é jornalista e editor do saite www.ovespeiro. com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.11.19.

Prisão em 2ª instância ou após trânsito em julgado?

Por Modesto Carvalhosa e Gauthama Fornaciari

Em fevereiro de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) igualou o Brasil aos países desenvolvidos e decidiu pelo início do cumprimento da pena criminal após a decisão condenatória de tribunal em segunda instância (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Entendeu a maioria do STF que o início da execução da pena não fere o princípio da presunção de inocência, pois no julgamento da apelação há completo reexame dos fatos e das provas, concluindo-se ser o réu responsável pela conduta criminosa, garantido o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Restará às instâncias superiores somente a apreciação de questões de Direito, sem análise das provas. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderão ser arguidas eventuais ofensas à legislação e ao STF, matérias constitucionais, cuja relevância transcenda os interesses particulares da causa. A condenação em segunda instância esgota a presunção de inocência e o recurso sobre matéria de Direito não tem efeito suspensivo, sendo razoável o início do cumprimento da pena criminal pelo condenado.

Excepcionalmente, em casos de flagrante afronta à jurisprudência do STJ e do STF ou de manifestos erros e constrangimentos ilegais, que poderão ensejar a anulação do processo ou a absolvição do réu, será cabível medida cautelar para suspender a execução da pena ou, ainda, a impetração de habeas corpus, que tem trâmite mais célere. Trata-se, todavia, de exceções, conforme pesquisas de coordenadorias de gestão do STJ e do STF, divulgadas pelo ministro Roberto Barroso (O Globo, 2/2/2018 e 5/4/2018).

No STJ, entre setembro de 2015 e agosto de 2017, a Corte reverteu apenas 0,62% das condenações em segunda instância. No STF, no período de janeiro de 2009 a abril de 2016, as absolvições corresponderam a menos de 0,1% dos recursos.

Em 2016, como referido, o STF reverteu posição firmada em 2009, quando a maioria conferiu caráter absoluto ao princípio da presunção de inocência e admitiu o início do cumprimento da pena criminal somente após o julgamento de recursos pendentes no STJ e no STF (HC 84.078). Essa posição era atípica no plano internacional, não tinha coerência com o sistema normativo e a organização da Justiça estabelecidos pela Constituição, tinha impacto estatisticamente irrelevante no resguardo da liberdade de réus inocentes e ignorava que penas decorrentes de condenações com ilegalidade manifesta podem sempre ser remediadas por meios excepcionais.

Porém o mais importante é que essa posição permitia que os processos perdurassem por longo tempo nas instâncias superiores e motivassem a interposição de sucessivos recursos internos, favorecendo a ocorrência significativa da prescrição de ações penais. Nas mencionadas pesquisas, no período de setembro de 2015 a agosto de 2017, verificou-se que 830 ações penais prescreveram no STJ e 116 no STF. A referida posição favorecia a não punição expressiva de condenados, em prejuízo da efetividade do dever de punir do Estado.

A proteção da liberdade individual não pode ser realizada a ponto de comprometer a finalidade e a efetividade da ordem jurídica na prevenção e repressão de condutas danosas à convivência humana. A prisão somente após trânsito em julgado favorece até mesmo a não punição de crimes contra a ordem econômica e a administração pública, o que, consequentemente, acaba por incentivar a perpetuação dos delitos de corrupção. Isso contribui para a perda de confiança da população no próprio Direito e no Poder Judiciário, desestimulando o respeito à lei e às instituições públicas, que passam a ser vistas como seletivas e complacentes com privilégios oligárquicos. A dignidade humana só é verdadeiramente respeitada num Estado Democrático de Direito quando a lei é seguida e cumprida de forma isonômica e proporcional, de modo a contribuir para a responsabilização de quem descumpre seus deveres e abusa de sua liberdade, assegurando-se o bem comum e a legitimidade da ordem jurídica.

E, mais grave, a posição propicia fator impeditivo do desenvolvimento do País: a corrupção endêmica (cf. Índice de percepção da corrupção em 2018, Transparência Internacional). O principal incentivo ao boom de colaborações premiadas no âmbito da Operação Lava Jato foi exatamente a posição do STF a favor do cumprimento da pena criminal após a condenação em segunda instância.

Hoje, a matéria encontra-se novamente sob análise no plenário do STF – Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54. Discute-se a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja redação foi alterada em 2011 e se limitou a reproduzir a então posição do STF em 2009. Esse dispositivo é inconstitucional, pelos motivos já expostos: o princípio da presunção de inocência não tem caráter absoluto e não pode tornar inviável a efetivação razoável do dever de punir do Estado, a ponto de enfraquecer a legitimidade da ordem jurídica. O exemplo da corrupção, dentre os graves crimes que não podem ficar sem pena, é bastante significativo: o Brasil jamais será um país desenvolvido se não diminuir seus intoleráveis índices de corrupção, cuja não punição incentiva pactos oligárquicos contrários à maioria da população, impondo-lhe condições de vida indignas e perda de confiança nas leis e nas instituições.

Portanto, espera-se que o STF cumpra o seu papel de defender a Constituição e confirme o seu entendimento de prisão após condenação em segunda instância. Trata-se de interpretação imprescindível para a permanência do nosso contrato social democrático, fundado nas leis sempre voltadas para o bem comum, o que é incompatível com a impunidade dos criminosos.

Modesto Carvalhosa é Advogado em São Paulo. Gauthama Fornaciari, também Advogado, é Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas/São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 18.10.19.

Moinhos de vento

Por Vera Magalhães

Uma mancha de óleo turva as águas do mar do Nordeste há mais de 40 dias (na verdade, cientistas estimam que o acidente que levou ao desastre pode ter ocorrido em junho!), sem que o presidente da República se envolva diretamente na adoção de um plano de contingência eficaz para contê-la. A reforma da Previdência, maior feito do governo até aqui e, provavelmente, nos seus quatro anos, está a uma votação de ser concluída, e o mandatário não esboça sequer um comentário a seu respeito, a não ser para lamentar a necessidade de fazê-la. Há quanto tempo não há uma reunião ministerial para coordenar todas as ações do Executivo? A última foi em agosto, e era emergencial para a questão da Amazônia.

Enquanto esses assuntos centrais para o sucesso do governo vão transcorrendo, o presidente duela contra moinhos de vento. Transforma inimigos imaginários em reais e, num prazo de duas semanas, levou à implosão de seu partido, o já fragmentado PSL, sem que se saiba ao certo o porquê da investida inicial e a utilidade de comprar esta briga neste momento, tanto tempo antes da eleição presidencial.

Uma das máximas mais surradas de Brasília é a de que bons presidentes têm a habilidade de tourear crises e fazer com que elas saiam menores do Palácio do Planalto do que entraram. Fernando Henrique Cardoso e Lula eram reconhecidos por esta habilidade, ainda que com diferentes estilos. Fernando Collor e Dilma Rousseff fracassaram na missão.

Bolsonaro, no entanto, também nisso subverte os manuais. É ele o fator gerador de crises absolutamente desnecessárias, supérfluas, grosseiras, de baixíssimo nível. Não raro elas são ocasionadas por sua paranoia, pela sensação, estimulada pelos filhos, de que sempre há alguém querendo sacaneá-lo na esquina seguinte.

Que a principal autoridade de um País com as necessidades prementes do Brasil exiba no trato com aliados (sic) tal nível de insegurança e infantilidade é de causar perplexidade a qualquer um. Mas não surpresa. Bolsonaro fez sua vida parlamentar nessa base do relacionamento miúdo com o baixo clero.

Também a construção de um clã político está na raiz de seu estilo, tanto que colocou um filho de 17 anos para disputar uma eleição contra a mãe e derrotá-la para ocupar uma cadeira numa das casas mais corruptas do Brasil.

O espantoso foi que, pelo curso da campanha, uma parcela significativa da população brasileira tenha enxergado este personagem como um potencial estadista, pelo simples fato de verem nele as credenciais para derrotar o PT.

Portanto, as brigas de botequim que eclodiram no PSL e estão expostas numa aula de anatomia da baixa política aos olhos de cidadãos perplexos nada mais são do que o bolsonarismo em sua essência. Não se sabe o rumo que a crise vai tomar quando os inimigos alimentados pelo estilo belicoso do presidente resolverem dizer o que sabem dos “verões passados” com o intuito de implodi-lo.

Também fica difícil imaginar que base vai surgir a partir dos escombros do PSL. Bolsonaro vai se aproximar finalmente do mainstream, via MDB (que já está chegando para arrumar a bagunça) e DEM? Mesmo isso tem eficácia e prazo de validade mínimos, dado o estilo persecutório e caótico do presidente.

Mais provável é que ele siga como um corpo alheio ao próprio governo, criando tretas inacreditáveis (com correligionários, governadores, prefeitos, presidentes de outros países e quem mais aparecer) enquanto alguns poucos ministros técnicos carregam o piano. Neste caso, só resta torcer para terem êxito, pois o País não aguenta mais quatro anos de crise econômica e desemprego. E esperar que, em 2022, o eleitor saiba enxergar os políticos como eles são, e não como mitos, e faça seu escrutínio em bases mais racionais.

Vera Magalhães é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.10.19

Uma tragicomédia brasileira

Por Ascânio Saleme

Mesmo antes de Dom João VI aportar aqui em 1808, os políticos brasileiros já enfrentavam crises e travavam ásperas discussões em torno de programas e ao redor de ideias. Mas nunca na forma exuberante que se vê hoje. Jamais se desceu a ponto tão baixo, nem mesmo nas ditaduras de Getúlio Vargas e dos generais de 1964, tampouco com Collor de Mello, e em tempo algum os desacertos provocaram tanto espanto e tantas risadas como agora. Vivemos uma das maiores tragicomédias da nossa história. O Brasil está de ponta-cabeça, de estômago embrulhado, muito mais do que apreensivo, é verdade, mas ainda assim rindo aos borbotões.


As asneiras e sandices que se leem e se ouvem quase diariamente em torno da família do presidente Bolsonaro são tão inusitadas quanto ridículas e engraçadas. Como se conseguiu queimar tantas pontes, arranjar tantos inimigos e desconstruir tantos entendimentos em apenas dez meses de governo? Trata-se de um recorde negativo que deveria ser considerado pelo “Guinness”. O primeiro governo a se desmilinguir em menos de um ano por absoluta inépcia política. E se não bastasse ter afugentado os que votaram nele para se livrar do PT, que são milhões, o presidente agora trata de afastar o maior partido da sua base. Talvez o único que lhe seja inteiramente fiel e tenha a sua cara.

Depois de semanas de bate-boca com o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, ameaçando sair do partido, Bolsonaro vem a público para dizer que não vai se meter no assunto. “Tô calado e vou continuar calado”, disse o homem que jamais se cala, que usa as redes sociais para fazer o que ele acha ser contato direto com seus eleitores e tem um programa semanal em que fala, e fala o que lhe der na telha, sem medir qualquer consequência. E além disso, o mais opaco presidente da História do Brasil diz ser transparente. Só rindo.

Apesar de tantos episódios inacreditáveis, vemos agora esta troca de mensagens de quinta categoria nas redes sociais entre o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Major Olímpio. Não, em nada importa para o país o que esses dois homens escreveram em suas contas no Twitter, mesmo que um seja o filho-problema do presidente da República e outro seja líder do maior partido governista no Senado. Sempre em torno do PSL e das suas contas, Carlos e Olímpio mostraram os dentes. Ambos têm razão. O vereador se acha um príncipe, e o senador se presta ao papel de bobo da corte ao descer para conversar com Carlos em seus termos. Não vale a pena falar de cadela no cio ou de internação psiquiátrica, acusações que fizeram parte da beligerância entre o príncipe e o bobo.

O fato que não consegue ser afastado, contudo, é que o PSL tem que explicar suas contas e seus laranjais. E Bolsonaro também. As investigações, que já vasculharam a casa e o escritório de Luciano Bivar e indiciaram o ministro que não tem sobrenome, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, mostram que os seus métodos não diferem muito do que se viu na política nacional até aqui. O presidente do partido está enrolado. O presidente da República tem um ministro também enrolado que ele teima em manter no posto, apesar do discurso de honestidade feito durante a campanha e reiterado cem vezes ao longo dos últimos dez meses.

O colunista Elio Gaspari tem toda a razão. Ele escreveu aqui, ontem, que Lula pode fazer diferença nessa mediocridade generalizada que tomou conta da política nacional. Com Fernando Henrique Cardoso fora do jogo por opção própria, não resta mesmo ninguém além de Lula com estatura suficiente para fazer sombra a Bolsonaro. Com sua sentença cumprida ou interrompida pelo Supremo, tanto faz, Lula sairá da cadeia muito brevemente. E daí, salve-se quem puder, o circo tem tudo para pegar fogo.

Human Rights Watch

Maria Laura Canineu não parecia abismada. A diretora regional do Human Rights Watch é brasileira e sabe muito bem como a banda toca. Já o presidente da instituição, Kenneth Roth, não conseguia esconder a estupefação. Falava como se estivesse na Guiné Equatorial de Teodoro Obiang, com todo respeito aos guinéus. Numa entrevista concedida ontem em São Paulo, Roth comparou o Brasil a Egito, Turquia e Indonésia, países que endureceram depois de eleger um presidente autoritário. E aos Estados Unidos de Trump.

Ascânio Saleme é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 17.10.19.

Saint Janot

Por Paulo Delgado

“Tem que manter isso, viu?” Foi essa frase, plantada no processo contra o presidente da República, a pólvora do tiro real dado pelo procurador. O papo-furado do outro tiro no ministro do Supremo só Freud e a demagogia calculada explicam. As coisas estão assim. O privilegiado é um confortador de si mesmo. Usufrui com requinte o poder, quando o perde não sabe se comportar e escoa no País resíduos da alma. Só por falar já é um risco para os tolos interessados na imitação dos piores.

O verniz de justo se desfaz e revela que se alimenta dos que acusa. São os santos de vidro quebrado que metem medo, deixando lascas por aí. É impressionante como normalmente homens de paixões frias prosperam no meio das conspirações políticas. O poder não conhece ateus, todos o veneram.

Um ministro tenaz e impopular, alvo de fúria alegórica de um homicida ficcional, um presidente interino e reformador, a vítima política atingida, se encontram no rito secreto de um procurador mal-intencionado, fantasiado de sacerdote do sadomasoquismo da justiça. Nenhum pudor ou aviltamento na consciência. Talvez, atribuindo-se papel importante para alguma causa, tenha se sentido figurante mal pago.

O ostracismo impulsionou sua fragilidade e fez despontar a imagem que projeta: ele é sua própria causa e para compartilhar sem culpa esse horror o revela como crime passional. Os infelizes, quando fazem mal aos outros, só precisam de si mesmos para se ferirem. E, como em romance policial, quem volta ao mesmo caminho é sempre para voltar a ele. Claro que há muito crime de colarinho-branco, mas o desassombro impune do procurador passou da conta. Induzir à violência por imitação, forjar a derrubada de um presidente, expressar o direito de matar – o poder como êxtase, exercê-lo além do ponto, até a obscenidade.

É no mundo dos que se sentem donos do mundo que se compreende o homem em sua totalidade. Quantos eram uns e se tornaram outros com poder! E muitos procuradores, como as crianças para as religiões, decidiram representar para a sociedade o estado de graça original. Mesmo errados, não contabilizam seus atos como maus. Objetos de culto, beneficiam-se da confusão que é a ideia da justiça num país sem valores universais e dominado pelo apetite doentio da publicidade do poder.

Envergonhado, quer envergonhar e, sem perder a ambição de ser santo, informa que consumado o ato dirigiria a sevícia contra si. O autossuplício de quem se sente deus para definir também sua sentença, supondo suprimir o dano. É das meditações de um imperador romano o alerta: “Nada mais digno de pena do que aquele que a tudo faz a volta completa, investigando o âmago da terra e perquirindo, através de ilações, a alma do próximo”.

Não é o primeiro da longa lista de sofrimentos por que passa o nosso país. Podemos chamá-lo de qualquer coisa, classificá-lo, fazer do seu caso objeto de conversa ruim que torna mais áspera a superfície das paredes das casas de família e alimenta o glamour podre dos justiceiros. A política brasileira de uns tempos para cá permanece irregistrada na literatura não engajada, nos filmes e músicas de amor. Talvez porque quem quiser entender o que está acontecendo recebe antes uma avalanche de razões e relatos meio embusteiros que servem como veneno para impulsionar essa espiral sem freio que sobe como mola. É uma luta sem consolação ver o País sempre se dividir quando um fato mostra que não é virtuoso algum guardião da virtude. Verdadeiro flagelo a Justiça brasileira ficar presa na gangorra dessa teia de aranha.

O ambiente civilizado do bom humor e do humanismo desapareceu. O amor quebrado domina tudo. Todos são obrigados a viver o malfeito dos outros como se fôssemos a síntese do erro de nossas autoridades, equivalendo-se a todas elas, tendo de viver a vida confusa de cada um. A reação é pior: virou onda considerar o Brasil um lugar incapaz de se aturar.

Não pense assim, nem suponha que mudar de país vai ajudar. O mal se agrava quando tudo cai no campo da significação política e perdemos a capacidade de analisar sua especificidade. O duopólio esquerda e direita tem-nos levado a essa sobrepolitização de tudo sem espaço para a consciência se abrir a outras explanações, fechada somente no que é exterior a nós. A fúria é até justa, pois em repartições onde ocorrem coisas vulgares grandões autoritários não passam de homenzinhos deseducados. A mesma falta de limites se vê em ambientes ornamentados por crucifixo, a Bíblia, um livro de orações.

A imagem de um poderoso com poder de acusar, julgar ou prender sempre foi impossível olhar sem chorar, ou rir. Os bons, e são muitos, falam por si. O indiciado, o réu, o prisioneiro, esse é contabilizado como mais um dos bens do carcereiro. As decisões das autoridades penais são verdadeiras doenças verbais, inventários morais para serem lidos pela televisão. Muitas vezes é o ódio que os anima, não a busca da verdade. E quando a verdade desemboca na mentira usada para esconder a falta de provas ou nenhuma investigação científica sobre o delito, é impossível deter essa ciranda de erros.

Encontrar um culpado não tem sido, entre nós, esclarecer um crime. O que ecoa da cabeça de um obstinado juiz, procurador ou delegado funciona como um alucinógeno. E, clichê dos clichês, não é errado pensar que depois de fazer o mal a preocupação do injusto seja comer bem e dormir sem ser perturbado. O crime no Brasil é um prato cheio também para extravagantes legais e tratado como um bufê de palácio onde muitos se alimentam do que dizem fazer-lhes mal.

Nós não somos homogêneos e a facilidade e a rapidez com que hoje sabemos dos outros não devem fazer-nos pensar que o mundo é inútil. Falar do procurador, em certa medida, é ser atraído por seu abismo de sentido, esse estereótipo da negatividade que domina o universo mental brasileiro. Sem raiva, nem simpatia, não foi o que desejei.

Paulo Delgado é sociólogo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.10.19.

O Procurador-Geral da República e o STF

Por Geraldo Brindeiro

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como o procurador-geral da República, são nomeados pelo presidente da República, após a aprovação pelo Senado Federal, em conformidade com o sistema de checks and balances, inerente ao regime presidencialista, instituído no Brasil desde o início da República, nos moldes do modelo originário dos Estados Unidos da América. Os justices da Suprema Corte americana, assim como o attorney general e todos os membros do gabinete, são nomeados pelo presidente dos Estados Unidos após advice and consent do Senado.

O procurador-geral da República , antes da Constituição de 1988, era nomeado, como os ministros do Supremo Tribunal Federal, dentre brasileiros natos “maiores de trinta e cinco anos , de notável saber jurídico e reputação ilibada”, o que prevaleceu em todas as Constituições republicanas anteriores. O exame de tais requisitos constitucionais era feito – como ainda é – pelo presidente da República e pelo Senado Federal durante a sabatina. Mas o procurador-geral da República era demissível ad nutum, isto é, livremente destituído do cargo pelo presidente, tal como os ministros de Estado. Na vigência da Constituição de 1891, contudo, o procurador-geral da República era um ministro do próprio Supremo Tribunal designado pelo presidente da República para exercer o cargo.

A Constituição de 1988 manteve o sistema inerente ao regime presidencialista, mas estabeleceu que o procurador-geral da República deve ser nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira do Ministério Público da União maiores de 35 anos, para mandato de dois anos, permitida a recondução, somente podendo ser destituído mediante a autorização prévia da maioria absoluta do Senado Federal. Ao procurador-geral da República e aos demais membros do Ministério Público são asseguradas pela Constituição independência funcional e as mesmas garantias e vedações da magistratura. Nos Estados Unidos, todos os membros do gabinete, incluído o attorney general, podem ser livremente destituídos pelo presidente. No Brasil, os ministros de Estado são livremente nomeados e destituídos pelo presidente da República, mas não o procurador-geral da República.

A escolha dentre integrantes da carreira, porém, não deve excluir o pré-requisito constitucional de “notável saber jurídico e reputação ilibada”, pois, segundo a Constituição, o procurador-geral da República “deve ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos da competência do Supremo Tribunal Federal”. Além disso, a Lei Orgânica do Ministério Público da União estabelece que o procurador-geral da República “terá as mesmas honras e tratamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal”. A indicação pelo presidente da República e a nomeação do procurador-geral da República, após a aprovação do Senado Federal por maioria absoluta, portanto, devem ser fundadas em critérios técnico-jurídicos e éticos, e não político-partidários ou ideológicos.

A legitimidade democrática e política do presidente da República para nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do procurador-geral da República tem fundamento na sua eleição pelos votos da maioria absoluta do eleitorado nacional e nos votos dos 81 senadores, como representantes dos 26 Estados-membros da Federação e do Distrito Federal.

Sugestões de nomes podem ser apresentadas, sobretudo por intermédio do ministro da Justiça. Mas a competência constitucional é do presidente da República e do Senado.

Os Poderes políticos da República – eleitos pelo voto popular – são o Legislativo e o Executivo. A Constituição estabelece que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido pelos seus representantes eleitos ou diretamente pelo próprio povo. Tal princípio caracteriza, por definição, a democracia e a República. O Poder Judiciário é constituído de magistrados ingressos na carreira mediante concurso público, salvo os ministros dos Tribunais Superiores e os do quinto constitucional. O Ministério Público é definido como instituição permanente, essencial à prestação jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Seus membros ingressam na carreira por concurso público. Sua missão – sobretudo a do procurador-geral da República e a do Supremo Tribunal Federal - é cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País, garantindo o devido respeito aos direitos e liberdades fundamentais. O procurador-geral da República é também o procurador-geral Eleitoral e a defesa do regime democrático realiza-se por meio das funções eleitorais do Ministério Público Federal.

A Constituição veda ao Poder Judiciário e ao Ministério Público o exercício de atividade político-partidária. A militância político-partidária e ideológica no âmbito do Ministério Público viola a Constituição e prejudica a isenção e a independência de seus membros no exercício de suas funções institucionais. Disputas internas pelo poder estimulam a formação de facções políticas ideológicas e corporativas e a violação dos princípios da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional.

A Constituição de 1988 estabeleceu amplo espectro de funções institucionais do Ministério Público. O Ministério Público propõe e opina, mas cabe ao Poder Judiciário decidir. E a Constituição deve ser cumprida. O Ministério Público Federal tem prestado relevantes serviços ao País, sobretudo no combate à corrupção sistêmica, enraizada em órgãos do Estado. A grandiosa missão constitucional do Ministério Público, portanto, deve continuar, com firmeza e equilíbrio, sem abalos e sem arroubos, livre de amarras ideológicas e partidárias, em benefício do Brasil.

Geraldo Brindeiro, doutor em Direito pela Universidade de Yale (Estados Unidos da América) e Professor da UnB, foi Procurador Geral da República (1995-2003). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 27.09.19.

Um choque na administração

Por Gaudêncio Torquato

O brasileiro, a cada dia, demonstra insatisfação com os precários serviços públicos. Segurança? Um desastre. Nunca se viu tanta morte por bala perdida. O Rio que o diga. Educação? Uma piada. Weintraub, aliás, gosta de chiste. Mobilidade urbana? Um atraso. As massas comprimidas nos transportes públicos exibem a estética das carências. Saúde? Um caos. Os corredores de hospitais superlotados de macas testemunham.

Que área mostra boa qualidade? Aponte-se uma sequer. Difícil. O país precisa de um gigantesco choque de gestão. Governadores, prefeitos, a hora é essa: ponham sua administração no estaleiro. Ou na UTI. Convoquem seus secretários. Cobrem mudanças urgentes. Deem carta branca para que possam organizar novos métodos. Mas exijam resultados imediatos. Sob pena de demissão. 2020 vem aí. E o eleitor está de olho nos governos e nas prefeituras, podendo dar o passaporte de ida sem volta aos alcaides. E eleger novos.

Sigam todos o exemplo de Zaratustra, o protagonista que Nietzsche criou para dar unidade moral ao cosmo. O profeta vivia angustiado à procura de novos caminhos, novas falas, novos desafios. Em seus solilóquios, recitava: “Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.” Decifrador de enigmas, arrumou a receita para as grandes aflições: “Juntar e compor em uni­dade o que é fragmento, redimir os passados e transformar o que foi naquilo que poderá vir a ser.”

Assim, escrevia uma “nova tábua”. A imagem do controvertido filósofo alemão, na fábula em que apresenta o famoso conceito de eterno retorno, cai como uma luva no ciclo da atual administração pública no Brasil, assolada por uma avalanche de maus serviços, críticas e denúncias.

Urge compor novos arranjos para a orquestra institucional, construir pontes para o amanhã, reencontrar-se com as massas e resgatar a esperança perdida. Essas são as cores da bandeira a ser desfraldada neste instante em que a sociedade dá as costas para a velha política.

A tarefa, convenhamos, requer arrojo para enfrentar dissabores, a partir das pressões de políticos, chefões e chefetes. Muitos não vão querer eliminar gorduras. Preferem colar os cacos do vaso quebrado e mostrar a prateleira cheia de coisas remendadas. Benesses e apadrinhamento continuarão a proliferar. Afinal, o velho Brasil tem dificuldades de enxergar novos horizontes.

Façam uma varredura para descobrir os pontos de estrangulamento interno. O que pode ser desobstruído? O que pode ser melhorado? Mudar onde e como? Se Vossas Excelências fecharem os olhos, a descrença social só aumentará.

O fato é que os Poderes da República geram um apreciável PIB comandado por compadrio político e que resvala pelo ralo do Custo-Brasil. Numerosos contingentes se aboletam no cobertor pú­blico. As políticas, inclusive as sa­lariais, são disformes. O custo da ineficiência invade as malhas dos Executivos municipais e estaduais, das Câmaras de vereadores e das Assembleias Legislativas.

A gestão de resultados é um resquício quase imperceptível nas plani­lhas. Por isso mesmo, o Estado é visto pela população como um ente paquidérmico e caro. Junte-se à pasmaceira o colchão social do distributivismo para se flagrar a cara de um País que não consegue pegar o trem da história. A imagem da administração pública mais parece uma árvore que não gera frutos. E, quando gera, os frutos não têm sabor.

As estruturas carecem de uma virada de mesa. O cardápio está pronto: viagens de servidores, pro­moção e participação de empresas estatais em eventos, gastos com campanhas publicitárias, cartões corporativos, superlotação de es­paços, nepotismo, enfim, todo e qualquer centavo gasto nas grandes avenidas e nas pequenas veredas do Estado deve ser objeto de varre­dura.

E atenção para a palavra de ordem do momento: transparência total.

Parafraseando Luiz Inácio, “nunca antes na história desse País” se ouviu tanta imprecação contra políticos e governantes. Se é falácia dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo como denunciou Jair Bolsonaro na ONU, é também falácia dizer que as instituições estão sólidas. Ora, as tensões entre os Poderes subiram ao pico da montanha.

Senhores governantes, tenham ousadia e coragem. A gestão pública carece de cirurgia profun­da. Sob pena de a esfera privada (oikos, em grego) continuar a invadir a esfera pública (koinon). E assim deixar que a fome particular conti­nue a devorar o cardápio que pertence ao povo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato - Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Os desafios de Aras na economia

Por Míriam Leitão

Augusto Aras assumiu a Procuradoria-Geral da República nesta quinta-feira e o governo espera que ele consiga destravar obras que puxem o crescimento da economia. Procuradores experientes contam que o PGR não tem essa capacidade.

Na sabatina no Senado, Aras explicou que não quer um Ministério Público atomizado, em que cada procurador toma decisão em diferentes direções. Mas, no MP, cada membro tem poder. O PGR não pode impedir um procurador do Amazonas, por exemplo, de questionar uma usina com uma ação ambiental. Esse é um exemplo. Aras explicou que pretende usar as câmaras de coordenação. O órgão pode convencer o procurador a atuar de outra forma em alguns tipos de casos. As câmaras funcionam melhor se o PGR tiver liderança sobre o Ministério Público. Mas Aras veio de fora da lista tríplice, um modelo que ele acusa de sindicalismo. O novo PGR terá que fazer um esforço maior para liderar o órgão.

A economia será destravada com projetos bem feitos, que não ameacem as comunidades locais, as tribos indígenas e o meio ambiente. É melhor fazer certo para que as obras não dependam do procurador-geral para se concretizarem. Não é o papel do PGR.

Aras foi bem-sucedido em sua estratégia até aqui. Ele fala o que cada um quer ouvir. Recentemente, assinou um documento de juristas evangélicos que definia casamento como a união entre homem e mulher. O senador Fabiano Contarato (Rede-ES), que é casado com outro homem, confrontou essa posição e perguntou se Aras o considerava “doente”. O sabatinado disse que assinou sem ler, uma resposta esquisita.

O novo procurador-geral também disse que tem amigos homossexuais e que é contra a “cura gay”. Aras assume compromissos diferentes, dependendo do interlocutor. No Senado, ele ora falava para a corporação, ora acenava para a base do governo. As posições às vezes eram contraditórias.

Míriam Leitão é Jornalista e Escritora. Este artigo foi publicado publicado em https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/

O isolamento de Bolsonaro

Por José Casado

Qual é o plano de Jair Bolsonaro para a Amazônia ou o meio ambiente? Se existe, ninguém sabe, ninguém viu nessas 37 semanas de governo. Até agora, se limitou ao vitimismo, muito conveniente a quem atola mas não quer se responsabilizar pela própria inépcia.

Hoje, na ONU, ele vai constatar a dimensão do seu isolamento, inédito para um chefe de Estado brasileiro. Pode tentar revertê-lo, mas isso, exige competência — mercadoria rarefeita na atmosfera do Palácio do Planalto, onde só florescem intrigas, perfídias e anacronismo.

O presidente começa a descobrir o custo da opção pelo papel de vilão ambiental. Foi Bolsonaro quem se apresentou como alvo no centro de uma renovada forma de ação política global, o ativismo climático.

A obsessão com uma conspiração internacional contra a soberania brasileira na Amazônia diz mais sobre o deserto de ideias do governo do que a respeito dos objetivos de países, ONGs e empresas na região.

A tática de criação de inimigos com interesses ocultos sobre o território amazônico é datada do período da Guerra Fria. Ocupou alguns na Escola do Comando e Estado-Maior do Exército na formatação dos novos subversivos (ambientalistas, índios e estrangeiros) na Rio-92, a primeira conferência mundial sobre meio ambiente.

O Brasil da época importava alimentos, hoje é o terceiro maior exportador. Bolsonaro revigorou o anacronismo. Extirpou a palavra “clima” do Itamaraty, desmontou políticas ambiental, fundiária, indigenista e acabou com o Fundo Amazônia. Também desdenhou da diplomacia com Europa, China e Rússia, optando por ficar refém da Casa Branca de Donald Trump.

O tempo passou e ele não viu. O novo ativismo climático levou 230 fundos de investimentos a perceber nesse negacionismo riscos de reputação, operacionais e regulatórios. Na sequência, 130 bancos — Bradesco e Itaú incluídos— anunciaram pressão conjunta para ação rápida contra “o catastrófico aquecimento global”. E governadores de nove estados que perderam o Fundo Amazônia iniciaram negociações diretas com quem quiser investir na região. O custo Bolsonaro ficou alto demais. Para todos.

José Casado é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 24.09.19.

O caminho do meio é o maior

Por Gaudêncio Torquato

As tendências parecem fortes: a polarização entre direita e esquerda, mais precisamente, entre os polos extremos do arco ideológico, não será atenuada. Ao contrário, a probabilidade é que se expanda sob a hipótese de que é do alto interesse do bolsonarismo manter a chama acesa como forma de manter permanente mobilização de exércitos simpatizantes do capitão.

No contraponto, os enclaves oposicionistas, divididos entre partidos, tentarão integrar suas forças e apostar numa grande frente de combate à escalada direitista no país.

A incógnita gira em torno da liderança capaz de organizar articulação dessa amplitude, havendo quem aposte no nome de Luiz Inácio, hoje preso, mas caminhando para eventual liberação, que até pode ser a prisão domiciliar, situação, ao que se sabe, rejeitada pelo ícone petista.

Lula tem dito que só aceita a liberdade se ela vir com o figurino completo, ou seja, sem adereços para incomodá-lo, caso de uma tornozeleira eletrônica. Ademais, há dúvidas se ele, solto, continuaria a usufruir direitos políticos. A interpretação vigente é a de que o ex-presidente, mesmo libertado, só poderia ser candidato ao completar 89 anos. Mas teria condição legal para liderar uma frente oposicionista?

Enquanto seus advogados lutam por sua liberdade e regate dos direitos políticos, os sinais no horizonte apontam para um jogo recíproco de interesses. Bolsonaro gostaria de ver Lula como alvo preferencial - sob o argumento de que ele é um demônio capaz de vestir o país de vermelho –, enquanto o ex-metalúrgico gostaria de mirar nesse capitão que defende a ditadura, faz loas a torturadores, ameaçando fazer o país regredir aos idos de chumbo.

Ocorre que a política, como água, caminha sinuosa entre as reentrâncias das pedras. Não depende apenas da vontade de seus comandantes. Depende de fatores como satisfação, social, segurança coletiva, sensação de que as coisas estão melhorando. E, que fique claro, a política navega ao sabor das circunstâncias.

Analisemos essa última hipótese. Podemos projetar a continuidade do discurso polarizado entre direita e esquerda, o bolsonarismo e seus contrários. Logo, é possível aduzir que amplos segmentos sociais - particularmente habitantes do meio da pirâmide - não suportarão conviver por muito tempo com lengalenga raivosa, tiroteios recíprocos, como se o país fosse puxado por um cabo de guerra.

Mais cedo ou mais tarde, a saturação da artilharia expressiva chegará ao pensamento racional, afastando milhões de brasileiros dos conjuntos emotivos que se esgoelam. Conhecendo um pouco as motivações que mexem com a índole nacional, pode-se enxergar o início de um processo de esgotamento do discurso sem eira nem beira, apenas focado no ataque recíproco.

A partir dessa óbvia constatação, continua-se a aduzir que não haverá clima para guerras violentas, ataques suicidas, ressurreição da ditadura, como alguns preferem. Os contingentes do meio da pirâmide, como o agrupamento de profissionais liberais, enxergarão a melhor maneira de atravessar o cabo das tormentas: as águas mais calmas que correm no meio do oceano.

A imagem é a de um mar se abrindo para dar passagem aos núcleos racionais, ordeiros, perfilados sob a bandeira do crescimento e dispostos a escolher seus dirigentes entre aqueles que encarnem a ordem, a harmonia, o aperfeiçoamento institucional.

Dito isto, emerge nos horizontes sociais o florescimento de um gigantesco corredor central, onde partidos políticos, organizações não governamentais, associações de todos os tipos e suas lideranças, se darão as mãos em torno de um projeto de união nacional.

Chegar-se-á facilmente à hipótese de que a salvação do país não sairá dos extremos do arco ideológico, mas dos protagonistas do meio. Novos figurantes se mostrarão, com ideias, propostas e visões. Os radicalismos serão naturalmente eliminados ou, em alguns casos, reduzidos a dimensões bem menores e até previsíveis no bojo de uma democracia.

Em suma, sairemos do apartheid social para ingressar num espaço de convivência e ouvir um discurso menos conflituoso. A imagem é utópica? É possível. Mas nossa índole não se acostuma com a beligerância que consome energias e dispersa esforços.

2022 está longe. Veremos, ainda, nuvens pesadas sobre algumas Nações. A vitória de Trump em novembro de 2020 não é mais uma certeza. E se a recessão pegar de chofre os EUA, sentiremos por aqui os reflexos. Demos tempo ao tempo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato. Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Pense um pouco

Por J.R.Guzzo

Previsões sobre o que vai acontecer amanhã sempre ficam melhores quando são feitas depois de amanhã. O que temos na vida real é o hoje, só isso — e o grande problema é chegar a alguma conclusão coerente sobre o que está realmente acontecendo hoje. Há uma sugestão honesta para resolver isso; infelizmente, ela dá trabalho, exige esforço mental e não pode ser encontrada no Google. Como não há o mais remoto acordo sobre o dia de hoje — as coisas estão melhores que ontem, ou nunca estiveram tão horríveis? —, a única ferramenta disponível para ter alguma ideia decente das coisas é pensar. E pensar, como se sabe, é uma das atividades humanas mais odiadas neste país, sobretudo por aqueles que imaginam saber o que estão falando.

No caso, pensar significa olhar com um pouco mais de atenção para onde o Brasil está indo. No fundo, é isso o que importa. O país vai estar melhor daqui a três anos? Depende das decisões que estão sendo tomadas agora. Se você está construindo a cada dia 1 quilômetro de estrada, por exemplo, daqui a 100 dias terá 100 quilômetros de estrada construídos. Não pode ser de outro jeito. Há uma única coisa que importa nisso: se aquele 1 quilômetro por dia está sendo construído mesmo. Se estiver, a realidade do país estará sendo mudada para melhor. Se não estiver, a realidade continuará a mesma. O resto é conversa inútil de sociólogo-politólogo-­intelectuólogo. E então: para onde estamos indo, com base nos fatos que se podem verificar hoje?

É certo, para começar, que há oito meses não se rouba por atacado no governo federal, coisa que jamais ocorreu, na memória de qualquer brasileiro vivo. Não há a mais remota denúncia de nada de errado por aí, apesar da vontade imensa dos adversários do governo de denunciar tudo. Pode haver daqui a meia hora — mas por enquanto não houve. É bobagem ignorar isso, ou achar que não faz diferença — é claro que faz uma tremenda diferença. Também não há dúvida sobre uma realidade raramente mencionada: o ministro da Economia é Paulo Guedes, e Paulo Guedes é o primeiro capitalista de verdade a chefiar a economia brasileira desde Roberto Campos, há mais de cinquenta anos. Guedes é artigo genuíno: não tem compromisso nenhum com a “economia de Estado” e a sua burocracia estúpida, sabe que não pode haver progresso duradouro no Brasil sem o máximo de liberdade econômica e está convencido de que a única função útil de um governo neste mundo é tornar mais cômoda a vida das pessoas. É igualmente óbvio que isso vai mudar o país nos próximos três anos.

É um fato que haverá uma reforma tributária — e, qualquer que ela seja, as coisas não vão ficar como estão, nem a situação atual dos impostos no Brasil vai piorar, pois isso é praticamente uma impossibilidade científica. Não há nenhum motivo concreto para alguém acreditar que o Brasil passará os próximos anos sem fazer privatizações, como passou os treze anos da era Lula-Dilma. Também é uma realidade concreta que não falta capital para ser investido no processo brasileiro de privatização já em andamento: estima-se que existam no exterior, neste momento, entre 15 trilhões e 17 trilhões de dólares aplicados a juros negativos. É possível que nenhum centavo venha para cá? Possível é — mas aí seria preciso demonstrar qual a lógica de uma coisa dessas. Também não há falta do que privatizar. O governo brasileiro é o maior proprietário de imóveis do mundo; boa parte do que tem pode ir para o mercado. O Brasil tem 72 000 torres de telefonia; a China tem 1 milhão. A razão sugere que há alguma coisa a fazer nessa área — ou em saneamento, já que 100 milhões de brasileiros não dispõem hoje de esgotos, por falta de investimento.


A Petrobras tem 12 000 funcionários a menos do que no fim do governo Dilma; mais 10 000 serão dispensados no futuro próximo, e a empresa estará enfim preparada para a privatização — depois de já ter vendido, sem barulho algum, sua distribuidora BR e suas operações de gás, e posto à venda oito de suas refinarias. Um dos resultados disso, pela lógica, será a redução geral dos custos da energia no país. Por causa do monopólio estatal, o preço do metro cúbico de gás no Brasil é de 12 dólares, em comparação com 7,70 na Europa e 2,80 nos Estados Unidos. Sem Petrobras, sem monopólio e com concorrência, por que essa aberração iria continuar? Houve uma queda superior a 20% no número de homicídios neste primeiro semestre, segundo o site G1. A inflação está perto de zero. Os juros são os mais baixos dos últimos trinta anos. A construção cresce.

São fatos. Pense neles, para pensar no amanhã.

José Roberto Guzzo é Jornalista e Escritor. Este foi publicado foi publicado originalmente em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652

A nossa Amazônia

Por Antonio Hamilton Martins Mourão

No contexto de uma campanha internacional movida contra o Brasil, ressurgiu a antiga pretensão de relativizar, ou mesmo neutralizar, a soberania brasileira sobre a parte da Região Amazônica que nos cabe, a nossa Amazônia.

Acusações de maus-tratos a indígenas, uso indevido do solo, desflorestamento descontrolado e inação governamental perante queimadas sazonais compõem o leque da infâmia despejada sobre o País, a que se juntou a nota diplomática do governo francês ofensiva ao presidente da República e aos brasileiros.

O Brasil não mente. E tampouco seu presidente, seu governo e suas instituições.

Em primeiro lugar, porque o Brasil tem a seu lado a História, sobre a qual, em consideração à memória nacional, nos devemos debruçar.

A Amazônia que nos pertence foi conquistada no tempo em que só a ação intimorata garantia direitos. Depois da expulsão dos franceses de São Luís (1615) e da fundação do forte do Presépio, a futura Belém (1616), corsários ingleses e holandeses foram combatidos e expulsos da foz do Rio Amazonas. A União Ibérica (1580-1640) ofereceu oportunidade para que bandeirantes e exploradores rompessem as Tordesilhas, um desenvolvimento histórico que tem na primeira navegação da foz à nascente do Amazonas (1637), façanha cometida por Pedro Teixeira, seu marco definitivo.

Foram fortalezas que prefiguraram a ocupação e a delimitação da Amazônia brasileira. Foi a catequese que aglutinou os indígenas sob a proteção da cruz, favorecendo a miscigenação que fomentou o povoamento da região. A fundação do forte de São José do Rio Negro, na confluência do Rio Negro com o Solimões (1663), reuniu em seu entorno índios barés, baniuas e passés, dando origem à povoação que viria a se transformar na cidade de Manaus.

Após a Independência, em nossa primeira legislatura, quando a pretensão estrangeira de impor um monopólio de navegação no Amazonas ousou atribuir aos brasileiros a pecha de ignorantes, coube ao Senado devolvê-la, lembrando que cabia aos brasileiros a primazia dos descobrimentos sobre a região, conforme atestado pelo próprio Humbolt.

E no início do século 20, enquanto a Europa se dilacerava nos campos de batalha da 1.ª Guerra Mundial, um dos nossos maiores soldados, Cândido Mariano da Silva Rondon, completava sua campanha sertanista (1915-1919) em Mato Grosso levantando cartograficamente os vales do Araguaia e as cabeceiras do Xingu; descobrindo minas de sulfeto de ferro, ouro, diamantes, manganês, gipsita, ferro e mica; e o mais importante, fazendo amigas as nações nhambiquara, barbados, quepi-quepi-uats, pauatês, tacuatés, ipoti-uats, urumis, ariquemes e urupás, que ao final da ciclópica empreitada apontavam para as armas dos exploradores e diziam: “Enombô, paranã! Dorokói pendehê” (“joguem no rio, a guerra acabou”).

Epopeia consumada, mas por concluir, na qual o Brasil jamais prescindiu da cooperação das nações condôminas desse patrimônio reunidas no Pacto Amazônico, que comemorou, no ano passado, 40 anos de sua assinatura, o qual, pela sua finalidade e sua clareza de propósitos, dispensa protagonismos de última hora movidos por interesses inconfessáveis. Se existisse algum protagonismo nacional na Amazônia sul-americana compartilhada por nove países, algo que o Brasil nunca avocou, ele seria, pelos números, pela presença e pela História, brasileiro.

Se a História dá razão ao Brasil em qualquer debate sobre a Amazônia, cabe colocar, em segundo lugar, que ele tem a seu favor os fatos.

Não há país que combine legislação ambiental, produtividade agropecuária, segurança alimentar e preservação dos biomas com mais eficiência, eficácia e efetividade do que o Brasil. Não bastassem todos os dados legais e científicos, sobejamente conhecidos, que comprovam essa assertiva, tomem-se não as palavras, mas os atos do governo brasileiro no sentido de combater queimadas e apurar crimes de toda natureza praticados na Região Amazônica, o que desqualifica as desproporcionais acusações e agressões desferidas contra o País por causa do meio ambiente.

E se não bastassem a História e os fatos, cabe apontar o que se revela nas declarações oficiais, nas confidências mal escondidas, nas entrelinhas dos comunicados e no ecorradicalismo incensado pela imprensa: a velha ambição disfarçada por filantropia de fachada.

É inacreditável que, num momento em que guerras comerciais e protecionismos turvam o horizonte mundial, e são publicamente condenados em todas as instâncias internacionais responsáveis, líderes de países europeus venham, individualmente ou em conjunto, tomar iniciativas contra o livre-comércio, procurando sabotar acordos históricos como o firmado entre a União Europeia e o Mercosul e entre este e os países da Associação Europeia de Livre-Comércio (Efta) – Noruega, Suíça, Islândia e Liechtenstein.

Como é inacreditável que pessoas que até há pouco tempo ocupavam cargos públicos se esqueçam de uma das linhas mestras da diplomacia do Brasil, a de preservar a liberdade de interpretar a realidade do País e de encontrar soluções brasileiras para os problemas brasileiros, conforme colocadas pelo chanceler Horácio Lafer em 1959.

Nada disso prevalecerá. O Brasil não tem tempo a perder. Com trabalho, coragem e determinação ele encontrará o seu destino de grandeza: ser a mais pujante e próspera democracia liberal do Hemisfério Sul.

E por qualquer perspectiva, da preservação ao desenvolvimento, da defesa à segurança, da História ao Direito, a nossa Amazônia continuará a ser brasileira. E nada exprime melhor isso do que a canção do internacionalmente reconhecido Centro de Instrução de Guerra na Selva: À Amazônia inconquistável o nosso preito,/ A nossa vida por tua integridade/ A nossa luta pela força do direito/ Com o direito da força por validade.

Antonio Hamilton Martins Mourão é Vice Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 28.08.19.

Entre intenções e dura realidade

Por Zeina Latif

O ministro Paulo Guedes tem uma capacidade de comunicação pouco vista em chefes da pasta da Economia, o que é importante ingrediente para o debate público avançar. Merece reconhecimento o esforço para explicar temas como privatizações e redução da rigidez orçamentária, e os alertas quanto à necessidade de rever políticas públicas, como o Sistema S e a Zona Franca de Manaus.

Em entrevista ao Valor Econômico, o ministro desabafou: “O Estado brasileiro quebrou”. Melhor mesmo deixar isso claro. É essencial a sociedade compreender que o esforço fiscal comprometerá parte relevante da agenda econômica nos próximos anos. A visão de que a reforma da Previdência resolveria o rombo fiscal é equivocada. A agenda de eliminação de renúncias tributárias e corte de despesas obrigatórias mal começou e não há espaço para redução de impostos.

Guedes (felizmente) reafirma o compromisso com a manutenção da regra do teto – gastos públicos não podem crescer além da taxa de inflação – e demoveu o presidente Bolsonaro da ideia de flexibilizá-la. Uma vez que os gastos com a Previdência, que representam mais da metade do orçamento federal, vão continuar crescendo mais do que a inflação nos próximos anos, mais ações para corte de despesas serão necessárias.

O ministro pretende reduzir a rigidez orçamentária, em linha com os alertas do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, que aponta que 70% do orçamento da União está vinculado ao comportamento da inflação. Isso requer reformas constitucionais, e o governo começou a tocar no assunto ao sinalizar com uma reforma administrativa que, entre outras iniciativas, deverá prever o fim da estabilidade para a maioria dos servidores públicos entrantes. Esse é, sem dúvida, um tema essencial para o debate público.

Sinaliza-se também um programa de privatizações e a venda de ativos como forma de reduzir a dívida pública. No primeiro caso, não é algo para já, até porque depende de aprovação do Congresso. Além disso, não houve detalhamento do que será feito, mas apenas uma lista de intenções. Apesar de Guedes falar em fast-track para privatizações, cada empresa precisará ser analisada isoladamente, por suas especificidades. Há empresas que deveriam ser simplesmente liquidadas. Importante mencionar que a decisão de privatizar deve visar em primeiro lugar a busca de eficiência da economia, ainda que riscos fiscais devam ser considerados.

No segundo caso, de concessões e venda de ativos, a agenda já está em curso, mas o impacto fiscal é limitado às concessões de infraestrutura, que geraram receita de R$ 5 bilhões no acumulado do ano até julho. A venda de ativos das empresas estatais, como o controle da BR Distribuidora pela Petrobrás, não gera receita à União.

Nem tudo são flores. A promessa de zerar o déficit público este ano não vingou e, a julgar pelas últimas notícias, pressões de curto prazo estão também moldando as decisões do ministério. Discute-se artifícios para facilitar o cumprimento da regra do teto, como o fim da multa extra de 10% sobre o FGTS, o que liberaria R$ 5,6 bilhões de gastos, a transferência de R$ 9,3 bilhões do salário-educação para Estados e municípios e a desvinculação de R$ 12 bilhões de fundos específicos do governo federal. Como aponta o analista da XP Victor Scalet, estas não são medidas de ajuste fiscal.

Também chama atenção a demora na definição da reforma tributária, como para sepultar uma nova CPMF. Mais uma fonte de incertezas no quadro econômico. É inevitável a leitura de que se busca algum aumento da carga tributária.

O quadro dramático das contas públicas exige ações concretas com divulgação das propostas de reformas. A da Previdência será em breve página virada e não se pode perder a “janela reformista” do primeiro ano de governo. E não basta enviar as matérias ao Congresso. São necessários o diálogo e a negociação entre vencedores e perdedores de cada reforma proposta. Hora de colocar a bola no chão.

Zeina Latif é Economista-Chefe da XP Investimentos.

O novo PGR pode ser bom para uma nova PGR

Por Mário Rosa

Primeiro, vamos logo desmontando um mito desses tempos de adrenalina, mistificação e polarizações: o que há de absolutamente em comum na indicação de Aristides Junqueira, Sepúlveda Pertence, Rodrigo Janot, Raquel Dodge e o agora novo escolhido Augusto Aras para exercer a chefia da Procuradoria Geral da República?

A única coisa que realmente importa: sua indicação, como a de todos os demais, obedeceu rigorosamente o preceito constitucional de que esse ato é prerrogativa do presidente da República.

Todas as firulas e modismos anteriores –listas tríplices, nomes notáveis, como os de Junqueira e Pertence– são filigranas de cada época. Que são bons argumentos e critérios excelentes de escolhas, reconheça-se. Mas não estão estipulados em lei. E a lei, como se sabe, a lei, ah a lei… a lei é para todos.

No caso específico de Aras, subprocurador-geral e, portanto, no último degrau funcional da carreira, sua escolha se assemelha aos demais e repete o protocolo de obedecer o critério de antiguidade na seleção para a chefia do Ministério Público Federal.

Se já houve um tempo, no início da redemocratização, que os ocupantes dessa instituição fundamental precisavam se valer da força de sua biografia para conferir à escolha a legitimidade fundamental para assumir tamanha responsabilidade, num certo momento os governos de esquerda criaram uma sindicalização indevida do Ministério Público, trazendo para dentro do poder que deve representar os interesses da sociedade a lógica do chão de fábrica.

O ex-presidente Lula passou a patrocinar uma singular eleição sindical para o Ministério Público, sob o pomposo nome de “lista tríplice”. De acordo com esse artificio, os nomes teriam maior credibilidade (?) por serem eleitos diretamente por seus pares, como se o MP fosse –em última análise– uma espécie de sindicato e o procurador-geral da República (e não procurador-geral do MP, frise-se) fosse um líder da categoria e não uma função prevista na Constituição federal.

Pois só por isso, e apenas por isso, a indicação de Augusto Aras é um enorme e positivo passo à frente da História. Não porque a lista tríplice fosse errada. Não porque a escolha de “medalhões” fosse errada, tampouco. Mas simplesmente porque é importante na trajetória de uma instituição e da democracia o arejamento, a flexibilidade, a experimentação de soluções –desde que em obediência absoluta à Constituição, como é o caso.

O fato é que a escolha de alguém como Augusto Aras –e falo alguém, não falo do próprio– aponta uma questão fundamental para o debate de nossos tempos: a Procuradoria Geral da República não pertence aos membros do ministério público. Pertence à sociedade. E a lógica da eleição interna, no futuro, tanto poderá ser lembrada como um avanço perdido como uma excrescência superada. Eis a beleza da democracia. Por isso, experimentar algo diferente só permitirá o aperfeiçoamento, pelo contrate e pela constatação dos resultados positivos ou negativos que advirão.

Já houve dias em que o Brasil sabia de cor o nome do ministro do Exército e a composição do alto comando da Força era uma equação política crucial para inferir os rumos da nação. E isso era péssimo.

Isso era sinal de que o país atravessava os anos de chumbo. Hoje, na democracia, ninguém sabe o nome dos principais generais em posição de comando. E isso é ótimo. Sinal de que nossas liberdades não estão em crise. Já houve dias outros em que o presidente do Banco Central e as principais autoridades econômicas do país eram celebridades nacionalmente conhecidas. E isso era péssimo.

Sinal de que o país estava afundado na crise da hiperinflação e da falência da dívida externa. Hoje, tirando o ministro da Economia, os tecnocratas não tem rosto nem fama. E isso é ótimo. Sinal de que vivemos um período de estabilidade econômica, inflação sob controle e o risco de “pacotes” miraculosos e fadados ao fracasso são coisas do passado.

Pois terá havido também um tempo em que o procurador-geral da República era tão ou mais famoso que o presidente da nação, mais popular que o representante eleito por todos os brasileiros, mais admirado que todos os políticos, de todos os partidos, de todos os Estados.

E esse terá sido um tempo trágico e não um tempo de ventura. A glória terá sido pessoal e efêmera, mas o país terá estado em meio ao pântano ou talvez no abismo de suas instituições. Terá sido a longa noite do Estado policial, do terror, da insegurança jurídica. E um dos símbolos disso terá sido quando todos sabiam o nome do carrasco-mor, do verdugo real, do inquisidor geral, fosse qual fosse o nome que se dava na ocasião.

Que o novo procurador assuma o último degrau de sua carreira e que cumpra a mais importante missão dessa instituição crucial da democracia, que é o Ministério Público: servir e defender a sociedade. Combater a corrupção política é uma prioridade, é fundamental, é importantíssimo. Mas a sociedade, e seus problemas, são muito maiores, mais amplos e complexos do que isso. Não se trata de combater ou não à corrupção. Trata-se de não combater apenas à corrupção. Pois a agenda de problemas do país não é um samba de uma nota só.

Mário Rosa, Jornalista e Escritor, é Consultor de Crises. Este artigo foi publicado originalmente na revista eletrônica Poder360, edição de 06.09.19.

A reforma esquecida

Por Luís Eduardo Assis

O governo federal está na pindaíba. A penúria pode ser vista na recente decisão de suspender o cafezinho e apagar as luzes dos ministérios às 18 horas. À primeira vista, essa lisura pode parecer um sinal de probidade no trato do dinheiro público, mas é muito mais que isso. Reflete, antes, o descuido de não encaminhar uma ampla reforma administrativa que equacione a difícil questão dos gastos obrigatórios. A necessidade de controlar o crescimento da dívida pública sem que tenha sido feita uma revisão nestes gastos forçou uma brutal contração dos investimentos, o que compromete a retomada da economia. O investimento federal em 2019 deve ser algo como 35% menor que no ano passado e pouco mais que um terço do que tivemos em 2010. O secretário do Tesouro já avisou que o que está ruim vai piorar e que em 2020 teremos nova queda.

Ao mesmo tempo, a despesa com pessoal segue firme. Na década, os gastos com este item, incluindo aposentadorias e encargos, saltou de R$ 175,5 bilhões para R$ 304,6 bilhões no ano passado. Considerando todas as situações de vínculo, isso significou que cada um do 1,274 milhão de servidores nos custou, com encargos e benefícios, quase R$ 20 mil por mês. Pelos dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil gasta, em todas as esferas do setor público, 13,1% do Produto Interno Bruto (PIB), ante 4,8% na Colômbia, 6,1% no Peru, 7,5% na Alemanha e 9,2% nos EUA. A má notícia é que este desembolso deve ainda aumentar no curto prazo, mesmo considerando que o governo vai tentar, na marra, não incluir no Orçamento de 2020 um reajuste para o funcionalismo. A boa notícia é que as distorções são tantas que há uma enorme oportunidade para instituir melhorias significativas.

É monótona platitude dizer que o mundo muda cada vez mais rapidamente. Mas no mundo do funcionalismo as coisas ainda se parecem com a vida modorrenta descrita no livro de Cyro dos Anjos de 1937, O Amanuense Belmiro, diário de um burocrata escrevente dado a veleidades líricas. Trabalho recente da consultoria Oliver Wyman, assinado por Ana C. Abrão, Armínio Fraga Neto e Carlos Ari Sundfeld (Reforma do RH do Governo Federal), traça um bom quadro das idiossincrasias que assolam o serviço público. Criamos um sistema disfuncional em que a meritocracia é coibida e trabalhar com afinco passou a ser, para todos os efeitos práticos, apenas uma questão de foro íntimo. Ganharíamos todos se uma reforma administrativa pudesse endereçar alguns temas mais urgentes.

A primeira tarefa é simplificar. Só no governo federal existem mais de 300 carreiras. É urgente rever a estrutura organizacional e reduzir o número de carreiras, alinhando o salário inicial ao do setor privado (muitas vezes, ele é maior). Além disso, é necessário fomentar a meritocracia. A exemplo do que ocorre no setor privado, é fundamental que cada servidor seja avaliado por meio de uma curva de distribuição forçada e que essa avaliação seja o critério básico para a dispensa de funcionários com baixo desempenho. É comum em grandes empresas que 5% dos colaboradores de mais baixo desempenho sejam dispensados todos os anos. Pode ser draconiano para o setor público, mas é preciso caminhar na direção de premiar os mais qualificados – pagando gratificações e acabando com promoções automáticas – e penalizar a pequena minoria que não se empenha. Países como Holanda e Reino Unido têm políticas claras que permitem a demissão por baixo desempenho.

Não seria, certamente, fácil de aprovar no Congresso uma reforma administrativa com essas características. Mas é preciso avançar na consecução de medidas que tragam o serviço público para o século 21. Sem isso, cortar o cafezinho é apenas inútil sovinice.

Luis Eduardo Assis, Economista, foi Diretor de Política Monetária do Banco Central. É Professor de Economia da USP e FGV-SP. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.09.19.

Somos atacados pelo governo

Por Luís Fernando Veríssimo

Nós estamos sendo atacados. Quem somos nós? É difícil nos definir. Temos tipos diferentes. Somos de raças e idades diferentes. Nossos cortes de cabelo, formatos do nariz, formatos de orelhas, gostos musicais, manias, interesses, preocupações, alergias, saldos bancários e cheiros corporais são variados, e torcemos por times diferentes. Mas, no momento, o que deve nos unir é o fato, agora inegável, de que estamos sendo violentamente atacados pelo nosso próprio governo. Temos que esquecer nossas diferenças e nos concentrarmos nesta verdade nua e crua: que isto não é um país, isto é uma zona de guerra. E eles atiraram primeiro.

Cada novo pronunciamento do Bolsonaro é um morteiro que nos atinge. Cada nomeação esdrúxula para o governo mais estranho da nossa História parece ter sido feita especificamente para nos obrigar a usar a palavra “esdrúxula”, o que inibe qualquer reação mais séria. Temos o governo civil mais militar que o país já conheceu, para nos confundir. Aguarda-se a explicação que nosso futuro embaixador em Washington dará para isso, e em que língua.

A campanha mais intensa deles contra nós é a que está começando agora, com um ataque frontal à inteligência brasileira. Verbas para a pesquisa estão sendo cortadas — às gargalhadas, não duvido — e isso é apenas o começo de cortes que virão em todo o sistema educacional, o primeiro sacrificado onde quer que “o mercado” derrote o bom senso. Para ganhar esta guerra pelos cérebros da nação, um lado tem a força e a tesoura; e o outro tem só a indignação estéril — mas que pode surpreender. Os estudantes estão voltando às ruas.

Pelas pesquisas de avaliação, a popularidade do Bolsonaro e a aprovação do seu governo estão caindo. Pesquisas de opinião são enganosas, podem refletir o entusiasmo de um momento e nada mais. De qualquer maneira, nós, mesmo desorganizados, estamos começando a nos mobilizar.

Luís Fernando Veríssimo é escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 05.09.19

No mesmo tom

Por Merval Pereira

A polarização política continua em plena atividade, e as redes sociais trabalham no limite da irresponsabilidade de ambos os lados. Na mesma semana em que surgiu a reprodução de diálogos de alguns procuradores da Lava-Jato em Curitiba ironizando o luto do ex-presidente Lula na morte de dona Marisa, o próprio Lula deu uma entrevista à BBC Brasil colocando em dúvida que o presidente Bolsonaro tenha realmente sido esfaqueado na campanha eleitoral de 2018.

Para os petistas, os comentários dos procuradores denotam ódio a Lula. Para os bolsonaristas, o comentário de Lula sobre a facada em Bolsonaro demonstra que, para o ex-presidente, nada é mais importante que a disputa política.
Os comentários de alguns dos procuradores são lamentáveis, e a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann foi ao Twitter para condenar, afirmando dramaticamente: "Diálogos de procuradores mostram a pior face do ser humano".

Pode ser exagerado, mas sem dúvida a ironia numa hora dessas é descabida, e revela frieza diante de tragédias pessoais que pode chocar almas mais sensíveis como a da presidente do PT.

Tanto que a procuradora Jerusa Viecili, a mais irônica nos diálogos, pediu desculpas ao ex-presidente Lula por ter feito chacota de seu luto: "Errei. E minha consciência me leva a fazer o correto: pedir desculpas à pessoa diretamente afetada, o ex-presidente Lula", disse, também através do Twitter.

As conversas revelam que diversos procuradores fizeram pouco caso das mortes não apenas de dona Marisa, mas do neto Arthur, e do irmão Vavá. "Querem que fique pro enterro?", perguntou, ironicamente, Jerusa, diante da notícia da morte de Marisa. "Preparem para a nova novela ida ao velório", escreveu no Telegram, sobre a morte do neto Arthur.

O Procurador Januário Paludo comenta, se referindo a dona Marisa: “Estão eliminando as testemunhas”. Já Laura Tessler adverte: “Quem for fazer a próxima audiência de Lula, é bom que vá com uma dose extra de paciência para a sessão de vitimização”, escreveu.

Mas há também comentários pertinentes, sobre o temor de que Lula no enterro do irmão causaria muita confusão política. Ou rebatendo a afirmação de Lula de que dona Marisa havia morrido devido ao que a Lava-Jato fez com ela e com os filhos.
Quando o ex-presidente comentou no enterro do neto que ele havia sofrido bullying na escola por ser um Lula da Silva, a procuradora Monique Cheker criticou: “Fez discurso político (travestido de despedida) em pleno enterro do neto, gastos públicos altíssimos para o translado, reclamação do policial que fez a escolta… vão vendo”.

Eduardo Bolsonaro já havia se manifestado nas redes sociais sobre a ida de Lula ao enterro do neto no mesmo tom: :"Lula é preso comum e deveria estar num presídio comum.

Quando o parente de outro preso morrer ele também será escoltado pela PF para o enterro? Absurdo até se cogitar isso, só deixa o larápio em voga posando de coitado".

Os diálogos revelam também que vários procuradores chamaram a atenção dos que estavam ironizando a dor do ex-presidente Lula. Carlos Fernando dos Santos comenta: Vamos ficar em silêncio. Ninguém ganha falando mal de quem morre ou da família. O procurador Luis Carlos Welter adverte: Ninguém pode medir a dor de quem perde a pessoa amada. Fazendo esse discurso político, ele mesmo vai se prejudicar.

Mas, o que dizer do ex-presidente Lula, cujos comentários não foram conseguidos clandestinamente, mas em entrevista à BBC Brasil? Ele insistiu na suspeita, alimentada desde então por petistas de diversos calibres, de que a facada em Bolsonaro, durante a campanha eleitoral, foi uma fraude.

“Não, eu não disse que não tinha tomado, eu disse que não acreditava (que Bolsonaro levou uma facada). Mas você garante a mim o direito da dúvida? Veja, eu tenho suspeitas (de que não ocorreu). Agora, se aconteceu, aconteceu.”.

Ele continuou: “Eu falei com muita tranquilidade desde o dia que aconteceu aquilo, porque não vi sangue. O Bolsonaro deu uma entrevista assim que chegou no hospital. Ele foi internado, já tinha um senador fazendo uma entrevista.”.

Os petistas como Paulo Pimenta reproduziram em suas redes sociais um documentário apócrifo intitulado “A Facada no Mito”, postado no YouTube. Sem apresentar nenhuma evidência, o documentário destaca o que seriam “dúvidas” ridículas sobre o atentado.

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.08.19.

Bolsonaro não aprende

Por Gustavo Bebianno

Conceito comum entre filósofos e líderes espiritualistas é que nós, seres humanos, evoluímos de duas maneiras, ou pela dor ou pelo amor. Raramente, o processo se dá pela segunda via. A verdade é que somos todos encrenqueiros. Sempre achamos que temos razão em tudo, e é bem fácil criticar, julgar, condenar e atacar. Esse é o nosso perfil médio. Quando melhoramos, episodicamente, é pela via da dor, causada pelas consequências das próprias atitudes. Somos todos “farinha do mesmo saco”, com variações mínimas.

Não obstante, chamam a atenção alguns casos, que se destacam pelo excesso de beligerância, intensidade e constância. O presidente da República parece ser um ponto fora da curva, aparentemente incapaz de aprender por qualquer das duas vias.

Enquanto deputado federal, não filtrava palavras. Usava dessa estratégia para ganhar algum destaque no ambiente que não lhe dava a menor importância. Naquele tempo, as consequências de suas atitudes eram suportadas por ele próprio, exclusivamente. No famigerado atrito com a deputada Maria do Rosário, para mencionar apenas um exemplo, acabou oferecendo à rival, de mão beijada, a munição que a ela interessava. Virou réu em duas ações judiciais, uma cível e outra criminal. De brinde, ainda foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República numa terceira ação. Mais do que isso, angariou contra si a antipatia de milhões de mulheres, as críticas severas da imprensa, mais o rótulo internacional de misógino. Conviveu, durante meses, com a angústia de sofrer condenação criminal antes do pleito e enfrentar teses inimigas de uma suposta inelegibilidade. Parece que nada disso serviu de lição!

Hoje, não é mais um deputado do baixo clero, mas o líder máximo da nação, a oitava economia do planeta. As consequências de seus pronunciamentos impõem a todos os brasileiros uma fatura a pagar. O discurso e a postura do presidente constroem, ou destroem, a imagem do nosso país. A Amazônia desperta diferentes interesses internacionais. Dependemos de habilidade diplomática para manter a cobiça estrangeira à distância e a nossa soberania respeitada. Não será com ofensas, beligerâncias, fanfarronice, bravatas e falta de educação que defenderemos nossos interesses.

Ao atacar os líderes europeus, de forma impulsiva, o presidente compromete a imagem do país e coloca em risco nossos interesses comerciais. Ironias de cunho pessoal não só dificultam as relações, como despertam o rancor entre os chefes de Estado — o que, obviamente, não resultará em nada positivo para o Brasil. Pela evidente incapacidade de aprender, pela dor ou pelo amor, o presidente vem se incumbindo de destruir todas as relações diplomáticas tradicionalmente cultivadas pelo Brasil. Assim como fez com a deputada, insiste em oferecer, gratuita e desnecessariamente, toda a munição que interessa àqueles que têm os olhos voltados para a Amazônia. Muito em breve, o preço será pago por todos nós.

O mínimo que se espera do presidente da República é que tenha discernimento e compreenda o seu atual papel. E, nesse caso particular, que entenda que a Europa não é igual a Maria do Rosário.

Gustavo Bebianno é advogado e foi secretário-geral da Presidência da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 31.08.19.

Popularidade em queda

A nova pesquisa CNT/MDA, divulgada ontem, mostrou que mais da metade dos brasileiros – 54% – desaprova o desempenho pessoal de Jair Bolsonaro. É a primeira vez que esse patamar majoritariamente negativo em relação à atuação do presidente da República é atingido.

A avaliação do governo tampouco é alvissareira. Dobrou o porcentual dos que o classificam como “ruim ou péssimo”, saltando de 19% em fevereiro para 39% em agosto. No início do ano, de acordo com a mesma pesquisa, 39% dos entrevistados consideravam o governo “ótimo ou bom”. O número de satisfeitos caiu para 29% em agosto.

Esses resultados são particularmente preocupantes porque Jair Bolsonaro tem apenas oito meses de mandato e a curva histórica das pesquisas realizadas no período lhe é bastante desfavorável. Em outras palavras: à medida que o tempo passa e o presidente é instado a agir diante das mais variadas questões que lhe são postas, cada vez mais brasileiros parecem se dar conta de que à frente do governo está alguém inapto para apresentar as soluções para os graves problemas nacionais.

Para qualquer governante minimamente sensato e cioso de seu papel numa República democrática, pesquisas de opinião deveriam servir de base para uma reflexão honesta sobre os rumos do governo. Eventuais percepções negativas da sociedade deveriam ser tomadas como sinais de alerta. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro não tem se notabilizado por ser um arguto leitor dos vários sinais emitidos pela população. Ao que parece, optou por fechar-se em suas próprias convicções e preconceitos e fazer deles o critério único para seu processo de tomada de decisão. Não surpreende, portanto, que a opinião pública reaja negativamente.

Se a pesquisa CNT/MDA diz muito sobre o desempenho do presidente Jair Bolsonaro, diz igualmente sobre a abissal distância que separa os fatos e a sua percepção pela sociedade. O levantamento mostrou que 31,3% dos respondentes avaliam que a melhor área de atuação do governo é o combate à corrupção. Ora, se há uma área hoje em que o presidente Jair Bolsonaro tem sido criticado com bastante ênfase é justamente o combate à corrupção. O presidente tem sido pessoalmente acusado de usar o poder do qual está revestido para interferir na administração da Polícia Federal, da Receita Federal e de órgãos de controle como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), agora vinculado ao Banco Central.

Por trás de todas essas ações do governo – particularmente do presidente Jair Bolsonaro – estaria uma tentativa de dificultar a apuração de supostos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros ligados às atividades de milícias no Rio de Janeiro que teriam sido cometidos por membros de seu círculo mais próximo, incluindo membros de sua família.

É curioso ainda que 8% dos respondentes avaliem como uma das melhores práticas do atual governo a política de privatizações, já que são escassas as estatais privatizadas na gestão de Jair Bolsonaro. Ao que parece, intenções ou meros comunicados são tomados como fatos consumados por uma parcela da população. Isso é um perigo porque quanto menor a capacidade da sociedade de discernir o que são fatos – e seus desdobramentos na vida prática da Nação – e o que são versões, mais sujeita à manipulação ela estará.

É improvável que o presidente Jair Bolsonaro receba o resultado da pesquisa CNT/MDA como um sinal de alerta sobre sua forma de governar. Um sinal de que fora eleito não apenas pelo nicho de apoiadores mais aguerridos de sua agenda extremada, mas por uma parcela mais ampla de brasileiros há muito descontentes com os desmandos dos governos do PT e ávidos por um governo que resgatasse os valores republicanos perdidos em nossa história recente. É de esperar que Jair Bolsonaro continue a crer que sua eleição representou tamanha ruptura com a “velha ordem” que a ele é dado governar desconsiderando o conjunto de brasileiros, que nem sempre endossam suas ideias. Resta saber por quanto tempo durará a ilusão.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 27.08.19

Fim da era doente

Por Eliane Cantanhêde

Quem brinca com fogo pode se queimar, além de incendiar a Amazônia. O presidente Jair Bolsonaro tanto fez que acabou atraindo a ira do mundo desenvolvido, jogando o Brasil no centro do debate no G7, provocando protestos mundo afora e ressuscitando os panelaços da era Dilma Rousseff.

Nessa toada, ele pode virar o maior cabo eleitoral da volta das esquerdas, inclusive do combalido PT e até do presidiário Lula. Vocês já notaram que o pau está quebrando, mas o
PT e as esquerdas adotaram um silêncio ensurdecedor?

Bolsonaro defende torturador, desmatador, trabalho infantil, mas não há reação à altura da oposição, que, contundida, decidiu jogar parada, assim: deixa o cara se queimar sozinho que a gente volta depois.

No discurso do governo, só as queimadas na Amazônia, que simplesmente acontecem todos os anos, desde sempre, não justificam protestos, panelaços, críticas da mídia e de cientistas e reações de França, Alemanha, Noruega, Finlândia. Pois o governo tem razão.

Essas reações não são pontuais, só pelas queimadas. Elas são uma resposta a um ataque incessante do governo e do próprio Bolsonaro aos parceiros, ao meio ambiente, aos órgãos do setor e aos ambientalistas. Isso vem desde a campanha, com a história de tirar o Brasil do Acordo de Paris.

Já empossado, Bolsonaro deu pelo menos dois sinais verdes para crimes ambientais. O Ibama não só cancelou a multa contra ele por pesca ilegal em área protegida como puniu o fiscal que aplicara a lei. E, em 13 de abril, o presidente gravou um vídeo pela internet proibindo a destruição de tratores e caminhões usados para desmatar ilegalmente a Amazônia.

Pela lei, eles podem ser destruídos, sim, se houver perigo contra agentes do Estado e se o custo para a guarda e transporte for excessivo, o que ocorre, claro, em locais distantes, em meio a florestas fechadas. Logo, o presidente mandou descumprir a lei ao vivo e em cores. Como isso soou? Como uma licença para o crime. Os desmatadores devem ter comemorado à beça.

O mesmo ocorre nessa guerra com a França. Sair do acordo de Paris e esfregar uma live cortando o cabelo após alegar “problemas de agenda” para não receber o chanceler francês é um gesto infantil e uma agressão grosseira a um país amigo. E o que dizer do indicado para embaixador em Washington xingando o presidente francês de “idiota”? Para que serve esse nível de beligerância? O que o Brasil ganha com isso?

Com as labaredas torrando a Amazônia e a imagem do Brasil no mundo, finalmente Bolsonaro mudou o tom, foi à televisão sem agredir nada e ninguém e tomou duas providências: uma, interna, chamando o Exército para apagar o incêndio; a outra, externa, telefonando para Trump, o espanhol Pedro Sánchez e o japonês Shinzo Abe, além de distribuir uma cartilha sobre a política ambiental para os diplomatas brasileiros.

A crise, porém, continua e ensina uma lição a Bolsonaro: ele não tem o direito de expor o Brasil assim, falando o que quer, fazendo o que quer, na hora que quer, abrindo mil e uma frentes de guerra e causando desgastes inúteis que não apenas prejudicam ele próprio e seu governo, mas o País.

O PT e as esquerdas assistem à tragédia e à sucessão de erros e retrocessos comendo pipoca, se divertindo, curtindo a ideia de que “quem ri por último ri melhor” e aguardando o aviso (ou ameaça?) do ministro Gilmar Mendes de que “devemos ao Lula um julgamento justo”. Já imaginaram? Uma nova guerra entre lulismo e bolsonarismo? Pobre Brasil.

A única forma de conter essa polarização insana é explorar os espaços de centro e trabalhar alternativas, diante da avaliação, ou constatação, de que o que está aí não é o começo de uma nova era saudável, mas o fim de uma era doente.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado em O Estado de São Paulo, edição de 25.08.19

Carga excessiva

A carga tributária recorde de 2018, registrada num período em que a atividade econômica continuou pífia - repetindo o fraco desempenho do ano anterior - e as dificuldades financeiras do setor público continuaram a se agravar, é mais um retrato de um país em profunda crise. Nem mesmo tendo retirado proporcionalmente mais recursos das empresas e das famílias, reduzindo-lhes a capacidade de investir e de consumir e, assim, prolongando as dificuldades econômicas do País, os três níveis de governo conseguiram melhorar suas finanças a ponto de indicar o equilíbrio entre receitas e despesas num prazo tolerável para os contribuintes e para os cidadãos em geral. É urgente a reformulação da estrutura de despesas do setor público, a começar pelos gastos com o sistema de Previdência Social, bem como a melhoria do sistema tributário, para, no mínimo, retirar dele as inconsistências que o tornam “uma loucura”, como o definiu o economista Kleber de Castro.

Castro e José Roberto Afonso são os autores do estudo que aponta para a carga tributária recorde de 35,07% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano passado. Como mostrou reportagem do Estado, no ano passado o setor público arrecadou R$ 2,39 trilhões. Isso significa que, em média, cada habitante do País recolheu o equivalente a R$ 11.494 em tributos. São números que não deixam dúvidas quanto ao peso excessivo sobre os contribuintes que o custo do Estado brasileiro já alcançou e, por isso, precisa ser reduzido.

O aumento da carga tributária em 1,33 ponto porcentual, observado no ano passado, é o maior em 17 anos. É um aumento especialmente penoso para os contribuintes, não apenas por suas dimensões, mas por ter ocorrido num momento de baixo desempenho da atividade econômica (no ano passado, o PIB brasileiro cresceu apenas 1,1%, repetindo o resultado de 2017).

Depois da crise mundial de 2008, a evolução da carga tributária mudou em relação aos anos anteriores. O crescimento constante que se observara até então parecia ter sido interrompido. Houve, nos anos seguintes, oscilações no peso do tributo sobre a economia, mas a comparação entre os dados de 2008 e 2015 mostra um encolhimento da carga tributária equivalente a 1,92% do PIB. Entre 2016 e 2018, porém, houve aumento de 2,23% do PIB.

José Roberto Afonso observou que o aumento verificado em 2016 e 2017 decorreu de fatores não usuais, como o programa de repatriamento de recursos do exterior e as receitas de royalties do petróleo, impulsionadas pela alta do produto no mercado internacional. Já em 2018, a esses fatores extraordinários se somou o aumento da arrecadação de tributos tradicionais como Imposto de Renda, PIS-Cofins e ICMS. É um aumento não comum em períodos de baixa atividade econômica. Na interpretação dos autores do estudo, houve uma combinação de recuperação de alguns setores, aumento de alíquotas e fiscalização mais efetiva.

Com essa realidade tributária, “não dá para ser competitivo”, diz o empresário Ramiro Sanches Palma, do setor têxtil. “Os impostos altos praticamente inviabilizam a evolução dos negócios”, completa Ricardo Gracia, do setor de calçados. No entanto, embora desejável e necessária, a redução da carga tributária tornaria ainda mais difícil o enfrentamento da grave crise fiscal que envolve os três níveis de governo e cujo agravamento poderia afetar ainda mais a economia.

A diminuição do peso dos tributos sobre a economia, sem piorar a já grave situação das finanças públicas, depende da mudança profunda da estrutura de despesas do setor público. Há, como lembrou Afonso, um dos responsáveis pela elaboração da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma grande participação de despesas obrigatórias no Orçamento. Qualquer que seja o volume de arrecadação, o governo, em seu vários níveis, é obrigado a arcar com essas despesas, entre as quais estão a folha de pagamento do funcionalismo, os benefícios previdenciários, os programas sociais, os gastos mínimos definidos pela legislação para o custeio de saúde e educação. Boa parte dessas despesas tem crescimento contínuo. É, obviamente, uma situação que o contribuinte não pode continuar sustentando indefinidamente.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 23.08.19

Nova chance a Moro

Por Merval Pereira

A crise com a Polícia Federal, provocada pela tentativa do presidente Jair Bolsonaro de intervir na corporação indicando o novo chefe do Rio de Janeiro, proporcionou ao ministro da Justiça Sérgio Moro retomar, ainda que em parte, o protagonismo que havia perdido na crise das conversas hackeadas, e também no “quem manda sou eu”, rompante do presidente em relação à PF.

Moro e o diretor-geral da Polícia Federal, Mauricio Valeixo mostraram a Bolsonaro que a atitude provocou uma verdadeira comoção na instituição, sendo possível um pedido coletivo de demissão dos chefes operacionais. Bolsonaro voltou atrás, e Moro ganhou a confiança da Polícia Federal.

Entra agora na negociação dos vetos à nova lei de abuso de autoridade com mais poder de convencimento, pois muitos dos que pede são em defesa dos policiais e agentes de segurança pública, os mais atingidos pelas novas normas. Moro terá também um teste decisivo, pois a lei de abuso de autoridade interfere diretamente no combate à corrupção, bandeira que o identifica. Já Bolsonaro está entre manter seu apoio a Moro, e consequentemente, ao combate à corrupção, ou desagradar parte do Congresso.

Para o Ministério da Justiça, "é possível identificar diversos elementos que podem, mesmo sem intenção, inviabilizar tanto a atividade jurisdicional, do Ministério Público (MP) e da polícia, quanto as investigações que lhe precedem". Um veto que parece ser consensual é a proibição de algemar presos se não oferecerem resistência.

Moro e os policiais consideram que a decisão deve ser tomada pelos agentes em serviço, de acordo com o que acontecer no momento da prisão. No entanto, lembra o criminalista João Bernardo Kapen, já existe uma súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal proibindo as algemas.

Sobre o artigo 9º, que prevê detenção de 1 a 4 anos para o magistrado que decretar prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, a análise do Ministério da Justiça e Segurança Pública diz o seguinte: “O artigo em questão elimina a discricionariedade do magistrado na exegese normativa. A limitação ao exercício da função jurisdicional é acentuada em razão de o dispositivo não trazer balizas para o que se poderá considerar desconformidade com as hipóteses legais.”

O criminalista João Bernardo Kappen ressalta que essas “hipóteses legais”, longe de serem subjetivas, estão estabelecidas no Código de Processo Penal ou na lei que define as hipóteses cabíveis de prisão temporária.

Para ele, a nova lei não impedirá prisões preventivas, que só podem ser decretadas se estiverem presentes os requisitos legais previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Além do mais, a nova lei reproduz quase que integralmente o que está previsto no artigo 4º da lei atual.

Já é crime de abuso de autoridade, portanto, decretar prisão sem as formalidades legais, e isso não vem impedindo que prisões preventivas – largamente usadas na Operação Lava-Jato – sejam decretadas.

Moro defende o veto ao artigo 26, que classifica como crime "induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das hipóteses previstas em lei". Para o ministro, o "dispositivo em questão criminaliza o flagrante preparado".

O ministro também sugere o veto ao artigo 30, que prevê até quatro anos de prisão para quem abrir uma investigação sem o devido fundamento, ou seja "proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente". Para Moro, esta regra é desnecessária, "uma vez que é abarcado, em grande parte, pelo crime de denunciação caluniosa já existente no artigo 339 do Código Penal".

Os procuradores de Curitiba consideram que esse tipo penal é um absurdo na parte em que fala “sem justa causa fundamentada”, o que é um conceito vago e indeterminado. No Brasil sequer se discute a qual nível probatório que a expressão “justa causa” corresponde. João Bernardo Kappen considera que as críticas têm razão de ser, pois o termo “justa causa”, sem a devida explicação, é muito vago.

O ministro ainda considera exagerado o artigo 34, que estabelece detenção de até seis meses para autoridade judicial que "deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento". Para Moro, a "hipótese cria uma responsabilidade extremamente ampla ao agente público que é impossível de ser cumprida na prática.

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 18.08.19.

A presença do fígado na vida pública

Por Bolívar Lamounier

Por mais que nos desagrade reconhecê-lo, a raiva é um fator comum na vida pública de muitos países. Suas causas variam – crises econômicas, racismo, imigração, corrupção, autoridades irresponsáveis –, mas o fato é inegável. O fígado é o órgão que processa e transforma tais fatores em pura estupidez.

Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século 19.

Na presente década, a política raivosa espraiou-se por numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet, cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos, vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.

Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou “supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato. Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.

Gravações liberadas poucos anos atrás evidenciaram o linguajar rombudamente racista do presidente Richard Nixon e de Ronald Reagan, este à época governador da Califórnia. Mas Donald Trump deixa os dois no chinelo. Dou um exemplo. No dia 19 de abril de 1989, um grupo de adolescentes pretos e latinos foram acusados de estuprar uma mulher branca que praticava jogging no Central Park. Rápido no gatilho, Trump só precisou de 12 dias para publicar nos quatro principais jornais de Nova York um anúncio no qual afirmava que era mister “fazê-los sofrer” e levá-los à cadeira elétrica. E persistiu em sua campanha até que, em 1990, os rapazes foram condenados por diversas ofensas violentas, inclusive tentativa de homicídio. Finalmente, em 2002, a Justiça inocentou-os com base na prova de DNA e na confissão do verdadeiro estuprador.

Claro, o “fator fígado” não é só racismo. E racismo não é só um sentimento de hostilidade motivado por características físicas das minorias contra as quais se volta. Tem em seu bojo uma insegurança quase inexplicável, uma necessidade profunda de pertencimento a um grupo, e por um anseio de “mesmismo” (sameness, em inglês) e, reciprocamente, por uma rejeição de toda diferença e toda diversidade.

As determinantes do mal-estar global desta década são, como se vê, variadas. E a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade brasileira, como devemos tentar compreendê-la? A reflexão tem de começar pelo bolsonarismo, no qual, porém, não vejo um componente racista. O ponto de partida do bolsonarismo foi a reação suscitada pelas lambanças (recessão, corrupção) perpetradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante três décadas, associada à inapetência política dos partidos de centro. Ele ganhou corpo com o estilo ferrabrás do personagem Jair Bolsonaro, uma macheza em parte genuína e em parte calculada para manter a fidelidade de seu rebanho. Mas decorreu também de fatores objetivos, muito mais sérios e relevantes, entre os quais é imperativo destacar a propensão da casta patrimonialista que habita Brasília a tratar as esferas pública e privada como uma coisa só, privatizando benefícios e socializando prejuízos. É a “velha política” do linguajar bolsonarista, sem esquecer, porém, que o clã Bolsonaro vê o nepotismo como a coisa mais normal do mundo e que o próprio Supremo Tribunal Federal, que não é um órgão “político” no sentido banal do termo, tem se notabilizado por comportamentos igualmente desprovidos de substância republicana.

Sabemos todos que o controle do Estado pela casta patrimonialista é a causa principal de nossa estagnação econômica e de suas sequelas, entre as quais o vertiginoso aumento da violência. Se Bolsonaro der por encerrada a campanha eleitoral e compreender os requisitos do cargo que ocupa, contendo suas inclinações figadais, é possível que o ministro Sergio Moro consiga minorar os males decorrentes da criminalidade e Paulo Guedes possa robustecer a recuperação econômica, cujos sinais são por enquanto tênues. Se não, oremos.

Bolívar Lamounier , cientista político, sócio da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 16.08.19.

Abusos de interpretação

Por Merval Pereira

O projeto de abuso de autoridade aprovado na Câmara, depois de passar pelo Senado, tem como base uma proposta de 2009 feita por membros do STF e do Congresso, apresentado pelo então deputado federal Raul Jungmann, como decorrência do Pacto de Estado por um Judiciário mais Rápido e Republicano, firmado pelos Chefes de então dos três Poderes: presidente Lula, presidente do Senado José Sarney, presidente da Câmara Michel Temer e presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes.

A Lava-Jato ainda não existia, e a motivação era apenas conter abusos de autoridades. Mas a operação de resgate da proposta, dez anos depois, parece motivada pela vontade de tentar impor limites às investigações, e defender corporativamente os congressistas de maneira geral. O ex-ministro Raul Jungman, no entanto, não vê na legislação aprovada nenhuma alteração profunda que fuja das normas já existentes.

O projeto da Câmara aperfeiçoou o do Senado, e manteve o Ministério Público como receptor das denúncias contra autoridades. Mas ele retira o caráter de proteção geral de cidadãos, transformando-se em instrumento de bloqueio da ação dos órgãos de investigação e acusação, além de constranger juízes.

Levantamento do Ministério Público mostra que, dos 33 crimes tipificados na nova lei, que foi relatada pelo senador Roberto Requião, apenas três têm destinação de parlamentares e seis de autoridades e outros agentes públicos. Juízes são alcançados por 20 deles, promotores e procuradores por 21, agentes policiais e profissionais de segurança pública em 28.

O problema é que criminalização constrange a capacidade de interpretar as leis, e foi nessa interpretação que a Lava-Jato e o mensalão avançaram. Limitar a interpretação, usar a letra fria da lei, ou criminalizar as ações de combate à corrupção deixará temerosos investigadores, juízes, promotores e procuradores, com receio de retaliação, o que na verdade já está acontecendo.

Auditores da Receita Federal foram afastados pelo STF por alegadamente estarem investigando membros do tribunal em “desvio de função”, e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que o ministro Sérgio Moro considerava um instrumento fundamental no combate à corrupção e lavagem de dinheiro, saiu do Ministério da Justiça e foi transferido para o Banco Central.

Praticamente todos os itens da Lei de abuso de autoridade aprovada agora na Câmara já estão no Código Penal ou na lei de abuso de autoridade existente, mas muitos não como crimes. Os procuradores de Curitiba alegam, por exemplo, que o artigo 9º prevê como crime a decretação de prisão em “manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. O parágrafo coloca que é crime também indeferir habeas corpus “quando manifestamente cabível”.

Consideram os procuradores que o tipo penal estabelece um desincentivo pessoal para a prisão de réus poderosos, e é muito amplo, dependendo de interpretação. O criminalista João Bernardo Kappen lembra, porém, que a lei nova diz expressamente no §2º, do artigo 1º que a divergência na interpretação da lei não é crime de abuso de autoridade.

Uma série de ações do Congresso e do STF está em andamento para controlar essas investigações. Não foi acaso que um projeto de lei para restringir acordos de delação premiada de 2017, de autoria do ex-deputado petista Wadih Damous, foi desengavetado agora. Ele “impõe como condição para a homologação judicial da colaboração premiada a circunstância do acusado ou indiciado estar respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor”.

A nova lei de abuso de autoridade vai na mesma direção no artigo 13, inciso III, que diz que é crime “constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiros.

Na opinião do criminalista João Bernardo Kappen, esse artigo não precisaria nem existir, porque a autoridade que constrange o preso mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro estará praticando crimes previstos no Código Penal – crime de ameaça do artigo 147 do CP, crime lesão corporal do artigo 129 do CP e crime de constrangimento ilegal do artigo 156 do CP. (Amanhã: as novas regras)

Merval Pereira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 17.08.19.

Davi contra Golias

Por Joaci Góes

Antes mesmo de ouvir o que tinham a dizer o promotor Deltan Dallagnol e o Ministro Sérgio Moro a respeito do vazamento ilegal da conversa que tiveram, ao tempo em que o atual Ministro era o juiz da Vara Federal em Curitiba, responsável pelos julgamentos dos crimes da Operação Lava Jato, subiu muito significativamente o bom julgamento que se fazia sobre o excelente trabalho de ambos.

De cara, de pronto e de logo, demonstraram, particularmente o destemido e admirado juiz Sérgio Moro, que neles não cabe o anátema de Dante, na Divina Comédia, segundo o qual ”Os lugares mais quentes do inferno estão reservados para aqueles que em momentos de grande crise moral, preferem assumir uma posição de neutralidade”.

Dedicados a denunciar, combater e punir, do modo corajoso como o fizeram, os que organizaram a maior quadrilha para assaltar um país, que se conhece na história do Mundo, Moro e Dallagnol se alçaram muito alto no conceito da sociedade contemporânea, dentro e fora do Brasil, tendo em vista, sobretudo, o gigantismo da estrutura criminosa que defrontam, caracterizando uma versão moderna da desigualdade bíblica de forças entre o colosso filisteu Golias, de três metros de altura, e o jovem e pacífico pastor de ovelhas, o judeu Davi.

Golias confiava em seu tamanho, sua força descomunal e experiência guerreira, apoiado, ainda, por um formidável exército; Davi depositava suas esperanças no valor moral de sua causa e em sua fé em Deus.

Os Davis da boa causa da decência brasileira, da qual tanto dependemos para continuar aspirando ideais de paz e prosperidade, têm como única aliada a majoritária opinião pública nacional, permanentemente acossada por ponderáveis parcelas de uma mídia viciada, por membros de tribunais superiores comprometidos com o crime e por um Congresso sensivelmente prostituído.

Os que se escandalizam com conversas de conteúdo rotineiro entre juízes e as partes são da mesma natureza dos que se insurgiram contra a instalação do Tribunal de Nuremberg, após a Segunda Guerra, amparados no argumento de que a impunidade dos criminosos de guerra estava assegurada pela inexistência de lei que tipificasse e cominasse pena ao genocídio.
Esses mesmos padecentes do distúrbio conhecido como dissonância cognitiva, que os impede de ver que Lula chefiou a mais criminosa quadrilha de que se tem conhecimento na História, comparecem às ruas para vociferar o “Lula livre”, como mecanismo para pôr fim à Operação Lava Jato.

Mais uma vez, o tiro saiu pela culatra! Aturdida, num primeiro instante, pelo que seria a denúncia do fim do mundo, a opinião pública, aí incluída a patuléia ignara, em relativamente pouco tempo, depois de ouvir à saciedade a repetição dos diálogos “condenáveis”, recobrou sua higidez intelectiva e concluiu, tempestivamente, que só um juiz calhorda ou patologicamente burocrático pode manter-se equidistante quando o crime campeia, ostensivamente, contra a honra, a justiça, a miséria e a caridade, lassidão moral que Anatole France vergastou ao denunciar os que obedecem a uma isonomia “que pune o pobre por dormir num banco da praça pública, pedir esmolas ou furtar um pão”.

Para as pessoas inteligentes, o Ministro Luís Roberto Barroso defendeu a legitimidade dos diálogos entre o Procurador e o Juiz, ao sustentar, entre outros motivos, que ninguém pode desconhecer a pilhagem de dimensões inéditas e sesquipedais que desembocou na Lava Jato.

No fundo, o que quer a hipocrisia militante, a serviço da impunidade de crimes que têm o mesmo potencial lesivo do genocídio, é equiparar o juiz a uma máquina destituída de sensibilidade, obrigado a tratar igualmente a desiguais, em conflito com o necessário caráter dialético da desigualdade, como preconizado por Aristóteles e Rui Barbosa.

Nessa visão grotesca, esposada por conveniências ilegítimas, o juiz deveria agir como o padre do clássico filme A tortura do silêncio, de Alfred Hitchcock, que, acusado de um homicídio que não praticara, sente-se impedido de apontar o verdadeiro culpado que lhe confessara o crime.

De um modo geral, as entidades se manifestaram adequadamente sobre como tratar a questão, de momentosidade construída de má-fé, com a exceção da OAB nacional, cuja direção milita, despudoradamente, para abortar a Operação Lava Jato, descomprometida com o seu dever de agir com isenção, liberta dos compromissos de advogada dos que assaltaram o País.

Como estamos mal representados, nós os advogados!

A marcha batida contra o crime organizado para sangrar o Erário não tem volta. Os que lutam para acabar com a Lava Jato flertam com o risco de uma ruptura institucional. Depois não venham chorar sobre o leite derramado.

Joaci Góes é escritor, presidente da Academia de Letras da Bahia, ex-diretor da Tribuna da Bahia. Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia, edição de 13.06.19

E se não?

Por Eliane Cantanhêde

A crença, certeza ou argumento de que a economia salva o governo Jair Bolsonaro recebeu duas pancadas doídas. Uma, de fora: a derrota do liberal Maurício Macri para o kirchnerismo nas prévias da Argentina. Outra, doméstica: o risco de nova recessão.
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Na guerra ambiental, generais e Bolsonaro substituem o vermelho pelo verde

Macri é aliado fundamental para consolidar tanto a debacle do chavismo na América do Sul quanto o acordo do Mercosul com a União Europeia, tão festejado, mas tão ameaçado. Mas é improvável que ele consiga tirar 15 pontos de diferença para a chapa populista de Alberto Fernández e Cristina Kirchner até outubro. Sem Macri na Argentina e com Mario Abdo Benitez em risco no Paraguai, o acordo evapora. Para piorar, Bolsonaro apostou todas as fichas na chapa errada do país vizinho.

E o que dizer da prévia do Banco Central para o PIB do segundo trimestre no Brasil? Desde a eleição de Bolsonaro, a previsão de crescimento vem minguando. Agora, 0,2% de queda no primeiro trimestre e 0,13% no segundo apontam para recessão técnica. É grave para a economia, é gravíssimo para o discurso político do governo.

Bolsonaro vai mal, mas as expectativas econômicas iam bem. O presidente fala uma barbaridade atrás da outra, mas os ministros, por obrigação, e os aliados, por falta de alternativa, têm a mesma resposta na ponta da língua: deixa o homem falar, o importante é Paulo Guedes salvar a economia e recuperar o crescimento. E se não?


Juros e inflação baixos, reformas caminhando, acordo com UE, negociações com os EUA e liberação do FGTS são um alívio para bolsonaristas desencantados, mas apegados às promessas e sonhos da economia. Esquecem-se de que o Estado está engessado pelo déficit crônico, o setor privado continua assustado, as famílias mantêm-se endividadas, a ociosidade do comércio e da indústria persiste, os empregos não aparecem.

A recuperação deve vir, mas vai ser lenta, demorada. Enquanto Bolsonaro faz das suas, mas a crença na economia resiste, tudo bem. Mas desilusão com ele e com a economia ao mesmo tempo pode ser explosiva.

Bolsonaro cria atritos desnecessários e “relativiza” tortura, impessoalidade, armas, radares, cadeirinhas, dados científicos, desmatamento, reservas indígenas. Mas “ele é assim mesmo”. Enquanto isso, o ministro da Economia tem uma boa equipe, o da Infraestrutura aprofunda o plano de privatizações de Temer, a da Agricultura trabalha com pragmatismo, o de Minas e Energia avança. E o Congresso faz sua parte, aprovando a reforma da Previdência sem desidratá-la.

O problema é se Bolsonaro insistir em falar e fazer o que vem na sua cachola, chocando o País e o mundo, e a economia continuar patinando até passar a andar de marcha a ré. A confluência gera pessimismo e preocupação.

Para tornar esse cenário ainda mais turvo, Bolsonaro passou meses provocando a China e ameaçando históricas relações amigáveis com o mundo árabe. Quando se imaginou que recolhia as baterias viu-se que apenas desviava o alvo para Alemanha, França, Noruega, Suécia, deixando o Brasil numa situação desconfortável. Eles têm o discurso do “bem”, o Brasil assume a posição do “mal” justamente no meio ambiente. E é isso que fica na imprensa internacional.

Bolsonaro afugenta quem votou nele “só contra o PT”, reabre feridas da ditadura militar, escanteia o Coaf em favor da própria família e abre flancos na área externa – Europa, Ásia e Oriente Médio. Assim, ele se apega a dois fatores para manter o poder: sucesso na economia e inexistência de um opositor real.

Pelo andar da carruagem, só falta surgir o opositor, o antibolsonaro. Não da esquerda, mas da centro-direita. João Dória é mais afoito, mas não é o único. Quanto mais Bolsonaro balançar, mais Dórias vão surgir.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Sempre foi Jornalista. E para todo o sempre será sempre Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 14.08.19.

Lição de casa

Por Demétrio Magnoli

Os profetas convencionais erraram na previsão de que a guerra comercial entre EUA e China se dissolveria numa paz administrada por sucessivos acordos parciais. A China dobrou a aposta, permitindo a flutuação do renminbi, uma paliçada destinada a proteger sua economia num confronto de longa duração. Frustrado, Donald Trump rumina a ideia explosiva de intervir nos mercados de moedas, deflagrando uma guerra cambial. Nesse cenário, Jair Bolsonaro precisaria fazer a lição de casa, revisitando a política externa conduzida por Getúlio Vargas na década de 1930.

Naquele intervalo dramático, entre o crash de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, EUA e Alemanha protagonizaram uma disputa global por esferas de influência econômica. Vargas definiu como sua prioridade o programa de arrancada industrial e a política externa apropriada: uma estratégia de equidistância ativa e pragmática. O Brasil navegaria a tormenta incrementando o intercâmbio com as duas grandes potências.

Assinamos Acordos de Compensação com a Alemanha, em 1934 e 1936, que facilitavam o comércio direto, sem uso de divisas internacionais. As importações de bens alemães saltaram de 9% do total, em 1932, para 25%, em 1938. Paralelamente, em 1935, o Brasil firmou um Tratado de Comércio com os EUA, o que suavizou a redução no fluxo de intercâmbios bilaterais. Os produtos americanos, que representavam 30% das nossas importações em 1932, ainda contribuíam com 24% do total em 1938.

O jogo pendular propiciou contratos de modernização militar com a Krupp e outras empresas alemãs, numa ponta, e concessões americanas no pagamento da dívida brasileira, além de ajuda técnica para a criação da Sumoc, berço de nosso Banco Central, na outra. A equidistância perdurou até o início da guerra, quando Vargas inclinou-se aos poucos para o campo dos Aliados. O lance final foi a barganha da declaração de guerra ao Eixo em troca do financiamento americano para a implantação da Companhia Siderúrgica Nacional.

A Grande Depressão devastou o sistema de comércio internacional e destruiu o padrão ouro, delineando a paisagem tumultuosa na qual desenrolou-se a disputa geopolítica entre EUA e Alemanha. Hoje, nove décadas depois, a rivalidade entre EUA, a potência estabelecida, e China, a potência ascendente, ameaça romper o intrincado tecido da economia globalizada.

Sob o neonacionalismo trumpiano, os EUA estão muito perto de ceder à tentação da guerra cambial. No horizonte de curto prazo, a estratégia de manipulação do dólar provocaria violentas ondas especulativas nos mercados financeiros, sem reduzir o déficit geral na conta-corrente dos EUA. Num prazo mais longo, a aventura abalaria o reinado do dólar, fragmentando a economia mundial em esferas regionais concorrentes. A tormenta que se avizinha atingirá um Brasil singularmente despreparado para enfrentá-la.

Vargas equilibrou-se entre as pressões conflitantes de seus principais assessores, utilizando-as como ferramentas táticas. Oswaldo Aranha, um convicto pan-americanista que defendia o alinhamento com os EUA, serviu como ministro da Fazenda, embaixador em Washington e, na conclusão do jogo pendular, ministro do Exterior. Já os generais Góes Monteiro e Gaspar Dutra, que se sucederam no Ministério da Guerra, operavam pela aproximação com a Alemanha. Mão firme no timão, Vargas identificou o interesse nacional, colocando-o acima da polêmica que crepitava no núcleo do governo.

Nada indica que Bolsonaro se debruçará sobre a lição de casa. Vargas tinha, ao seu lado, lideranças com luz própria que descortinavam alternativas políticas contrastantes. Bolsonaro, pelo contrário, cerca-se de figuras deploráveis, bufões imersos numa lagoa de misticismo ideológico, que rezam todos os dias no altar do “Deus de Trump”. De Ernesto Araújo a Eduardo Bolsonaro, passando por Olavo de Carvalho, os conselheiros do presidente em política externa cantam, em uníssono, o hino da direita nacionalista americana.

Há um preço a pagar quando se fazem escolhas eleitorais apocalípticas. Trump prepara-se para inflacioná-lo.

Demétrio Magnoli é historiador. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 12.08.19.

Bolsonaro e o Caliban

Por Ricardo Rangel

‘A aversão do século XIX pelo Realismo é a ira de Caliban por ver seu rosto no espelho; a aversão do século XIX pelo Romantismo é a ira de Caliban por não ver seu rosto no espelho”, escreveu Oscar Wilde no prefácio a seu romance “O retrato de Dorian Gray”.

O Realismo tentava retratar a realidade tal como ela é; o Romantismo idealizava a realidade; Caliban é uma personagem bestial de “A tempestade”, de Shakespeare. Wilde quer dizer que existe uma parcela tosca da sociedade que sempre odiará a arte, a cultura, a civilização, ou porque estas revelam seus defeitos e insuficiências, ou porque, ao contrário, descortinam um mundo belo e elevado ao qual ela jamais poderia pertencer.

As armas do Caliban contra a civilização são a inveja, o rancor, o ressentimento, o ódio, o preconceito, o anti-intelectualismo, a intolerância, a mentira, a intimidação, a violência. Assim como Próspero, protagonista de “A tempestade”, mantém Caliban cativo para garantir a segurança de sua filha Miranda, a sociedade precisa manter o Caliban sob controle para garantir a segurança da civilização: quando ele se liberta, as consequências são graves.

Exemplos extremos do Caliban são a fase final da Revolução Francesa; os camisas negras na Itália; a SA e a SS na Alemanha; a Guarda Vermelha na China da Revolução Cultural; o Khmer Vermelho no Camboja; os porões das ditaduras militares sul-americanas. A mais perfeita tradução do Caliban está no brado lúgubre, e contraditório, da Falange Espanhola na guerra civil: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!”.

Para se libertar, o Caliban precisa de um ambiente propício, como este que temos hoje no Brasil: devastação econômica; polarização política; frustração, ressentimento e ódio (constantemente alimentados pelos dois lados); a percepção de que o Legislativo é composto de corruptos e o STF é um obstáculo à luta contra a corrupção; deterioração institucional. E um representante do Caliban capaz de galvanizar tudo isso — com o beneplácito de muitos que deveriam temê-lo.

Estamos vendo agressões diárias à imprensa, à academia, à ciência, à arte, à cultura, ao meio ambiente, a países amigos, às minorias, à lei, à lógica, ao bom senso, às boas maneiras — enfim, à democracia e à civilização. Quem ousa discordar é descartado e, se isso não é possível, linchado nas redes. Seria de se esperar que a sociedade— ou, ao menos, sua parcela mais preparada, que compreende a importância da democracia e dos valores ocidentais — reagisse com vigor. Em que pesem os muitos protestos, é assustadora a quantidade de pessoas preparadas que releva, relativiza, minimiza, justifica ou abertamente defende as infâmias de Bolsonaro. Essa complacência se explica pela revolta contra o PT e pelo raciocínio “vamos consertar a economia, o resto a gente vê depois”.

A complacência não se justifica. A revolta contra o PT perdeu o objeto: derrotado na eleição, fora do poder há três anos, com seu chefe e dono preso, o partido está fora da equação. A discussão não é mais sobre se Bolsonaro é melhor do que Haddad, mas sobre se sua conduta é aceitável em uma sociedade democrática.

O “raciocínio” também está errado: para consertar a economia, não é preciso destruir o resto e, dependendo do que for destruído, “consertar depois” pode não ser possível. E, por melhor que seja a equipe econômica, ela não basta. Crescimento sustentável exige investimento em educação, ciência e cultura; respeito ao meio ambiente; segurança jurídica; boas relações exteriores. Exige também investimento privado, coisa difícil em clima permanente de confronto e incerteza. O Caliban não é inimigo apenas da civilização: é inimigo do crescimento econômico, também.

Por fim, vale lembrar àqueles que supõem ser possível controlar o Caliban que a história mostra que ele sempre devora quem o alimenta.

Ricardo Rangel é empresário. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 13.08.19.

Estratégia e momento

Por William Waack

Jair Bolsonaro é um personagem transparente. Assegura que pensa o que diz. Assim, em relação à sequência de frases revoltantes que insiste em pronunciar, não há razão para duvidar quando ele afirma “eu sou assim, não tenho estratégia”.
De fato, aparentemente Bolsonaro deixou o Exército antes de frequentar as aulas de Estado-Maior sobre o que é estratégia. Na acepção clássica, adotada por militares, políticos e empresários, estratégia é a adequação dos meios aos fins levando em consideração tempo e espaço.

Esse ajuste dos meios (sempre finitos) aos fins (às vezes infinitos) funcionou muito bem na vitória eleitoral de 2018. Estava bem delineado o que ele queria (ganhar o pleito), quem era o principal adversário (o lulopetismo), o horizonte de tempo (o calendário eleitoral), qual comportamento tático (conteúdos políticos e estilo) funcionaria, quais recursos estavam ao alcance (redes sociais).

Mas, acima de tudo, o personagem político Bolsonaro atendia exatamente à demanda do eleitorado naquele momento de um ano atrás: alguém que convencesse milhões de indignados de ser capaz de chutar o pau da barraca do “sistema” (político, midiático, econômico). Tinha a seu favor uma onda popular muito maior do que ele – e foi ajudado pelo imponderável (a facada).

Ocorre que governar um país que se deteriora à espera da arrancada para sair da mais profunda recessão da memória viva é outra grandeza na ordem das coisas. Quando diz que não possui estratégia, o transparente Bolsonaro apenas torna evidente, com as próprias palavras, que neste momento não sabe aonde quer chegar – excetuando, talvez, permanecer onde está além de 2022. Portanto, não sabe também como quer chegar.

Mudar o Brasil com Deus acima de todos é um fim infinito, mesmo que louvável. Para alcançá-lo, o comportamento presidencial da xingação, do disparate das declarações, da ofensa a grupos diversos e desprezo pelos postulados (incluindo a articulação política) que o presidente entende como contrários aos fins surge como meio cada vez menos adequado. Bolsonaro tem mesmo razão quando diz que não possui uma estratégia.

Além disso, dois fatores importantes mudaram desde as eleições. O Legislativo e as diversas forças políticas ali representadas têm tido êxito em limitar o poder da caneta Bic do presidente. O ímpeto da Lava Jato – entendido aqui como a capacidade de um grupo organizado de exercer controle externo ao mundo da política – refluiu mesmo considerando a enorme popularidade de Sérgio Moro. A insegurança jurídica e suas consequências políticas permanecem fortes, e fogem ao controle do presidente.

Parece que Bolsonaro não entende assim os dados da realidade, ou acha que vai dobrá-la ao seu gosto. A “política institucionalizada”, por meio de chefes de partidos, legislativos, governadores, grupos corporativistas, interesses econômicos e sociais, está engolindo a falta de estratégia do presidente. A questão é saber até onde o levará o tipo de comportamento que insiste em exibir. Por enquanto, a fragmentação das correntes políticas e a inexistência de uma oposição com credibilidade e respeito tornam muito reduzido o perigo de ser apeado no meio do caminho.

Goste-se disso ou não, o sistema de governo brasileiro sob o qual Bolsonaro opera obriga o presidente a agregar forças políticas e o presidente está obtendo o efeito contrário ao gastar energia política em embates irrelevantes frente aos gigantescos desafios sociais e econômicos que precisa resolver. Estagnação econômica e frustração com o ritmo de mudanças acabarão alterando mais ainda o clima político, que está se degradando para o presidente.

Até surgir, como foi Bolsonaro em 2018, alguém com uma estratégia para o momento.

William Waak é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 01.08.19

Muito acima do tom

Embora muitos críticos não reconheçam, especialmente aqueles mais à esquerda, o governo Jair Bolsonaro apresenta algumas conquistas significativas nestes primeiros sete meses. A aprovação em primeiro turno de uma reforma da Previdência na casa do trilhão de reais, a MP da Liberdade Econômica, uma possibilidade de acordo com a União Europeia e um início de entendimento comercial com os Estados Unidos são, sem dúvida, destaques de uma administração com uma grande ambição: revolucionar a economia brasileira. Goste-se ou não do seu estilo, da sua falta de profundidade em assuntos importantes, o atual presidente concedeu o nihil obstat para que essas transformações saíssem do papel. Vale destacar que essas mudanças, ao lado de uma agenda liberal já em andamento, são fundamentais para colocar o país numa rota de crescimento sustentado.

É lamentável, no entanto, que o presidente não consiga enxergar o potencial destrutivo de suas desastradas declarações para a pavimentação desse caminho. Tais comentários não apenas servem como combustível para seus opositores, mas ajudam a minar apoio também entre aqueles que simpatizam com as ideias do governo. Alguém, por exemplo, acha que todos os deputados nordestinos de direita estão felizes em saber a opinião de Bolsonaro sobre quem nasce na região? Será que a falta de humanidade em abordar a morte do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, não incomodou nenhum de seus eleitores de formação cristã? São perguntas sobre as quais o presidente não reflete antes de disparar sua metralhadora.

Para piorar, a perda do capital político de Bolsonaro e suas consequências econômicas não são o único risco da incontinência verbal do líder máximo da nação. Muitas de suas falas resvalam num comportamento autoritário, sem filtros, que parece desprezar as instituições e os valores democráticos. A cada comentário estapafúrdio, Bolsonaro dá a impressão de testar os limites daquilo que pode ou não pode ser feito na Presidência. Trata-se de uma postura perigosa. A democracia brasileira é relativamente recente e nossas instituições não são tão sólidas quanto as americanas, eventualmente assediadas pela grande inspiração de Bolsonaro, Donald Trump.

Em defesa desse comportamento de Bolsonaro, alguns de seus auxiliares dizem que ele ainda reage como deputado, apoiando interesses do eleitorado que ajudou sua ascensão ao poder. Pois está na hora de o ex-capitão entender que ele agora é o presidente de todos os brasileiros. Que precisa respeitar negros, índios, nordestinos, mulheres, jornalistas, políticos de todas as correntes, o STF, as regras e a Constituição. A quebra permanente do decoro presidencial, assunto de outras quatro capas de VEJA desde sua posse, tumultua o ambiente político, a economia, e pode ser uma ameaça desnecessária à democracia. Insistir nesse tipo de confronto, sendo o porta-voz de um nicho da população, priva o país da figura do líder, o estadista com a missão de conduzir o crescimento da nossa economia, e afasta a discussão daquilo que realmente importa: os benefícios que este governo pode trazer à população brasileira.
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Durante quatro semanas, a repórter Jennifer Ann Thomas e o fotógrafo Jonne Roriz acompanharam a jornada de refugiados venezuelanos desde o seu país, passando pelos abrigos em Roraima e por voos da FAB, até o recomeço de vida em cidades brasileiras. Entre outros diferenciais, este é o tipo de reportagem que caracteriza a excelência do jornalismo de VEJA — sério, investigativo, analítico e comprometido com a veracidade dos fatos. Leia o relato da dupla nesta edição.

Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646

Ufa! Um gol do Jair

Por Eliane Cantanhêde

Depois de tantas declarações absurdas, posições surpreendentes e bolas fora na política externa, o governo Jair Bolsonaro fez um gol na solução da crise do vizinho Paraguai. O novo acordo de Itaipu era justo, mas o Brasil cedeu e reabriu as negociações por um objetivo maior: a questão política, que neste caso se sobrepõe à questão técnica, econômica.

O Paraguai é um país particularmente aliado, quase dependente do Brasil, e os dois atuais presidentes, Bolsonaro e Mario Abdo Benítez, são não apenas pragmaticamente parceiros, como ideologicamente identificados. Os dois, aliás, vêm da mesma Arma do Exército: são paraquedistas.

Logo, há a aproximação histórica, a questão de oportunidade e vários interesses conjunturais e estratégicos. Além das incontáveis empresas brasileiras que se instalam no Paraguai – graças às condições muito mais camaradas para os negócios – o Paraguai é, nada mais, nada menos, o país que mais cresce na América do Sul nos últimos 15 anos. O Brasil patina e passou por dois anos de recessão, enquanto o vizinho cresce à base de 4,5% ao ano.

Jair Bolsonaro
O presidente da Republica Jair Bolsonaro, durante lançamento do programa Medicos pelo Brasil, no Palacio do Planalto Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO
Para completar, o Mercosul, que acaba de fechar um acordo histórico com a União Europeia, é formado por quatro membros plenos e, em três deles, há obstáculos, reais ou possíveis, para a implementação das medidas.

No Brasil, Bolsonaro não para de criar atritos desnecessários com os europeus, a ponto de desmarcar de última hora a audiência com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drien. Pior: alegou problemas de agenda e na mesma hora gravou um vídeo cortando o cabelo. Na diplomacia, isso é um tapa na cara.

Na Argentina, o presidente Maurício Macri vai enfrentar uma eleição difícil em outubro. E se ele não for eleito e o peronismo voltar? O Uruguai navega com mais facilidade, mas o Paraguai ganhou força e poder de negociação pelo pragmatismo, política econômica bem-sucedida e estabilidade política. Já imaginaram se Benítez passa por um processo de impeachment e cai? Seria uma tragédia para o pequeno país, má notícia para o Mercosul e um tranco nas negociações com a UE.

Com o país crescendo e a demanda de energia obviamente aumentando, os paraguaios simplesmente usam todo o excedente de Itaipu Binacional e ainda abocanham uma parte da cota garantida do Brasil – e com o mesmo preço camarada do excedente. Assim, o Brasil poderia ter batido o pé e exigido seus direitos, mas foi sensível à complexidade envolvida.

O acordo anulado ontem era justo e tanto o Brasil exigiu quanto o Paraguai admitiu, por saber disso. E por que o acordo foi secreto? Porque o governo Benítez cometeu o grave erro de esconder a negociação para tentar fugir da velha pressão de parte da sociedade paraguaia, especialmente da esquerda, que acusa o Brasil de “imperialista” e insiste há décadas que os paraguaios são sempre lesados. Nada mais falso. Não estavam, não estão.

Diante da decisão do Brasil de ceder, da anulação do acordo e da reabertura das negociações, ganham o governo Benítez, Itaipu, o Paraguai, o Brasil, os “brasilguaios”, o Mercosul e a implementação do acordo com a UE. É melhor para todos manter Benítez no governo.

Aqui vai, porém, uma advertência: isso não significa que o Brasil vá ceder em tudo e voltar ao que era. O que foi prometido pelo governo, e será exercitado, é “flexibilidade nas propostas, mas firmeza nos argumentos”. Ou seja, o Brasil cedeu para ajudar Benítez, mas nem por isso abdica de defender seus interesses.

Não seria nada mal se essa postura pragmática e de bom senso se repetisse nas relações com o resto do mundo e, principalmente, nas declarações do presidente Bolsonaro. Mas, aí, já é pedir demais...

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 02.18.19.

A política da raiva

O destampatório de Jair Bolsonaro nos últimos dias – especialmente virulento mesmo para os padrões do presidente – contribui para ampliar o seu isolamento político. Afinal, grande parte do eleitorado que sufragou o nome de Bolsonaro nas urnas no ano passado não o fez para que ele, uma vez na Presidência, passasse seus dias a alimentar violentos antagonismos com diversos setores da sociedade, dificultando consideravelmente a governabilidade. Mesmo entre os políticos que se elegeram na onda do bolsonarismo já há os que procuram manter uma distância prudente do presidente, pois temem ser identificados com a irresponsabilidade que tem caracterizado o comportamento de Bolsonaro.

Se entusiasmam os devotos mais fiéis da seita bolsonarista, as diatribes do presidente colaboram para anuviar ainda mais o sombrio horizonte político e econômico do País. O homem encarregado pelas urnas de dirigir os destinos nacionais choca diariamente a maioria dos brasileiros com declarações absurdas, baseadas em nada além de devaneios e despejadas sem qualquer respeito pelas normas da democracia e mesmo da civilidade. Tal comportamento irrefletido torna imprevisível tudo o que emana do gabinete presidencial. Hoje, sob esse comando irracional, é impossível dizer para onde vai o País.

Não à toa, as forças políticas no Congresso há algum tempo parecem se organizar para fazer avançar as reformas das quais o Brasil depende para evitar o colapso fiscal e ter alguma chance de retomar o crescimento econômico. Para o setor produtivo, o mais importante no momento é que o País reencontre o caminho da recuperação, colocando em segundo plano o destempero do presidente Bolsonaro, por mais infame que seja em algumas ocasiões.

Não é possível conceber, contudo, que um governo possa continuar indefinidamente na dependência dos humores do Congresso e, muito menos, da instabilidade emocional do presidente, que a cada dia se mostra menos preparado para o cargo que exerce. E esse despreparo não se manifesta apenas por sua patente e muitas vezes assumida ignorância a respeito dos principais desafios da administração do País. O maior sinal de que Bolsonaro não é vocacionado para a Presidência da República é sua incapacidade de aceitar os limites institucionais do regime democrático.

Em mais de uma ocasião, Bolsonaro agiu como se sua vontade pessoal fosse superior à Constituição, assinando decretos e medidas provisórias eivadas de ilegalidades. O presidente parece considerar que sua eleição transformou automaticamente em lei suas promessas de campanha e seus arroubos retóricos, bastando somente traduzi-los em linguagem jurídica.

Os bolsonaristas mais radicais, contudo, acreditam que Bolsonaro foi eleito justamente para questionar os pilares do sistema democrático, que para eles está inteiramente corrompido. Nessa campanha de saneamento nacional vale tudo, inclusive fraudar o passado, como fez recentemente o presidente ao atribuir a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, um dissidente do regime militar, ao grupo de esquerda do qual ele fazia parte, embora o próprio Estado brasileiro admita, em documentos oficiais, que esse dissidente desapareceu depois de ter sido preso pela polícia política.

Para Bolsonaro, contudo, esses documentos são, simplesmente, “balela”. O presidente segue assim o padrão de duvidar de tudo o que contraria sua visão de mundo, mesmo que tenha sido produzido por autoridades de dentro de seu próprio governo ou por especialistas sem qualquer vinculação partidária.

Assim, o presidente Bolsonaro tenta usar sua autoridade de chefe de Estado para transformar em letra morta a base factual da história brasileira, o que tornaria legítima qualquer opinião acerca do passado, mesmo as mais estapafúrdias e aquelas que se prestam a alimentar laivos liberticidas. Esse lamentável episódio não foi apenas um ataque isolado à memória de um dissidente político, mas uma demonstração cabal de que Bolsonaro não se sente constrangido por nenhuma das normas de convivência democrática. Um governo com esse espírito, que não respeita o passado, não anuncia um bom futuro.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 31.07.19

Presidência subversiva

Por Roberto Romano

O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.

“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

A disciplina define a honra do soldado, na ordem e na promoção. Esta última responde à capacidade de um militar para ser movido pela ordem. Em cada ordem obedecida fica nele um espinho. Se é soldado raso, não pode desfazer-se dos espinhos. Para sair desse estado espera a promoção. No plano superior ele se desfaz - nos outros - dos espinhos/ordens. O alto comando é o que menos ordens recebe, mas é submetido à máxima autoridade estatal. É absurdo para o soldado que chega ao posto de general imaginar que suas próprias ordens não serão acatadas. Se o chefe supremo tolera ataques contra generais (mesmo os que deixaram a ativa), a instituição desliza para a indisciplina. Em prazo curto as Forças Armadas sentem que a dissolução da autoridade as leva ao ponto zero. Perde-se o controle do monopólio da força pelo Estado. A subversão vinda de cima cumpre o seu papel desagregador.

No relativo à norma jurídica, o presidente assume atitude subversora. Ao proclamar como seu candidato ao STF um “terrível evangélico”, ele põe abaixo a disciplina republicana. Esta exige dos candidatos aos postos oficiais “os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (Constituição, artigo 37). Em nenhum desses itens lemos “crença religiosa”. Ao optar por um candidato pela sua fé, algo subjetivo, o presidente objetivamente subtrai de todos os não evangélicos o direito de exercer cargos públicos. A subversão em favor de seitas leva os Estados às guerras civis, ao ódio desagregador.

Subversão da ordem pública vem na escolha de Eduardo Bolsonaro para o cargo de embaixador. Os mandamentos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência são estraçalhados num só golpe. Como as Forças Armadas, o Itamaraty segue a disciplina em ritos e regras de acesso à carreira e à promoção. Quebrado o comando surge a anomia em setor estratégico do Estado. Aristóteles indica a família como um passo na constituição política. Com o presidente do Brasil, a sua família paira sobre o Estado, gerando subversão. Nem o regime Vargas e menos ainda o de 1964 ousaram tal façanha.

No caso dos generais, poucos apoios notamos a eles quando humilhados pelos fiéis do presidente, dirigidos por seu filho vereador. No STF a ordem é agredida em detrimento da cidadania. A proclamação do candidato evangélico foi efetivada em culto religioso no edifício do Legislativo. Uso contrário à lei, próprio de subversivos. No Itamaraty o feito mostra que a disciplina desaparece. Recordemos: foram tão lenientes os senadores de Roma diante dos abusos subversivos de César, que eles foram eliminados sem respeito algum, apesar de suas alvas togas. O mesmo acontece com as nossas togas verde-oliva ou negras.

Para finalizar, o presidente subverte o pacto federativo ao dizer que certos dirigentes de Estado devem ser excluídos dos benefício s a que têm direito. Juízes, militares, governadores, universidades: instituições fundadas na hierarquia e na autoridade. Se quem deve preservar tais valores os corrói, surge o caos. E do caos ninguém retorna.

Roberto Romano, Professor de Universidade de Campinas - UNICAMP, é autor do livro "Razões de Estado e Outros Estados da Razão", (Editora Perspectiva). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.07.19.

O Poder Invisível

Por Gaudêncio Torquato

Levar 39 kg de cocaína na bagagem para o Exterior e, mais, dentro de um avião da frota presidencial, é coisa para deixar perplexo qualquer cidadão. O sargento da Aeronáutica, Manoel Silva Rodrigues, flagrado em Sevilha, na Espanha, onde aguardava a comitiva do presidente Bolsonaro de volta da reunião do G-20, em Osaka, no Japão, pode desvendar o mistério: como a droga usa “mulas” das Forças Armadas para sair do país?

O lamaçal está em todas as partes, até nos santuários considerados sagrados e invioláveis, como deveriam ser o Judiciário e as Forças Armadas. Norberto Bobbio, o filósofo italiano, em seu clássico O Futuro da Democracia, aponta a eliminação do poder invisível como uma das promessas não cumpridas pela democracia.

Esse poder consiste em ações criminosas de grupos que agem nas entranhas da administração pública, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a “peitar” a estrutura formal de mando. Exemplo desse fenômeno é o crime perpetrado dentro do sistema de segurança do próprio presidente da República. Imagine-se o que poderia ocorrer se na equipe houvesse um terrorista, alguém capaz de realizar um atentado mortal.

O fato é que há uma máfia agindo nas sombras da administração, não mapeada pelos órgãos de controle e segurança, como o Gabinete de Segurança Institucional.

Pensemos. Um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, a liberdade de expressão, instrumentos do poder estatuído. Já nos regimes ditatoriais, o Estado pode agasalhar ilícitos e que ferem os direitos dos cidadãos. As democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e a expansão de redes invisíveis de poder.

É assim que no seio das democracias vicejam novas formas de ilegalidade, teias aéticas nas relações políticas, clientelismo, voto fisiológico, manutenção de feudos, etc. Nessa esteira, as massas passam a desacreditar na política e em seus atores. A apatia se instala. As taxas de credibilidade nos governantes decrescem, como se observa hoje por aqui, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam. O resultado de tudo isso é o atraso no processo de modernização política e social.

As reformas que se pretendem promover – a partir dessa complicada e polêmica reforma tributária – não ensejariam, sob essa ótica, a eliminação das deformações da democracia, senão um lento avanço no caminho do aperfeiçoamento democrático.

Portanto, sejamos realistas: teremos de conviver, por muito tempo ainda com o poder invisível e suas nefastas consequências. Apurar se políticos, empresários e organizações têm ou não dinheiro no Exterior, se fizeram parte de esquemas de corrupção, se arrombaram os cofres da Petrobras e do BNDES, investigar quem passa informações sigilosas para a Intercept Brasil, ou, ainda, verificar as ligações entre procuradores e juízes, são questões que não matam o vírus da corrupção.

Funcionarão como agulha lancetando um tumor, mas este pode aparecer, a qualquer momento, em outra parte do corpo, caso não seja atacada a origem da doença. E qual é a causa? Há muitas, mas o estágio civilizatório de um povo é, em última análise, o fator determinante a balizar a trajetória de um país. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem ser da preferência dos governantes, enquanto a democracia necessita de cidadãos ativos, conscientes, participativos.

A cidadania ativa é fruto da educação. Não adianta fazer reforma política - mudar sistema de voto, exigir fidelidade partidária, - se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim.

A promessa da democracia - de educar os cidadãos - é, por isso mesmo, compromisso prioritário para que o Brasil possa sair do estágio pré-civilizatório que se encontra em matéria de cidadania política.

Quando todos os brasileiros estiverem repartindo o mesmo prato cultural, inseridos no banquete da consciência cidadã, nossas doenças culturais poderão ser curadas com simples vitaminas.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Os Inimigos do Povo

Por Carlos Eduardo Lins e Silva

Governo não gosta de imprensa. Exceto se ele for totalitário e/ou ela for incompetente, vendida ou parceira ideológica.

O governo soviético não tinha problemas com o grande diário do país: o Pravda (A Verdade, em tempos que ainda não eram chamados de pós-verdade, embora a imagem de Trotsky já fosse sistematicamente apagada das fotos oficiais). Nem o regime nazista reclamava do Völkischer Beobachter (Observador Popular). Stalin e Hitler nunca chamaram esses jornais de “inimigos do povo”, como Donald Trump designa os veículos de imprensa de seu país que mantêm independência editorial.

Já nas democracias todos os governos sempre se queixaram do jornalismo independente: nos EUA, os de Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush, Clinton, W. Bush, Obama; no Brasil, os de Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Rousseff, Temer. Só para citar os mais recentes.

O diferente agora em relação a esse passado é que regimes populistas expressam hostilidade ostensiva contra o jornalismo e agem para intimidá-lo ou manietá-lo, instigam seus seguidores a agredi-lo, impõem limites à sua ação, dificultam a cobertura de veículos que consideram perigosos demais, propõem alterações na legislação para endurecê-la, mentem de forma sistemática, põem jornalistas na cadeia sempre que podem.

Isso ocorre na esquerda e na direita, em todos os continentes: López Obrador no México, Ortega na Nicarágua, Maduro na Venezuela, Duterte nas Filipinas, Al-Sisi no Egito, Zeman na República Checa, Fico na Eslováquia, Orbán na Hungria. Sem falar em China, Rússia e Coreia do Norte. E, claro, nem em Trump e Bolsonaro.

Mas o fenômeno não começou com esses déspotas. Desde o advento da internet e das redes sociais, não só o jornalismo, mas diversas instituições têm sofrido. A tecnologia permitiu às pessoas prescindirem de intermediários para obter o que desejam e deu-lhes instrumentos para desprezar, rejeitar ou contestar o conhecimento de especialistas. Assim como todo brasileiro sempre se achou o melhor técnico de futebol do País, muitas pessoas acham que podem substituir médicos, advogados, professores, pelo dr. Google. Rejeita-se o conhecimento institucionalizado. Negar o expert afirma a autonomia e o poder da pessoa comum.

Não é preciso mais pagar por hotéis para se hospedar, abre-se mão de táxis em troca do Uber, o Congresso é desnecessário, não se confia nos tribunais, prefere-se a democracia direta. Basta de intermediários: eu no poder.

O jornalismo também passa a ser desprezado, embora tal desprezo não seja fenômeno tão novo. Há muito tempo a imprensa é alvo do descontentamento de grande parte da sociedade e muito dessa antipatia deriva da atitude e do comportamento de jornalistas, que, com frequência, são arrogantes, julgam-se mais bem informados e, portanto, superiores ao público, não conhecem de fato quais são os problemas e aspirações da audiência, não reconhecem seus próprios erros, embora acusem à exaustão os dos outros.

Pesquisas de opinião mostram que tanto nos EUA quanto no Brasil a credibilidade do jornalismo profissional é tão baixa quanto a das redes sociais: segundo o Datafolha, apenas 5% dos brasileiros acham confiáveis todas as notícias tanto de um quanto de outras.

Conservadores e corporativistas por natureza, jornalistas se horrorizam com seu leitor do século 21. O público digital tem blogs, tuíta e posta no Facebook incansavelmente, deixou de ser mero receptor e passou a emitir também, não é mais cativo, passivo.

Apesar dessa má vontade recíproca, sociedade e jornalismo nunca precisaram tanto uma do outro para sobreviverem na democracia. O ambiente tóxico de sectarismo identitário que dividiu as pessoas em bolhas nas quais se retroalimentam pode destruir a vida em comum.

É imprescindível haver um espaço em que opiniões e ideias diversas circulem livremente e em confiança. Essas bolhas precisam ser perfuradas para se criar um espaço de diálogo construtivo, por exemplo, o da imprensa, que possibilitou a formação de nações nos séculos 18 e 19, como mostrou Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas. Para isso jornalistas terão de mudar muito. Têm de evitar ao máximo cometer erros factuais e, quando os cometerem, precisam reconhecê-los rápida e transparentemente. E para diminuírem a ocorrência de erros factuais têm de perder a obsessão por levar ao público informações antes dos concorrentes e nunca divulgar nada antes de estarem absolutamente seguros de sua correção total.

Não podem deixar-se manipular por demagogos que atraem sua atenção com declarações ultrajantes e os afastam da tarefa essencial que é questionar a incompetência desses demagogos que estão no poder. Não devem engajar-se no combate ideológico contra os que os chamam de “inimigos do povo”, expressão inicialmente utilizada por Ibsen numa peça de teatro de 1882 e depois vulgarizada por Stalin na União Soviética e agora por Trump nos EUA – e marginalmente por Bolsonaro no Brasil. Como disse o jornalista Paul Farhi, do Washington Post, em recente evento promovido pelo programa de pós-graduação em jornalismo do Insper, a imprensa americana não se deve engajar numa guerra contra Trump, deve apenas trabalhar – “we are nota at war (against Trump), we are at work”.

Se os jornalistas se dedicarem diligentemente ao trabalho fiel a seus cânones, se reconhecerem que os tempos são outros e a prepotência com que muitos deles se comportavam não é mais admissível, se estiverem abertos à crítica e dispostos à autocrítica, eles estarão sendo mais eficientes na defesa da democracia do que com avalanches de palavras indignadas. O combate ao populismo autoritário só será efetivo se estiver baseado em fatos bem apurados, em substantivos, não em adjetivos e advérbios explosivos.

Descobrir e mostrar ao público com transparência e rigor os fatos provarão a ele quem são os inimigos do povo.

Carlos Eduardo Lins e Silva é Professor do INSPER. Foi ombudsman da Folha de São Paulo. Este artigo foi publicado originariamente em O Estado de S. Paulo, edição de 17.07.19.

Perigos de uma campanha precoce

Por Fernando Gabeira

A reforma da Previdência e o acordo comercial com a União Europeia são dois temas que podem animar a economia. Mas não se pode superestimá-los. Um trabalho de reconstrução demanda um trabalho diuturno.

O clima de campanha política não é o melhor para desenvolver essas tarefas. Bolsonaro falou duas vezes em concorrer de novo em 2022. Espera entregar um País melhor em 2026, mas parece ignorar que passará pelo grande julgamento no final do primeiro mandato.

O vazamento entrou na campanha. Moro decidiu por uma saída política, contando com a ambiguidade: os diálogos podem ou não ser verdadeiros. Bolsonaro abraçou a Lava Jato com o mesmo entusiasmo com que levantou a taça da Copa América.

Duas estratégias podem ser desenhadas. A de Bolsonaro, manter o apoio, independentemente do que digam a Justiça e a opinião pública no fim do processo. Sabe que uma independe da outra e que a fidelidade popular à Lava Jato se tem mantido a ponto de ainda ser a melhor escolha eleitoral. Já a estratégia da esquerda, que recusou uma autocrítica, conta com o desgaste da Lava Jato para consagrar a sua tese de que a operação foi uma grande manobra para derrotá-la.

Mas o Brasil não se resume a esses dois grandes blocos. No caso específico da Lava Jato, nem todos os que a apoiam compartilham as teses ultrapassadas de Bolsonaro. Assim como nem todos os que questionam Moro necessariamente acreditam na inocência da esquerda.

Ainda haverá uma decisão da Justiça baseada nesses vazamentos. Andará alguns passos. Um deles é verificar a autenticidade do material. O outro, creio, é examinar todas as frases dentro do seu contexto. Isso se for vencida a etapa inicial: reconhecer ou não as provas obtidas ilegalmente.

A Lava Jato é, de longe, a mais importante operação contra o desvio de dinheiro público no Brasil. Pelo número e pela importância dos condenados, pelo dinheiro devolvido, pela repercussão continental na política.

Outro dia viajei com um motorista peruano. Contei que cobri a eleição de Ollanta Humala contra Keiko Fujimori. “Pois é, ambos presos”, comentou.

A operação dispôs-se a realizar seu trabalho sob a legalidade e submeteu seus principais passos ao Supremo. Passou por esse teste. Mas agora se vê diante de um novo desafio. Seus documentos públicos e oficiais não são escrutinados, mas, sim, as conversas pessoais colhidas num aplicativo.

Era uma operação para desmontar uma organização criminosa, conforme definiu o próprio ministro Celso de Mello. Depois de algumas vitórias e alguns embates, não me surpreende que houvesse um vínculo entre juiz e promotores conscientes de que estavam lutando contra algo muito forte.

Diante de uma organização criminosa só seria eficaz um enfoque sistemático. Não se pode ignorar que era composta de indivíduos com seus direitos. Nesse caso, haveria um desvio autoritário. Mas ignorar que existia uma quadrilha e que eram mais do que indivíduos vulneráveis diante do Estado, no meu entender, é uma visão romântica .

Os sucessivos fracassos das operações anteriores à Lava Jato esbarraram em procedimentos legais. Trata-se de operações realizadas no universo político, em que o filtro é mais rigoroso. Colocam o problema básico: como combater uma organização criminosa dentro desse universo, no qual a grande barreira são o rigor e as filigranas jurídicas?

Fora do crime político não há grande inquietação. Os processos contra o PCC, o Comando Vermelho ou a Família do Norte são desconhecidos nos detalhes, no seu curso legal, quanto mais nas trocas de mensagens pessoais dos seus agentes. Pouco sabemos dos juízes forçados a viver com escolta armada.

Como as coisas aconteceram num mundo mais sofisticado, o debate é sobre o Estado de Direito em sua visão mais rigorosa. Num primeiro e cauteloso artigo sobre o material vazado afirmei que, na minha opinião de leigo, o juiz poderia indicar provas, sobretudo quando estivesse diante de uma organização criminosa e sua omissão a favorecesse.

O material da Veja traz uma frase em que Moro lembra ao procurador a necessidade de inclusão de um cheque nas provas. No artigo, escrevi também: o juiz precisa ter serenidade para avaliar a prova, mesmo tendo pedido a sua inclusão. Pode rejeitá-la no contexto da sentença.

No caso mencionado pela Veja, Moro, um especialista em crimes financeiros, teria pedido a prova e depois absolvido o réu. O que era apenas uma hipótese no artigo, escrito muito antes de o caso vir à tona, parecia confirmar-se ali. No entanto, Moro desmentiu o diálogo vazado e afirmou que seria esquizofrênico incluir provas e absolver a pessoa em seguida.

Em síntese, para não repetir o adjetivo de Moro, meu argumento parece estapafúrdio. Ou, então, apenas fora de lugar numa batalha marcada pelo cálculo político que aciona as paixões nas redes.

Não acredito que no final desse episódio as conquistas da Lava Jato sejam anuladas. No entanto, está em jogo também um modelo de combate ao crime organizado.

O núcleo combatido pela Lava Jato teve a assistência de talentosos advogados, que produziram um cipoal de interpelações e recursos. Nunca se viram tantas táticas na Justiça comum. Nenhum outro processo atual foi tão discutido em instâncias superiores.

A Lava Jato sobreviveu e tem sobrevivido no STF e na gratidão pública, apesar dos vazamentos envoltos em suspense e de uma dose de sensacionalismo. Sua vulnerabilidade atual é aparecer como aliada de Bolsonaro. É um instrumento do Estado e deveria ter seus métodos próprios de defesa.

Todos sabemos o que é uma campanha política no Brasil. Uma campanha precoce, então, leva para as profundezas o nível do debate.

Fernando Gabeira é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 12.07.19.

Covardes! Covardes! Covardes!

Por Fernão Lara Mesquita

O que mais choca ao ver as tais “instituições funcionando” é constatar o completo abandono em que vai o brasileiro plebeu.

O desarmamento mecânico foi só uma das consequências do outro. O pior é o absoluto desarmamento institucional a que estamos reduzidos. Vem vindo de longe e num crescendo há tanto tempo que anestesiou o povo e fez do brasileiro uma massa inerte. Já não se defende nem das mordidas que leva de frente. Reduzido à sobrevivência até a próxima refeição, foi devolvido à lei da selva. Está muito aquém do nível em que gestos de dignidade humana podem ser cobrados.

O grau de alienação da outra ponta é inversamente proporcional. Os predadores-alfa, com suas lagostas, seus vinhos tetracampeões e seus decretos de 16,32% no Ano da Grande Fome, rebaixaram Maria Antonieta a um símbolo de austeridade e promoveram o xerife de Nottingham a um quase mecenas. Para o Brasil de Brasília o luxo não é só constitutivo, é antes “constitucional”. Exigível por ordem judicial, é função do Estado impô-lo à favela pela força.

Quando a sessão de tortura termina, a volta à cela torna-se motivo de comemoração. Mas esse trilhão, se sobrar tanto, não é desmame. É só um sopro no pulmão do morto. Está mais para a bruxa engordando o dedinho de Joãozinho e Maria. Quando a reforma da Previdência foi entregue ao Congresso, em fevereiro, já os militares, “no poder” após 33 anos de ostracismo, tinham sido (indiretamente) desembarcados dela. Morto o critério de igualdade, o arbítrio, de que nascem as privilegiaturas, ganhou salvo-conduto para o futuro do Brasil com o endosso presidencial à exclusão do sistema de capitalização logo nos primeiros dias dos dois meses até a CCJ mais 68 dias de Comissão Especial fazerem das palavras dele lei. No último minuto a agroteta, o alter ego do agronegócio que salva a Pátria, mordeu os seus 89 bi só pra ninguém esquecer que o privilégio não tem preconceito de classe. E então lançaram-se ao leilão os Estados e os municípios, onde se fará o ajuste fino do que sobrar após os dois turnos, no mínimo, em cada Casa do Congresso, que estão na agenda do “pra já” das nossas depressões futuras.

Não há “rachas” na privilegiatura. Só o que continua em disputa é a quem serão atirados os ossos a cada troca de turno no poder. Aos “movimentos sociais” de laboratório, à protomilícia da fase terminal das quase democracias, ou às polícias que já engatilham aquelas “greves” que consistem em sinalizar para o crime quando estará liberado o próximo comedio em que poderá “tocar o terror” impunemente. Será, portanto, disputada com o argumento de sempre a questão filosófica sobre se são ou não são privilégios as vantagens que as polícias têm: “E então, governador, a quantos plebeus trucidados vosselência resiste?”.

Mortas sem choro nem vela de tantos observadores da imprensa e seus “especialistas” das universidades públicas as pretensões revolucionárias da reforma, nada mais restava “fora da ordem”. Seguiu-se a tradicional disputa dos lobbies, alguns, como é de lei, patrocinados pelo presidente da República em pessoa, pois, da “direita” ou da “esquerda”, é de bom tom que eles não se esqueçam “dos seus” nesta nossa democracia cordial.

A plebe do favelão nacional foi, como sempre, a única “parte” em prol da qual ninguém pediu “vantagens”, com exceção do “politicamente inábil” ministro da Economia que as privilegiaturas “de direita” e “de esquerda” que se substituem no poder, igualmente virgens de qualquer experiência com as maçantes obrigações da economia não parasitária, acabam constrangidas a importar do Brasil Real.

Já é outra vez possível até atacar de frente o combate à corrupção e propor de peito aberto o restabelecimento da impunidade. Com a promoção dos hackers de aluguel e do jornalismo de banqueiro “campeão nacional” a interlocutores legítimos do processo político brasileiro, os “ganchos” para o bombardeio de saturação estão garantidos. As redações herdadas, com “autonomia” garantida pela sólida alienação dos seus patrocinadores, podem recuar do primeiro plano e concentrar-se por um tempo apenas em “repercutir” os ataques de que mesmo “fatiados” ninguém desconfia, enquanto mantêm a censura para as alternativas que funcionam no mundo que funciona. Quem, na privilegiatura “de direita” ou “de esquerda”, “ganhou” ou “perdeu” cada round?

O resumo é que foi mais uma vez anunciado aos quatro ventos que quem tem lobby monta em quem não tem, e a polícia, os paladinos dos direitos humanos e os santos de pau oco montam juntos.

Covardes! Covardes! Covardes!

É a hora mais escura do Brasil. Ilusão de noiva acreditar que qualquer coisa vai mudar antes que o poder mude de mãos. Enquanto não impusermos ao País Oficial o deslocamento do seu eixo de referências e do ponto de ancoragem dos empregos públicos, as lealdades continuarão sendo as de hoje, as iniciativas para “melhorar” isto ou aquilo não passarão de paliativos e qualquer debate em torno delas, apenas dados de uma autópsia que contribuirão mais para alienar que para esclarecer o País.

O mundo está aí para quem quiser conferir. Manda na própria vida e livra-se da miséria quem tem o poder de contratar E DE DEMITIR políticos (os funcionários tornam-se demissíveis por consequência) e de dar a última palavra na escolha das leis sob as quais concorda viver. Só não é escravo quem tem a garantia de que é seu o resultado do seu trabalho e que só ele tem o poder de dispor sobre o que será feito dele. Eleições distritais puras com direito a retomada de mandatos, iniciativa de propor leis combinada com direito de referendo do que vier dos legislativos e eleições periódicas de retenção de juízes põem você como referência obrigatória dos políticos, a sua satisfação como única garantia do emprego deles e, ao mesmo tempo, blinda o País contra golpes e manipulações.

A deus o que é de deus, portanto. O Brasil não precisa mais que de políticos tementes ao patrão.

E viva o 9 de julho, que era disso que se tratava desde muito antes de 1932!

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 09.07.19.

Esquerda em estado de choque. Feridas abertas

Por Ricardo Noblat

Nem nos seus piores pesadelos, os partidos de esquerda sonharam com uma derrota tão acachapante como a que colheram na Câmara dos Deputados com a votação da reforma da Previdência.

Seus líderes sabiam que o texto seria aprovado, mas por uma margem apertada de votos. Admitiam poucas deserções em suas fileiras, mas jamais o que acabou por acontecer.

Somente o PT, PSOL e PC do B votaram em bloco contra a reforma. O PSB, que fechara questão contra a reforma, rachou e feio. Dos seus 32 deputados, 11 votaram a favor.

Dos 27 deputados do PDT, 8 desobedeceram à orientação do partido e votaram a favor da reforma – inclusive a estrela da bancada, Tabata Amaral, cogitada para disputar a prefeitura de São Paulo.

Ciro Gomes, ex-candidato do PDT a presidente da República, anunciou que pedirá a expulsão dos infiéis. A direção do PSB pensa em promover o expurgo dos seus desobedientes.

É difícil que tais ameaçam se concretizem dado ao pequeno tamanho da esquerda na Câmara. Em jogo, a sobrevivência das legendas. O barulho interno cessará com o passar do tempo.

A fatia mais à esquerda da esquerda é que pode sair eleitoralmente fortalecida. Entregou pelo menos o que prometera – todos os seus votos para derrotar a reforma.

Ricardo Noblat é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em Veja.com (edição de 11.07.19)

Bolsonaro nos passos do PT

Ao vetar a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras (Lei 13.848/19) que estabelecia a indicação de diretores a partir de uma lista tríplice, o presidente Jair Bolsonaro mostrou sintonia com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em vez de proteger a autonomia das agências, a preocupação comum dos dois presidentes foi manter a ingerência política sobre elas.

Dias antes do veto, Bolsonaro afirmou que “as agências travam os Ministérios. Você fica sem ação. Você tem que negociar com agência, é um poder paralelo”. Foi precisamente essa a visão sobre as agências que imperou durante as administrações petistas e que tantos prejuízos gerou. Com a diminuição da relevância e da funcionalidade das agências reguladoras, importantes serviços públicos ficaram sem a devida regulamentação e sem o devido controle. O preço de tal descaso foi pago pela população.

Mas não é apenas com Lula da Silva que o presidente Jair Bolsonaro vem se identificando quando o tema são as agências reguladoras. Ele segue também os passos da presidente Dilma Rousseff, que ficou conhecida pelo atraso na indicação das diretorias das agências. Por falta de iniciativa da presidente, cargos ficaram vagos durante meses. Houve casos de vacância de mais de ano. Além disso, verbas cortadas prejudicaram o funcionamento das agências.

Segundo levantamento feito pelo Estado e pela União Nacional dos Servidores de Carreira das Agências Reguladoras Federais (UnaReg), até dezembro Bolsonaro terá de preencher 14 vagas. Até o momento, ele indicou apenas 3 nomes. A demora poderá levar à mesma situação ocorrida na gestão de Dilma, com diretorias vagas inviabilizando o trabalho das agências, sem quórum mínimo para as votações. Para que um cargo não fique vago, é preciso indicar os nomes antes do término do mandato dos diretores.

Das 14 vagas, 4 já estão abertas e apenas 2 nomes de substitutos foram enviados pelo Executivo ao Senado. Outros cinco postos ficarão vagos até o início de agosto, quando vencem os mandatos dos atuais dirigentes. Apenas para um deles já há um indicado.

Foi tão grave o problema da vacância nas diretorias das agências durante o governo de Dilma Rousseff que o Congresso estabeleceu uma medida corretiva para a inércia presidencial. A Lei 13.848/19 previu que, “ocorrendo vacância no cargo de Presidente, Diretor-Presidente, Diretor-Geral, Diretor ou Conselheiro no curso do mandato, este será completado por sucessor investido na forma prevista no caput e exercido pelo prazo remanescente, admitida a recondução se tal prazo for igual ou inferior a dois anos” (art. 5.º, § 7.º).

O atraso de Bolsonaro na indicação de nomes para as agências reguladoras é contraditório com o veto aplicado à Lei 13.848/19. O presidente se insurgiu contra a lista tríplice, querendo liberdade total para indicar candidato, mas ao mesmo tempo não fez as indicações que deveria fazer. A contradição, no entanto, é apenas aparente. As duas atitudes manifestam profunda incompreensão a respeito do papel das agências, a mesma incompreensão vista durante os 13 anos de PT na administração federal.

A confirmar seu desapreço pelas agências, o presidente também vetou uma importante garantia contra a “captura regulatória”, que é a utilização das agências por parte de agentes políticos ou empresariais para fazer valer seus próprios interesses. O Congresso proibiu a indicação de quem tivesse, nos últimos 12 meses, algum vínculo, como sócio, diretor ou empregado, com empresa que explora atividade regulada pela agência. O presidente vetou essa restrição, alegando que era exagerada. Ora, para realizar sua missão de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos, a agência precisa ter independência tanto da esfera política como do setor privado.

O Congresso tentou corrigir um problema, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou a solução. Como se vê, a origem dos problemas nem sempre está no Legislativo. Provém muitas vezes do inquilino do Palácio do Planalto.

Publicado originalmente em O Estado de São Paulo na coluna Notas e Informações, edição de 02.07.19.

A qualidade do debate político

Os norte-americanos estão profundamente insatisfeitos com a qualidade do debate político no seu país, revela o Pew Research Center. Para muitos deles as próprias conversas sobre política tornaram-se experiências estressantes a ponto de preferirem evitá-las. Ainda que a pesquisa se refira especificamente aos Estados Unidos, ela traça um panorama de deterioração do debate político não muito distante do que se observa em outros países, entre eles, o Brasil.

Para a grande maioria dos entrevistados (85%), o tom e o conteúdo do debate político nos Estados Unidos tornaram-se mais negativos nos últimos anos. Apenas 3% consideram que o debate se tornou mais positivo. Para a maioria dos americanos (55%), Donald Trump contribuiu para essa piora do debate político no seu país. Apenas 24% dos entrevistados afirmaram que Trump melhorou o debate político e 20% disseram que ele teve pouca influência.

A pesquisa avaliou também os sentimentos despertados pelos comentários de Donald Trump: 76% afirmaram ficar preocupados; 70%, confusos; 69%, envergonhados; 67%, exaustos; e 54%, entretidos. Apenas 7% disseram que se sentiam felizes com os comentários do presidente e 10%, esperançosos. Diante desses números, a impressão é de que Donald Trump faz tais comentários precisamente para gerar esse tipo de reação.

O levantamento também mediu a percepção sobre as conversas cotidianas sobre política e outros assuntos sensíveis. Em geral, os entrevistados relataram que esses diálogos são frequentemente tensos e difíceis. Metade das pessoas afirmou que falar sobre política com quem tem opinião diferente é “estressante e frustrante”. Diante disso, os entrevistados relataram que preferem falar sobre clima, esportes e até mesmo religião com as pessoas que não conhecem muito bem a conversar sobre política.

Segundo o Pew Research Center, as pessoas que hoje em dia estão propensas a falar de política e a se envolver com política são aquelas que se sentem à vontade com conflitos interpessoais, inclusive para discutir com outras pessoas. É uma situação preocupante. A política passa a ser encarada como um tema especialmente sensível, que deve ficar restrito a um determinado tipo de pessoas. Numa democracia, deveria ocorrer precisamente o oposto – que ninguém se sentisse excluído ou incomodado para falar de política.

Outro dado, que pode ajudar a explicar os conflitos que surgem de conversas sobre política, é que as pessoas são mais exigentes com quem pensa diferente do que com quem pensa como elas. Majoritariamente, tanto democratas como republicanos disseram que os políticos eleitos devem tratar seus oponentes com respeito. Mas os números mudam sensivelmente quando se referem ao partido que não é o seu. Para 78% dos democratas, os políticos republicanos devem tratar os outros com respeito, mas apenas 47% disseram que as lideranças democratas devem tratar os republicanos com respeito. Fenômeno similar ocorreu entre os republicanos: 75% disseram que os democratas devem respeitar os oponentes, mas apenas 49% disseram que os políticos republicanos devem tratar os democratas com respeito.

Os resultados da enquete devem servir de alerta. A política tem sempre um caráter de antagonismo, mas esse natural enfrentamento não deve impedir o respeito e o diálogo. Recentemente, pesquisa do Instituto Ipsos revelou que um terço dos brasileiros (32%) considera que não vale a pena conversar com quem tem visão política diferente da sua. A diversidade de opiniões políticas é um importante ativo para a sociedade, sendo, assim, uma característica a ser cultivada, e não tolhida.

Para que o pluralismo seja realidade, o ambiente público deve estimular o diálogo aberto entre todos os cidadãos, das mais variadas correntes e opiniões. É urgente reverter essa tendência de restringir o debate de ideias políticas a círculos fechados e homogêneos. Não há democracia quando falar de política se torna um tabu.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 1º de julho de 2019.

A fogueira do ativismo judiciário

Por Fábio Prieto de Souza

O Brasil não tem boa classificação nos rankings sobre segurança jurídica. Profusão de leis e normas administrativas redigidas em linguagem equívoca ou deliberadamente contraditória. Sobreposição de instâncias administrativas e judiciárias. Procedimentos de controle e fiscalização caros, que deveriam ser baratos; ou baratos, quando deveriam ser caros. Quebra constante e imotivada de contratos privados. Falta de efetividade das sanções, insignificantes ou draconianas, raramente ponderadas.

É preciso elevar os valores da previsibilidade e da confiança, duas variáveis necessárias para a fruição do progresso contemporâneo.

Nos estudos nacionais e internacionais, o grave problema da insegurança jurídica, com custos econômicos e sociais expressivos, tem capítulo de destaque para a insegurança judiciária. O sistema de justiça dá relevante contribuição para o ambiente normativo turvo e labiríntico.

A estrutura de justiça – não apenas o Poder Judiciário – é cara, gigantesca e, o mais danoso, ferozmente intervencionista. Como muitas das instituições do País, diante da falta de controle cívico e social, as do sistema de justiça também têm a possibilidade de funcionar para si, por si e para os seus.

Premido pelas influências históricas da cultura geral, o sistema de justiça contribui para o adiamento infinito rumo ao país do futuro, que poderíamos ser, com democracia, livre iniciativa e valor social do trabalho, tudo selado pela lei votada por Parlamento escolhido em eleição módica e disputada por partidos políticos orgânicos.

Mas, para além dos problemas gerais, comuns a todas as instituições, o sistema de justiça está enredado numa crise particular: a da usurpação da democracia representativa, da intervenção desabrida na prerrogativa do povo de fazer escolhas entre várias políticas públicas.

No desejo de contemplar todos, a Constituição de 1988 projetou a mais libertária e rica das nações. É uma espécie de retomada do País dos bacharéis.

O governo de 64 conviveu com altas taxas de crescimento econômico. Mas a ordem jurídica tinha muito subproduto de atos institucionais, para o desprestígio dos bacharéis. Os economistas ganharam o protagonismo da liderança.

As crises do petróleo e a hiperinflação permitiram a virada. Depois de marcar os economistas com o epíteto de tecnocratas – não raro quando cobravam racionalidade e responsabilidade com o dinheiro público –, os bacharéis inscreveram na Constituição de 1988 as mais belas promessas.

Pouco depois, a queda do Muro de Berlim veio lembrar que os fatos da realidade cobrariam o seu preço. Só conseguimos alguma recuperação quando economistas notáveis puseram o Plano Real de pé e refundaram a ordem econômica. Isso sob o fogo cerrado de violenta guerrilha judiciária. O ministro da Fazenda Pedro Malan chegou a ser instado a pagar dezenas de bilhões de reais, só pelo fato de implementar o Plano Real. A URV, espinha dorsal do plano, foi julgada depois de 25 anos de sua criação.

Esses incidentes, independentemente do seu desfecho, demonstram que o sistema de justiça disfuncional tem a possibilidade de atacar, pesadamente, a autoridade de outro Poder de Estado, apenas pela execução de política pública afiançada pelo povo, no sistema democrático, e manter sob suspeição, por décadas, a iniciativa.

Mas a obstrução judiciária de políticas públicas definidas pela democracia é só parte do problema.

O sistema de justiça resolveu legislar abertamente. Não há mais nenhuma cerimônia na encampação das prerrogativas conferidas aos legisladores. Por intermédio das mais variadas modalidades de ações judiciais, certa “hermenêutica dos novos tempos” propõe e executa todo tipo de política pública. Faz “leis judiciárias” para todos os assuntos. Agora, à beira do precipício, vem o convite para o passo fatal: a criação de lei penal, por analogia, pelos juízes.

Centenas de milhares de brasileiros foram vítimas do genocídio das últimas décadas – negros e pardos, jovens e pobres, a maioria. Nem sequer a mais antiga das leis penais, a que sanciona o homicídio, foi aplicada com mínima eficiência. O Código Penal autoriza a pena máxima de 30 anos. Pouco importam o sexo, a raça, a cor da vítima. Portanto, não faltava, nem falta, lei punitiva com alto grau de severidade.

Todavia, estamos na iminência de cometer grave erro civilizatório, para regredir ao que Nelson Hungria chamou de a “mística hitleriana”. Depois de lembrar que o Código Penal comunista permitia ao juiz condenar por analogia – “se uma ação qualquer, considerada socialmente perigosa, não se acha especialmente prevista no presente Código, os limites e fundamentos da responsabilidade se deduzem dos artigos deste Código que prevejam delitos de índole mais análoga” –, Hungria registrou que “esta pura e simples substituição do legislador pelo juiz criminal era incomparável com a essência do Estado totalitário, corporificado no Führer”.

Hitler desejava mais, segundo Nelson Hungria: “Preferiu-se uma outra fórmula, que está inscrita no ‘Memorial’ hitlerista sobre o ‘novo direito penal alemão’: permite-se a punição do fato que escapou à previsão do legislador, uma vez que essa punição seja reclamada pelo ‘sentimento’ ou pela ‘consciência’ do povo, depreendidos e filtrados, não pela interpretação pretoriana dos juízes, mas (e aqui é que o leão mostra a garra...) segundo a revelação do Führer”.

A lançar um dos mais simbólicos direitos fundamentais na fogueira da insegurança jurídica alimentada pelo ativismo judiciário, será preciso saber quem vai incorporar a mística hitleriana, para revelar a nós, os juízes, os crimes do novo direito penal da analogia.

O vanguardismo messiânico, presente na Revolução Russa e no nazismo, tentou refundar o mundo sem passar pela ordem do direito burguês, liberal. Não deu certo. Nem dará. A barbárie nunca civilizou a barbárie.

Fábio Prieto de Souza, Desembargador Federal, foi Presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. É Diretor Conselheiro da International Association of Tax Judges. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 27.06.19.

Mundo de treva

Por JR Guzzo

O que você pode esperar de um país em que pelo menos um em cada três membros do Congresso Nacional (algumas contas, mais pessimistas, estimam que o total possa passar dos 40%) responde a algum tipo de processo criminal perante a Justiça — um caso sem similar no resto do planeta? Isso é só uma parte do problema. Roubava-se tanto na Odebrecht, nos governos dos ex-­presidentes Lula e Dilma Rous­seff, que a empresa achou necessário criar um departamento inteiro destinado unicamente a cuidar da corrupção de políticos e peixes graúdos da administração pública — com diretores, gerentes, secretárias, sistemas de TI e tudo o mais que se precisa para tocar um negócio de prioridade máxima. Não é apenas o Congresso. Há, nesse mundo de treva, o resto dos políticos — no nível federal, nos estados e municípios. Há também outras empreiteiras de obras, empresários escroques, bancos com problemas junto a delatores e mais um montão de gente. Só se pode esperar disso tudo, na verdade, uma coisa: os mais extraordinários esforços, por parte dos criminosos, para manter as coisas o mais próximo possível da situação em que sempre estiveram.

Até uma criança com 10 anos de idade percebe que ninguém, aí, quer ir para a cadeia. Todos, se pudessem, gostariam de voltar a roubar em paz. E sabem, é claro, que não vai ser fácil. Juridicamente não existe a menor possibilidade de “zerar tudo” — quer dizer, anular os processos por corrupção já decididos ou em andamento na Justiça, ou eliminar as provas materiais colhidas contra condenados, réus à espera de sentença e suspeitos de ações futuras. Que diabo se faz, por exemplo, com as confissões que foram colocadas no papel? E com as “delações premiadas” ora em andamento? Também não é possível, simplesmente, fazer com que se evaporem os resultados físicos dos procedimentos judiciais de combate à corrupção já executados até agora. Em números redondos, são cerca de 250 condenações, num total superior a 2 000 anos de prisão. Mais de 150 criminosos de primeira linha foram para a cadeia. Bilhões de reais foram devolvidos ao Tesouro Nacional. Para ficar no caso mais vistoso: o ex-presidente Lula, após apresentar mais de 100 recursos de todos os tipos, já está condenado em terceira instância — julgado, até agora, por 21 juízes (possivelmente não exista na história do direito penal brasileiro outro caso em que o direito de defesa tenha sido tão utilizado por um réu).

É um problema e tanto. Na impossibilidade de sumir com o passado, o esforço, agora, é para armar um futuro menos complicado para todos. Uma das esperanças mais caras do mundo político em geral é que prevaleça, uma vez mais, o ponto de vista dominante na elite brasileira — que, como sabemos, tem um código moral perfeito, mas gosta muito mais do código que da moral. Essa elite, ou as classes que definem a virtude nacional, está tentando construir uma espécie de trégua — a trégua que for possível, baseada em decisões que de alguma forma possam ser vinculadas à interpretação das leis. Segundo os devotos do código, talvez seja uma pena para a visão comum que se tem da ideia de justiça — mas se a majestade da lei exigir que a moral vá para o diabo que a carregue, paciência. Como tem objeções à vacina, há gente que acaba, na prática, ficando a favor da bactéria.


É positivo anotar, de qualquer forma, que o roubo do Erário, no Brasil de hoje, está mais difícil do que jamais foi ao longo de seus 500 anos de existência. Em consequência da ação da Justiça, jamais foi tão arriscado ser corrupto como no Brasil de hoje — e jamais os corruptos tiveram tanto medo de agir como têm agora. Talvez nada mostre melhor a calamidade que impuseram ao país que o pedido de recuperação judicial da própria Odebrecht, aceito na semana passada — após a destruição, em cinco anos, de quase 130 000 empregos na empresa campeã de corrupção nos governos de Lula e Dilma. No setor de obras públicas como um todo, incluindo o restante das empresas envolvidas em atividades criminosas, há estimativas de que até 600 000 empregos tenham sido perdidos em todo o Brasil desde que o aparato da ladroagem começou a ruir. Quem é culpado: os presidentes que roubaram, ou deixaram roubar, ou o sistema judicial que puniu o roubo?

Você sabe. Mas não vai ser fácil continuar esse combate.

José Roberto Guzzo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em VEJA, edição 2640 - Ano 52 - nº 26, de 26 de junho de 2019.

Um presidente para todos

Idealmente, Jair Bolsonaro deveria comportar-se como o presidente de todos os brasileiros desde o dia 1.º de janeiro. Mais do que isso, deveria ver a si mesmo como tal e, a partir da compreensão de seu novo papel na República, orientar suas ações de governo. Uma vez superadas as rivalidades que marcaram a campanha eleitoral, esperava-se que sua expressiva vitória, com quase 58 milhões de votos, pusesse fim à cisão da sociedade ou ao menos oferecesse uma trégua por sua mão estendida.

No entanto, a esperança de que seria essa a alvorada do novo governo logo se esvaneceu. Já nos discursos de posse no plenário do Congresso Nacional e no parlatório, Jair Bolsonaro mostrou que seus pés ainda estavam fincados no palanque e a cabeça, em algum lugar bem distante dos problemas reais do País.

A prometida pacificação nacional e a união em torno de uma agenda de reconstrução após a terra arrasada deixada pelos governos petistas - uma continuação do árduo trabalho iniciado pelo ex-presidente Michel Temer - ainda não se materializaram desde a ascensão de Bolsonaro à Presidência. Em boa medida, isso não ocorreu porque, desde a posse, Jair Bolsonaro tem insistido em manter viva a polarização da sociedade que tão mal tem feito ao País há tanto tempo. Em seu benefício, deve-se dizer que agora se inicia apenas o sexto mês de um governo que tem mais 42 pela frente. Há tempo, pois, para corrigir rumos. Há tempo para que o presidente Bolsonaro faça uma profunda reflexão acerca de seu papel institucional. Mas ele precisa, antes de tudo, perceber que há o que mudar. Segundo, ele precisa querer. Não há sinais, até o momento, nem de uma coisa nem de outra.

Jair Bolsonaro transforma suas convicções pessoais, suas crenças, suas opiniões sobre os mais variados assuntos em políticas de Estado. Evidente que não se espera que alguém haveria de abandonar as bases de formação de suas ideias no momento em que assume uma posição de liderança pública, como é a Presidência. Mas ao verdadeiro estadista impõe-se em todos os dias de seu mandato o reexame de suas convicções em contraposição aos interesses do Estado, o que, em outras palavras, significa estabelecer um constante balanço entre aquelas e os interesses da coletividade brasileira.

O presidente parece governar para os seus. Erra ao supor que os milhões de votos que recebeu nas urnas lhe servem como uma espécie de atestado de anuência irrestrita às suas crenças particulares ou como carta branca para a implementação de medidas que têm boa aceitação apenas em um nicho mais sectário dos eleitores que o levaram ao cargo mais alto do Executivo nacional.

Tome-se, por exemplo, a questão da posse e do porte de armas de fogo, tema dos mais caros à agenda bolsonarista. Uma pesquisa realizada pelo Ibope, cujo resultado foi antecipado pelo jornal O Globo, mostrou que 61% dos entrevistados são contrários ao afrouxamento dos critérios para a posse de armas de fogo. A rejeição aumenta substancialmente quando se trata da flexibilização das regras para o porte, ou seja, a possibilidade de cidadãos comuns carregarem suas armas pelas ruas. Sete em cada dez brasileiros - 73%, segundo a pesquisa do Ibope - desaprovam a medida.

Não surpreende que a taxa de desaprovação do governo só tenha crescido desde a posse de Bolsonaro, notadamente entre os eleitores que optaram por ele no segundo turno. É o que revelou uma pesquisa feita pelo instituto Idea Big Data publicada pelo Estado. A série de pesquisas feitas por este instituto desde a posse de Bolsonaro mostra que o presidente perdeu 18% de aprovação de janeiro até agora. Deste porcentual, 10% são compostos por eleitores que votaram em Bolsonaro apenas no segundo turno, ou seja, os que o escolheram para evitar a volta do PT ao poder.

Jair Bolsonaro deveria prescindir desses números para se ver - e agir - como presidente de todos os brasileiros, e não de seu núcleo de apoiadores mais aferrados, cuja agenda nem sempre se coaduna com o interesse nacional. O País está ansioso à espera de seu gesto de concórdia.

Editorial de O Estado de S. Paulo. Edição de 23.06.19.

Moro ganhou um palanque no Senado

Por Ascânio Seleme

Sergio Moro saiu praticamente ileso da audiência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado em que prestou contas dos vazamentos de diálogos seus com o procurador Deltan Dallagnol. Apesar de ter sido colocado nas cordas com socos e murros de alguns senadores da oposição, foi socorrido com afagos e tapinhas nas costas por outros que apoiam o governo ou apenas se opõem ao PT. O que se viu foi um embate político, e nele o ministro saiu ganhando. Mesmo que restem dúvidas sobre a correção das mensagens que trocou com Dallagnol, Moro saiu do Senado politicamente protegido.

O debate que se viu foi mais uma vez entre parlamentares do PT, ou próximos ao PT e ao escândalo da Petrobras, e os demais. Além daqueles ligados a partidos tradicionais de centro e centro direita, estiveram ao lado de Moro os senadores dos novos tempos. E esses abusaram da gentileza. O fato é que houve tempo e espaço para cada um atacar ou defender a Lava-Jato. Embora os que atacaram dissessem estar mirando na conduta do juiz, o que se viu foi um fogo sem trégua contra a operação que prendeu políticos e empresários, como Lula e Marcelo Odebrecht.

Talvez por isso, o embate tenha pendido a favor de Moro. O que se sabe, e o que não mudou e não mudará mesmo que se consiga comprovar a veracidade dos diálogos hackeados, é que os governos do PT foram corruptos. Não há qualquer dúvida de que o PT e partidos aliados assaltaram os cofres da Petrobras durante a gestão de Lula. Nenhuma dúvida também de que esses assaltos prosseguiram sob Dilma e só foram interrompidos pela operação Lava-Jato. Esse é um dado irrefutável. Por isso, foi difícil aos senadores encontrar caminho para mostrar que Moro agiu de maneira a prejudicar o PT ou afastá-lo do poder.

Não se conseguiu solidificar a acusação de que houve conluio entre Moro e os procuradores contra Lula ou o PT, mesmo que alguns senadores tivessem adotado um bom caminho e uma retórica poderosa. As respostas de Moro, ecoadas pelos seus aliados no plenário, encaminhavam a questão sempre para outro lado. E foi impossível impedi-lo. O ex-juiz chegou a indagar de um senador se ele estava sugerindo soltar todos os presos e devolver o dinheiro confiscado das contas dos corruptos, citando Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, que teve 2,7 milhões de dólares e 20,5 milhões de euros recuperados pela operação em um banco de Mônaco.

A sessão foi comedida, apesar de alguns momentos mais agressivos. Em um deles, Moro chegou a se negar a responder, dada a hostilidade da assertiva do senador Humberto Costa (PT-PE). Mesmo nas poucas ocasiões em que esteve mais acuado, Moro se comportou com gentileza. Frustraram-se os que esperavam respostas mais duras e contundentes do ex-juiz. Em nenhum momento ele colocou na mesma frase as palavras Lula e corrupção. Ou PT e corrupção. Pelo que me recordo, aliás, ele mencionou o Partido dos Trabalhadores apenas uma vez. E não desqualificou o partido nem mesmo quando um senador do PT tentou envolver a sua mulher no caso, perguntando se ela trabalhou para alguma empresa de petróleo.

Oito dos 54 senadores membros da CCJ, titulares ou suplentes, foram citados pela Lava-Jato. Mas nem esses conseguiram constranger o ex-juiz. Alguns foram até favoráveis ao ministro. Renan Calheiros (MDB-AL), que não é da CCJ mas participou da audiência, tampouco teve êxito ao tentar tirar Moro do seu ponto de equilíbrio. Renan, que responde a 11 inquéritos no Supremo Tribunal Federal, sendo que oito deles dizem respeito à operação Lava-Jato, extrapolou seu tempo, passou por cima da autoridade da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que presidia a sessão, mas não conseguiu encurralar Moro.

Moro insistiu em chamar a divulgação dos diálogos de “sensacionalista”, repetiu inúmeras vezes que as conversas que manteve com Dallagnol foram corretas e que não julgou com parcialidade. Não respondeu, ou se escusou de responder, quando perguntado se também suas ações na Lava-Jato não foram sensacionalistas. Moro saiu-se bem, nenhuma dúvida. A audiência serviu para ele como um palanque, de onde saiu maior do que entrou. Mas é cedo para dizer que “a montanha pariu um rato”, como sugeriu. Ainda vai se ouvir muito barulho em torno desta questão. A próxima etapa será na Câmara.

Ascânio Seleme é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 20.06.19

Aspectos éticos da Lava-Jato

Por Luciano Benetti Timm

A ética tem várias escolas. Analisaremos a questão sob o ponto de vista do pragmatismo e de como ele se diferencia do idealismo. O pragmatismo é uma escola de pensamento com raízes diretas, entre outros, no pensamento do filósofo americano Peirce, mas que pode encontrar suas origens na filosofia grega representada pela seguinte frase de Demóstenes: “Toda vantagem obtida antes é julgada à luz do resultado final.”

Na tradição de pensamento pragmático, não há sentido fazer distinção no plano das ideias, se ele não corresponde à prática. Foi uma escola bastante crítica do abstracionismo teórico, de modo que seria difícil se defender que a ética fosse encontrada em algum lugar da razão humana distante dos acontecimentos reais. Afinal, seria realmente ético, no exemplo idealista, delatar o amigo que praticou um crime?

Já no pensamento idealista, o comportamento correto poderia ser encontrado em algum local ideal, na razão pura, em um “imperativo categórico” que não admitiria ponderação alguma das circunstâncias concretas.

A neurociência e a psicologia comportamental vêm contribuindo bastante para esse debate ético entre pragmatismo e idealismo ao pesquisar a tomada de decisões no cérebro humano, demonstrando que a decisão humana é tomada no cérebro a partir de dois sistemas distintos, mas não absolutamente separados: o sistema 1 (intuitivo e rápido) e o sistema 2 (lento e racional). As convicções e princípios deliberativos estariam estocados em nosso sistema intuitivo e rápido, a permitir decisões rápidas do dia a dia nele baseadas; o sistema 2 refletiria mais detidamente as aplicações daquelas convicções em casos concretos, normalmente ponderando as consequências práticas.

E o que tem a ver isso com a Lava-Jato?

O filósofo Ortega Y Gasset cunhou a expressão: “O homem é o homem e a sua circunstância”.

Logo, não há como separar as decisões tomadas no âmbito da Lava-Jato das circunstâncias que a circundavam. Estava-se diante do maior escândalo de corrupção da história do mundo, ao que se tem notícia. Estavam envolvidos todos os partidos que representavam a coalizão que administrava o país há mais de dez anos e com todas as implicações que isso significa, justamente depois do que já se sabia do mensalão.

Mais do que isso, houve sinais divulgados ao público de inúmeras tentativas de se tentar barrar a operação.

Não estávamos na ocasião, como não estamos hoje, em um ambiente de normalidade institucional. Basta lembrarmos de Raymundo Faoro e sua obra “Os donos do poder”. O Brasil sempre foi dirigido por uma pequena elite tomadora de decisão, que está no poder há gerações e que age baseada numa lógica que não permitiu o desenvolvimento do país.

Se o bem maior era a República e o bem da nação, eticamente não se exigiria outra coisa de um virtuoso que não a de proteger o resultado da Operação Lava-Jato, dentro das regras vigentes; a punição dos envolvidos e sua retirada da vida pública, após o devido processo legal. Que, aliás, foi o que ocorreu, com a prisão de empreiteiros e políticos de diferentes partidos, que, ao que parece, ainda lutam para reverter esse resultado e voltar às velhas práticas no poder.

Alguns dirão que isso é pragmatismo, o que, diga-se de passagem, tem fundamentos filosóficos relevantes e não menos importantes nos dias de hoje do que o idealismo moral. Mas, justamente por isso, idealistas têm efetivamente o argumento de que as consequências não importam para a tomada de uma decisão moral e que o resultado não deveria importar. Provavelmente, estaríamos à beira do abismo da corrupção e dos desmandos que nos levaram infelizmente ao impeachment. Todavia, se autêntica, é uma crítica aceitável por um pragmático.

Mas o mais reprovável moralmente é observar pragmáticos — movidos apenas por interesses pessoais, profissionais ou políticos —agirem como se idealistas fossem, bradando pelo “estado democrático de direito” e suas “garantias fundamentais”, mas descurando que não há democracia sem respeito à privacidade e à intimidade. E tal atitude é condenável moralmente tanto para um pragmático, como para um idealista.

Luciano Benetti Timm é professor da FGV-SP. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, RJ, edição de 19.06.19.

A Justiça cega

Por Gil Castello Branco

A Justiça é representada pela estátua de uma mulher, de olhos vendados, segurando em uma das mãos a balança e, na outra, a espada. A balança pesa o Direito que cabe às partes, enquanto a espada é um sinal de força para expressar que a decisão judicial tem que ser cumprida. A venda nos olhos é o símbolo da imparcialidade.

Diante da repercussão do episódio das trocas de mensagens entre procuradores e o então juiz Sergio Moro — que devem ser esclarecidas —, refleti sobre a real imparcialidade da Justiça.

Em abril deste ano, na argumentação para a criação da CPI das Cortes Superiores, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) cita fatos aparentemente gravíssimos. Dentre os 13 itens do requerimento destaco trechos dos quatro primeiros, embora os demais também sejam contundentes.

1. Recebimento por parte de ministros do Tribunal Superior do Trabalho — tais como João Batista Brito Pereira, Antonio José de Barros Levenhagen, Guilherme Augusto Caputo Barros e Márcio Eurico Vitral Amaro — de pagamentos por palestras proferidas aos advogados e escritórios de advocacia do Bradesco, apontado por pesquisas do Judiciário como um dos maiores litigantes do país, sem que, sucessivamente, se declarassem impedidos de julgar processos e recursos impetrados pelo banco contra decisões nas instâncias inferiores da Justiça do Trabalho.

2. Entre 2011 e 2017, o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que possui como sócio-fundador o ministro Gilmar Mendes, recebeu empréstimos do Bradesco que totalizam R$ 36,4 milhões. Neste período, o banco aceitou prorrogar cobranças, reduzir taxas e “renunciou” a aproximadamente R$ 2,2 milhões de juros. Os documentos bancários relativos às operações mostram oito contratos e alterações firmadas entre o IDP e o Bradesco, todas com a assinatura do ministro como avalista. Desde que o IDP pediu o primeiro empréstimo, em 2011, o ministro Gilmar Mendes já atuou em cerca de 120 decisões do Supremo Tribunal Federal envolvendo o Bradesco (dados do STF).

3. Atuação como julgador do ministro Dias Toffoli em processos em que uma das partes era sua credora, sem que se tenha declarado suspeito, em inobservância à Lei Orgânica da Magistratura e ao Código de Processo Civil de 2015. Em setembro de 2011, foi contratada pelo ministro Dias Toffoli operação de crédito junto ao Banco Mercantil do Brasil S/A, no valor histórico de R$ 931.196,51, garantida por imóvel de sua propriedade, por meio da qual se comprometeu a pagar parcela mensal correspondente a 47,20% dos subsídios de ministro do STF vigentes à época, aos juros de 1,35% ao mês. Em abril de 2013, a dívida foi repactuada, tendo sido o valor das parcelas reduzido em 17,72%, aos juros de 1% ao mês, situação incomum para a maioria dos mutuários do país.

4. Participação de ministros em julgamentos para os quais se encontrariam impedidos, como casos de decisões do ministro Gilmar Mendes, no Tribunal Superior Eleitoral, em causas em que uma das partes tem como advogado Guilherme Regueira Pitta, membro do Escritório de Advocacia Sergio Bermudes, do qual a mulher do ministro, Guiomar Feitosa Lima Mendes, é sócia.

Amanhã, Moro será sabatinado no Senado sobre as mensagens do Telegram. No dia 25, o STF decidirá se o juiz foi ou não imparcial ao julgar Lula na denúncia do tríplex. É curioso observar que diversas autoridades contrárias à instalação da CPI, inclusive senadores e ministros do STF, estão, agora, escandalizadas com supostos diálogos, hackeados ilegalmente. Alguns chegam a defender a anulação de processos da Lava-Jato — com decisões já confirmadas em instâncias superiores —, operação que em cinco anos gerou 285 condenações, 600 réus, mais de três mil anos de penas e o ressarcimento de R$ 13 bilhões!

No Brasil, a imagem da Justiça mais conhecida é a de Alfredo Ceschiatti. A escultura, no Supremo Tribunal Federal, mostra uma mulher sentada, com a espada sobre as pernas, sem a balança e com os olhos vendados. Sinceramente, prefiro a imagem grega, em que a Justiça está ereta, com a espada, a balança e os olhos bem abertos.

Gil Castello Branco, economista, é fundador da ONG Contas Abertas. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 18.06.19.

Desinteligência generalizada

Não são apenas os devotos das seitas extremistas, à esquerda e à direita, que limitam sua visão de mundo às mentiras, distorções e meias-verdades cínicas que leem nas redes sociais. A histeria irresponsável parece ter capturado também aqueles dos quais se esperam equilíbrio e sobriedade na formação de opinião pública.

Quase todos aparentemente estão se deixando pautar pela gritaria que tão bem notabiliza essa forma de comunicação instantânea, que na prática dispensa a reflexão. Nas redes, mesmo bem preparados formadores de opinião vêm tomando como expressão da verdade tudo aquilo que para eles faz sentido, sem se perguntarem se, afinal, aquilo que se informa é um fato ou uma rematada mentira.

A verdade, portanto, vem perdendo importância até para quem vive dela. Um exemplo é a imprensa, que não raro repercute de maneira irrefletida os debates produzidos a partir de informações distorcidas ou simplesmente falsas. É natural que, algumas vezes, as publicações, no afã de registrar tudo o que pareça ter caráter noticioso, acabem por dar guarida a versões dos fatos que, com o tempo, se provam mentirosas.

O que tem acontecido, porém, é que os fatos se tornaram quase irreconhecíveis ante as certezas ideológicas alimentadas pela acachapante onipresença das redes sociais na vida de quase todos os brasileiros. Num cenário desses, todo aquele que ousar questionar as convicções cristalizadas de parte a parte, mesmo munido de fatos incontestáveis e de argumentos racionais – ou até por causa disso –, será tratado como um ser exótico, uma espécie de rebelde deslocado no mundo dos que, orgulhosamente, se julgam do “lado certo”.

Assim, a influência das redes sociais, que é inegavelmente grande, tornou-se uma explicação mágica para tudo – e para muita gente supostamente bem pensante nada do que acontece fora delas parece ter valor. Baseando-se mais em palpite do que em elementos concretos, muitos atribuem, por exemplo, a surpreendente eleição do presidente Jair Bolsonaro ao seu domínio dessas redes, nas quais teria construído sua candidatura muito antes de a campanha começar. Também se creditam às redes sociais as mobilizações contra o governo da presidente Dilma Rousseff, que acabaram resultando em seu impeachment. Com toda essa suposta capacidade, quase sobrenatural, de entronizar e decapitar reis, as redes sociais tornaram-se uma espécie de fetiche dos formadores de opinião, que há algum tempo veem nelas a grande arena onde se disputa o poder de determinar o que é a verdade.

As redes sociais, até onde é possível concluir, são o lugar onde narrativas se chocam não em busca do esclarecimento, como acontece em sociedades maduras, mas para fazer triunfar a mistificação que favoreça este ou aquele ponto de vista, e onde o consenso só ocorre entre os que já estão de acordo entre si, por razões ideológicas.

É claro que nada do que deriva desse ambiente de franca hostilidade pode ser tomado como base para orientar políticas públicas e muito menos para consolidar as opiniões a partir das quais a sociedade se posiciona acerca dos grandes problemas nacionais. Ao contrário, o debate nacional naturalmente descamba para o terreno da ficção, quando não para o da mais vulgar briga de rua, na qual tem razão aquele que termina a refrega em pé.

No livro O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima diz que o jornalismo, sempre que “envenena a opinião pública, fanatiza-a ou a informa mal, está falhando à sua finalidade”. O autor, que escreveu em 1958, decerto não imaginava a revolução da comunicação digital que ora se atravessa, mas o princípio ali exposto está mais atual do que nunca.

O jornalismo que se deixa submeter à balbúrdia irracional das redes sociais não cumpre sua função, que é a de dar aos cidadãos condições de refletir de maneira efetiva sobre o mundo que os cerca e sobre os problemas que os afetam. Ao contrário, os formadores de opinião que tomam como legítima e digna de consideração a gritaria dos fanáticos, conferindo-lhe ares de autenticidade, estimulam a consolidação do facciosismo que, no limite, inviabiliza os consensos, sem os quais a democracia simplesmente não se realiza.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 17.06.19

Dos heróis e das leis

Quando – e se – deixarmos de ser uma sociedade carente de heróis e nos tornarmos uma sociedade devotada às leis, à Constituição e aos primados do Estado Democrático de Direito, o País terá dado um dos mais significativos saltos civilizatórios de sua história.

Parece, no entanto, que aqui há um pendor atávico ao sebastianismo, como se a Nação estivesse permanentemente à espera da volta de um personagem messiânico para dar cabo das agruras de turno. Como é sabido, o retorno do rei português, desaparecido durante a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, foi ansiosamente aguardado pelos súditos como única forma de salvação diante da crise que se instalou após a sua partida.

As reações à divulgação do conteúdo de conversas atribuídas a integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato e a Sergio Moro, havidas quando o atual ministro da Justiça era o juiz responsável pelos processos relativos à operação na primeira instância, revelam que ainda transcorrerá muito tempo até que aquele virtuoso salto seja dado. A dicotomia “heróis x vilões” vicia o debate público.

A lei parece estar sempre em segundo plano no debate entre aqueles que veem Sergio Moro e alguns procuradores da força-tarefa da Lava Jato – em especial Deltan Dallagnol – como heróis nacionais e os que neles apenas enxergam parcialidade, ardis e dissimulação. Evidente que nada de aproveitável pode sair de discussões em que os interlocutores nem sequer admitem a hipótese de rever suas convicções ante a irrefutabilidade dos fatos e tampouco ao comando da lei.

Nas sociedades civilizadas, o mínimo denominador comum em debates desse tipo são precisamente os fatos, as leis, a Constituição. Não se quer afirmar com isso que, no caso concreto envolvendo a troca de mensagens entre o ex-juiz e ministro da Justiça e um procurador da República, tenha havido ilegalidades. Por ora, pode-se dizer que as conversas foram, no mínimo, inapropriadas para as posições públicas que os interlocutores ocupavam.

Em geral, tal dissociação objetiva – a saber, entre pessoas e suas funções públicas, cuja atuação há de ser delimitada pela lei – não é feita porque viceja nesta porção de mundo um tipo de culto à personalidade. E, em alguns casos, personalidades pairam acima das leis ao sabor da paixão de seus seguidores. Isto pode funcionar muito bem no campo das artes e dos espetáculos, mas é desastroso para a vida política e institucional de um país.

Num país que se pretende sério, não há lugar para “super-heróis”, “salvadores da pátria”, “mitos”, “pais” e “mães da Pátria”. A vida política e institucional republicana, como aquela que todos os que não têm o pensamento aprisionado desejam para o Brasil, não há de ser construída por heróis, por salvadores da pátria. Ela é feita de homens e mulheres imbuídos de elevado espírito público que veem em seu serviço uma parcela de contribuição para o crescimento do País. O fato de haver parcela expressiva da sociedade que põe presidentes da República acima das leis ou classifique como “heróis” servidores que se sobressaem no cumprimento de suas obrigações institucionais diz sobre o nosso grau de amadurecimento político.

São claros os avanços trazidos pela Operação Lava Jato ao combate à corrupção e, principalmente, ao resgate da confiança dos brasileiros no primado democrático da igualdade de todos perante a lei. Os benfazejos resultados do trabalho de membros da força-tarefa, no entanto, não os colocam acima das mesmas leis que devem fazer cumprir.

Compreende-se que, diante de uma longa história de leniência no combate à corrupção e da impunidade crônica que marcou a resposta do Estado aos crimes cometidos por poderosos, políticos ou econômicos, a coragem dos que ousaram romper o status quo foi premiada com a admiração e o respeito da sociedade. Mas isto nem de longe autoriza quem quer que seja a se desviar das leis e da Constituição para dar andamento a seus desígnios, por mais virtuosos que sejam.

A primazia das regras que pautam um Estado Democrático de Direito não é um luxo, é um imperativo para que o País construa no presente o futuro que deseja viver.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 12.06.19

Ouvindo o outro lado

Por Luciano Huck

Pense num país tomado pela corrupção, com parte da população vivendo em favelas, baixos índices de desenvolvimento humano e de educação, sem compromisso com a sustentabilidade, refém da violência urbana e do subdesenvolvido. Errou quem pensou no Brasil. Estamos falando da Coreia do Sul.

Na década de 1980, porém, enquanto por aqui o Chacrinha balançava a pança e animava as massas, do outro lado do planeta começava uma verdadeira revolução silenciosa. Em menos de 40 anos a Coreia do Sul transformou-se numa democracia pujante e num país desenvolvido. Erradicou a pobreza, reduziu os abismos de desigualdades, criou oportunidades, virou sinônimo de inovação e vanguarda tecnológica, reconstruiu seu patrimônio histórico, galgou o topo das listas de desenvolvimento humano, ganhou voz na geopolítica global e, de quebra, fez jovens de todo o planeta se encantarem com a sua música, o K-pop. Como? Simples... Fazendo da educação prioridade de Estado.

Por total obra do destino, eu estava em Seul exatamente na semana em que o Brasil saiu às ruas para protestar contra os cortes dos investimentos em educação. Inspirado pela curiosidade, e no contexto da caminhada a que me propus, em que aprender é mais importante do que ter certezas, resolvi mergulhar no sistema público de ensino sul-coreano, visitar escolas, conversar com alunos, ouvir professores e dialogar com autoridades. Foi inspirador.

No Brasil, quando o tema são políticas públicas, para qualquer direção que olharmos existem demandas e necessidades de enorme complexidade. Na educação, porém, não precisamos reinventar a roda.

Além de já termos avançado de forma relevante nessa área, temos bons exemplos de políticas regionais que colheram expressivos resultados. Como o da cidade de Sobral (CE), as escolas em tempo integral de Pernambuco ou o salto qualitativo do Espírito Santo. A sociedade civil brasileira já produziu material suficiente e de qualidade para alicerçar o desenvolvimento de políticas educacionais viáveis e de alto impacto. Se no Brasil também queremos mirar a redução das desigualdades, a eliminação da pobreza extrema, endereçar soluções urbanas, transformar investimento em produtividade e criar oportunidades, a educação tem de ser a prioridade número um, o centro das atenções.

Há 40 anos o PIB per capita da Coreia do Sul era menor que o do Brasil. Hoje é três vezes maior. Por lá, de um lado, ser professor é ser “sagrado”, admirado e respeitado. O Estado capacita, recicla, mas também avalia. E investe num corpo docente jovem. Apenas 23,5% do total tem mais de 50 anos e boa parte do meio milhão de professores da rede pública foi recrutada entre os 20% melhores alunos do ensino médio. Bons alunos viram bons professores.

De outro, ser aluno é um direito que pode e deve ser exercido. Absorver os ensinamentos disponíveis é sinônimo de direito de escolha e mobilidade social. Estar sentando na sala de aula não significa necessariamente estar aprendendo. Assim como o Brasil vem discutindo a implementação da sua base curricular comum, por lá eles entenderam que a receita implementada na década de 80 já não respondia a todas as demandas contemporâneas.

O século 21 trouxe novos desafios, menos programáticos e mais existenciais. E a Coreia do Sul ensaia mais um salto qualitativo, um novo sistema de ensino conectado a essas novas demandas. Considerando o histórico patriarcal das sociedades orientais, a disciplina familiar rígida e a excessiva competitividade natural do povo coreano, derrubar as barreiras igualando homens e mulheres no sistema educacional, abrindo diálogo entre professor e aluno e dissociando esforço de exagero, esses são sinais claros da evolução da sociedade.

É fato que o país lida com altos índices de suicídio entre os jovens. Mas é importante refletir sobre esse dado. Realmente, o sucesso acadêmico virou obsessão familiar, o que transformou o dia a dia do estudante sul-coreano numa maratona sem fim, com a inacreditável média de mais de 15 horas diárias dedicadas aos estudos. E como, evidentemente, nem todos conseguem um lugar no alto do pódio, o grau de frustração é enorme.

Ao mesmo tempo, entender que o índice de suicídios na Coreia seja um dado exorbitante depende da referência. Como praticamente não existe violência no país, o atentado à própria vida acabou encabeçando a lista dos problemas nacionais. Para ter uma ideia, enquanto o Brasil lida com o estarrecedor número anual de 63 mil mortes violentas, a Coreia do Sul teve menos de 10 mortes de civis por arma de fogo no último ano.

Nas últimas décadas as políticas públicas educacionais sul-coreanas conviveram com líderes autoritários, eleições democráticas, governos de direita e esquerda, escândalos de corrupção e mandatários encarcerados, mas jamais foram postas em xeque. Interessante registrar que desde 2007 os secretários de Educação são escolhidos pela população em eleições diretas.

Retornei ao Brasil poucos dias atrás. Quase 30 horas de voo separam Songdo, minha última parada na Coreia do Sul, do Rio de Janeiro, onde moro. Enquanto por lá toda a água da cidade é reciclada, o lixo doméstico de 130 mil moradores viaja por dutos de sucção até usinas de reciclagem e retorna em forma de energia, o índice de violência é zero e para cada grupo de 10 mil habitantes existe uma escola pública, por aqui não consigo sequer chegar em casa. As vias que ligam a zona sul à zona oeste estão obstruídas, professores morrem abatidos a tiros a caminho do trabalho, mães desesperam-se diante da própria impotência e nem os voos para a outrora Cidade Maravilhosa aterrissam mais por aqui.

Nas ruas, professores, pais e alunos levantam suas vozes em defesa da educação. Sinceramente, espero que esses gritos ecoem, porque só ela transforma de verdade.

Não é rápido, não é simples, não é fácil.

Mas é o único caminho.

Luciano Huck é empresário e apresentador de TV. Este artigo foi publicado originalmente em o Estado de São Paulo, edição de 24.05.19.

Hostilidade como método

Jair Bolsonaro tem agido cada vez mais como líder de facção, e não como presidente da República. Invocando sempre a necessidade de satisfazer seus eleitores, malgrado o fato de que foi eleito para governar para todos, Bolsonaro tem contribuído para transformar debates importantes em briga de rua. É a reedição do ominoso “nós” contra “eles” que tanto mal fez ao País durante os desastrosos anos do lulopetismo.

Nesse ambiente crispado, temas cruciais para o futuro, como a reforma da Previdência, ou mesmo questões mais imediatas, como a necessidade de contingenciamento orçamentário, são desvirtuados pelo alarido dos radicais, o que nada tem a ver com um saudável debate democrático. E o presidente, que deveria, pelo cargo que ocupa, ser o condutor político desse debate, parece mais empenhado em hostilizar todos os que não lhe prestam obsequiosa vassalagem – e isso inclui não apenas seus adversários naturais, mas também, por absurdo, aqueles que desejam colaborar com o governo.

Com isso, Bolsonaro isola-se, num momento em que o País precisa de liderança e inteligência política para construir as soluções para a gravíssima crise ora em curso. São cada vez mais preocupantes os sinais de que o presidente não tem os votos necessários para aprovar no Congresso nem mesmo projetos de lei banais. As derrotas na Câmara se sucedem em quantidade inusitada para um presidente que teve 57,8 milhões de votos, elegeu-se como a grande estrela de uma formidável onda de renovação da política e deveria estar gozando a tradicional lua de mel com o Congresso e com os eleitores, reservada a todo governante em início de mandato.

Ao contrário, Bolsonaro viu despencar sua popularidade em um par de meses, resultado da paralisia de seu governo ante a aceleração da crise econômica, traduzida pelo aumento do desemprego e pela perspectiva cada vez mais concreta de uma nova recessão. Cresce a sensação – a esta altura quase uma certeza – de que o presidente não sabe o que fazer para reverter o quadro. Pior: as palavras e os atos do presidente e de alguns de seus ministros, quase sempre destinados apenas a excitar a militância bolsonarista nas redes sociais, contribuem para dificultar ainda mais qualquer entendimento político em torno de soluções viáveis para o País.

“São uns idiotas úteis”, disse o presidente ao se referir aos manifestantes que foram às ruas na quarta-feira para protestar contra o contingenciamento de verbas na área de educação. No mesmo dia, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, destratou deputados que o haviam convocado para uma sabatina na Câmara, preferindo a pesporrência ao diálogo. Tudo isso pode ter feito a alegria da seita bolsonarista no Twitter, mas o fato é que o governo começa a encarar nas ruas, precocemente, as mesmas dificuldades que já enfrenta há algum tempo no Congresso – situação que, como mostra a história recente do País, ninguém sabe como começa, mas todos sabem como termina.

A prudência recomenda, portanto, que Bolsonaro reveja urgentemente seu método de governo. O problema é que o presidente não tem demonstrado a necessária sensatez para a difícil missão que as urnas lhe conferiram. Ao contrário: sempre que pode, Bolsonaro acentua sua antipatia pelos parlamentares, tratando as adversidades da vida política – que ele agrava ao invés de amenizar – como sabotagem a seu governo. E ontem ele dobrou a aposta: disse que não vai ceder “a pressão nenhuma” em nome da “tal governabilidade”, mesmo que isso lhe custe o cargo. “É isso que querem? Um presidente vaselina para agradar todo mundo? Não vai (sic) ser eu. O que vai acontecer comigo? O povo que decida, pô, o Parlamento decida, eu vou fazer minha parte. Eu não vou sucumbir”, desafiou.

É nesse clima de antagonismo que o governo pretende encaminhar a reforma da Previdência e outras mudanças importantes para o País – e a desculpa bolsonarista para um eventual fracasso em qualquer dessas etapas cairá na conta daquilo que o presidente e seus seguidores chamam de “velha política”.

Diante disso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse ontem que o Congresso vai “fazer a reforma da Previdência, com o governo ajudando ou atrapalhando”. Seria melhor se, pelo menos, não atrapalhasse.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 17.05.19

Não foi essa a promessa

Na campanha eleitoral, Jair Bolsonaro prometeu adotar uma nova atitude contra a corrupção e a criminalidade na vida pública. Ao tomar posse, o presidente reiterou, perante o Congresso Nacional, o compromisso de “restaurar e reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica”.

Pois bem, diante da notícia do avanço das investigações relativas às movimentações financeiras do seu filho Flávio e do ex-funcionário do gabinete dele na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) Fabrício Queiroz, o presidente Jair Bolsonaro esqueceu o que havia prometido e reagiu ao modo antigo – aquele rejeitado contundentemente pela população. Em vez de apoiar o trabalho das instituições e facilitar o esclarecimento dos fatos, o presidente optou por denunciar espúrias alianças que estariam confabulando contra ele.

“Estão fazendo esculacho em cima do meu filho”, disse Jair Bolsonaro, em tom exaltado. Não soube apontar, no entanto, nenhum elemento que pudesse desabonar o trabalho investigativo feito até agora. Além do mais, caso Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz entendam que houve algum excesso por parte das autoridades investigativas, eles têm, como todo cidadão num Estado Democrático de Direito, caminhos legais para fazer valer seus direitos e, se estiverem dispostos, apresentar suas versões do que teria ocorrido.

Ao ser questionado sobre as investigações envolvendo seu filho mais velho, o presidente Jair Bolsonaro ainda disparou críticas aos governos do PT e à imprensa, como se as investigações fossem apenas intrigas da oposição, real ou imaginária. De acordo com o Ministério Público (MP), foram encontrados “indícios de subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas” de imóveis feitas por Flávio Bolsonaro durante seu mandato como deputado na Alerj. Entre 2010 e 2017, o parlamentar teria lucrado R$ 3,08 milhões com as transações imobiliárias, que envolveram 19 apartamentos e salas comerciais. O MP ainda constatou o “constante uso de recursos em espécie nos pagamentos”.

Foram precisamente essas suspeitas de lavagem de dinheiro que embasaram a quebra de sigilo bancário e fiscal de 95 pessoas e empresas deferida, no fim de abril, pela Justiça do Rio. Entre as pessoas investigadas, oito trabalharam no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.

As explicações até agora foram pouco convincentes. Na defesa técnica apresentada ao MP, Fabrício Queiroz alegou que recolhia os salários dos colegas e os distribuía a um número maior de assessores, para ampliar a rede de colaboradores de Flávio Bolsonaro. Esse esquema informal contraria a própria natureza do salário, que é remuneração personalíssima. Não é da competência de assessor remanejar destino de salário dos outros funcionários de gabinete.

Além disso, desde 2011, a Alerj dispunha de procedimento específico para ampliar a rede de colaboradores de um parlamentar, sendo possível destinar formalmente a verba referente a funcionários de gabinete a até 63 pessoas. Assim, a própria defesa de Queiroz afirmou que, no gabinete de Flávio Bolsonaro, não se seguia o procedimento previsto pela Alerj – e isso é de responsabilidade direta do parlamentar.

Não foi o PT quem disse isso, e muito menos a imprensa. Foi o próprio Fabrício Queiroz, cuja proximidade com a família do presidente é admitida amplamente. Questionado se Queiroz tinha confiança do seu pai, Flávio Bolsonaro disse: “Com certeza, ou não teria vindo trabalhar comigo. Ele convivia mais comigo. Mais de dez anos trabalhando comigo quase todo dia. Eu estava mais junto com o Queiroz algumas vezes do que com a minha família”.

Só os outros – só os “inimigos” – é que podem ser investigados? Aqueles que são próximos da corte presidencial estariam imunes a tais inconvenientes? O ministro da Justiça, Sergio Moro, poderia ajudar a esclarecer ao presidente Bolsonaro como a lei deve funcionar. Igualmente, para todos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 20.05.19.

O homem da cadeira de rodas

Por Denis Lerrer Rosenfield

O homem da cadeira de rodas fez o Brasil caminhar para a frente em momentos delicados da História recente. Soube enfrentar várias crises, sempre preocupado com o destino do País, enquanto bem maior a ser preservado. Nos últimos anos, o general Eduardo Villas Bôas foi acometido de doença degenerativa que o destinou a uma cadeira de rodas, sem que por isso tenha perdido sua mente de estrategista nem sua dignidade moral.

Já o vi, numa ocasião, falando em sua casa com o ex-presidente da República acerca da sucessão no Ministério da Defesa, defendendo com fidalguia a posição do Exército e das Forças Armadas em geral, com toda a sua dificuldade de locomoção. Nada disso afetava sua capacidade analítica. A janta transcorria normalmente, com sua mulher, dona Cida, dando-lhe de comer na boca. Fui tomado por um sentimento intenso de beleza moral, se posso utilizar tal expressão. A doença desaparecia pelo ato de amor dela e de sua filha. A conversa transcorria normalmente, como se isso fosse – como foi – um mero acidente.

Trago aqui o testemunho da amizade para melhor expressar a minha indignação com os ataques de que Villas Bôas foi objeto, vindos do ideólogo do presidente e de sua família. Recorrer à condição física do general como meio de insulto é abjeto. Que o digam outros deficientes físicos do País. E isso porque ousou tomar posição contra ataques que as Forças Armadas, e o Exército em particular, têm sofrido.

A situação é propriamente surrealista: um ideólogo que mora por decisão própria nos EUA tutela o grupo ideológico presidencial, criando conflitos intermináveis, enquanto o governo não consegue enfrentar os problemas mais básicos do País, como crescimento econômico, desemprego, investimentos e distribuição de renda. O Brasil tornou-se refém de posições ideológicas que nos impedem de andar para a frente. Sentado, em sua cadeira de rodas, o general caminha melhor do que aqueles que o atacam.

Nada disso é aleatório. Os militares vieram a participar do atual governo por iniciativa individual, pois acreditaram ter uma missão a cumprir. Apesar das aparências, não agem como um grupo. Não se encontram nem se reúnem regularmente. Muitas vezes nem se falam. Os seus opositores, porém, têm estrutura, constituem um grupo organizado com coordenação, ideologia, operadores digitais, e uma estratégia de considerar todos os que com eles não se identificam como inimigos.

E os inimigos escolhidos por esse grupo são atualmente os militares. Curiosamente, a narrativa política deslocou-se do PT para esses indivíduos fardados, como se eles o ameaçassem verdadeiramente. O vice-presidente Hamilton Mourão foi alvo dos maiores impropérios, que, de tão baixos, nem merecem ser reproduzidos. Atentam contra a sua honra pessoal e a farda que sempre vestiu. Mourão teve conduta exemplar no Exército, sendo um homem de convicções. O secretário de Governo, general Santos Cruz, tornou-se recentemente alvo de ataques do mesmo tipo. Santos Cruz foi um exemplo para seus companheiros de farda, com carreira ímpar de combatente, pessoa também da maior retidão moral. Não se pode senão qualificar de torpeza ética o que está acontecendo com eles.

Talvez o presidente da República não tenha atentado convenientemente para o fato de ser constitucionalmente comandante-chefe das Forças Armadas. Não é mais deputado, tampouco capitão. Ele se situa acima dos generais e, como tal, tem o dever de defender a instituição militar e os membros que a compõem. Não poderia, como fez, afagar o detrator-mor das Forças Armadas, até mesmo com a medalha da Ordem de Rio Branco, quando mais não seja, pelo fato de ser tal gesto contraditório com a função que exerce. Ou seja, o próprio presidente é atacado quando a instituição militar é dessa forma denegrida.

Para melhor compreendermos o que está acontecendo em termos de composição política e de ideias, não basta caracterizarmos o atual governo como formado por conservadores e liberais, pois algo falta aí. O grupo dito de conservadores é constituído por um conservadorismo de tipo ideológico, alicerçado na concepção do político enquanto distinção amigo/inimigo; por um conservadorismo, digamos, institucional, composto por militares e uma ala evangélica, que os apoia, e pelos liberais.

Os primeiros procuram criar uma situação de instabilidade permanente, sempre atacando e procurando um inimigo, contanto que haja um, por mais imaginário que eventualmente seja. Nada têm a propor além desses ataques sistemáticos, como se estivessem à frente de uma revolução, constituindo a sua vanguarda. Quando não consideram o outro como espelho de si mesmos, tomam-no por alguém perigoso. A insegurança deles se traduz pela instabilidade de sua ação política.

Os segundos têm como objetivo assegurar a prosperidade do País via conservação de suas instituições e de seus valores. Caracterizam-se pela preservação da ordem democrática, atentos a desvios que possam afetar o seu curso. O seu conservadorismo, nesse sentido, poderia ser qualificado como essencialmente institucional, colocando-se como liberais do ponto de vista da economia. A pergunta que deveria ser feita é: o que procuram os que os atacam? Qual seria o seu objetivo?

Os liberais estão, sobretudo, voltados para as necessárias reformas econômicas, não entraram na refrega política. Sabem que tal grau de confronto só prejudica o projeto reformista, sem o qual o País rumará para um futuro sombrio, com risco até mesmo institucional. Estão dando como pressuposto o liberalismo político que caracteriza as instituições democráticas brasileiras, embora se possa perguntar por sua capacidade de resiliência se a reforma da Previdência não for aprovada ou se o seu desfecho for pífio.Que o Brasil

Denis Lerrer Rosefield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Inventando problemas inúteis

Desde que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro comentou mais de uma vez sua inadequação para o cargo que ocupa. No mês passado, por exemplo, ele disse: “Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”. Diante dessa sua percepção, seria muito oportuno que, ao menos, o presidente Bolsonaro se esforçasse para não criar novas dificuldades para o País e para o governo – e, por que não dizer, para si mesmo. No entanto, ele parece indiferente a essa preocupação, fazendo afirmações que geram problemas adicionais e, consequentemente, mais desgastes, novas perdas de energia e necessidade de contínuos esclarecimentos.

Em entrevista à Rádio Bandeirantes no domingo passado, o presidente Bolsonaro deu a entender que, no momento em que convidou o então juiz de primeira instância Sergio Moro para ser ministro da Justiça, teria feito um acerto a respeito de uma futura indicação ao Supremo Tribunal Federal (STF). “Eu fiz um compromisso com o Moro, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura (para assumir o Ministério). Eu falei ‘a primeira vaga que tiver lá (no Supremo) está à sua disposição’”, disse o presidente Jair Bolsonaro.

É absolutamente extemporânea a discussão sobre quem será o próximo indicado ao STF. A princípio, a próxima vaga estará disponível apenas em novembro de 2020, com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello, em razão da idade.

Como se não houvesse outros problemas a serem enfrentados, o presidente Jair Bolsonaro adiantou uma questão que exigirá uma decisão sua apenas daqui a um ano e meio. Além disso, o comentário deixou o ministro Sergio Moro em situação delicada, pois o presidente Bolsonaro deu clara indicação de que houve uma relação de troca com o futuro ministro da Justiça: ele abandonava um capital – inclusive financeiro – de 22 anos em troca de uma futura indicação por vaga no Supremo. Coisas assim foram examinadas, à farta, na Operação Lava Jato.

No dia seguinte à entrevista do presidente Bolsonaro, durante palestra em Curitiba, Sergio Moro falou sobre o convite para o Ministério da Justiça. “Ele (Jair Bolsonaro) foi eleito, fez o convite, fui até a casa dele no Rio de Janeiro. Nós conversamos e nós, mais uma vez publicamente, eu não estabeleci nenhuma condição. Não vou receber convite para ser ministro e estabelecer condições sobre circunstâncias do futuro que não se pode controlar”, disse o ministro da Justiça. E assim, para o bem da República, esperamos que tenha sido.

Sergio Moro ainda declarou: “Quando surgir a vaga (para o STF), isso vai ser discutido, antes não”. Seria muito conveniente para o País que o presidente Bolsonaro tivesse essa mesma disposição de respeitar os tempos de cada decisão, sem adiantar problemas. Como se fosse um assunto a ser debatido na semana que vem, Jair Bolsonaro disse na entrevista de domingo: “Eu vou honrar esse compromisso com ele (Sergio Moro) e, caso ele queira ir para lá, será um grande aliado, não do governo, mas dos interesses do nosso Brasil dentro do STF”.

Quando age assim, o presidente Bolsonaro não prestigia o ministro Sergio Moro e tampouco o fortalece no cargo. A rigor, ele desgasta um importante integrante do primeiro escalão do seu governo, dando a entender que, com o convite, havia também a promessa de um benefício futuro. Há menos de um mês, o ministro Sergio Moro declarou que “ir para o STF seria como ganhar na loteria”.

Além de desgastar o ministro Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro deteriora sua própria imagem como governante. Com urgentes problemas a serem enfrentados – a reforma da Previdência, sendo o mais importante e decisivo agora, é apenas um destes desafios –, o presidente Jair Bolsonaro revela ter frágil percepção das prioridades do País. Quem tem visão clara das metas da administração pública e sabe das dificuldades que terá de enfrentar para realizá-las não inventa extemporaneamente problemas que consumirão suas já escassas energias.

A fala de Jair Bolsonaro ainda alimenta inquietações no restante de sua equipe, que certamente subtrairão muito da já pequena eficácia de seu governo: se o presidente Bolsonaro trata assim, gratuitamente, o seu “superministro” Sergio Moro, o que será capaz de fazer com os outros?

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 14.05.19

Partido não é só um nome

Uma reportagem publicada no domingo passado pelo Estado mostrou que, nos últimos anos, cinco dos dez maiores partidos do Congresso já mudaram ou estudam mudar de nome. Em alguns casos, trata-se de tentar fazer o eleitor esquecer os escândalos de corrupção nos quais algumas dessas legendas se envolveram; em outros, é uma forma de buscar se reconectar com os cidadãos, em meio ao descrédito generalizado de que padece a política.

De uma forma ou de outra, é o reconhecimento, na prática, de que os partidos em geral há muito tempo não conseguem oferecer-se como representantes dos anseios e das demandas dos brasileiros. Em resumo, salvo raríssimas exceções, já não são partidos, com perfil ideológico e programático facilmente identificável, mas sim amontoados de interesses particulares – e cujos caciques só enxergam o poder como oportunidade de bons negócios para si e para os seus.

Já há até mesmo quem diga que os partidos – entendidos como entidades que representam ideias políticas abrangentes – estão com os dias contados. “O mundo exige outra forma de organização. Os partidos vão deixar de existir”, disse o ex-deputado Roberto Freire, fundador e líder do Cidadania, ex-Partido Popular Socialista, que um dia já foi Partido Comunista Brasileiro. “A comunicação direta com o eleitor é uma nova realidade. Hoje é só pelas redes. Ninguém espera mais uma articulação partidária por células em sindicatos de base”, disse o experiente político – cujo partido tirou o “socialista” do nome para conseguir atrair movimentos de renovação política, como o Agora, o Livres e o Acredito, todos de viés liberal.

Raciocínio semelhante desenvolveu a deputada federal Renata Abreu (SP), presidente do antigo Partido Trabalhista Nacional, rebatizado de Podemos: “Somos cidadãos do século 21, mas lidamos com instituições concebidas no século 18. O que mobiliza hoje a sociedade não é mais a ideologia de esquerda ou direita, mas as causas, que são muito dinâmicas”. A ser verdadeira essa análise, estamos caminhando para a formação de partidos políticos à la carte, que defenderão “causas” à medida que surjam, e não princípios gerais, que não variam ao sabor das circunstâncias.

Parece óbvio que nem todas as legendas que trocaram de nome o fizeram em razão dessa suposta revolução na representação política. Algumas delas tinham problemas bem menos teóricos para resolver, como, por exemplo, o desgaste de imagem causado por desmandos, corrupção ou completo descaso pelo eleitor. Em todos os casos, porém, os partidos trocaram ou trocarão de nome na esperança de reduzir a rejeição a seus antigos rótulos – mas é improvável que o eleitor “compre” esse velho produto que tenta se fazer passar por novo, pois, por trás da aparência de rejuvenescimento, seus antigos defeitos continuam evidentes.

Quando o MDB estuda trocar de nome pela segunda vez em menos de dois anos (era PMDB até 2017 e agora pode se tornar apenas “Movimento”), o partido serve de exemplo eloquente de que um nome, por melhor que seja, não mudará a natureza de uma legenda que há muito tempo deixou de ter princípios e ideias discerníveis – a tal ponto que já se perdeu na memória o passado do MDB como representante da oposição durante o regime militar e como vanguarda da luta pela redemocratização.

O mesmo se pode dizer do PSDB, partido que há anos não é mais nem sombra da agremiação cuja plataforma social-democrata conquistou uma parte considerável da classe média. Ao discutir uma troca de nome e de identidade partidária para superar a sequência de fiascos eleitorais e dar novo rumo à legenda, os tucanos podem perder o pouco que resta de seu patrimônio político, sem ter nenhuma garantia de que conquistarão novos eleitores.

Mesmo dentro do PT cogitou-se uma mudança de nome. Embora prontamente descartada, a mera hipótese indica que até o partido mais sólido do ponto de vista programático sofreu a tentação de troca de identidade como paliativo para sua crise.

De tudo isso fica a certeza de que o sistema partidário do País está sendo triturado – resultado de décadas de alheamento da elite política em relação às verdadeiras necessidades dos eleitores.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 08.05.19

Quatro meses de Jair Bolsonaro

Por Bolívar Lamounier

Decorridos 120 dias da posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República, já dá para fazer um balanço razoável. É o que me proponho a fazer neste artigo.

O fato mais importante da eleição foi, a meu ver, a derrota do PT. Mesmo com um candidato “manso” como Fernando Haddad, mais quatro ou mais oito anos de PT na Presidência seriam um desastre. O Brasil ficaria muito perto de um ponto de não retorno, uma vez que a política econômica petista insistiria nos desatinos a que o partido sempre se devotou. A miríade de “movimentos” que o integram ou apoiam manteria o País num permanente clima de ameaça às instituições, afugentando investidores e impedindo a retomada do crescimento. O futuro seria a quase total estagnação que temos tido desde que a exportação de commodities para a China perdeu seu poder de arrastre.

Por intermédio principalmente dos ministros Paulo Guedes e Sergio Moro, o presidente tem condições de colocar as políticas econômica e de segurança no rumo certo. De efeitos práticos, por enquanto, há pouco a mostrar, mas pelo menos a reforma da Previdência parece bem encaminhada. Sem ela o Brasil simplesmente não tem futuro. Já passa da hora de os que a ela se opõem caírem na real. Reformar a Previdência é o primeiro passo, outras reformas cedo ou tarde terão de entrar na agenda; reformas duras, que finalmente nos permitam superar a “armadilha” (melhor seria dizer a “maldição”) da “renda média”. Com a renda por habitante crescendo no ritmo medíocre dos últimos tempos - na faixa de 2% a 3% ao ano -, levaremos algo entre 25 e 30 anos para dobrá-la, um resultado que beira o impensável. O que se requer é, portanto, uma reforma abrangente do Estado e do gasto público, a energização do setor privado e uma forte injeção de ânimo para a sociedade encarar a montanha de problemas que se acumularam nas últimas décadas.

Embora os efeitos práticos ainda sejam modestos, é preciso reconhecer a importância dos sinais que Bolsonaro e seus principais auxiliares emitiram no 1.º de Maio. Em vez da tradicional exaltação do getulismo - nossa conhecida combinação de nacionalismo estatizante e paternalismo trabalhista -, ouvimos uma afirmação enfática dos novos caminhos que o País precisa trilhar. Caminhos essencialmente liberais. Sim, liberais, porque a aspiração social-democrata que compartilhamos e a Constituição de 1988 consagrou é apenas isto, uma aspiração, vale dizer, um ideal desprovido de meios práticos. Um Estado quebrado, que mal e parcamente consegue cumprir seu papel na educação, na saúde e no saneamento, obviamente não tem como sustentar o papel economicamente ativo que o antigo conceito de social-democracia pressupunha.

E foi justamente esse o ponto fulcral do discurso de 1.º de Maio: um “compromisso (...) com a plena liberdade econômica, única maneira de proporcionar, por mérito próprio e sem interferência do Estado, o engrandecimento de cada cidadão”.

Mas em dois aspectos, pelo menos, há severas restrições a fazer. O primeiro diz respeito à “fala” do governo, vale dizer, ao que se diz ou se insinua, ou, mais amplamente, à liturgia das funções públicas. O presidente precisa urgentemente controlar a cacofonia que se manifesta quase diariamente em seu governo, para a qual ele mesmo volta e meia contribui. Era razoável esperar que o açodado anúncio da mudança da embaixada em Israel para Jerusalém e o envergonhado recuo que se lhe seguiu tivessem deixado um benfazejo rastro de sobriedade, mas esse decididamente não é o caso. Bolsonaro e vários ocupantes do primeiro escalão têm-se esmerado em falar pelos cotovelos, com prejuízo para a estabilização das expectativas entre os agentes econômicos. O pedido de Bolsonaro (“pura brincadeira”, segundo disse) ao presidente do Banco do Brasil para pensar com o coração e baixar um “pouquinho” os juros para os ruralistas dá uma boa ideia dos estragos que podem advir por esse caminho.

A área mais difícil, não direi de elogiar, mas simplesmente de compreender, é a da educação. A primeira indicação para a pasta, a do sociólogo Ricardo Vélez Rodriguez, mostrou-se assaz inadequada. Consta que seu sucessor, o ministro Abraham Weintraub, merece um crédito de confiança, tendo em vista suas aptidões no campo administrativo e a experiência da vida prática adquirida no mercado financeiro. Fato é, porém, que até o momento ele nada nos proporcionou que nos permita crer que tenha um pensamento consistente a respeito do sistema educacional brasileiro e das opções para reformá-lo. A reformulação da base curricular efetivada em 2017 pode ser considerada um passo na direção certa, mas é pouco, muito pouco, tendo em vista o caráter absolutamente prioritário da área educacional. Para piorar as coisas, o ministro, talvez inspirado pelo guru da Virgínia, parece inclinado a atacar moinhos de vento, leia-se o “marxismo cultural”, e mais precisamente as ciências humanas. Ora, a última coisa que um governo pressionado por uma agenda econômica urgente e inexorável deve fazer é se imiscuir em questões culturais ou em pautas valorativas e comportamentais. Nessa área, nosso país é manifestamente diversificado e conflituoso. Equacionar os pontos de atrito que aí surjam e eventualmente ganhem corpo é função da sociedade ou, em casos mais difíceis, do Congresso Nacional, no limite mediante convocação de plebiscito.

Seria um alívio ver o ministro Weintraub se debruçar sobre os problemas realmente críticos do setor. Não me refiro ao gasto público. Como proporção do PIB, o gasto educacional brasileiro é bastante alto. Mas os resultados permanecem pífios. O ponto nevrálgico, que requer ação sistemática e urgente, é a formação dos professores, notadamente para o segundo grau. Melhorá-la muito, rapidamente e a baixo custo: eis o desafio sobre o qual o ministro já deveria estar refletindo.

Bolívar Lamounier é cientista político. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Autor do livro "Liberais e Antiliberais: A Luta Ideológica deNosso Tempo (Cia. das Letras). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 11.05.19.

À espera da virada. Que ninguém vê.

Por Celso Ming

Nestes quatro meses de governo Bolsonaro, a quantidade de intrigas, de distribuição de sopapos verbais, até mesmo de baixo calão, e de puro desgoverno não tem precedentes e, decididamente, não ajuda a recuperação do País.

A política econômica é declaradamente neoliberal, mas enfrenta o jogo protecionista e antiglobalizante da chancelaria.

Os filhos do presidente, também conhecidos, respectivamente, por agentes 01, 02 e 03, mais o suposto guru filosófico trocam insultos com os generais que fazem parte do governo.

O Executivo ignora o Legislativo, não sabe se adere a alguma forma de presidencialismo de coalizão – o que implica alguma forma de partilha de poder e de benesses – ou se parte para uma forma descolada de governo, seja lá o que isso signifique.

A sociedade espera com ansiedade um clarão no horizonte que ilumine tudo e vire o jogo modorrento e perdedor de agora.

A principal iniciativa é o projeto de reforma da Previdência e, no entanto, o presidente não parece engajado na empreitada, o que sugere que ele pode não acreditar no que está propondo.

Há quatro meses, ainda havia a expectativa de que as reformas mudariam o jogo. Agora, espraia-se a noção de que também aí não há milagre.

A pergunta à espera de resposta é se a economia real se move como nos Estados Unidos, apesar de Donald Trump e de suas trumpadas. A percepção geral é a de que se move sim, mas para trás.

O desemprego atinge 13,4 milhões de pessoas, as novas projeções do PIB não são mais de avanço perto de 3,0% ao ano, mas de, no máximo, 1,49%, como se viu na última pesquisa Focus, do Banco Central.

Com a demanda muito perto da estagnação e a indústria asfixiada, seria de esperar que a inflação resvalasse para a altura dos 3,5% em 12 meses, mas voltou a subir, para acima dos 4,0%. A economia argentina, terceiro maior parceiro comercial do Brasil, está mergulhada na crise.

E, agora, a ameaça de guerra comercial entre Estados Unidos e China ficou ainda mais forte, situação que multiplica as incertezas.

Um olhar atento ainda enxerga sinais de vitalidade. O agronegócio, por exemplo, embora tenha perdido alguma renda com a queda dos preços internacionais das commodities, segue com forte dinamismo.

As contas externas, área que, no passado, foi a mais vulnerável, seguem robustas. Também se esperam bons resultados do setor do petróleo, sob pressão dos governadores, que não tiram os olhos das promessas com royalties: a produção nacional de óleo e gás aproxima-se dos 3 milhões de barris diários, mais que a dos Emirados Árabes, sétimo maior fornecedor do mundo.

Os leilões de serviços públicos não caminham na velocidade desejada, mas caminham.

Não se sabe ainda o quanto esse lado encorajador está sendo contaminado pela onda de desalento. Qualquer pessoa sabe que um doente se recupera mais facilmente se estiver animado e engajado na cura da sua enfermidade. Com a economia também é assim, porque o desânimo tende a arrastar os investidores para a retranca, adia o consumo e segura o crédito.

A sociedade espera com ansiedade um clarão no horizonte que ilumine tudo e vire o jogo modorrento e perdedor de agora. Mas, para isso, é necessário que o presidente Jair Bolsonaro comece a governar.

Confira. Sem mudança nos juros

Também desta vez, a reunião do Copom não trouxe novidades. Foram mantidos os juros de 6,5% ao ano, como mostra o gráfico. O Banco Central reconhece que a evolução do PIB está mais lenta do que o esperado, mas não se mostrou, por conta da baixa demanda, nem um pouco inclinado a reduzir os juros.

Ao contrário, apontou que as incertezas quanto ao destino das reformas pode puxar a inflação na direção oposta. Não há indícios de que, na reunião de 19 de junho, o Copom possa reduzir os juros.

Celso Ming é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 09.05.19

Uma nova guerra nas estrelas?

Por Paulo Roberto da Silva Gomes Filho

No dia 27 de março, um evento causou surpresa e chamou a atenção para uma corrida silenciosa que está sendo travada pelas maiores potências militares do planeta: a disputa pelo domínio militar na última fronteira da humanidade, o espaço. A Índia anunciou ao mundo o sucesso no lançamento de um míssil que tinha por alvo um satélite do próprio país.

O alvo, que estava a altitude aproximada de 300 km, foi atingido e destruído. Assim a potência hindu se juntou ao seletíssimo grupo de três países, EUA, Rússia e China, capazes desse extraordinário feito militar.

O primeiro-ministro Narendra Modi comemorou: “A Índia obteve uma conquista inédita hoje. O país gravou seu nome dentre as potências espaciais”.

Os satélites desempenham papel fundamental na guerra moderna. Por eles transitam os fluxos de comunicações e dados. Guiam as famosas “armas de precisão cirúrgica” e as aeronaves remotamente pilotadas, os drones. São responsáveis pelo imageamento do campo de batalha, desempenhando papel decisivo na obtenção e difusão de dados de inteligência. Compõem as constelações responsáveis pelos sistemas GPS e similares, onipresentes em aplicações militares e em diversos e muito populares aplicativos em uso pela moderna sociedade civil.

Mas o sucesso da Missão Shakti, como foi batizada, não está somente na constatação de que agora os indianos podem destruir satélites inimigos. Como os avanços tecnológicos são na maioria das vezes de uso dual, o êxito também significa que o país atingiu invejável avanço na tecnologia que permite a fabricação de mísseis capazes de interceptar mísseis inimigos.

As reações internacionais foram imediatas. A mais veemente veio do Paquistão, país que está envolvido em disputa militar com a Índia pela posse da região da Caxemira, há décadas. O ministro das Relações Exteriores declarou que “o espaço é uma herança comum da humanidade e toda nação tem a responsabilidade de evitar ações que possam levar à sua militarização”.

A China, que na década de 1960 travou conflito armado com a Índia pela região do Tibete do Sul, reagiu cautelosamente. Expressou sua esperança de que “todos os países possam promover a paz e a tranquilidade no espaço”. Interessante notar que a China já tinha efetuado teste semelhante em 2007.

O secretário de Defesa dos EUA, Patrick Shanahan, alertou para os riscos causados pelos detritos produzidos por esse tipo de teste. O general David D. Thompson, subcomandante do Comando Espacial da Força Aérea dos EUA, expressou-se na mesma direção. Questionado por repórteres, declarou que esse tipo de teste preocupa não só pelo risco para os satélites dos EUA, “mas também pela produção de detritos que podem permanecer no espaço por longo tempo, o que pode causar danos em efeito cascata”.

Apesar da reação internacional, parece ser tarde para impedir a militarização do ambiente espacial. Embora até hoje nunca tenha havido uma ação militar àquela altitude, as potências militares do planeta preparam-se a passos largos para essa realidade. A Estratégia de Defesa dos EUA reconhece que a competição entre as grandes potências é o principal desafio à sua segurança e que o espaço é um dos domínios onde essa competição se travará. Reconhece, ainda, que China e Rússia têm capacidade de atuar militarmente no espaço, reduzindo gravemente a efetividade militar do país e de seus aliados. Para se contrapor a isso, em 2018, o presidente Trump declarou a intenção de criar a United States Space Forces (USSF), Força Espacial dos EUA, uma nova Força Armada. Em março deste ano o Ministério da Defesa americano encaminhou a proposta de criação da nova Força ao Congresso. Caso o Congresso aprove, a nova Força será criada em 2020.

Em 2015 a China promoveu uma grande reestruturação de suas Forças Armadas. Foram criadas duas novas Forças, a Força de Foguetes e a Força Estratégica de Apoio, esta para atuar nos domínios cibernético e espacial. Apesar da pouca informação disponível, parece claro que essas Forças foram criadas, dentre outras finalidades, com o foco no domínio espacial.

A Rússia, a exemplo da China, também reorganizou recentemente suas Forças militares. Em 2015 as capacidades espaciais dispersas pelas Forças Armadas foram reunidas numa nova Força, batizada como Força Aeroespacial de Defesa. A doutrina russa de defesa, de 2010, assim como a norte-americana, atribui ao espaço uma função essencial, afirmando que “assegurar a supremacia na terra, no mar, no ar e no espaço será fator decisivo para que os objetivos sejam atingidos”.

A década de 1940 assistiu ao nascimento das Forças Aéreas. O lançamento das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki mostrou a um mundo estarrecido a capacidade destruidora do armamento transportado e lançado por aviões bombardeiros. Foi o auge da teoria geopolítica do poder aéreo, cujo maior expoente, Alexander Seversky, em sua obra A Vitória Pela Força Aérea, já destacava a importância estratégica dos vetores aéreos de combate e do domínio do espaço aéreo. Setenta anos se passaram e agora assistimos ao surgimento das Forças Espaciais. Mas, diferentemente das Forças Aéreas, que foram criadas em praticamente todos os países soberanos, a criação das Forças Espaciais exige tecnologias ainda muito restritas, sem falar de uma reserva de capitais indisponível para a grande maioria das nações.

Se é certo que o mundo ainda é castigado pela guerra, que neste momento assola muitos países, ceifando a vida de soldados e civis, também é correto afirmar que o equilíbrio obtido pela ameaça de destruição mútua assegurada dos tempos da guerra fria impediu que se deflagrasse uma guerra nuclear entre as superpotências do planeta. Resta saber se esse equilíbrio será mantido também no ambiente espacial.

Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Filho é Coronel de Cavalaria do Exército Nacional. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.05.19.

O importante e o irrelevante

Não são poucos nem simples os desafios que o presidente Jair Bolsonaro tem pela frente. Sua energia e a de seu governo devem, portanto, ser concentradas no urgente encaminhamento das soluções para os graves problemas nacionais. É tarefa do presidente evitar que assuntos menores ou insignificantes causem desgaste desnecessário e desviem a atenção do que realmente importa para o País.

Assim, fez muito bem o presidente ao desvincular-se publicamente do burburinho criado nas redes sociais pelo escritor Olavo de Carvalho contra integrantes de seu governo. Bolsonaro viu-se obrigado a reagir particularmente a um vídeo em que Carvalho ofende os militares que assessoram a Presidência, com termos de baixo calão.

A opinião de Olavo de Carvalho sobre este ou qualquer outro assunto não deveria merecer a atenção do presidente da República, por sua natural irrelevância. No entanto, o escritor, que também é professor de um curso de filosofia online, foi adotado pela militância mais aguerrida do bolsonarismo como seu “guru”, com o apoio dos filhos do presidente, em especial o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador carioca Carlos Bolsonaro. Assim, tudo o que aquele escritor diz acaba sendo interpretado por esses seguidores como uma espécie de “doutrina” bolsonarista, com potencial para inspirar decisões do governo.

À influência de Olavo de Carvalho, por exemplo, atribuem-se as nomeações dos ministros da Educação – o atual, Abraham Weintraub, e o anterior, Ricardo Vélez Rodríguez – e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Não por acaso, são esses os Ministérios que têm causado mais contratempos ao presidente, com disputas internas e atuação voltada exclusivamente ao combate do que Olavo de Carvalho chama de “marxismo cultural” – objetivo tão obscuro quanto irrelevante.

Já não era sem tempo, portanto, que o presidente demarcasse claramente os limites, especialmente os institucionais, que o separam daquele personagem – que, insista-se, não teria a atenção que recebe não fosse pelo fato de que os filhos e alguns ministros de Bolsonaro o têm em alta conta.

A bem da verdade, o próprio presidente já demonstrou publicamente respeito por Olavo de Carvalho, não raro de modo excessivo – como na visita aos Estados Unidos, quando Bolsonaro colocou o escritor em lugar de honra num jantar para expoentes da direita norte-americana e prestou-lhe homenagem, ao dizer que “em grande parte devemos a ele a revolução que estamos vivendo”.

Mesmo na nota em que repreende o “guru”, o presidente Bolsonaro trata de dizer, logo na abertura, que “o professor Olavo de Carvalho tem um papel considerável na exposição das ideias conservadoras que se contrapuseram à mensagem anacrônica cultuada pela esquerda e que tanto mal fez ao nosso país”. E conclui o texto declarando que tem “convicção de que o professor, pelo seu espírito patriótico, está tentando contribuir com a mudança e o futuro do Brasil”.

O presidente deve ter suas razões para demonstrar tamanha reverência por alguém que agride seus ministros e assessores com inadmissível grosseria. Também deve ter suas razões para permitir que seus canais oficiais nas redes sociais disseminem as mensagens de Olavo de Carvalho – como aconteceu com o vídeo que aborreceu os militares – e para não repreender os filhos quando estes ajudam a impulsionar essas mensagens que intoxicam o ambiente do governo.

Para o País, o que importa é que o presidente Bolsonaro foi capaz de dizer, com todas as letras, que as “recentes declarações” de Olavo de Carvalho “contra integrantes dos Poderes da República não contribuem para a unicidade de esforços e o consequente atingimento dos objetivos propostos pelo nosso projeto de governo”.

Com tal manifestação, cristalina, espera-se que o governo daqui em diante não seja mais importunado por opiniões francamente desimportantes, cuja motivação nada tem a ver com o interesse nacional – que deve ser a única e verdadeira preocupação do presidente Bolsonaro e de seus auxiliares. Há muito trabalho a fazer.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.04.19

Nova política, velha e inepta

Desorganizado, acuado e forçado a negociar antes da hora detalhes da reforma da Previdência, o governo do presidente Jair Bolsonaro falhou até hoje na execução de novas políticas de alguma relevância. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já admitiu antecipar a Estados até R$ 6 bilhões do leilão do pré-sal previsto para outubro. Objetivo: garantir apoio de governadores à mudança das aposentadorias. Seu chefe, encastelado no Palácio do Planalto, interveio na gestão da Petrobrás, forçou o adiamento de um reajuste do diesel e acabou conseguindo um aumento menor. Resumindo: 1) votos continuam sendo comprados, sem escândalos como o do mensalão, mas o troca-troca inegavelmente permanece em vigor; 2) ao mesmo tempo, o intervencionismo é reeditado e, pior que isso, praticado de forma voluntarista, numa ação de varejo, sem ser sequer disfarçado como parte de um projeto econômico. É isso a nova política?

As figuras mais sérias do Executivo nem mesmo tentam negar a confusão dominante no governo por mais de três meses. Tentam, no entanto, dar boas notícias. Apesar de ruídos políticos, tem melhorado o diálogo dentro do Executivo e entre o Executivo e o Legislativo, disse em São Paulo, num evento da Câmara de Comércio França-Brasil, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida. O secretário, remanescente da gestão do presidente Michel Temer, é, dentro da equipe, uma rara figura com experiência de governo.

Seu chefe, o ministro da Economia, com reputação formada como economista e como empresário do setor financeiro, foi chamado para comandar, com sua experiência acadêmica e profissional, uma área crucial para o sucesso do governo. Mas acabou forçado a entrar em negociações políticas, porque figuras do Executivo escaladas para a função falharam de forma indisfarçável.

Sem coordenação, o grupo apontado como base parlamentar fracassou desde os primeiros dias e foi incapaz de garantir sucesso na primeira e mais simples etapa de tramitação da reforma da Previdência, a passagem pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Não se conseguiu levar a voto o texto do relator antes da Páscoa nem evitar a discussão, nessa fase, de questões de mérito, próprias da etapa seguinte. O ministro da Economia atribuiu esses tropeços à inexperiência de parte da base. O distinto público deve aceitar essa explicação e achar tudo certo?

Mas a equipe do Executivo também falhou mais de uma vez, sem coordenação e sem clara definição de prioridades. O ministro Paulo Guedes poderia ter-se concentrado no encaminhamento e na defesa da reforma da Previdência, mas embaralhou o debate falando antes da hora sobre o projeto de um regime de capitalização. Ao mesmo tempo, a equipe abriu a discussão sobre a reforma tributária, sem explicar com clareza os objetivos e o significado econômico da proposta. A mudança, supõe-se, deve ter fins mais amplos que a simplificação, mas pouco se informou além desse ponto.

Enquanto o governo tomava um baile da oposição e do “Centrão” na Comissão de Constituição e Justiça, o presidente da República assustava o mercado forçando a suspensão de um reajuste de preço do diesel. Depois de anunciada, a mudança ficou suspensa por vários dias, enquanto o presidente discutia o assunto com ministros e dirigentes da estatal. Anunciado uma semana depois, o aumento foi revisto de 5,7% para 4,8%.

O presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, tentou explicar tecnicamente a decisão recauchutada e reafirmar a independência administrativa da empresa. Mas o recuo era um fato escancarado e, além disso, ele foi incapaz de dizer com clareza como ficaria a política de preços da empresa. Pessoas de muito boa vontade podem ter acreditado nas explicações – e ninguém mais.

Ao cuidar do diesel, o presidente Bolsonaro mostrou-se receptivo às pressões de caminhoneiros e à manutenção do cartel do frete, motivo de reclamações bem fundadas da ministra da Agricultura. Viva o cartel, dane-se a agricultura?

Passados quase quatro meses de governo, o quadro da nova política teria de incluir também os bem conhecidos desastres na educação e na diplomacia. Terá o presidente percebido esses fatos? Essa é a pergunta mais inquietante.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 21.04.19

A odisseia do voto

Por Mário César Flores

Pode parecer um tanto bizarro que estes comentários sejam expressos por pessoa de formação e carreira militar, mas militar é também cidadão, com o direito de qualquer cidadão – se não com o dever – de se preocupar com os tropeços no funcionamento de nosso sistema político. Mas vamos ao assunto.

O cenário confuso da reforma da Previdência sugere alguns comentários sobre uma prática que contamina nossa democracia há decênios, agravada nos mais recentes pelo populismo. Refiro-me à odisseia que costuma pautar a tomada da decisão em temas da responsabilidade política. Em particular, no caso referência deste artigo (a reforma da Previdência), da responsabilidade protagônica do Congresso Nacional, ainda que não exclusiva, em seu atual estágio de tramitação.

O correto é ser o voto de qualquer matéria condicionado pela análise e pela avaliação do seu mérito, sensata, competente e objetiva. Análise e avaliação do mérito sob a perspectiva da adequação da matéria à conveniência do País ou da região e do setor temático a que se refere especificamente o projeto, desde que essa conveniência seletiva não colida contra a do País, feitas pelos partidos ou, dependendo das características do tema, pelas bancadas regionais, temáticas ou até mesmo pelo congressista individual. Essa lógica, alicerce da democracia, vem sendo menoscabada no Brasil, onde o voto (favor ou contra) tem sido frequentemente definido por interesses partidários, regionais ou temáticos, quando não pessoais (em realce os reflexos eleitorais da posição assumida), nem sempre convergentes com o interesse público nacional, quando não divergentes, na contramão do bom senso democrático.

A odisseia da Previdência tem vivido reflexos dessa lógica equivocada. Evidentemente, qualquer projeto formulado por equipe técnica do Poder Executivo pode ser visto (o projeto ou tópicos dele) por partido ou congressista como não atendendo ao interesse nacional ou como prejudicial a ele e a interesses setoriais ou regionais que devem ser considerados. Se a convicção da inadequação decorre realmente de análise honesta e imune a interesses econômicos e/ou sociais questionáveis, a posição contrária é compatível com a moldura democrática do processo.

Mas excetuada essa hipótese – repetindo, o entendimento honesto e convicto de que o projeto, ou tópicos dele, de fato não respondem ao interesse público ou colidem com ele –, resistir ou se opor em razão de interesses de toda ordem é desrespeito ao mandato, cujo exercício correto pressupõe (ou deve pressupor...) a precedência do interesse público. Pior, ainda, quando a posição contrária resulta tão somente, ou principalmente, da mera oposição política ou de dogmas político-ideológicos, sem respaldo em análise objetiva e competente.

A mídia tem noticiado com frequência que partidos e congressistas, individualmente, se dizem propensos a rever suas posições simpáticas ao projeto porque não têm tido do governo a atenção que entendem como lhes sendo devida – em particular, a participação na máquina administrativa do Estado e recursos de interesse de seus redutos eleitorais. Essas notícias levam a um raciocínio tétrico: se havia antes a disposição de apoiar o projeto, é de supor (?) que ele tenha sido analisado e avaliado como adequado. O fato de não terem – partidos e/ou congressistas – tido do governo a consideração pretendida e por eles entendida como merecida pode ser aceito com razão para que o projeto, ou tópicos específicos dele, deixem de ser adequados...?

Em suma: a lógica em curso rotineiro em setores políticos de peso no Brasil permite que o sim ou o não congressual que definirá o futuro de um projeto cuja origem é o governo não dependa do mérito objetivo da matéria, mas do afago do governo! A palavra “negociação” tem sido usada com frequência. O que exatamente ela significa, nesse contexto...? A razão da substituição da simpatia pelo projeto da Previdência, pela ameaça de objeção total ou parcial, indica que a avaliação da adequação do projeto ao atendimento do interesse público (se houve tal avaliação) não havia sido o único fator da posição anterior, favorável. A esperança de afago havia contribuído, talvez até ponderavelmente.

Enfim e resumindo: o fato de que a aprovação ou rejeição de projeto da importância do referenciado dependeria, no Brasil, de acertos (?) entre o governo e partidos ou congressistas, não seguramente convergentes (qualificação condescendente...) com o interesse público, sugere que alguns meandros do funcionamento de nossa democracia – no caso, a odisseia da lógica do voto – a fragilizam como capaz de encaminhar a solução dos grandes problemas nacionais sem admitir concessões de duvidosa virtude.

Pensamento lúgubre, coerente com a propensão mundial no século 21 e compatível com o passado político brasileiro: se uma democracia funciona aos tropeços, convém ajustá-la à realidade nacional – o que pode incluir ajustes não politicamente virtuosos, “flertes” sutis com o autoritarismo não radical. Convém que os agentes políticos eleitos entendam que a prática do voto condicionado pelo alheio ao interesse público estimula o desapreço pela lógica que deve regular a democracia, é um convite para tais ajustes.

O eleitor deve ficar atento: se as posições de quem mereceu o seu voto na eleição forem de fato condicionadas por razão que não a convicção honesta e sincera sobre o mérito dos projetos, convicção que faz compreensível e legitima posições divergentes do projeto, e se, ao contrário, forem condicionadas pelo atendimento de pretensões partidárias, setoriais ou pessoais de duvidosa convergência com o interesse público ou de importância secundária, não torne a votar nele.

Mário César Flores é Almirante. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.04.19.

O Estado Democrático de Direito

Por Michel Temer

O Brasil tem dificuldade para conviver com a democracia. Historicamente, períodos democráticos e autoritários se alternam. Por formação e convicção, sempre trabalhei por ela. Na advocacia, na Procuradoria, no ensino universitário, nas secretarias de Estado, nos livros publicados e na Assembleia Constituinte, minha pregação sempre foi a mesma: o sistema jurídico democrático deve ser rigorosamente cumprido.

No escrito deu certo. A Constituição federal de 1988 rotulou o nosso Estado como Democrático de Direito. Listou em 77 incisos do artigo 5.º os direitos individuais. Estabeleceu a separação de Poderes determinando a harmonia entre eles, mas cada qual com sua função, sem interferência do outro. Elevou ao nível constitucional “a dignidade da pessoa humana”. Por que me detenho nesse tema? Para revelar a disparidade entre a Constituição formal (o que está escrito) e o que se passa no cotidiano do Estado.

Vamos aos fatos atuais. Refiro-me à minha detenção por determinação de um juiz do Rio de Janeiro e aos episódios em que fui inserido.

Sempre vem a indagação: devo tratar dessa matéria apenas em juízo? Ou devo manifestar-me publicamente? Vi e vivi, leitoras e leitores, tantas imprecações, tantas inverdades, tantas ilações, tantas conclusões que partem do “parece que”, “tudo indica que”, “ a prova é superficial”... e a imprensa, com legitimidade, reverbera essas questões ditas nos autos dando a impressão de que sou perigoso marginal.

É verdade que tenho recebido de pessoas sérias, como editorialistas, colunistas e juristas, entre outros, gestos de apoio e solidariedade. Resumidamente (o mais será feito no Judiciário) explico o que se passa. Veja-se o caso da JBS. Trata-se da trama de um empresário orientado por um procurador da confiança do procurador-geral para que me gravasse, entregasse a gravação e saísse, livre e solto, do País sem nenhuma espécie de punição. Ou seja: “Incrimine o presidente da República que nós te perdoamos por todas as irregularidades que você e seu grupo cometeram”. Criaram frase falsa que não consta da gravação, nem poderia constar, porque nunca existiu. O procurador-geral fez essa versão para o veículo que a divulgou e que depois, ouvido o áudio, foi desmentida por outros meios de comunicação.

Os envolvidos nessa questão sabem disso e não terão condição de me desmentir, ou terão vergonha de fazê-lo depois do que me revelaram. Veja-se o caso da mala. O portador apanhou um táxi e, monitorado como se achava, não foi seguido. Sabem os leitores por quê? Porque a valise estava “chipada” e se esperava que ela viesse a ser entregue a mim, o que nunca aconteceu. Portanto, a mala não veio a mim, retornou com o dinheiro, e ainda assim fui denunciado como autor de um crime que jamais me poderia ter sido imputado. Fala-se que o empresário queria um benefício do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Não obteve! Estou dando breves exemplos para revelar o despropósito de todas as acusações. Aliás, o tal empresário e seus cúmplices foram presos em razão de gravação que equivocadamente mandaram à Procuradoria.

Não tendo sucesso nessa estratégia suja, procuraram outros argumentos: quadrilhão, jantar com diretor da Odebrecht, decreto dos portos, contrato da Alumi com uma empresa... Como se tudo o que empresas fizeram, uma delas com 30 anos de existência, fosse em meu benefício. Mas o exagero maior deu-se nos últimos dias. Num caso que estava no STF (Supremo Tribunal Federal), pendentes de julgamento três recursos interpostos pelos meus advogados, copiaram-se peças e a partir delas formou-se representação fantasiosa, que tratou de objeto de vários outros procedimentos, decretando-se minha prisão preventiva. Nem mesmo se instaurou um inquérito ou investigação pelo MPF (Ministério Público Federal): um “catado” de alguns inquéritos foi pretexto para prisão ilegal, numa evidente manifestação de arbitrariedade.

O que se quis foi o espetáculo e foi o que se viu, em clara violação da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Pessoas que não se honram imaginam ser normal a desonra. Foi o que fizeram com a arbitrária prisão. Ao ser liberado por habeas corpus, os procuradores cuidaram velozmente de apresentar denúncia. E depois convocaram coletiva para divulgá-la, como haviam feito no dia da prisão, quando tiveram a desfaçatez de dizer que eu devia mesmo ser encarcerado como resultado de uma vida toda dedicada ao crime. Mais um espetáculo circense, pois o correto é falar nos autos. Mas eles querem ganhar a causa, não promover justiça. Juntam as mesmas questões em todos os inquéritos e processos num insuportável bis in idem. Em nenhum caso há materialidade justificadora deles. E agora denunciam, indevidamente, a mim e à minha filha por reforma da casa. Ela já depôs esclarecendo essa matéria. Antes era dinheiro dos portos, depois da JBS, depois da construção de Angra. Esses senhores não sabem o que fazem! Apenas sabem que é preciso, em busca do poder, obter um troféu: a minha cabeça. E é incrível a velocidade do MPF depois do insucesso da medida tentada no Rio de Janeiro.

Não vou me deter neles, pois o farei no Judiciário. O descumprimento das regras jurídicas, especialmente as atinentes aos direitos e garantias individuais, apenas servem para desorganizar a sociedade. Certamente, estes dizeres farão crescer a sanha daqueles que querem incriminar-me (veja-se a velocidade que imprimem aos casos em que mencionam o meu nome). Esta manifestação é para conhecimento dos milhares que me conhecem e me apoiam. Mais ainda, para preservar a ordem jurídica e impedir o desmonte do Estado Democrático de Direito. Ela se impõe como resistência, já que não é demais relembrar: “No primeiro dia roubaram a rosa do meu jardim e eu não disse nada...”

Michel Temer, Advogado e Professor de Direito Constitucional, foi Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 04.04.19.

A sobrecarga do STJ

Mais importante corte de Justiça do País depois do Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vive uma situação paradoxal. Com um estoque de 322,2 mil processos à espera de julgamento, seus 33 ministros têm de lidar com os complexos conflitos que afetam a economia, relativos a questões contratuais e tributárias, e com os litígios triviais da vida cotidiana dos cidadãos, como disputas entre vizinhos e pedidos de indenização por danos morais feitos por consumidores que compraram caixa de bombons com larvas.

Esse é um exemplo das dificuldades que o Judiciário vem enfrentando para se tornar uma instituição eficiente, rápida e capaz de propiciar segurança jurídica à vida econômica e social do País. Só no caso das caixas de bombons, o STJ já julgou cerca de 15 processos com pequenas variações. Em alguns, as partes discutiram se os consumidores comeram ou não os bombons, o que afetaria o cálculo da indenização moral. Em outros, debateram se esses bombons foram comidos quando as caixas estavam no prazo de validade. Houve ainda o caso do dono de um cão que comeu ração estragada, o que levou o proprietário a pleitear indenização por aumento de pressão arterial. Em matéria de cães, o STJ também já julgou o caso de dois rottweilers que mataram papagaios da residência vizinha e dois cachorros que pularam uma cerca de 1,8 metro e mataram as aves da casa ao lado.

A heterogeneidade dos processos que o STJ tem de julgar decorre do fato de que ele foi incumbido pela Constituição de lidar com os litígios relacionados à aplicação de leis federais, como, por exemplo, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Tributário Nacional. O problema é que, apesar de ser uma corte superior, a Corte não possui um filtro para barrar a entrada de recursos relativos a casos de menor relevância, que poderiam ser encerrados na segunda instância.

O problema foi agravado pelo excesso de leis federais, estimadas em 180 mil, e pela tendência de partidos e movimentos sociais de judicializar decisões da administração pública. Além disso, há a estratégia dos advogados de criar teses sobre um mesmo assunto, mas com roupagem diferente, como lembra a professora Cecília Asperti, da Fundação Getúlio Vargas. Por todos esses motivos, as inovações processuais concebidas nos últimos anos para permitir que só subissem para os tribunais superiores as questões mais relevantes acabaram não trazendo os resultados esperados. É o caso da Emenda Constitucional n.° 45, que promoveu a reforma do Judiciário e criou a súmula vinculante. Em 2016, entrou em vigor o novo Código de Processo Civil, cujas alterações, apesar de importantes, também não foram capazes de reduzir o número de recursos levados ao STJ.

Com isso, em vez de receber apenas recursos de causas que tivessem impacto social e de atuar como um “tribunal de precedentes”, uniformizando a interpretação das leis federais e formando jurisprudência uniforme, o STJ passou a agir como um “tribunal da cidadania”, convertendo-se numa terceira instância. “Precisamos mudar. Não temos de entrar numa briga de inquilino com locador se ela não tiver repercussão social, se a decisão que formos proferir não for além do interesse das partes”, diz o presidente da Corte, ministro João Otávio de Noronha.

Em 2018, o STJ recebeu 346,3 mil processos e julgou 524 mil, o que dá a dimensão de sua produtividade. Mesmo assim, como o estoque continua alto, seus ministros querem adotar o princípio da repercussão geral, nos moldes do que já ocorre no STF. Mas isso depende da aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional que tramita desde 2012 e que, depois de ter sido aprovada pela Câmara, se encontra desde dezembro de 2018 na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Enquanto ela não for aprovada, o STJ continuará sobrecarregado, perdendo tempo com processos de baixa relevância, quando deveria se concentrar em casos mais importantes para a sociedade.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.02.2019.

A harmonia entre os Poderes

Para voltar aos trilhos do desenvolvimento econômico e social, o País tem claras e imediatas necessidades Para voltar aos trilhos do desenvolvimento econômico e social, o País tem claras e imediatas necessidades. É preciso realizar reformas estruturantes, a começar pela reforma da Previdência. É preciso restabelecer um ambiente de normalidade e estabilidade jurídico-institucional. Há ainda um longo caminho no combate à criminalidade e à impunidade, mas nem tudo é corrupção ou podridão, e tratar o cenário nacional como terra devastada, além de injusto, significa pôr a perder muitas coisas boas construídas ao longo do tempo. É preciso também amenizar a polarização político-ideológica. Compreensível numa campanha eleitoral, o clima de conflito, se estendido ao longo do tempo, esgarça as relações sociais e gera danos em todas as esferas da vida nacional.

Se as atuais necessidades do País são evidentes, está claro também que os Três Poderes têm sido incapazes – ao menos, até o momento – de atender a contento a essas demandas. Na semana passada, houve um almoço em Brasília que reuniu a cúpula dos Três Poderes a respeito dos possíveis caminhos para, diminuindo as tensões entre Executivo, Judiciário e Legislativo, torná-los mais funcionais. É preciso, por exemplo, trabalhar coordenadamente para que a reforma da Previdência, prioridade nacional, seja de fato aprovada pelo Congresso.

“Há um intuito de todos de construir uma nova agenda e de aprovar a reforma da Previdência. Este encontro é um sinal importante, estamos construindo um pacto para governar o Brasil”, afirmou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, anfitrião do almoço.

Nessa trajetória de união e cooperação entre os Poderes é indispensável que o Executivo cumpra o seu papel. Desde a posse, tem causado perplexidade o fato de o presidente Jair Bolsonaro, em vez de buscar a união nacional, continuar alimentando polêmicas e fissuras, num clima de guerrilha eleitoral. No dia anterior ao almoço, por exemplo, o presidente da República compartilhou em sua conta no Twitter vídeo em que seu filho Carlos criticava a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da competência da Justiça Eleitoral. Não é disso que o País precisa.

Nesse reequilíbrio institucional em busca de maior funcionalidade, é também evidente a necessidade de o Ministério Público (MP) adequar-se às suas competências institucionais, sem que alguns de seus membros invadam outras searas ou agravem desnecessariamente as tensões.

A Suprema Corte tem sido alvo de ataques, nas redes sociais, de grupos que desmerecem, desautorizam e ridicularizam todos aqueles que ousam ter opiniões divergentes das suas. É surpreendente, no entanto, que alguns desses ataques venham de membros do MP, cuja função é defender a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito.

Para diminuir as tensões, é preciso também uma atitude de cooperação e de menos protagonismo dos ministros do STF. Não poucas vezes, são os próprios integrantes da Corte que alimentam divisões, promovem embates e, mais grave, ferem o caráter colegiado do Supremo. É urgente a promoção de uma nova cultura no STF, mais disposta a aceitar a posição majoritária, a conferir estabilidade à jurisprudência ao longo do tempo, a restringir as decisões monocráticas para os casos imprescindíveis, a defender e a aplicar a Constituição e as leis, sem imiscuir-se com tanta frequência em trajetórias alternativas.

O Congresso tem também papel especial na busca da funcionalidade institucional. É ele quem deve processar com diligência as reformas de que tanto o País precisa. A renovação ocorrida nas eleições passadas deve servir para banir velhos costumes que são absolutamente deletérios para o interesse nacional. No entanto, tanto os antigos parlamentares como os novos não podem se furtar de fazer política, na melhor acepção da palavra. A decisiva contribuição do Congresso para o País decorre precisamente dessa busca por encontrar os consensos e propostas possíveis para os problemas nacionais. Não é no grito, na intolerância e, muito menos, na violência, física ou verbal, que o Legislativo cumprirá o seu papel.

É essencial o diálogo entre Executivo, Judiciário e Legislativo. Mas o principal fruto que se espera desse diálogo é que cada um dos Poderes cumpra seu dever. Essa é a harmonia institucional de que o País precisa.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.03.19.

Tempo perdido em Alcântara

A conclusão do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre Brasil e Estados Unidos, que permite o uso comercial da base de Alcântara, no Maranhão, mostra como uma falsa polêmica pode gerar prejuízos ao interesse nacional. Em 2001, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, um acordo semelhante foi assinado, mas a oposição vendeu o discurso de que os termos do tratado feriam a soberania nacional e, no ano seguinte, o Congresso acabou por rejeitá-lo.

Desde então, o Brasil tentou reabrir as negociações com os Estados Unidos, mas as rodadas de conversa sobre o tema intensificaram-se em maio do ano passado. Agora, quase 20 anos depois, os dois países chegaram a um consenso sobre a nova redação do acordo. A previsão é de que seja assinado pelos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump em Washington, no próximo dia 19 de março. Como se vê, trata-se de mais um tema que ficou atravancado durante os governos petistas e que o governo de Michel Temer conseguiu com êxito destravar.

O AST refere-se à proteção de conteúdo com tecnologia americana usado no lançamento de foguetes e mísseis a partir da base de Alcântara. Tendo em vista que 80% do mercado espacial usa tecnologia americana, o uso da base brasileira, sem o acordo, estava muito limitado. O texto inclui também o compromisso de não proliferação de tecnologias de uso dual - aquelas que podem ser usadas tanto para fins civis como militares.

Ao ampliar o uso da base de Alcântara e promover investimentos no setor, o AST possibilita uma série de parcerias empresariais e insere o País no âmbito da cooperação espacial. “Essa negociação encerra quase 20 anos em que estamos tentando lançar da base de Alcântara mísseis de maior capacidade, de maior porte e que podem ser utilizados no uso comercial, sobretudo de lançamento de satélite”, afirmou Sérgio Amaral, embaixador do Brasil nos EUA, ao Estado.

O AST deixa claro que não haverá segregação de uma área da base de Alcântara em favor dos Estados Unidos, como se o Brasil estivesse cedendo soberania sobre o território nacional. A previsão é de restrição de acesso. “Teremos em Alcântara um espaço para proteção de tecnologia americana, mas continua sendo espaço de jurisdição brasileira. Não é cessão de território para ninguém, é um espaço que foi transformado em área de acesso restrito”, explicou Sérgio Amaral.

O acordo prevê que a área ficará restrita a pessoas credenciadas pelos dois governos ou sob consulta pelo governo americano ao brasileiro. A nova redação também limitou o escopo do tratado. Antes, a proteção recaía sobre toda a tecnologia utilizada. Agora, ela está restrita a mísseis, foguetes, artefatos e satélites que utilizem tecnologia americana.

Cada vez mais, o aproveitamento do potencial de um país em muitas áreas exige estabelecer acordos e parcerias com outras nações. O desenvolvimento tecnológico envolve integração internacional. Por sua localização geográfica, a base de Alcântara possibilita, por exemplo, uma economia de até 30% de combustível no lançamento de satélites. Essa vantagem competitiva era desperdiçada, no entanto, pela ausência de acordo, e o tema ficou parado por quase 20 anos também por limitações ideológicas do PT. Afinal, era o mesmo partido que fez oposição ao acordo durante o governo FHC.

Um país fechado, encerrado numa ideia equivocada de soberania, desperdiça muitas oportunidades. É fundamental que questões ideológicas não limitem a atuação internacional do País. Seja para exportar, seja para realizar parcerias em projetos de vanguarda tecnológica e em tantas outras possíveis áreas de cooperação, não faz sentido que o Brasil restrinja opções por suposta falta de sintonia ideológica. Esse modo de atuar - tão presente nos anos petistas e que, agora, com sinal trocado, se vê em algumas manifestações do governo Bolsonaro - causa enorme prejuízo para o País. O critério a reger os acordos internacionais deve ser sempre o interesse nacional, não as limitações ideológicas de quem está no poder.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 16.03.19

Vamos salvar a previdência

Por Nizan Guanaes

Um cara entrou no elevador outro dia e me disse: “Bom dia”. Eu respondi: “Se aprovarmos a Previdência, será um bom dia”.

Peguei um táxi no aeroporto, e o motorista me perguntou: “Para onde vamos?”. Eu respondi: “Se não aprovarmos a Previdência, vamos para o brejo”.

Enfim, nos próximos meses, no elevador, no táxi, no artigo da Folha, na reunião de condomínio, no bar com os amigos, eu, você e qualquer pessoa de direita, centro e esquerda, mas com juízo, deve lutar para aprovar a reforma da Previdência.

O governo já enviou sua proposta ao Congresso Nacional, e agora cabe o debate democrático em torno dela. Só não cabe mais, no meu entender, aquele papo de dizer que é a favor da reforma, mas não desta, e aí acabamos sem reforma alguma.

Não há mais tempo para isso.

A reforma é decisiva para a economia decolar. Já se calcula que US$ 100 bilhões estão para serem investidos no Brasil, mas esperam a aprovação das mudanças. Ninguém quer investir num país que pode quebrar mais à frente.

O Estado brasileiro está sufocado por déficits monstruosos. Os governos de turno não conseguem investir onde deveriam, como saúde, educação, segurança pública, saneamento básico, habitação...

Os dados não são novos e são bem conhecidos. Todo o mundo que chega ao governo é a favor da reforma, mas, quando está na oposição, fica tentado a fazer proselitismo com o eleitorado, brincando com fogo.

Eu inclusive acho errado o tema ser reforma da Previdência. O professor Lavareda disse algo que nunca esqueci —não se trata de reformar a Previdência, mas de salvar a Previdência.

Sem salvar a Previdência, não vamos conseguir pagar aos aposentados. Estados liderados por governadores de todos os partidos sabem disso. Estão quebrados ou a caminho de quebrar e não conseguirão custear obrigações básicas se seguirmos desse jeito.

Não é uma medida fria, liberal. É uma medida humana, difícil às vezes de entender, embora as pesquisas mostrem que a população cada vez mais entende a reforma.

Os empresários, em vez de comodamente jogarem a reforma no colo e na conta do governo e do Congresso, precisam ajudar a mobilizar o país para a importância desta hora.

Os veículos de comunicação, da forma crítica que lhes é habitual e fundamental, têm o papel de mostrar a realidade e o perigo dos números. Não é questão de ideologia, mas de matemática. A conta não fecha.

Sem salvar a Previdência, quem trabalhou duro não vai ter proventos. E os jovens terão um futuro pior.

Não cabe a nós, formadores de opinião, líderes empresariais, influenciadores, ficarmos em cima do muro.

O celular é o microfone que a tecnologia deu a todos. Temos nos nossos grupos de WhatsApp a oportunidade de propagar essa mobilização.

Tenho amigos e parentes que são contra a reforma. Respeito todos eles, e que também façam a campanha pelo que acreditam. Mas os que concordam comigo precisam se mobilizar e ajudar a aprovação no Congresso.

Não é questão de apoiar ou não este governo. Só maluco torce para que o avião em que se está viajando caia. E o Brasil sem a reforma não vai voar.

É aritmética, não é ideologia. As pessoas vivem cada vez mais no mundo todo, e a conta atual não fecha.

Com todo o respeito às pessoas que pensam diferente de mim, eu convido aqueles que pensam como eu a repetirmos juntos esse mantra: Previdência, Previdência, Previdência.

Vamos salvar a Previdência.

Nizan Guanaes é Publicitário, fundador do Grupo ABC. Este artigo artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição de 26.02.19.

O pacote do ministro Moro

Com notáveis avanços em relação às Dez Medidas Anticorrupção, apresentadas em 2016 por membro do Ministério Público Federal, o Projeto de Lei Anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, pode contribuir para consolidar alguns importantes progressos no combate ao crime e à impunidade. Há pontos que merecem maior atenção, mas o conjunto de propostas do ministro Moro pode ser um bom início de diálogo com o Congresso a respeito de possíveis melhorias na legislação penal.

O projeto de Moro consolida a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o início do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância, trazendo, assim, maior segurança jurídica a tema de especial relevância.

O ministro Moro propõe o endurecimento do cumprimento das penas – por exemplo, que seja fechado o regime inicial da pena para condenado reincidente – e a criminalização do caixa dois. Sobre este ponto, é importante que o novo crime venha acompanhado de rigor probatório. Nos últimos anos, tornou-se praxe o uso amplo do conceito de propina, o que dá, na seara penal, especial margem a abusos.

O projeto prevê também endurecer penas relativas aos crimes com arma de fogo, por exemplo, o porte ilegal de arma, bem como do crime de resistência quando “resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro”, com pena de reclusão de 6 a 30 anos.

Há medidas relativas ao combate das facções criminosas. Amplia-se, por exemplo, a definição de organização criminosa, incluindo grupos que “se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica”.

A respeito das prescrições, o projeto de Moro é mais equilibrado que o pacote das Dez Medidas Anticorrupção. Não procura invalidar o instituto da prescrição, especialmente importante para coibir abusos de um sistema judicial cujos processos, não raro, duram mais de década. O texto estabelece que a prescrição não corre na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores.

A previsão de redução de pena de policiais que causarem morte durante sua atividade é controversa, já que incorpora elementos imprecisos na definição dos casos de excesso na atuação policial. A proposta permite ao juiz reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O policial é um profissional que recebeu o devido treinamento e foi avaliado como apto para exercer essa atividade. A rigor, não cabe falar em “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” para um policial em serviço. Se ele reage assim às circunstâncias de sua profissão, é certo que lhe faltam condições para exercê-la. O policial, em hipótese alguma, pode ter carta branca para cometer crimes contra a pessoa.

O Congresso também deve ter cuidado com as medidas relativas ao perdimento de produto do crime. A redação é ampla, propiciando uma discricionariedade que faz inverter o ônus da prova. Não é boa regra presumir ilícito. Também cuidado deve-se ter com a proposta de permissão do uso de bens apreendidos pelos órgãos de segurança pública – os direitos da vítima parecem relegados a segundo plano. A identificação obrigatória do perfil genético dos condenados por crimes dolosos é outro ponto polêmico.

A previsão do acordo de não persecução penal para investigados que confessarem o crime pode ajudar a desafogar o sistema judicial, mas não é panaceia geral. As soluções negociadas estão reservadas para crimes com pena inferior a quatro anos. E a novidade tem riscos, dando ocasião a pressões indevidas sobre investigados.

Há boas medidas no projeto anticrime do ministro Moro, mas é uma ilusão achar que a aprovação de novas leis causará por si só uma diminuição da criminalidade. Se fosse assim, fácil seria resolver o problema da segurança pública. Bastava que o Congresso produzisse de tempos em tempos novidades legislativas em matéria penal. O combate ao crime exige uma atuação coordenada do Estado, com polícias treinadas, Judiciário diligente e absoluto respeito aos direitos e garantias de todos os cidadãos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 07.02.19.

Ineficiência e corrupção

“Máquina de ineficiência e corrupção” foi como o secretário de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia, Salim Mattar, se referiu à estatal Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Correios), cuja privatização defendeu com veemência.

A expressão poderia ser aplicada a outras empresas ainda controladas pelo poder público federal e que, a depender do governo do presidente Jair Bolsonaro - e do secretário de Desestatização, em particular -, com raríssimas exceções, terão seu controle transferido para o setor privado.

Exemplos recentes, como os crimes investigados pela Operação Lava Jato no relacionamento de dirigentes dessas empresas e outros agentes públicos com representantes do setor privado, não deixam dúvida sobre o péssimo uso que governantes fizeram das estatais em benefício próprio ou de seus apadrinhados.

Só isso bastaria para justificar a necessidade de limpar o governo, em todos os níveis, dessa fonte de desvio de recursos públicos para o enriquecimento de um grupo de criminosos. Mas há outras razões para a privatização de empresas estatais, talvez tão fortes do ponto administrativo e financeiro quanto o combate à corrupção.

Livrar o setor público de empresas estatais que cresceram demais, sobretudo em termos de pessoal e de campo de atuação, é retirar dos contribuintes a obrigação de manter estruturas pesadas e caras.

Para o governo, a privatização representa grande alívio financeiro, pois a maioria das estatais é deficitária. Isso assegura mais recursos para áreas essenciais, como educação, saúde e segurança, e dá maior eficiência à atuação do poder público.

O Brasil se perdeu com o número de estatais que foram sendo criadas ao longo dos últimos anos, observou o secretário de Desestatização, para observar que o País precisa fazer um mea culpa, porque todos foram coniventes com a política estatista que durou décadas - e foi reforçada na gestão lulopetista.

Desde a década de 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso, o número de estatais vinha sendo reduzido por meio de programas de privatização. Mas, na era lulopetista, como lembrou Mattar, foram criadas 48 estatais. No governo de Michel Temer, 20 empresas foram privatizadas.

O quadro ainda mostra forte presença do Estado na economia. Continuam em operação 134 empresas estatais federais, que empregam cerca de 500 mil funcionários.

Dessas, 18 são chamadas de “estatais dependentes”, pois não geram recursos próprios suficientes para sustentar suas atividades - e por isso dependem do Tesouro -, e custam R$ 15 bilhões por ano ao governo. Atuam em áreas que, em geral, o governo não deveria ter participação.

Mattar lembrou, durante evento organizado por uma instituição financeira em São Paulo, que não há explicação para o fato de o governo ter participação na fabricação de chips de orelha de gado, em empresas de tecnologia, de refino de petróleo ou de seguro e na atividade de correio.

“O governo não pode continuar sendo empresário, mas precisa cuidar de coisas que fazem sentido para a população, como saúde e educação”, disse, para completar: “Queremos o povo rico e o Estado mais enxuto”.

A venda de todas as estatais poderia reduzir a dívida pública federal em cerca de R$ 3 trilhões, estima o secretário de Desestatização. Com realismo, porém, ele considera que uma de suas tarefas é convencer os Ministérios aos quais estão vinculadas as estatais da necessidade de vendê-las, em nome da redução da estrutura do Estado, do reconhecimento do papel da iniciativa privada e da busca de maior eficiência do setor público e da economia brasileira em geral.

Mattar disse que Petrobrás, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil devem ser as únicas a permanecer como estatais - mas “bem magrinhas” - e citou a Eletrobrás entre as primeiras a serem privatizadas, o que provocou boa reação dos aplicadores em ações.

Ele também observou que o BNDESPar, braço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para participação no capital de empresas privadas, precisa ser liquidado com rapidez, por meio de venda das ações que possui.

Segundo Mattar, os ativos do BNDESPar somam R$ 110 bilhões. Eles incluem, por exemplo, ações da JBS, a empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 30.01.19

O que falta para salvar a Pátria

Por Fernão Lara Mesquita

Não há quem no serviço público brasileiro não tenha sido tocado ao menos pela corrupção institucionalizada, aquela que oficialmente não é tida como o que é porque a lei é o seu instrumento de ação. Nem mesmo os militares passaram incólumes por essas três décadas de elevação da cultura do privilégio à força em torno da qual tudo o mais gravita no País oficial desde a Constituição de 88. Mas se havia qualquer dúvida sobre o valor da reserva moral que lhes restou, ela acabou com os fatos que se seguiram ao primeiro embate de 2019 entre Brasília e o Brasil.

Como acontece sempre na formação de qualquer governo, a “área econômica” é a única que chega ao dia da posse com todas as suas referências fincadas exclusivamente no País real. Brasília, de onde, com as regras eleitorais vigentes, obrigatoriamente sai o núcleo dos grupos que se substituem no poder, não sente o Brasil. Lá os salários sobem e as carreiras progridem por decurso de prazo tão certo quanto que o sol nascerá amanhã. Nunca aconteceu com seus familiares, nunca aconteceu com seus amigos, nunca aconteceu com seus colegas de trabalho, nunca aconteceu com eles próprios: a figura do “andar para trás” simplesmente não existe no modelo cognitivo do típico cortesão de Brasília nem como exercício abstrato de antecipação de uma possibilidade, simplesmente porque essa possibilidade não existe.

Não é de surpreender, portanto, que para todos quantos a cada nova conta a ser paga corresponde um novo “auxílio” arrancado ao favelão nacional o “modelo de capitalização” na Previdência – que em português plebeu quer dizer pagar por aquilo que se vai consumir – pareça uma inominável maldade. Essa relação, para eles, nunca foi obrigatória.

Mas agora a realidade está aí nua e crua. Financiar os 30-40 anos de ócio que o brasiliense aposentado típico vem colhendo sem nunca ter plantado custou ao Brasil passar da economia que mais crescia para a economia que mais decresce no mundo hoje, mas Brasília nem percebeu. Brasília “cresce” sempre, chova ou faça sol, por “pétrea” determinação constitucional. E, na dúvida, lá vem o cala-boca: “A Constituição não se discute, a Constituição cumpre-se”.

Só que não.

Agora, à beira do precipício, até Brasília já sente a vertigem. O inchaço do funcionalismo nos 13 anos de PT transbordando em progressão geométrica para as aposentadorias na flor da idade que congelam os salários públicos no tope de cada carreira por quase meio século mergulhou essa previdência sem poupança num processo de metástase. Com quase 40% do PIB entrando, já não sobra sequer para pagar aos aposentados mais os seus substitutos com o salário de entrada. E como quando falta dinheiro para pagar a funcionário no Brasil é porque já faltou antes para tudo o mais – hospitais, escolas, segurança pública, infraestrutura –, não há mais como não agir.

Velhos hábitos demoram para morrer, mas os embates da primeira semana de governo deram indicações animadoras da força da humildade de Jair Bolsonaro. Ele vacilou quando se calou diante do sindicalista Lewandowski infiltrado no STF. Ele vacilou quando recusou vetar o aumento dos incentivos para a Sudam e a Sudene. Ele tem vacilado diante dos “quiéquiéisso companheiro” dos amigos da vida inteira das corporações militar e política, de que faz parte. Ele vacilou, até, diante do “fogo amigo” contra Paulo Guedes. Mas Paulo Guedes é um homem de contas. A transição e os primeiros dias de governo têm sido uma avalanche de números. E com números não se discute. Assim que Guedes se decidiu a dar o limite dos “bailes” que estava disposto a levar de Brasília parece ter caído a ficha e o presidente teve a nobreza de rever sua posição. Realinhou o governo inteiro à Prioridade Zero de deter a hemorragia previdenciária e o Brasil entrou em festa para deixar bem clara a fundamental importância que essa atitude teve.

Brasília pode reagir a Onix Lorenzoni, mas o Brasil reage a Paulo Guedes. E se confundir essas prioridades o governo comete suicídio e nos leva junto. Não haverá segunda chance. Não há tempo. Privatizações e descomplicações liberalizantes da vida produtiva poderão acelerar o processo. Mas o que dirá se haverá ou não processo a ser acelerado é o desenho da reforma da Previdência. E o lucro ou o prejuízo serão colhidos inteiros a partir do momento em que esse desenho for conhecido.

Tudo isso parece ter-se tornado subitamente claro para o governo. Tocados nos brios, os militares, que estão longe de desfrutar os maiores entre os privilégios do Brasil com privilégios, embora vivam no que para o País real não entra nem em sonho, declaram-se dispostos a puxar a fila dos sacrifícios para dar o exemplo. É um gesto inédito na História do Brasil e absolutamente decisivo. Se confirmado, cala para todo o sempre a boca dos detratores da instituição. Já o campo do Legislativo reflete, para bem e para mal, a diversidade do País. Mas quando chamado ao sacrifício com o devido empenho, no governo Temer, prontificou-se a responder majoritariamente a favor do Brasil. Foi detido pelo golpe Janot-Joesley que abortou a votação decisiva na véspera de acontecer. Desde então, sentindo espaço, suas piores figuras voltaram a dominar a cena. Mas um novo Congresso vem aí e, no extremo, Poder eleito que é, ele sempre faz o que o Brasil diz que quer que ele faça.

Falta, agora, o movimento da inefável Versailles da privilegiatura que tem sido o Poder Judiciário. Não haverá avanço na segurança pública se não houver avanço na economia. E não haverá avanço na economia se não houver avanço na Previdência. Sem ambos, não haverá pacote de leis nem articulação de forças de repressão capaz de deter a quase guerra civil contra o crime organizado que vivemos. Mas se o ministro Sergio Moro e seus fiéis escudeiros do Ministério Público, seguindo o exemplo dos militares, liderassem o movimento de devolução de privilégios que suas corporações há muito devem ao Brasil, a pátria com toda a certeza estaria salva.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 15.01.19

Quando a impunidade mata

O Brasil parece incapaz de punir quem age de maneira irresponsável e coloca em risco a vida de terceiros. Se o fizesse, conforme mandam a lei e os imperativos morais, quase com certeza tragédias como a ocorrida em Brumadinho (MG) não ocorreriam.

Em meio à comoção geral que esses terríveis eventos suscitam, autoridades se apressam a prometer rigor na investigação dos fatos, na identificação dos culpados e na edição de medidas para impedir que os desastres se repitam. As empresas envolvidas pedem desculpas e se comprometem a renovar seus protocolos de segurança, e o Ministério Público promete caçada implacável aos criminosos. O País já viu esse filme incontáveis vezes, sempre com o resultado da impunidade geral.

Espera-se que, ante as centenas de vítimas soterradas sob 12 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de mineração, nesse desastre de proporções inéditas que cobriu o País de vergonha e indignação, os responsáveis sejam devidamente castigados, à altura do crime cometido. Pois é de crime que se trata.

Mas o fato é que, passados alguns dias da ruptura da barragem da mineradora Vale, tudo se repete como nas tragédias anteriores. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, pediu “desculpas a todos os atingidos, à sociedade brasileira”, embora considere o desastre “indesculpável”. Em seguida, porém, assegurou que a Vale, “uma empresa muito séria”, “fez um esforço imenso” e tomou “uma lista infindável de ações” para “deixar nossas barragens na melhor condição possível” – tudo isso, disse o executivo, “especialmente depois de Mariana”.

A cidade mineira de Mariana virou sinônimo de tragédia ambiental em novembro de 2015, quando houve ali a ruptura de uma barragem de rejeitos de mineração, soterrando sob 43 milhões de metros cúbicos de lama vários distritos da região, matando 19 pessoas e causando o que até agora era considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil. A barragem era de responsabilidade da mineradora Samarco, controlada por uma joint venture entre a Vale e a mineradora anglo-australiana BHP Billiton. Na ocasião, a direção da Samarco também garantiu ter cumprido todas as exigências de segurança para prevenir acidentes como aquele.

Ou as empresas envolvidas nessas tragédias faltam com a verdade quando dizem ter seguido todos os procedimentos de segurança, ou esses procedimentos são evidentemente insuficientes. Tanto em Mariana como em Brumadinho, as barragens eram consideradas de “baixo risco” de acidente pelas autoridades responsáveis pela fiscalização. Não é preciso ser especialista para concluir que há algo de errado nessas avaliações, até porque, nos dois casos, não houve acidente natural. O que houve foi a escolha deliberada de tipos de barragem de baixo custo e alto risco, acrescida de fiscalização e controle no mínimo desidiosos.

Depois do que aconteceu em Mariana, esperava-se que a comoção nacional gerasse ações concretas para impedir sua repetição. Na ocasião, constatada a insuficiência da fiscalização, foram feitas promessas de maior rigor na manutenção das barragens e garantiu-se que haveria reparação para as famílias atingidas. Três anos depois, a fiscalização continua insuficiente, poucas famílias receberam indenização e nenhum executivo ou autoridade respondeu por seus atos ou omissões.

O governo montou um “gabinete de crise” para acompanhar os desdobramentos do desastre de Brumadinho, mas a maior crise a ser administrada é moral, e isso “gabinete de crise” nenhum será capaz de fazer.

A tragédia de Mariana, os deslizamentos de terra que mataram centenas de pessoas em morros do Rio de Janeiro, o incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas há cinco anos, e outras catástrofes que revoltaram os brasileiros nos últimos tempos têm algo em comum entre elas, além do grande número de vítimas: em nenhum dos casos, os responsáveis foram punidos. E a sequência dos casos sinistros é a evidência de que “fiscalização”, para o poder público, é um amontoado de letras sem qualquer significado.

Agora, no caso de Brumadinho, urge que o Estado aja com firmeza para que os culpados realmente paguem pelo que fizeram – dos empresários que, além de arriscar seus capitais, colocaram vidas em perigo, até os funcionários públicos, que se omitiram criminosamente. Aí está a chave para evitar que tais desastres se repitam.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 29.01.19.

A tragédia do ensino médio

Recente estudo sobre a evolução do acesso ao sistema de ensino e sobre sua qualidade, promovido pelo movimento Todos pela Educação, uma entidade sem fins lucrativos integrada por pedagogos, gestores escolares e representantes da iniciativa privada, mostra como a crise educacional do País vem sacrificando o futuro das novas gerações.

Em 2018, segundo a pesquisa, quase 4 em cada 10 jovens na faixa etária de 19 anos não concluíram o ensino médio na idade considerada para esse ciclo educacional. E, do total de brasileiros nessa faixa etária, 62% já estão fora da escola e 55% pararam de estudar ainda no ensino fundamental. O estudo foi promovido com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Todos pela Educação definiu uma lista de cinco metas para o crescimento e modernização da educação brasileira até 2022 e, na pesquisa de 2018, constatou que o País continua longe de alcançá-las.

Uma das metas era fazer com que o Brasil tivesse, até o ano passado, mais de 90% dos jovens de 19 anos com o ensino médio completo. Em 2018, só 63,5% atingiram esse objetivo. E, como a qualidade desse ciclo educacional é ruim, entre os alunos que conseguem concluí-lo muitos apresentam conhecimento insuficiente em leitura, ciências e matemática, enfrentando problemas para ler palavras com mais de uma sílaba, identificar o assunto de um texto, reconhecer figuras geométricas e contar objetos. Na Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2017, o ensino médio alcançou o nível 2 de proficiência, numa escala de 0 a 9 – quanto mais baixo é o número, pior é a avaliação.

Com excesso de matérias, currículo desconectado da realidade socioeconômica e conteúdos ultrapassados, o ensino médio é considerado o mais problemático de todos os ciclos do sistema educacional. E é justamente por isso que ele se destaca por altas taxas de abandono e de reprovação.

“Falta muito para avançarmos e há um desafio para a educação básica como um todo. Muitos jovens estão fora da escola ou não se formam por causa da qualidade do ensino. Se o aluno avança de etapa sem uma base sólida e chega ao ensino médio com déficit, ele é quase induzido a sair do sistema de ensino”, afirma o diretor de políticas educacionais do Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho.

O desinteresse dos estudantes pode ser visto já na primeira das três séries do ensino médio, onde 23% dos alunos abandonam as salas de aula. E é justamente por isso que a taxa de crescimento de concluintes das três séries não tem a velocidade necessária para atingir a meta prevista para 2022, lembram os técnicos do Todos pela Educação.

Entre 2012 e 2018, o número de concluintes na faixa etária de 19 anos cresceu apenas 1,9% por ano, em média, quando seria necessário que aumentasse 7,2% anualmente, para que a meta pudesse ser atingida. “O crescimento é muito lento. Ainda estamos muito distantes para dizer que o País está a caminho da universalização do ensino básico”, diz o gerente de políticas educacionais da entidade, Gabriel Corrêa.

Na realidade, os problemas estruturais do ensino médio são antigos e a saída é conhecida. Em vez de concessões a modismos pedagógicos e políticas demagógicas, é preciso reduzir o número de matérias, rever os currículos e tornar os gastos no setor mais produtivos, mediante programas de aprimoramento da formação de professores, por exemplo. E tudo isso exige maior articulação entre o governo federal e as áreas educacionais dos Estados e municípios.

Sem fortalecer o ensino de disciplinas essenciais e sem motivar os alunos do ensino médio a concluir esse ciclo educacional, o Brasil continuará incapaz de formar mão de obra tão produtiva quanto a de outras economias emergentes. Não conseguirá formar o capital humano de que necessita para voltar a crescer de modo sustentado. E perpetuará as condições do atraso, da desigualdade e da pobreza, impedindo que as novas gerações se emancipem intelectual, social e economicamente.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.01.19

A alma militar do político

Por Gaudêncio Torquato

Jair Bolsonaro, em sua peroração inicial como mandatário-mor da Nação, fez questão de exibir o manto verde-amarelo que expressa a estética de sua identidade desde os tempos em que adentrou o território da política. Ao puxar a bandeira brasileira do bolso e acenar com ela para a multidão, no discurso de posse no Parlatório do Palácio do Planalto, o presidente procurou enaltecer compromissos que permearam sua campanha: o verde-amarelismo abriga coisas como o ânimo cívico, o nacionalismo, a soberania nacional, o combate à ideologia de esquerda. O fecho de suas mensagens aponta a linha divisória que separa seu eleitorado de contingentes abarcados pelo lulopetismo e entorno: “essa bandeira jamais será vermelha”.

A expressão soma mais força em função da origem militar de Bolsonaro. Mais que outros segmentos, os militares encarnam de maneira intensa a simbologia nacionalista. De pronto, a primeira fala do presidente definiu o Brasil, sob seu mando, como enclave poderoso no sul do continente a lutar contra o ideário da foice e o martelo (o comunismo) e, por tabela o socialismo, mesmo sabendo que as cores deste foram suavizadas em nossos tempos com a incorporação de elementos do liberalismo, como a livre iniciativa, formando a social-democracia, como pode se ver na Europa.

Ocorre que a vertente esquerdista tem se enfraquecido nos países social-democratas, casos de Alemanha, Itália, Espanha, Hungria, Polônia e até Suécia, onde entes mais à esquerda têm amargado derrotas. O fato é que a crise da democracia representativa tem fragilizado seus vetores, implicando arrefecimento ideológico, declínio de partidos, desânimo das bases, fragmentação das oposições. Em contraposição, novos polos de poder se multiplicam – particularmente os núcleos formados no âmbito da sociedade organizada – sob os fenômenos que hoje agitam a política: a globalização, a imigração e o nacionalismo.

A globalização rompeu as fronteiras nacionais, instalando interdependência entre as Nações. A livre circulação de ideias e a troca de mercadorias contribuem para a formação de uma homogeneidade sócio-cultural, arrefecendo valores próprios dos territórios e certo prejuízo para os conceitos de soberania, independência, autonomia. A explosão demográfica, por outro lado, e as carências das margens sociais, a par dos conflitos armados em algumas regiões (as guerras modernas), aceleraram processos migratórios. Na Europa, emerge o temor de que as correntes de imigração não apenas contribuam para a perda de emprego da população nativa, como resultem mais adiante em impactos culturais de monta, descaracterizando signos e símbolos das Nações.

Nos Estados Unidos, esses fenômenos têm sido tratados de maneira dura por Donald Trump, com sua insistência para construir um muro na fronteira com o México. O cabeludo presidente desfralda a bandeira do nacionalismo sob o discurso de proteger empregos e melhorar as condições de vida de populações ameaçadas pelo fluxo migratório. Daí o posicionamento do governo americano ante a globalização, os compromissos das Nações com o Acordo de Paris sobre Mudança Climática e o Pacto Mundial sobre Migração, sob a égide da ONU; a situação de países como Venezuela, Cuba e Nicarágua e a política de defesa de direitos transgêneros. Os EUA marcam posição nessas frentes.

Nessa encruzilhada, Bolsonaro e Trump marcam um encontro. O pano de fundo da articulação mostra a integração de esforços para combater ideologias de esquerda, fortalecer vínculos com entes comprometidos com um ideário conservador, dar impulso ao liberalismo. No Brasil, o foco será a privatização. Deixar o Estado com o tamanho adequado para cumprir suas tarefas. E manter o cobertor social do tamanho que os recursos permitam. Nem lá nem cá. Mais: sem apoio a núcleos que batalham por direitos. (A indicação de Bolsonaro de que devemos combater o “politicamente correto” não seria, por exemplo, o arrefecimento a ideologia de gêneros?).

Em suma, com o resguardo militar, um programa arrojado de alavancagem da economia, ações na área do campo, forte combate à corrupção, disposição de cortar as fontes que alimentam a bandidagem, desfralde dos valores da família, sob as bênçãos de Deus, o novo governo quer “consertar” as coisas erradas. P.S. Com direito da população de acompanhar tudo isso pela linguagem de Libras. Com a simpática Michelle, ao lado do marido, abrindo seu cativante sorriso.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Mais análises no blog www.observatoriopolitico.org

Confusão

Chacrinha, o velho guerreiro, pode ser um modelo para qualquer presidente da República, principalmente por sua competência, por sua imaginação e por seu empenho, nunca pelo mais notável de seus bordões: “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir”. O presidente Jair Bolsonaro nunca deveria esquecer essa restrição. Se um governante é levado a sério, suas palavras têm peso e produzem consequências. Até seus gestos, expressões faciais e poses podem ser interpretados e convertidos em mensagens, voluntárias ou involuntárias. Pode alguém surpreender-se quando seus comentários sobre a reforma da Previdência, inesperados e mal explicados, geram confusão, dúvidas e inquietação no mercado financeiro, como ocorreu na manhã de sexta-feira? Modéstia pode ser uma virtude, mas qualquer figura de grande responsabilidade, especialmente num alto posto da República, tem de reconhecer o valor das próprias palavras.

A confusão começou quando o presidente, numa entrevista ao SBT, defendeu idade mínima de 62 anos para homens e de 57 para mulheres como uma das condições para aposentadoria. No projeto em exame no Congresso as idades são 65 e 62, com longos períodos de transição. O governo, imaginava-se até aquele momento, aproveitaria o texto já em tramitação, com poucas alterações, para ganhar tempo. Não se esperavam novidades importantes no fim de semana. A proposta oficial seria conhecida em alguns dias, quando fosse encaminhada à Presidência pela equipe econômica.

A entrevista ao canal de TV foi na quinta-feira à noite. Na manhã seguinte as palavras do presidente foram o grande assunto das primeiras páginas dos jornais mais importantes e de todos os noticiários de rádio e televisão. Horas antes da abertura do mercado já se especulava sobre como reagiriam os investidores. Como o presidente havia falado sem esclarecer os detalhes, abriu-se espaço para comentários sombrios. Alguns exemplos:

1) a fala presidencial mostra descompasso com a equipe econômica. Qual será a influência real de um ministro da Economia assim desprestigiado?

2) o presidente resolveu propor mudanças mais brandas que as previstas no projeto em exame no Congresso (Essa interpretação foi reforçada por uma explicação apresentada por aliados: a ambição foi reduzida como estratégia, porque o ótimo é inimigo do bom);

3) um dos efeitos dessa atitude será a redução do poder de barganha do Executivo. Os negociadores entrarão em campo já em desvantagem;

4) o presidente está pouco interessado na reforma da Previdência, aceita resultados pobres e quer livrar-se rapidamente do assunto.

Todos esses comentários foram lidos ou ouvidos na manhã de sexta-feira. A interpretação menos sombria, e aparentemente mais tranquila, surgiu num breve comentário do presidente da Câmara, Rodrigo Maia: se essa proposta de idade mínima for para valer, só terá sentido se for sem período de transição.

Palavras do presidente Bolsonaro sobre os efeitos da reforma já em seu governo pareceram dar fundamento a essa interpretação. Ele voltou a falar sobre o assunto ontem, reiterando a proposta das idades mínimas de 62 e 57 anos, mas de novo sem esclarecer como o esquema seria implantado e como ficaria o conjunto da reforma.

A reforma da Previdência tem sido apontada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como o primeiro e mais importante desafio do novo governo. O presidente Jair Bolsonaro parecia, até a entrevista de quinta-feira, concordar com esse ponto de vista, partilhado por analistas nacionais e estrangeiros de alta de reputação profissional. Essa ainda é, espera-se, a sua posição. Nesse caso, falta apenas agir de acordo com a importância dessa reforma, essencial para o sucesso da nova administração.

A disposição do presidente de se comunicar com o público é muito bem-vinda. Aqui vale a pena recordar outra lição de Chacrinha: quem não se comunica se trumbica. Mas a comunicação de um governante é um ato funcional. Deve ser destinado a explicar, jamais a confundir.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 05.01.19

Temer, missão cumprida

Por Antonio Delfim Neto

Quando os tempos se acalmarem, pesquisadores honestos concentrarão suas teses de doutoramento nos incríveis quase 14 anos de governo do PT.

O presidente Michel Temer em encontro com correspondentes em Brasília.

Sob Lula, registrou-se o único surto de crescimento dos últimos 20 anos. Ajudado por uma extraordinária melhoria das “relações de troca”, soube aproveitá-la para melhorar a distribuição de renda.

Tudo foi destruído pela ação voluntarista de Dilma, que produziu uma dramática recessão. Entre 2012 e 2016, o PIB per capita caiu 7%, a produção industrial voltou ao nível de 2003 e os PACs deixaram mais de 7.000 obras inacabadas. A tragédia fiscal foi escondida pela destruição dos registros contábeis que levaram ao impeachment.

Essa foi a herança de Temer. Ele soube organizar uma espécie de “parlamentarismo de ocasião” e cercar-se do que há de mais competente na administração pública do país.

Não tenho a menor dúvida. Quando Temer sofrer o mesmo julgamento, ele será classificado como um presidente inovador e reformista: a densidade de medidas corretivas dos desvios da boa administração econômica por unidade de tempo foi a maior desde a Constituição de 1988!

É tempo de registrar com tristeza que a reforma da Previdência, sem a qual não há a menor esperança de voltarmos a um equilíbrio fiscal, foi frustrada por uma armação de Janot, acompanhada por um “principismo” do STF, que poderia ter agido postergando o início do processo para 2 de janeiro de 2019.

Ninguém propunha ignorar os fatos, mas apurá-los com honestidade de propósito e ampla liberdade de defesa, depois que o mandato se esgotasse. O que se sugeria era, apenas, manter funcionando o “parlamentarismo de ocasião” que, praticamente, já havia assegurado a aprovação daquela reforma.

O governo de Temer sai consagrado pela qualidade dos técnicos que escolheu. Paulo Guedes, inteligentemente, aproveitou o “crème de la crème” do funcionalismo competente e honesto com o qual ele governou. Novos governos estaduais disputaram a colaboração de vários de seus ministros e dos que saíram. Outros sofrem intenso namoro do setor privado.

Temer sempre recusou remover um auxiliar por ter servido, como bom profissional, aos governos do PT. A intriga (os palácios são ninhos de jararacas) nunca o levou a julgar um auxiliar competente “porque era petista de carteirinha”.

Hoje as insídias transcendem o palácio. O mais competente profissional é sujeito, na mídia social irresponsável, ao ataque dos que pretendem a sua posição sem ter a mesma qualificação. Esse é um aviso para o governo Bolsonaro.

Presidente Temer, V. Excelência cumpriu sua nobre missão: “Perfer et obdura”. Vá em paz!
Antonio Delfim Netto, economista, foi Ministro da Fazenda e Deputado Federal Constituinte por São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 26.12.18.

Benefícios repulsivos

Insensíveis à crise orçamentária do Estado e insaciáveis na tentativa de aumentar salários e multiplicar penduricalhos à custa dos contribuintes, vários tribunais não estão medindo esforços para criar novos penduricalhos. A ideia é repor as perdas financeiras causadas em seus holerites pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender o pagamento indiscriminado do auxílio-moradia a toda a magistratura, limitando-o apenas aos juízes que tiverem de atuar fora da comarca de origem e que não têm casa própria no local ou residência oficial à disposição.

Uma dessas cortes é o Tribunal de Justiça do Maranhão, cujos juízes e desembargadores foram autorizados pelo corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, que também é ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a receber R$ 3.546 por mês, a título de auxílio-alimentação. Esse penduricalho foi criado por lei estadual aprovada há 11 anos pela Assembleia Legislativa, com o valor de R$ 726 mensais. Apesar da imoralidade do benefício, a corporação justificou o aumento de quase 500% em nome do princípio da isonomia, uma vez que os promotores e procuradores do Ministério Público estadual já vinham recebendo R$ 3.546 de auxílio-alimentação.

O antecessor de Humberto Martins na chefia da Corregedoria Nacional de Justiça, ministro João Otávio Noronha, havia vetado esse aumento, mantendo-o em R$ 726. Todavia, sob a justificativa de que a Corregedoria Nacional de Justiça não pode interferir na autonomia administrativa e financeira dos tribunais, Martins autorizou sua elevação. Independentemente das limitações orçamentárias da corte, os beneficiários querem que os novos valores comecem a ser pagos em janeiro. A estimativa é de que o aumento custará cerca de R$ 11 milhões por ano para os contribuintes maranhenses.

Na mesma semana e na mesma linha do Tribunal de Justiça do Maranhão, o Tribunal de Justiça do Estado do Acre fixou o valor do auxílio-alimentação de seus juízes e desembargadores em 10% de seus vencimentos.

Outra corte envolvida na criação de penduricalhos é o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, cujos membros pressionaram a Assembleia Legislativa a aprovar projeto que instituiu o auxílio-transporte no valor de até R$ 7,2 mil. Esse valor equivale a 20% dos vencimentos da magistratura estadual. Como a lei ainda precisa ser sancionada, os juízes e desembargadores de Mato Grosso do Sul agora estão pressionando o governador Reinaldo Azambuja, que foi reeleito no pleito de outubro. Pelo preço da gasolina no Estado, se Azambuja ceder, cada magistrado poderá comprar cerca de 10,5 mil litros por mês. Esse auxílio é tão absurdo que o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, determinou a abertura de um procedimento para apurar o caso e anunciou que não permitirá sua concessão.

Além de seu pagamento ser imoral, o auxílio-alimentação e o auxílio-transporte dão margem a outro expediente que vem sendo usado em larga escala pela magistratura para aumentar seus vencimentos líquidos. Alegando que esses dois penduricalhos têm o que chamam de “natureza indenizatória”, não constituindo remuneração e sendo pagos sob a justificativa de que são essenciais às “condições funcionais de trabalho” de juízes e desembargadores, seus valores não são levados em conta nem para o cálculo do Imposto de Renda nem para o cálculo do teto do funcionalismo público. Ou seja, os magistrados que juraram cumprir a Constituição quando entraram para o Poder Judiciário recorrem a subterfúgios para contornar as determinações desse texto legal e não terem, desse modo, de arcar com as obrigações que atingem todos os cidadãos prestantes do País. Por meio de suas associações corporativas, a magistratura – que sempre esteve entre as categorias mais bem remuneradas da administração pública – justifica seus privilégios em nome da “dignidade do cargo”. O argumento é risível, pois quanto mais a corporação é beneficiada por penduricalhos, menor é sua autoridade moral e mais comprometida é sua credibilidade.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 26.12.18

Ministros têm de defender a imagem do STF

Sabe-se qual a relevância de um Poder Judiciário respeitado ao se dar um balanço do protagonismo da Justiça nestes 30 anos de redemocratização, destacando-se o papel-chave, junto com o Ministério Público, que tem exercido neste ciclo histórico de enfrentamento pelo Estado brasileiro da corrupção instalada nas altas esferas públicas, por empresários e políticos poderosos.

Isso tem dado uma essencial segurança jurídica ao país. Daí ser deplorável que se volte a testemunhar a ação de ministros do Supremo, valendo-se do início do recesso da Justiça, para tomar decisões individuais, ou monocráticas, no jargão togado, em assuntos controvertidos que necessitariam ser levados ao escrutínio do plenário da Corte.

Esta pegadinha jurídica — sem discutir que tipo de interesse se move por trás de cada liminar solitária concedida — visa a tornar fato consumado veredictos no mínimo polêmicos, salvo recursos impetrados no plantão da Corte, que pode ser exercido pelo seu presidente.

No caso, Antonio Dias Toffoli, responsável por atender ao pedido da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e derrubar deliberação de Marco Aurélio Mello para que fossem soltos todos os presos em cumprimento de pena confirmada na segunda instância, a não ser os que se encontravam em prisão preventiva.

O ministro assinou a determinação na quarta, pouco antes do início do recesso, depois de almoço de confraternização dos magistrados do Supremo, durante o qual não tocou no assunto. Não merece comentários.

A magnanimidade de Marco Aurélio beneficiaria 169 mil presos sem sentença definitiva e, entre eles, o ex-presidente Lula. Um golpe não apenas na Lava-Jato, mas na esperança que a sociedade passou a ter na possibilidade de afinal o Brasil virar uma República de fato, em que a lei vale mesmo para todos. Sabe-se que há tempos o ministro tenta que a Corte rediscuta esta jurisprudência, aprovada em 2016, depois de ter sido aplicada de 1941 a 1973, quando a ditadura militar aprovou no Congresso a “Lei Fleury", que permitia a réu primário e de bons antecedentes recorrer em liberdade.

Foi para beneficiar o policial Sérgio Paranhos Fleury, listado como torturador, processado e condenado por fazer parte de um esquadrão da morte. Depois, a Constituição de 1988 restabeleceu o correto princípio de 1941.

É certo que Marco Aurélio deveria esperar a sessão de 10 de abril, quando, segundo agenda definida por Dias Toffoli, o plenário da Corte enfrentará a questão.

Importa ficar claro para todos os ministros — como Ricardo Lewandowski, que acaba de usar o mesmo artifício para garantir um aumento aos servidores federais no ano que vem, apesar da crise fiscal — que estas atitudes solapam a legitimidade do Judiciário. O que não deve interessar a ninguém em um momento de divisões na sociedade, causa de conflitos a serem levados ao Judiciário. Chega a ser antidemocrático.

Editorial de O Globo, RJ, edição de 21.12.18

Danem-se os cidadãos

Por Carlos Alberto Sardenberg

Medidas provisórias são editadas pelo presidente da República e têm de ser votadas pelo Congresso Nacional, ao qual cabe a palavra final. Para Lewandowski, essa tramitação é bobagem. Basta sua caneta.

Nem é de se estranhar. Em dezembro do ano passado, o ministro fez a mesma jogada, garantindo para 2018 o aumento que o governo queria adiar para 2019.

Em tese, a liminar de Lewandowski pode ser derrubada pelo plenário do STF ou pela votação final da medida provisória pelo Congresso.

Mas apenas se Supremo e Congresso fizerem isso antes de 31 de dezembro. Isso porque o reajuste salarial entra em vigor em 1º de janeiro, embora só vá ser pago no final do mês. E como salário do funcionalismo não pode ser reduzido — outra das tantas vantagens exclusivas — está definitivamente elevado no início de 2019.

A menos que alguém — o presidente Temer ou a procuradora-geral — entre com recurso contra a liminar e esse recurso seja recebido pelo ministro Dias Tofolli, presidente do STF de plantão, tudo antes de 31 de dezembro.

Será? Não esquecer que o STF acaba de conceder a todos os juízes um reajuste de 16%, extensivo ao Ministério Público. O que esperar de um Supremo (Supremo!) que decide conforme os interesses pessoais de seus integrantes?

O terceiro golpe, talvez ainda mais grave do ponto de vista da moral e da política, foi praticado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O Congresso Nacional havia aprovado uma lei afrouxando a Lei de Responsabilidade Fiscal, determinando, para resumir, que estariam isentos de punição os municípios que estourassem os gastos com pessoal.

A lei estava na mesa do presidente da República esperando a sanção ou o veto. Temer, a pedido de sua área econômica, pretendia vetar. Pelas normas institucionais, o veto voltaria ao Congresso, que poderia mantê-lo ou não. Tudo republicano.

Ocorre que, na última terça, Temer foi ao Uruguai para a reunião do Mercosul. Nessas circunstâncias, e por uma regra antiga que hoje não faz mais sentido, o presidente tem de ser substituído interinamente. Como Temer não tem vice, assumiu Rodrigo Maia, que foi lá na gaveta, pegou o projeto de lei, assinou e mandou para publicação. Tudo na calada da noite.

Ontem, Temer deu uma nota admitindo que foi surpreendido. Maia não falou nada. Nem precisava. Ele está em campanha para se reeleger presidente da Câmara e buscou apoio de prefeitos e seus deputados.

Há um ponto em comum nesses dois casos, a defesa dos vencimentos do funcionalismo. Na sua liminar, Lewandowski, lá pelas tantas, diz que os servidores federais não podem ser prejudicados só porque ganham os salários mais altos.

E então devem ser beneficiados por isso?

Quanto aos municípios, eis os dados: de 2010 a 2017, as despesas de pessoal passaram de 46% para 49% dos gastos totais; já a despesa com serviços prestados à população caiu de 35% para 30%.

Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, quando as prefeituras estouram os gastos com pessoal, ficam impedidas de receber repasses, empréstimos e ainda têm que fazer ajustes, como cortar despesas com salários.

Quer dizer, teriam que fazer isso, se Rodrigo Maia não precisasse de uns votos.

Quando a gente pensa que a avacalhação da República chegou ao limite, eles dão mais uns passos.

Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Este artigo foi publicado originariamente em O Globo, RJ, edição de 20.12.18.

Só pode ser pilhéria

Há dias, a Coluna do Estadão informou que a presidência do Conselho de Ética do Senado tem sido usada como moeda de troca nas articulações políticas com vistas à eleição para o comando da Casa a partir do ano que vem, quando começa a nova legislatura. Nada de novo sob o céu de Brasília não fosse a desfaçatez inaudita dos envolvidos na transação.

Reeleito senador, Renan Calheiros (MDB-AL) pretende voltar ao comando do Senado e para isso estaria articulando o apoio da bancada do PT – com seis senadores a partir de 2019, três a menos do que a composição atual – à sua candidatura. Em troca, Renan daria ao partido a presidência de um dos órgãos mais importantes da Casa, o Conselho de Ética, responsável por analisar e processar as representações ou denúncias oferecidas contra os senadores, que podem resultar em medidas disciplinares – como advertência, censura verbal ou escrita –, em suspensão temporária do exercício do mandato e cassação.

O senador Renan Calheiros é o arquétipo da velha política, mas é seu direito tentar voltar à presidência do Senado pelo mandato que lhe foi outorgado pelo povo de Alagoas. Escárnio será receber o apoio de seus pares para a realização do intento. A desmoralização do Senado perante a sociedade, caso Renan Calheiros volte a ocupar a cadeira de presidente da Casa, atingiria um patamar inimaginável, com consequências imprevisíveis para o bom andamento dos trabalhos do Poder Legislativo.

Se a eventual eleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado seria uma lástima por representar o triunfo da velha política – que a bem da verdade não é má porque “velha”, mas porque resume práticas condenáveis, alheias ao interesse público –, dar ao PT a presidência do Conselho de Ética da Casa equivaleria a dizer que, ao fim e ao cabo, o exercício do mandato pautado pela ética é o que menos importa para os senadores.

Não há outra conclusão possível quando o que se cogita é dar ao mesmo partido político que legou ao Brasil o mensalão e o petrolão – e disso não se arrepende –, apenas para ficar nos maiores escândalos de corrupção que engendrou, a responsabilidade de zelar pelo decoro parlamentar, condição mínima para o exercício do mandato de senador da República. Só pode ser pilhéria.

A desfaçatez é tal que, como informou a Coluna do Estadão, os petistas avaliam se devem ou não prosseguir com a barganha, mas não pelas razões corretas. Um grupo sustenta que o Conselho de Ética pode ser uma “batata quente”, mirando a poderosa primeira-secretaria do Senado, que administra os recursos financeiros da Casa.

O resultado das eleições de 2018 foi uma lufada de renovação no Senado, a maior desde o fim da ditadura militar. Das 81 cadeiras na Câmara Alta, 54 estiveram em disputa. Destas, 46 serão ocupadas por novos nomes a partir do ano que vem. É esperado que o comando do Senado traduza esse espírito, não necessariamente nas mãos de um neófito, pois o novo por si só não diz muita coisa, mas sob a liderança de um senador ou uma senadora que olhe para o Senado com as lentes do interesse público, da ética, da boa política, valores que vêm sendo clamados pela sociedade com mais vigor há pelo menos cinco anos, na esteira das manifestações de junho de 2013.

Não faltam nomes à altura dos cargos de presidente do Senado e do Conselho de Ética da Casa. Não há justificativa plausível para a escolha de pessoas ou partidos associados a tudo o que os homens de bem repudiam.

O povo brasileiro optou por olhar para o futuro, o que implica o imediato abandono de práticas e negociações que remetem ao atraso. O Senado não pode ficar alheio a esse desejo manifestado nas urnas e chancelar o absurdo representado pela presidência da Casa nas mãos de uma figura como Renan Calheiros ou por um senador do PT como bom zelador da ética de seus pares. Isso seria uma provocação desnecessária à maioria do povo brasileiro, que já disse o que pensa sobre o partido nas urnas, em 2016 e agora em 2018.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 17.12.18

Ouvir para liderar

Por Eurico Teles

Vivemos no Brasil um momento ainda desafiador para as grandes companhias, seus líderes e seus investidores.Um dos maiores exemplos disso é que o número de empresas que entraram com pedido de recuperação judicial em 2018 continua expressivo: somente de janeiro a setembro, foram 985, quase 10% a mais do que em 2017. O uso desse instrumento legal, que tem sido vital para a continuidade das operações das companhias, evidencia que os efeitos da crise econômica persistem. Tive a oportunidade de estar à frente do maior desafio nesse sentido no mercado brasileiro, conduzindo a Oi na aprovação do seu plano de recuperação judicial. Uma missão que me foi entregue um ano atrás, ao assumir a presidência de uma das maiores empresas de telecomunicações da América Latina.

Comecei como estagiário na companhia há 37 anos. Num período tão longo, muito se vê, se ouve e se aprende, seja com acertos, mas, principalmente, com os erros. Uma das questões fundamentais em participar de um momento tão relevante como o da Recuperação Judicial – crítico, mas, ao mesmo tempo, cheio de oportunidades – é enxergar a melhor forma de exercer a liderança. Ao longo de nossas vidas corporativas, somos empurrados degrau a degrau para cima. Alguns correspondem e sobrevivem, mas muitos ficam pelo caminho. Tornar-se um alto executivo é uma metamorfose que nem sempre respeita o tempo de cada um.

 Por isso, é tão importante ter a humildade para o aprendizado, principalmente ouvindo e compreendendo as reais necessidades da companhia, de seus colegas, de seus colaboradores e do mercado. E não basta colocar os ouvidos à disposição, tem que de fato absorver. Entender a fala do outro. E é importante ouvir também as vozes que divergem. Tem que ir a campo, acolher as os diferentes tons de dentro da organização e de todo seu ecossistema. Porque essa escuta ativa fornece ao CEO subsídios importantes e necessários para tomar decisões, buscar soluções e construir a direção que avaliar mais correta. 

 A escuta também dá embasamento para outra condição que julgo essencial a qualquer CEO: uma atitude conciliadora. Tenho convicção de que a maior contribuição que um presidente pode dar é a iniciativa de ir até as pessoas e trabalhar para conciliar as diferentes visões e pensamentos em busca do melhor pela companhia.

 Isso traz resultados claros e palpáveis. No nosso caso, desde a mudança no comando da Oi, vi nossa equipe trabalhar incansavelmente para ajudar a empresa a dar passos muito importantes: o plano de recuperação judicial com mais de 55 mil credores foi aprovado; a dívida financeira foi reduzida de R$ 49 bilhões para R$ 15 bilhões; houve conversão de parte da dívida em ações e a eleição de um novo conselho de administração independente. E agora estamos prestes a concluir outra etapa fundamental, que é o aumento de capital da empresa. Nada disso seria possível sem um time engajado, que confia na sua liderança, e sem um comando que ouve e acredita na sua equipe.

 Numa empresa de prestação de serviço, esse trabalho estaria incompleto se não houvesse disposição de ouvir a parte principal do nosso negócio: o cliente. Tentar entender e ajudar o consumidor é um compromisso sagrado. É primordial criar chances de se aproximar dele – como, por exemplo, tive a oportunidade de vestir literalmente o uniforme de técnico e ir à casa de uma cliente para acompanhar uma instalação e, lógico, conversar. Sem me identificar, pude ouvir muito sinceramente a avaliação dela do serviço e questionar o que poderia ser feito para melhorar. É um trabalho que parece tão básico, porém, traz um retorno muito concreto, ao aproximar líderes corporativos das reais necessidades de entrega.

Creio que vivências como essas agregam à liderança tanto quanto as diversas técnicas que os executivos dominam, pois nos sensibilizam pela empatia e trazem a gestão para a escala humana. Mas é claro que nada disso adianta se não soubermos ouvir de verdade – estando abertos a sermos, de fato, transformados pelo outro, seja por aqueles com quem trabalhamos, seja para quem trabalhamos – e assim atuar como conciliador em prol da organização.

Eurico Teles, advogado, é presidente da OI. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 18.12.18

Prudência e temperança

Jair Bolsonaro ainda não assumiu a Presidência da República, mas é natural que tudo o que ele e seus principais assessores digam ou façam no período de transição tenha considerável repercussão. Assim, o presidente eleito e aqueles que se apresentam ou são tidos como seus porta-vozes precisam ter em mente que suas palavras e atos, mesmo que não sejam propriamente decisões de governo, pois em sua maioria não passam de intenções, servem para criar ou frustrar expectativas em toda a sociedade brasileira e, dado o peso econômico do Brasil, mesmo na comunidade internacional.

Sendo assim, o recomendável seria que todos os envolvidos na transição fossem mais prudentes, evitando, como se tem visto até aqui, atropelos, desorganização e voluntarismo – que, em alguns casos, pode irrefletidamente atar o País a compromissos de caráter ideológico ou religioso que atenderiam a supostos desejos dos eleitores de Bolsonaro, mas claramente prejudicam o interesse nacional.

Foi assim, por exemplo, que Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente eleito, foi aos Estados Unidos para, na condição de enviado especial do pai, oferecer, sem esperar contrapartida, o apoio integral do Brasil à agenda do presidente norte-americano, Donald Trump. Deputado federal mais votado nas últimas eleições e fortemente identificado com o presidente eleito, Eduardo Bolsonaro parece ter esquecido que suas palavras e atos têm consequências, seja para si mesmo, seja para seu partido, para o próximo governo e para o País.

Tamanha temeridade foi coroada com a imagem de Eduardo Bolsonaro com um boné da campanha de Trump à reeleição, em 2020. Com isso, sugeriu que o futuro governo Bolsonaro torce pela vitória eleitoral do atual presidente norte-americano, quando o bom senso manda manter-se neutro nas disputas eleitorais alheias, já que o governo terá de lidar com quem quer que seja eleito em 2020 nos Estados Unidos.

O tour de Eduardo Bolsonaro é apenas um dos vários episódios desse período de transição que mostram preocupante prevalência de algo parecido com ideologia sobre a sensatez. Além da aproximação aparentemente incondicional com os Estados Unidos, o futuro governo Bolsonaro, mimetizando Trump, ameaça retirar o Brasil do Acordo de Paris, compromisso firmado por 195 países para conter o aquecimento global. Ao informar que ele mesmo pediu ao governo de Michel Temer para que desistisse de oferecer o Brasil como sede da próxima Conferência do Clima, em 2019, Bolsonaro deixou claro que o motivo era justamente evitar a saia-justa de "anunciar uma possível ruptura (do acordo) dentro do Brasil". Não parece ter havido reflexão suficiente, por parte do futuro governo, para que se tomasse tão drástica decisão.

Do mesmo modo, quase todo o noticiário sobre a transição indica preocupante desorientação sobre o que realmente pretende o presidente eleito. Depois de prometer um Ministério enxuto, com 15 pastas, Bolsonaro deverá tomar posse com mais de 20, em razão de uma aparente confusão de objetivos. Bolsonaro e sua equipe já anunciaram Ministérios que mais tarde foram cancelados, e depois anunciaram a extinção de Ministérios que foram ressuscitados. O presidente eleito já teve que desmentir declarações de seus futuros ministros e comunica decisões com potencial gravidade em entrevistas coletivas confusas e improvisadas.

Sinalizações ambíguas são especialmente alarmantes quando se referem aos maiores desafios da próxima gestão. Quando Eduardo Bolsonaro diz a investidores norte-americanos que "talvez não consigamos" fazer a reforma da Previdência, e seu pai é obrigado a vir a público para dizer que "pode ser que ele tenha se equivocado, o garoto, né?", revela-se inquietante desordem, até porque a frase seguinte põe em dúvida a tramitação do projeto que está no Congresso.

Alguns assessores de Bolsonaro, e talvez o próprio presidente eleito, parecem acreditar que tudo afinal se organizará simplesmente a partir de suas certezas ideológicas. Como escreveu o futuro chanceler, Ernesto Araújo, Bolsonaro foi eleito para promover nada menos que a "regeneração nacional" e, para isso, deve-se destruir tudo o que está aí. O problema é que Bolsonaro parece não saber exatamente o que remover e o que colocar naquele lugar.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 02.12.18

Bolsonaro - a caminho do futuro

Por Ives Gandra Martins

Indiscutivelmente, a vitória do candidato Jair Bolsonaro e de alguns governadores foi a demonstração inequívoca de que o brasileiro se cansou dos governos demagógicos, do aparelhamento do Estado pro domo sua e, principalmente, da corrupção que vicejou na era Lula-Dilma, por mais de dez anos. Sem recursos financeiros, sem alianças partidárias de expressão, sem tempo de televisão e com uma imprensa hostil, venceu candidatos poderosos, partidos dominantes e toda espécie de ataques ideológicos e de grupos enquistados no poder, cujo preconceito ostensivo não abalou os eleitores.

Seus adversários erraram o alvo. O candidato do PT, por não reconhecer que seu partido proporcionou o maior assalto às contas públicas, nos 13 anos em que governou o País; o candidato do PSDB, por ter atirado no inimigo errado (Bolsonaro, e não Haddad); o candidato no MDB, por ter um discurso mais acadêmico que popular; o candidato do PDT, por ter mostrado instabilidade, navegando da esquerda para a direita na busca de apoio e atacando, com seu estilo às vezes grosseiro, quem não o apoiava; e a candidata da Rede, por continuar, no estilo de Tom Jobim, a lembrar o samba de uma nota só. Apenas Amoêdo, que procurou estabelecer inovadora vertente eleitoral, surpreendeu, superando candidatos de expressão.

Votação semelhante à população de Portugal – 11 milhões de votos – separou Bolsonaro de Fernando Haddad e mostrou que o povo não mais suporta promessas não cumpridas e a corrupção desventrada. Lembro o velho e saudoso amigo Roberto Campos, que dizia que as promessas dos políticos comprometem apenas as pessoas que as ouvem.

Colocar a Federação dentro do PIB, desaparelhar o Estado, combater a corrupção, ofertar segurança pública e inserir o Brasil no cenário mundial, criando parcerias principalmente com países desenvolvidos – e não países como Cuba, Venezuela e outros vocacionados à ditadura –, esse foi o mote da campanha vitoriosa que elegeu Bolsonaro e alguns governadores que o apoiaram, como João Doria. Todos os candidatos que adotaram o discurso “politicamente correto” para a conquista de eleitores de todos os matizes ficaram a meio do caminho.

Os desafios, agora, são grandes. As primeiras escolhas de seu Ministério parecem acertadas. Um cientista para Ciência e Tecnologia, mundialmente conhecido. Um juiz para o Ministério da Justiça, ícone do combate à corrupção. Quatro economistas altamente qualificados para a Economia, para o BNDES, o Banco Central e o Tesouro. Uma empresária bem-sucedida e parlamentar para a Agricultura. Um diplomata de carreira para o Itamaraty, livre de teses marxistas ultrapassadas; além de abrir, de imediato, diálogo com os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário).

Nada obstante a crítica dos derrotados e o preconceito dos ideólogos, parece que os primeiros passos do presidente eleito são corretos, convergindo para a formação de uma equipe eficiente.

O certo é que a eficiência – que não foi a marca dos governos passados – é que determina, hoje, o progresso das nações. Os autodenominados “progressistas” têm suas ideologias ultrapassadas, porque o futuro prometido se coloca a séculos de distância do presente sacrificado.

Assim é que entre as 20 maiores democracias do mundo não há um país “progressista”. China e Rússia renderam-se aos caminhos capitalistas, para se desenvolverem. As denominadas economias “conservadoras” são todas elas vitoriosas e as “progressistas”, um rotundo fracasso. Venezuela e Cuba talvez sejam os exemplos mais agudos dessa ineficiência.

Aspecto, entretanto, relevante reside em que a democracia está em constante perigo entre os governos de esquerda, mais preocupados em aparelhar o governo e se manter no poder do que em preservá-la, tendendo, à semelhança de Maduro, Ortega e dos Castros, para a ditadura.

É de lembrar que os governos “progressistas” dos séculos 20 e 21 provocaram um profundo recuo no desenvolvimento de seus países, sendo, pois, “regressistas”; e todos os governos “conservadores”, por adotarem a economia de mercado, foram “progressistas”, já que provocaram a inserção dos países na realidade do século 21, que exige eficiência.

A corrupção, por outro lado, tem sido uma constante desses governos “regressistas”.

Não por outra razão, o casal Ceausescu, na Romênia, vivia nababescamente. Lenin tinha, segundo consta, uma coleção de carros Rolls-Royce e os Castros, ilhas particulares para seu gáudio e bem-estar, enquanto seu povo patinava em salários miseráveis. E o que não dizer do líder endeusado pela presidente do PT, Nicolás Maduro, talvez o maior símbolo da incompetência administrativa, que implantou cruel ditadura para o povo venezuelano.

Todas essas considerações eu as faço porque estou convencido de que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, está trilhando, apesar das críticas costumeiras dos desalojados do poder, o caminho correto, tendo, a meu ver, a seu favor a disciplina que aprendeu nas Agulhas Negras, hoje gerando oficiais comprometidos com a democracia, com a luta contra a corrupção e, principalmente, com o estrito cumprimento da Constituição. É uma nova geração de militares, cuja formação transcende de muito o conhecimento das artes marciais, para o conhecimento em profundidade da realidade brasileira e mundial. Tal percepção, como velho professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército há 29 anos, posso atestar, pois sei que são todos os militares escravos da Carta da República.

Para o bem do Brasil, que Deus abençoe o novo presidente.

Ives Gandra Martins é Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFEIO, UNIFUMU, do CIEE- O Estado de S. Paulo, da Escola Superior de Guerra e da Magistratura do TRF-1. É fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária (CEU) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 24.11.18.

Bombas contra desempregados

Cerca de 12 milhões de brasileiros passarão um fim de ano apertado, mal conseguindo pagar as despesas mais simples, e muitos ainda estarão em sérias dificuldades no fim de 2019, se a irresponsabilidade política ainda travar a criação de empregos. Nesse caso, o estrondo de pautas-bomba – projetos com aumentos de custos para o governo – ainda será mais forte que o dos foguetes e rojões típicos das festas.

Sem dinheiro para festejar, esses desempregados ainda pagarão impostos sobre seus gastos, mínimos e indispensáveis, e assim financiarão os benefícios concedidos a pessoas e a setores empresariais imensamente mais aquinhoados.

Quase metade dos trabalhadores em busca de uma vaga está desocupada há mais de um ano. Mais de um quarto, há mais de dois, segundo os últimos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. O levantamento é realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os cidadãos à procura de trabalho há mais de um ano eram 5,05 milhões no terceiro trimestre, de acordo com a Pnad. Eram cerca de 40% dos 12,5 milhões de desocupados. O grupo há mais tempo desempregado – sem ocupação há dois anos ou mais – correspondia a 3,2 milhões de pessoas, 25% do total de desocupados.

Esse contingente é quase tão numeroso quanto a população do Uruguai (3,46 milhões de habitantes em 2017), incluídos bebês, crianças da escola básica e velhinhos há muito aposentados, e corresponde a 17,18% da população chilena.

Quando se pensa em tanta gente fora das folhas de pagamento há tanto tempo, fica difícil levar a sério o argumento invocado a favor do reajuste de salários para os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Incluído o enorme efeito cascata, esse reajuste deve impor ao setor público uma despesa adicional estimada em R$ 6 bilhões por ano.

O mesmo tipo de comparação serve para avaliar qualquer outro mimo fiscal ou financeiro concedido a indivíduos e a empresas. Pouco ou nenhum avanço em termos de inovação, crescimento econômico e criação de empregos decorreu da maior parte dos incentivos custeados pelo contribuinte nos últimos dez anos.

Exemplos de enorme desperdício custeado pelos contribuintes – empregados e desempregados – são o Programa de Sustentação do Investimento (instituído em 2009) e a desoneração da folha de pagamento de dezenas de setores, como foi claramente mostrado em recente análise produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O estudo mostrou, entre outros fatos escandalosos, o aumento de demissões, a redução de admissões e o medíocre desempenho produtivo de várias das indústrias mais beneficiadas pela desoneração da folha. Apesar da evidente distribuição de benefícios sem a mínima cobrança de contrapartida, congressistas evitaram cortar as desonerações.

Quando, finalmente, o fizeram, numa negociação com o Executivo, ainda mantiveram a vantagem para vários setores.

O mesmo desinteresse em relação a custos e benefícios vinculados ao uso de recursos públicos foi exibido, há pouco tempo, na aprovação de um novo programa de incentivos fiscais ao setor automobilístico. Neste caso, a iniciativa foi do Executivo, contra a orientação do Ministério da Fazenda. No Congresso, as vantagens fiscais propostas pelo governo ainda foram ampliadas.

Cada real adicionado aos custos do governo tornará mais difícil e mais demorada a solução da crise das contas públicas, exceto se a despesa – ou facilidade fiscal – produzir efeitos de curtíssimo prazo em termos de crescimento econômico e de criação de empregos. Não é o caso da série recente de mimos aprovados no Congresso. Muito mais provável é o surgimento de novas pautas-bomba.

O presidente eleito e sua equipe têm razões para tentar, neste fim de ano, evitar o aumento de encargos para o governo. Muitos congressistas falharam na tentativa de reeleição e isso poderá dificultar negociações. Mas o esforço é necessário, especialmente porque, explícita ou implicitamente, será feito em nome de uns 12 milhões de desempregados.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 15.11.18

Bom sinal

Uma parte considerável das desventuras nacionais tem origem no chamado presidencialismo de coalizão, que vigora no País, com maior ou menor força, há cerca de três décadas. Esse sistema, como se sabe, é consequência do fato de que nenhum partido, nem mesmo o do presidente da República, consegue eleger mais do que 20% do Congresso, obrigando o chefe do Executivo a construir maioria por meio de negociações com os muitos partidos e, não raro, diretamente com deputados e senadores. Essa combinação frequentemente se dá não em termos de propostas ou ideias para o País, e sim no simples toma lá dá cá de cargos e verbas.

Nos últimos anos, o País assistiu, entre o atônito e o enojado, ao mais desbragado loteamento da máquina pública entre os partidos e políticos que – diga-se em português claro – venderam seus votos em troca de vagas no governo. No mandarinato lulopetista, o presidencialismo de coalizão atingiu o estado da arte, sendo mais bem definido como presidencialismo de cooptação – em que o Executivo pagou por apoio no Congresso e franqueou aos partidos de sua base o acesso aos cofres de empresas estatais e a negociatas em geral, num amplo esquema de corrupção que começou como mensalão e terminou como petrolão.

O impeachment da presidente Dilma Rousseff interrompeu esse festim, em grande medida por pressão irresistível da opinião pública, conforme se viu em imensas manifestações de rua contra a corrupção. Não à toa, o candidato à Presidência que defendeu com maior vigor o fim desse sistema político, conforme demandava a maioria dos cidadãos cansados da roubalheira e da avacalhação do Congresso, acabou vencendo a eleição de outubro. Desde então, Jair Bolsonaro, o presidente eleito, tem demonstrado, na montagem de seu Ministério, que está mesmo disposto a acabar com o presidencialismo de coalizão.

Dos escolhidos por Bolsonaro para o primeiro escalão do governo até ontem, apenas três são parlamentares – os deputados Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Henrique Mandetta (Saúde). O fato de os três serem do DEM, segundo o presidente eleito, não significa que a indicação tenha como objetivo obter o apoio daquele partido. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), confirmou que “as indicações não são do DEM”. Bolsonaro explicou que Onyx Lorenzoni já estava em sua equipe desde a campanha, enquanto Tereza Cristina e Henrique Mandetta foram indicações das frentes parlamentares da Agricultura e da Saúde, respectivamente.

Assim, Bolsonaro sinaliza que sua intenção é articular apoio não de partidos, mas dos agrupamentos suprapartidários no Congresso, que seriam mais coesos que as bancadas partidárias por defenderem interesses específicos de setores da sociedade e por não se submeterem a este ou àquele cacique partidário. A lógica sugere que, nesses termos, a coalizão se dará por meio da negociação de uma agenda política e administrativa comum, e não como consequência da distribuição de vagas no governo e nas estatais.

O sistema vigente, é claro, reagiu. Os partidos do chamado “centrão”, que se julgam preteridos por Bolsonaro na formação do Ministério, já mandaram avisar, segundo informa o Estado, que vão sabotar o futuro governo na votação da reforma da Previdência. Tal ameaça, mesmo que dê em nada, serve para confirmar a natureza deletéria do presidencialismo de coalizão e o acerto do presidente eleito em tentar desmontar esse mecanismo.

Para a turma acostumada ao fisiologismo desbragado, pouco importa se a reforma da Previdência é inadiável diante do iminente colapso das contas públicas. O que interessa é tentar manter o governo como refém de suas demandas, quase sempre relacionadas a interesses escusos que fazem da atividade parlamentar um lucrativo ramo de negócios.

Não se sabe se o esforço do futuro governo em dar um basta no presidencialismo de coalizão será bem-sucedido, pois se trata de tarefa espinhosa e apenas iniciada, mas é preciso louvar a tentativa de demonstrar que, ao contrário do que parece, é possível governar o País sem o recurso ao contubérnio com os lambazes do Congresso.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 22.11.18

O plano de Lula para o Lulil

Por Fernão Lara Mesquita

Programa de governo é como termo de uso de aplicativo. Ninguém lê. Mas esse “O Brasil feliz de novo” é uma declaração à praça que não pode passar em branco. Embora políticos, intelectuais, artistas e até a maior parte dos jornalistas se mostrem firmemente decididos a não acreditar no que ele diz, Lula nunca escondeu o que quer ser quando crescer. Depois da esfrega do 1.º turno ele ordenou ao candidato laranja que se faça de bonzinho e renegue tudo, mas a coisa já está registrada no TSE como o programa oficial do governo ... de quem mesmo? É a terceira vez que eles tentam cravar esse punhal nas costas da democracia brasileira. A primeira foi na véspera do Natal de 2009, no apagar das luzes do governo Lula, quando ela foi batizada de “Plano Nacional de Direitos Humanos”; depois em 2014, na véspera da Copa e de um recesso extraordinariamente longo do Congresso quando Dilma o rebatizou de “Decreto 8.243”. Não vão desistir nunca. Essa é a receita oficial de golpe do Foro de São Paulo que fez o seu début mundial com Hugo Chávez “tomando o poder” na Venezuela com ele, à la José Dirceu.

“O Brasil feliz de novo” não especifica se manterá o Congresso aberto, mas é certo que ele deixaria de ter qualquer função, pois tudo passaria a ser decidido por “plebiscitos convocados pelo presidente da República” e decididos por “novos mecanismos deliberativos” a cargo de “movimentos sociais” e “representantes da sociedade civil organizada”. “Todos os poderes da União e do Ministério Publico”, assim como os do Judiciário, estariam submetidos a esse tipo de “controle social”. Todos os instrumentos da Lava Jato (delações premiadas, prisão na 2.ª instância, etc.) seriam revogados e o “controle da mídia” se faria “com a atuação da Anatel e da Polícia Federal para impedir perseguições”. Todas as “reformas do golpe” aprovadas pelo Congresso seriam revogadas. Haveria um “novo pacto federativo” em que literalmente todas as entidades municipais e estaduais passariam a ser subordinadas a entidades nacionais. Todos os insumos, indústrias e estruturas básicas seriam estatais, ficando para o “empreendedorismo” apenas o que é “micro”. O “grande agronegócio” passaria por reforma agrária. A política externa seria “altiva e ativa” significando privilegiar, inclusive com financiamentos, países da América Latina, do Caribe, da África e do Oriente Médio.

“A juventude” seria objeto de “direitos universais, geracionais e singulares que buscarão permanentemente a autonomia”. Quer dizer, da escolha dos banheiros na primeira escola dos seus filhos à reeducação dos professores, da água da bica ao petróleo, dos povos das florestas aos povos das metrópoles, da polícia única prendendo menos às penitenciárias soltando mais, do esporte à programação de shows, da contenção de encostas aos furacões do Caribe (!), para tudo e para cada coisa, para todos os brasileiros e para cada um, e não só para eles (a lista acima é literal, mas está longe de ser completa), haverá um “plano nacional”, acoplado a um “sistema único” e a um “novo marco regulatório” aprovado por gente que não elegemos que terá por referência “transversal” “o privilégio dos povos da floresta, dos quilombolas, dos negros e das negras, e o combate à LGTBIfobia”, em nome dos quais toda violência moral ou institucional será justificada.

Todo esse discurso delirantemente sinistro começa com a frase “Lula é uma ideia e agora um programa”, e repete 150 vezes que, nesse Lulil que já não seria Brasil, ele cuidaria pessoalmente de tudo.

E, no entanto, o País atravessou o 1.º turno inteiro assombrado pela ameaça à democracia encerrada na candidatura Bolsonaro sem que ninguém interrogasse o candidato laranja sobre essa preciosidade. Mas como o Brasil é bem melhor que suas elites, a decisão do 1.º turno deu-se totalmente à revelia dos debates. Eles simplesmente deixaram de interessar porque todo mundo - menos o intuitivo Jair Bolsonaro - fingia que a natureza do regime é uma questão resolvida, quando absolutamente não é.

Planos de gestão da economia e da administração pública, mesmo os sérios, são luxos para quem já tem o principal resolvido, e aqui, como no resto do planeta, é meio grau mais para a direita ou meio grau mais para a esquerda ou você cai no caos, como nós caímos. Por isso nem os mais patéticos entre os candidatos patéticos que tomaram nosso tempo nos debates conseguiram inventar coisa muito diferente nessa matéria.

Na falta de melhor tudo passou, então, a girar em torno da corrupção. Mas também o combate à corrupção está corrompido. Todo mundo sabe que existe uma diferença e todo mundo sabe que diferença é essa, mas é impossível traduzi-la numa tipificação jurídica. É por isso que nas democracias dignas do nome só quem elege tem o poder de deseleger e, então, entregar o ladrão à Justiça comum, que é igual para todos. Se for só juiz - e ainda por cima intocável - a controlar essa porteira, mais bandido municiando a imprensa para atingir outro bandido em disputas pelo controle de “bocas”, vira o Brasil...

O 2.º turno permitirá que o País se interrogue sobre onde é que vai parar o governo que promete começar revogando todo o Poder Judiciário que prende ladrão que resta, soltando Lula da cadeia, para ficarmos só com aquele que só solta, criado por ele, e que já vive anulando “monocraticamente” votações do Congresso Nacional inteiro.

Como faremos para que cada Poder da República volte aos seus limites? Que limites são esses, que nós já nem lembramos? Quem poderá restabelecê-los depois do estrago feito pelo lulismo? E como fazer isso com o próximo governo instalando-se à sombra do vulcão de um déficit explosivo por baixo da espada do crime de responsabilidade e sob a sede de vingança da seita que pediu impeachment de todos os governos desde a redemocratização, menos o seu próprio?

Tirar o lulismo do caminho é a condição para essa conversa começar. Mas o Brasil que sangra vai precisar da união de todo o campo democrático - o da esquerda inclusive - para sair dessa enrascada.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com - este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 10.10.18.

Para crescer com segurança

Os desafios para o novo governo contêm pelo menos um dado animador: o controle da inflação e o crescimento econômico de longo prazo dependem das mesmas políticas. Um Brasil mais eficiente será também um país com preços mais estáveis e com juros mais próximos dos padrões internacionais. Será, portanto, uma economia mais competitiva e com maior potencial de criação de empregos. Esta é uma das mensagens mais importantes incluídas na ata da última reunião do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC). Embora mais discreta e menos explícita, a linguagem oficial é bastante clara. Segundo o relatório, os membros do comitê destacaram a importância de iniciativas voltadas para “aumento de produtividade, ganhos de eficiência, maior flexibilidade da economia e melhoria do ambiente de negócios”.

Há espaço para intensificação dos negócios, a curto prazo, sem grandes pressões inflacionárias. Muita mão de obra está disponível, por causa do desemprego elevado e da subutilização da força de trabalho. Além disso, há ampla ociosidade de máquinas, equipamentos e instalações em boa parte do sistema produtivo.

Com inflação ainda contida, este cenário torna recomendável, segundo a ata do Copom, a manutenção de uma política monetária estimulante, com juros básicos mantidos em 6,50% e crédito sem maiores entraves. Estas condições podem facilitar o aumento da atividade, no próximo ano, se empresários e consumidores tiverem confiança para movimentar os negócios. Com maior utilização da força de trabalho e do parque produtivo, no entanto, os preços serão mais pressionados. Não parece haver risco de inflação fora dos limites fixados pela política nos próximos dois anos, pelos cálculos do BC e do mercado. Mas como garantir crescimento econômico mais veloz e sustentável por um longo período?

A resposta indicada pelo Copom - e por muitos economistas respeitados - envolve dois conjuntos de ações. O avanço no ajuste fiscal e em reformas básicas permitirá o controle da dívida pública, dará sustentabilidade às finanças oficiais e permitirá a manutenção de juros civilizados. Essas mudanças darão oxigênio ao governo e ao setor privado.

O outro conjunto inclui medidas voltadas diretamente para os ganhos de eficiência. A mobilização de recursos públicos e principalmente privados para investimentos na infraestrutura é um requisito óbvio. Do lado empresarial, os investimentos tenderão naturalmente a crescer, se os dirigentes puderem apostar com alguma segurança no futuro do País.

Mudanças na administração pública também contribuirão para ganhos de eficiência, tornando mais simples e mais fluida a relação entre empresas e governo e aumentando a segurança das transações. Estas condições, como todas as demais do conjunto voltado para a eficiência, são itens normalmente considerados nas avaliações de competitividade. As notas do Brasil têm sido baixas na maior parte desses quesitos.

Mas ganhos de produtividade envolvem mais que investimentos em capital físico, financiamento acessível e ambiente propício a negócios. Para se tornar mais eficiente, o Brasil dependerá também de uma oferta muito maior de mão de obra qualificada. A parcela menos qualificada deverá, no mínimo, ser capaz de receber treinamento para atuar em sistemas modernos de produção.

Qualquer plano decente de governo terá de incluir maior atenção aos níveis fundamental e médio de ensino, desastrosamente negligenciados por muitos anos. Também deverá valorizar a educação profissional. Boas iniciativas têm ocorrido, nesta área, em escolas do chamado Sistema S (Senai, Senac, etc.), com preparação de pessoal para trabalhar com tecnologia atualizada. Além de carências enormes, há exemplos promissores. O presidente eleito parece desconhecer os desafios e as propostas mais interessantes. Ao falar de educação, exibe preocupações basicamente ideológicas e com tintura religiosa. Esse é um péssimo sinal para quem deseja viver num país moderno, competitivo e com relevância global.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 07.11.18.

A lava jato e a política

Entre os vários riscos envolvidos na anunciada ida do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça do futuro governo Bolsonaro está uma possível confusão entre o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba e a Operação Lava Jato. Quem vai para o Ministério da Justiça é o juiz Sergio Moro, não a Lava Jato.

A Lava Jato é uma operação investigativa e judicial - e foi dentro do respeito a esse âmbito que ela conseguiu produzir seus melhores resultados. Ao longo dos últimos anos, o juiz Sergio Moro foi um árduo defensor do caráter judicial, e não político, da Lava Jato. Reconhecendo as limitações do trabalho da Justiça - “toda justiça humana é imperfeita”, disse no ano passado -, Sergio Moro frisava que a eficácia da função judicial está justamente em respeitar os limites legais. Admitindo a possibilidade de divergências, a resposta do juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba a eventuais críticas era sempre relembrar o fundamento legal de suas decisões.

Não poucas vezes, as manifestações públicas de Moro foram em sentido contrário às pretensões de membros do Ministério Público, que queriam converter a Lava Jato num movimento político. No ano passado, por exemplo, o procurador Deltan Dallagnol, ao comentar a proposta das Dez Medidas Anticorrupção, disse que “a estratégia agora não é mais coletar assinaturas, mas escolher senadores e deputados que tenham passado limpo, espírito democrático, e apoiem o combate à corrupção”. Sergio Moro manteve-se noutra esfera de atuação.

Não há motivo para que, agora, as coisas sejam diferentes. Sergio Moro anunciou uma mudança de posição - sua saída do Judiciário para assumir um cargo do Executivo -, mas a Lava Jato continua sendo uma operação investigativa e judicial, que, como toda outra operação dessa natureza, deve ter início, meio e fim. É necessário que Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário deem o devido encaminhamento à operação, arquivando o que deve ser arquivado, oferecendo denúncia quando for o caso e julgando os processos em tempo hábil, como era a praxe do juiz Sergio Moro.

Ao assumir o Ministério da Justiça, Sergio Moro deixa a Lava Jato. A Lava Jato não o acompanha. Caso isso ocorresse, haveria uma nefasta confusão de esferas institucionais, desmerecendo o trabalho da força-tarefa, como se fosse atividade exclusivamente pessoal de um juiz.

O Estado informou que Sergio Moro pretenderia levar alguns integrantes da força-tarefa da Lava Jato para o Ministério da Justiça. Estudaria convidar funcionários da Polícia Federal e da Receita Federal para compor sua futura equipe. Vale lembrar que, precisamente para respeitar os âmbitos institucionais de cada Poder, muitos desses funcionários, especialmente os procuradores, teriam de pedir, antes, a exoneração de suas funções para que possam trabalhar no Ministério da Justiça.

Longe de ser mero trâmite burocrático, essa medida é exigência do Estado Democrático de Direito, que delimita as esferas de atuação e estabelece competências específicas para cada função. Por isso, o juiz Sergio Moro tem também de se desligar definitivamente da função judicial para que possa assumir o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro.

Não se pode confundir a “agenda anticorrupção e anticrime”, prometida por Moro após ter aceitado o convite do presidente eleito Jair Bolsonaro, com uma próxima etapa da Lava Jato. São coisas essencialmente diferentes, cada uma com suas regras, procedimentos, objetivos e prazos específicos. Misturá-las seria roubar a eficiência que, cada uma, no seu âmbito, pode e deve ter. No caso da Lava Jato, isso representaria também adiar indefinidamente a sua conclusão - o que, para qualquer operação investigativa, é sinônimo de falta de foco, condução inábil e desvio de objetivos.

O trabalho de qualquer ministro da Justiça em prol de um ambiente público com menos corrupção e impunidade é muito diferente do ofício de titular de uma Vara Federal. No Judiciário, Moro exerceu com exímia competência e diligência seu trabalho, mas agora terá uma tarefa completamente diferente. Para ser bem-sucedido na empreitada, é essencial reconhecer essa abissal diferença, começando por não trazer a Lava Jato para o mundo da política partidária, pois é bom não esquecer que o titular de qualquer pasta será representante de um governo eleito e composto por partidos.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 06.11.18.

Efeito benéfico da democracia sobre os candidatos

O momento em que transcorre a oitava eleição presidencial consecutiva, pelo voto popular, algo inédito na República brasileira, é repleto de contingências que a tornam especial.

É translúcido como água limpa que muito do futuro da nação está em jogo no domingo 28, de que também depende a consolidação de avanços já ocorridos. Em que se destaca a própria democracia representativa, com o rito clássico da rotatividade no poder entre os diversos grupos políticos organizados na sociedade, sempre respeitada a Constituição.

Tem destaque na agenda nacional a própria estabilidade da economia, a ser obtida, ou não, a depender do que fará o próximo presidente com as contas públicas, que se mantêm em elevado déficit. E 2019 será o sexto ano consecutivo de saldo negativo, mantendo-se, nos últimos exercícios, acima dos R$ 100 bilhões. Não é possível continuar assim.

No campo político, começa a vigorar uma tímida cláusula de barreira para os partidos: exigência de um mínimo de 1,5% dos votos totais dados na Câmara, bem menos que os 5% estabelecidos para o pleito de 2007, infelizmente vetados pelo Supremo. Sem isso, o partido perde prerrogativas no Legislativo, acesso ao Fundo Partidário e ao programa político dito gratuito. Ao menos, é um início, para que acabe a excessiva pulverização de siglas no Congresso, forte incentivo à corrupção na montagem de bases que permitam ao presidente e a aliados governarem.

Um aspecto positivo nesta jornada eleitoral é a capacidade de instituições democráticas resistirem a pressões do autoritarismo, de esquerda ou de direita. Como as exercidas pelo lulopetismo sobre o Judiciário, o Ministério Público e o Legislativo para revogarem, na prática, a Lei da Ficha Limpa, a fim de permitir a um condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro disputar as eleições. Lula continua preso em Curitiba, e o estado democrático de direito se mantém de pé.

No transcorrer da campanha, os dois candidatos que estão na reta final da disputa, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), representantes da direita e da esquerda, vão eles mesmos moderando o discurso, em busca do centro.

Está sendo colocado em prova, com êxito até aqui, o mecanismo democrático pelo qual pressões legítimas da sociedade exercidas sobre candidatos e partidos conduzem os políticos para a zona de conforto ideológico do centro.

Há diversos exemplos. Ambos os candidatos afastaram a ideia golpista de uma Constituinte, sempre cultivada pelo PT; Bolsonaro recuou na homofobia e Haddad, no indulto a Lula; Bolsonaro rejeitou a ideia do “autogolpe” do seu vice, general Mourão; e Haddad disse discordar da “tomada do poder”, a que se referiu o ex-ministro José Dirceu, condenado por corrupção, mas em liberdade. Merece registro.

Editorial de O Globo, RJ, edição de 17.10.18

A hora das consequências

Por Merval Pereira

A manutenção da distância entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, confirmada pelo Datafolha, leva à conclusão de que, com mais uma semana passada sem que o candidato do PT conseguisse se aproximar do adversário, sua vitória parece inexorável. A diferença continua sendo de cerca de 18 milhões de votos, e o tempo está se reduzindo, apenas 10 dias separam a pesquisa mais recente das urnas.

Bolsonaro, temerário, já anunciou que está com uma mão na faixa presidencial, e no seu entorno já se discutem nomes para um futuro ministério. Mas o clima de já ganhou ontem passou a assustar os próprios assessores, que decidiram adotar um tom mais cauteloso, inclusive o próprio Bolsonaro.

Já começa a se solidificar a sensação de que somente uma “bala de prata”, um fato chocante contra Bolsonaro, seria capaz de alterar o resultado. A proximidade da derrota fez com que o PT ontem tentasse armar um escândalo com a suposta guerra de WhatsApp que seu adversário estaria comandando na clandestinidade.

Há muito pouco, porém, na reportagem de denúncia da Folha de S. Paulo para basear o pedido, feito ontem no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de anulação da eleição e convocação do terceiro colocado, no caso Ciro Gomes, para a disputa do segundo turno. O PDT também resolveu entrar na disputa, já que seria beneficiado.

É interessante ver que o PT que quer anular a eleição devido a abuso de poder econômico é o mesmo que foi acusado de crime semelhante na eleição de Dilma em 2014. Apesar do “excesso de provas”, como definiu relator Herman Benjamim, a chapa Dilma/Temer foi absolvida no TSE, e é difícil imaginar que agora, a poucos dias da eleição, o tribunal vá tomar alguma decisão que altere a disputa presidencial.

O que vai acontecer é que o PT fará a mesma coisa que o PSDB fez, isto é, continuar com o processo no TSE pedindo a anulação da eleição depois das eleições. Quando o PSDB fez isso, foi acusado de não ter aceitado o resultado, uma atitude antidemocrática. Agora, que está se aproximando a hora das urnas, e as pesquisas mostram uma grande vantagem de Bolsonaro, os petistas tentam criar uma onda de indignação sobre um assunto que precisa de uma ampla investigação antes de qualquer atitude do TSE.

Inclusive porque o PT também é acusado de usar fake news contra o adversário, nesta eleição e em outras anteriores. Ainda no primeiro turno, quando disputava com a candidata Marina Silva a ida para o segundo turno contra Dilma, o candidato tucano Aécio Neve anunciou que o partido acionaria o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o PT por abuso de poder político, em razão das denúncias divulgadas pelo jornal “O Estado de S. Paulo” de suposto favorecimento dos Correios à campanha de Dilma Rousseff em Minas e ao candidato petista a governador do Estado, Fernando Pimentel.

"Vários cidadãos disseram nas ultimas 24 horas que não receberam material de campanha. O PT ultrapassa todos os limites na utilização do Estado em benefício do seu projeto de poder. É crime o que aconteceu em Minas Gerais", afirmou. Houve também denúncias de abuso do poder econômico, uso de caixa 2, contratação de empresas fantasmas.

As pesquisas estaduais também não mostraram mudanças nos resultados do segundo turno, e tudo indica que também em Minas e no Rio o tempo é curto para impedir a vitória de Romeu Zema sobre o tucano Anastasia e do juiz Wilson Witzel sobre Eduardo Paes. Os dois ganharam força na última semana da eleição no segundo turno, ao se ligarem a Bolsonaro, e somente agora seus adversários, surpresos com o resultado inesperado, começam a tentar desconstruí-los. Não parece haver mais tempo.

O fato é que esse tsunami eleitoral alterou o jogo de forças em Brasília e nos Estados, e não necessariamente o novo que substituiu a velha política é uma transformação positiva. O que parece claro é que o que moveu o voto da maioria foi a vontade de mudar “tudo isso que está aí”.

Agora, resta saber no que vai dar essa renovação. Como disse o poeta Pablo Neruda, “você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das conseqüências”. Ou então, na frase famosa do Conselheiro Acácio, " as consequências vêm sempre depois".

Merval Pereira é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 19.10.18.

O papel da universidade

É urgente desvencilhar o meio acadêmico, especialmente o das universidades públicas, das amarras com o lulopetismo.

São estranhos esses tempos. Clamando por maior moralidade na vida pública, a população tem manifestado forte e decisivo apoio à Operação Lava Jato, que se tornou o principal símbolo do combate à corrupção. Ao mesmo tempo, o ex-presidente Lula da Silva, mesmo cumprindo pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, exerce significativa influência na campanha eleitoral. Por exemplo, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que não conseguiu chegar ao segundo turno nas eleições municipais de 2016 e agora é o preposto de Lula na campanha presidencial, aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.

Apesar do envolvimento de muitas lideranças do PT e do próprio Lula da Silva em crimes, como já apontou a Justiça, o lulismo continua arraigado em parcela significativa da população brasileira. “O Lula é uma liderança daquilo que impropriamente se chama de esquerda. Negar isso é negar os fatos. Estamos falando de um homem condenado, na cadeia, tendo seu partido praticado uma série de irregularidades, que ele endossou, numa posição de líder de um partido que tem reais possibilidades de chegar à Presidência. Não é pouca coisa. Ninguém mata essa jararaca”, disse o historiador e cientista político Boris Fausto, em entrevista ao jornal Valor.

São várias as causas para a persistência do lulismo. O tempo de Lula da Silva no Palácio do Planalto coincidiu com um período de prosperidade econômica do País. Além de uma situação internacional favorável, os dois governos de Lula usufruíram das condições de crescimento proporcionadas pelas reformas estruturais feitas nos governos de Fernando Henrique Cardoso.

A lembrança do ambiente econômico de 2003 a 2010 não é capaz, no entanto, de explicar inteiramente como uma pessoa envolvida em tantos casos de corrupção continua sendo vista como uma liderança política por boa parte da população. A esse respeito, Boris Fausto lembrou um ponto importante na entrevista mencionada. “A canonização de Lula em meios universitários é impressionante. As pessoas abrem mão de pensar neste momento”, disse o professor da USP.

Para a construção dessa imagem de Lula da Silva absolutamente desconectada dos fatos, o meio acadêmico, com raras e honrosas exceções, teve uma importante parcela de responsabilidade. Para favorecer suas posições políticas e ideológicas, muitos professores e pesquisadores abdicaram de ver os fatos. Ou - igualmente grave - viram os fatos, mas entenderam que os fins justificariam os meios e absolveram antecipadamente todas as ações criminosas e de lesa-pátria praticadas por quem estava à frente do projeto de poder lulopetista.

É extremamente prejudicial ao País, sobretudo para a formação das novas gerações, que o meio acadêmico continue “canonizando” Lula da Silva mesmo depois de ter sido condenado, em duas instâncias, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. É ressuscitar a absurda e anacrônica mensagem do “rouba, mas faz”. Nessa estranha lógica, os erros de Lula da Silva seriam insignificantes diante do suposto bem que ele gerou para o País. O caso é que os benefícios foram fugazes e os malefícios são perenes.

Além de essa tese ser pura invencionice - o País amarga uma profunda crise moral, política, social e econômica, herança maldita dos anos do PT no governo -, é estranho que o ambiente acadêmico, que deveria se notabilizar pela liberdade de pensamento e, portanto, expressar e defender o pluralismo de ideias, seja assim subjugado por uma ideologia político-partidária, com tão baixa densidade intelectual e sem compromisso com os fatos.

Não há verdadeira universidade sem liberdade. Por isso, é urgente desvencilhar o meio acadêmico, especialmente o das universidades públicas, de suas amarras com o lulopetismo. A captura da universidade por uma corrente ideológico-partidária é sinal de emburrecimento, justo onde a inteligência deveria vicejar - e de grave desvio de finalidade, pois o dinheiro público destinado à educação está financiando as trincheiras acadêmicas de um retrógrado partido político.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 04.10.18

O cacoete do velho PT

Por Gaudêncio Torquato

“Pau que nasce torto não tem jeito, morre torto”.

O popular ditado cai bem nesse momento sobre a cúpula do PT. O novo governo nem começou e o partido volta ácido e mal humorado, a confirmar o lema que o distingue há três décadas – “se hay gobierno, soy contra”. Assim pensa: “o único governo que prestou e deve ser reconhecido como o melhor do país em todos os tempos foi o nosso”.

Não há como argumentar com mentes empedernidas, que continuam a se orgulhar das “vestes imaculadas” de um corpo enlameado pelo mensalão e pelo petrolão.

O PT não desce do pedestal. Na noite da derrota, Fernando Haddad inverteu a aritmética, elevou aos píncaros da glória seus 47 milhões de votos, convocou a militância para resistir e não ter medo, avocando-se como o professor-guerreiro “que não foge à luta, nem teme quem adora a liberdade à própria morte”. A ferocidade voltou à garganta de Gleisi Hoffmann ao destilar a raiva do “Nós e Eles”.

A democracia pressupõe jogo dos contrários. O embate de ideias é salutar para um sistema que preza a liberdade. Esse é o cerne da nossa Constituição que, aliás, o PT se recusou a assinar. Convém lembrar: no início da redemocratização o partido não votou em Tancredo Neves para presidente, não apoiou Itamar Franco na transição nem o Plano Real, que estabilizou a moeda.

Uma viseira histórica estreitou o olhar petista: no Brasil há uma banda sadia, a deles, e uma banda podre, o resto. O feitiço virou contra o feiticeiro, vítima da dualidade que cultivou. E voltará a semear com a disposição já manifesta de fazer “oposição por oposição”. Ocorre que boa parte dos partidos de centro-esquerda não mais perfilará ao lado do PT, caso do PDT de Ciro Gomes.

O petismo poderá adensar a oposição, caso o governo Bolsonaro seja um fracasso. A recíproca é verdadeira. Se ganhar aplausos, a administração Bolsonaro queimará o estoque de força do PT. Voltar às ruas com mobilizações e discurso crítico, sem esperar resultados, é um risco. Que pode ser evitado caso o partido faça uma reflexão capaz de apontar erros cometidos e definir rumos a seguir. Alas do PT disputarão a condição de interlocutores do amanhã. Se a verborragia azeda dos petistas persistir, sob a bandeira do “Lula livre”, é possível prever o acirramento dos ânimos.

O país precisa de horizontes claros. Do novo governante, espera-se também uma palavra moderada, acolhedora, de respeito à Constituição. A linha divisória será mais forte ou mais tênue se os extremos contiverem suas agressões recíprocas. O Brasil não merece a eterna campanha de luta pelo poder. Demandas prementes podem ser atendidas, como nas áreas da saúde, segurança pública, educação e mobilidade.

Enxugar a máquina administrativa, promover reformas fundamentais, criar empregos, adotar a meritocracia, melhorar a autoestima dos brasileiros, enfim, expandir o Produto Interno Bruto da Felicidade – são desafios que devem receber o apoio de todos. Ser contra apenas para voltar ao poder é politicagem.

É hora de lembrar a lição do Barão do Barão do Amazonas, vencedor da Batalha Naval de Riachuelo: "O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever".

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação - Twitter@gaudtorquato

Mais análises no blog www.observatoriodaeleicao.com

Superar o anacronismo

Por José Roberto Nalini

O Brasil precisa acordar e ter coragem de enfrentar problemas que, aparentemente menores, contribuem para afligir a Nação e seus sacrificados habitantes. Nem todos a fruir o status civitatis, ou seja, não conseguem ser cidadãos, ter o direito a exercer direitos, diante de estruturas arcaicas e inertes.

Um dos cenários evidentes para quem está fora do Brasil é a fragílima situação do sistema de Justiça. O Brasil judicializou a vida. Mais de uma centena de milhões de processos infernizam a rotina de outros milhões de brasileiros. Tudo é levado à apreciação de um juiz, que depois de decidir verá a sua decisão ser aferida por um tribunal de segunda instância. Mas não para aí a peregrinação de quem precisa da Justiça: o processo pode chegar à terceira instância, em geral o Superior Tribunal de Justiça e, não raro, atingir a quarta instância, o Supremo Tribunal Federal.

Esse percurso tortuoso se submete a várias dezenas de possibilidades de reapreciação do mesmo tema, pois imerso num caótico sistema recursal. O processo passou a ser a grande chave para que algo chegue a uma definição ou, muitas vezes, deixe de ser examinada a substância da controvérsia.

É óbvio que a cultura jurídica é uma causa eficiente desse fenômeno. Quando Pedro I quis produzir uma burocracia tupiniquim e cortar o cordão umbilical com a Faculdade de Direito de Coimbra, ele foi buscar naquela fonte o modelo até hoje vigente. O ensino coimbrão já contava em 1827 com experiência quase milenar, pois inspirado em Bolonha, uma das mais antigas universidades do continente europeu.

Transplantado para o Brasil, com a gloriosa São Francisco e a Faculdade de Olinda, logo depois transferida para o Recife, replicou o padrão que se manteve inalterado, salvo exceções, até o século 21. O ensino é compartimentado, cada disciplina merece toda a atenção do titular e do departamento, em regra uma não conversa com a outra. Insiste-se na memorização, prevalece o magister dixit: alguém detém o conhecimento e o transmite ao aluno, “tábula rasa” que nada sabe e vai se abeberar na fonte de saber, o catedrático.

Duas coisas apenas mudaram. Primeira, o milagre da criação de Faculdades de Direito. Hoje o Brasil tem, sozinho, um número de escolas para o ensino da ciência jurídica em escala superior à soma de todas as outras que existem no planeta. Os Estados Unidos, por exemplo, continuam com suas 330 faculdades. Nós já chegamos a 1.300.

Segunda alteração: o processo ganhou autonomia científica. Houve um tempo em que ele era denominado um direito “adjetivo”: servia como instrumento para que a substância, o “direito substantivo”, chegasse às mãos e à consciência do juiz. Tanto lutaram os processualistas que de instrumento ele passou a ser essência. Hoje o processo e o procedimento são mais importantes que o mérito. Perscrute-se a porcentagem de lides que terminam apenas processualmente e não veem analisada a questão de fundo que levou a parte a procurar o socorro judicial.

Foi esse desenvolvimento que causou o paroxismo do “quádruplo grau de jurisdição”, quando o mundo inteiro se satisfaz com o “duplo grau de jurisdição”, hoje tão menosprezado.

O ensino jurídico precisa se atualizar. Afinal, a 4.ª Revolução Industrial sacrifica profissões, cerca de 701 delas tendem a desaparecer. A automação substituirá milhões de funções. A inteligência artificial compete e pode ganhar da inteligência humana, como já aconteceu com o Watson, vencedor de várias partidas de xadrez com os mais festejados xadrezistas. A internet de todas as coisas, a computação quântica, a robótica, tudo é diferente. O Direito precisa voltar a ser a fórmula de tornar o ser humano feliz. Ou de reduzir a carga de atribulações a que ele está submetido nesta efêmera e frágil passagem pelo planeta.

Missão quase impossível é convencer os educadores da ciência do Direito de que hoje as habilidades cognitivas não são tão importantes, pois o conhecimento está disponível para todos e nunca foi tão acessível. O que importam são as competências socioemocionais, como a empatia, a flexibilidade, a capacidade de comunicação e de readaptar-se continuamente, o talento para a harmonização, a busca da paz, da concórdia e do diálogo. Temas que nem sequer são cogitados por um sistema que ainda enxerga o processo como a mais adequada estratégia de solucionar um problema.

Enquanto não se atinge a maturidade cívica e a lucidez não orientar os que podem proceder às mudanças, pelo menos os concursos públicos para as carreiras jurídicas poderiam merecer adequação. Qual o significado de se exigir de um futuro juiz, promotor, defensor, procurador, delegado de polícia ou delegatário de serviço extrajudicial a memorização e o domínio mnemônico de um acervo enciclopédico de informações? Para que decorar toda a legislação, toda a doutrina e toda a jurisprudência, se a tríade pode ser localizada em segundos mediante utilização do Google?

O Brasil precisa mais é de pessoas sensíveis, equilibradas, prontas para o inesperado. Capazes de se reformular. Tolerantes. Compassivas. Atentas às vulnerabilidades dos semelhantes. Emotivas. Caridosas. Compreensivas.

A erudição arrogante pode fazer a sua parte. Decidir e pôr fim ao processo. Nem sempre – ou quase nunca – encerrar o conflito. Denunciar, ainda que às vezes de forma temerária. Assim por diante, replicando a praxe tecnicista, intensificando a nefasta influência da burocracia, afligindo ainda mais o aflito que necessita dos préstimos da Justiça.

Os concursos públicos precisam aprender com a iniciativa privada, que nunca entregaria a uma comissão ad hoc, sem experiência em recrutamento, a grave missão de renovar os quadros de que necessita para atender às finalidades para as quais ela é preordenada.

Quem ousaria pensar nisso?

José Roberto Nalini, Professor de Direito e Desembargador aposentado, é ex-Presidente da Academia Paulista de Letras e autor de "Ética Geral e Profissional" (em 13ª edição, RT-Thomson. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.10.18.

Pela desordem

Por JR Guzzo

Está sendo executado já há algum tempo no Brasil, de forma cada vez mais agressiva, um conjunto de ações que têm tido um efeito prático muito claro: tumultuar, desmoralizar e, no fim das contas, sabotar as eleições para escolher o novo presidente da República. O cidadão é alarmado, de cinco em cinco minutos, por bulas de advertência que afirmam que a eleição, a democracia e a Constituição estão sendo ameaçadas. Mas, por trás das notas oficiais e das outras mentiras prontas que são normalmente utilizadas para enganar o brasileiro comum, quem está realmente querendo destruir as eleições de outubro? Uma coisa é certa, segundo se pode verificar pelos fatos à vista do público: não são os generais do Exército, sejam eles da reserva ou da ativa, ou os oficiais de quaisquer das três Armas. A turma que quer virar a mesa, hoje, está exatamente do outro lado. Eles gritam “cuidado com o golpe”, com a “pregação do ódio”, com o “discurso totalitário” etc. etc. Mas parecem cada vez mais com o batedor de carteira que, para disfarçar o que fez, sai gritando “pega ladrão”.

É impossível cometer uma violência tão espetacular numa campanha eleitoral quanto a tentativa de assassinato praticada contra o candidato Jair Bolsonaro — mais que isso, só matando. O homem perdeu quase metade do sangue do próprio corpo. A faca do criminoso rasgou seus intestinos, o cólon, artérias vitais. Bolsonaro sofreu cirurgia extensa, demorada e altamente arriscada, e passará por outras. Só está vivo por um capricho da fortuna. Foi posto para fora da campanha eleitoral justo no momento mais decisivo. Poderia haver alguma agressão maior ou pior do que essa contra um candidato? É claro que não. O fato é que a tentativa de homicídio, cometida por um cidadão que foi militante durante sete anos da extrema esquerda, como membro do PSOL, desarrumou todo o programa contra a boa ordem da eleição presidencial. O roteiro, desde sempre, prevê que a esquerda fique no papel de vítima e Lula no de mártir, “proibido” de se candidatar e “perseguido” pela Justiça. Deu o contrário: a vítima acabou sendo justamente quem estava escalado para o papel de carrasco.

A opção da esquerda para enfrentar a nova realidade parece estar sendo “dobrar a meta”. Nada representa com tanta clareza essa radicalização quanto o esforço para fazer com que as pessoas acreditem que a tentativa de matar Bolsonaro foi apenas um incidente de campanha, “um atentado a mais”, coisa de um doidão que podia fazer o mesmo com “qualquer um” — na verdade uma coisa até natural, diante da “pregação da violência” na campanha. Ninguém foi tão longe nessa trilha quanto a responsável por uma “Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão”, repartição pública que você sustenta na Procuradoria-Geral da República. Depois de demorar quatro dias inteiros para abrir a boca sobre o crime, a procuradora Deborah Duprat soltou uma nota encampando a história de que houve “mais um ataque”. E quais foram os outros? Segundo a procuradora, o “tiro” que teria sido disparado meses atrás na lataria inferior de um ônibus no qual Lula circulava tentando fazer campanha no Paraná, escorraçado de um lado para outro pelos paranaenses.

Que tiro foi esse? Tudo o que se tem até agora a respeito, em termos de provas materiais, é um buraco na carroceria do ônibus — não há arma, não há autor, não há testemunha, não há nada. Mas a procuradora acha que isso é a mesma coisa que a agressão que quase matou Jair Bolsonaro. Acha também que a história se “conecta” com o assassinato da ve­readora carioca Marielle Franco — vítima, possivelmente, de um acerto de contas entre criminosos. Enfim, joga a culpa da facada no próprio Bolsonaro, por elogiar “o passado ditatorial” do Bra­sil e ser contra as “políticas de direitos humanos”. Não chega nem a ser uma boa mentira — é apenas má-­fé, como a “ordem da ONU” para o Brasil deixar Lula ser candidato, ressuscitada mais uma vez. Se há um país que está em dia com as suas obrigações junto à ONU, esse país é o Brasil. Acaba de cumprir, entre 2004 e 2017, treze anos de missão de paz no Haiti, em que participaram 38 000 militares brasileiros — dos quais 25 morreram. Seu desempenho foi aplaudido como exemplar; não houve um único caso de violência ou desrespeito aos direitos humanos de ninguém, do começo ao fim da operação. Mas o Complexo Lula-PT-esquerda prega que o Brasil é um país “fora da lei” internacional, por não obedecer a dois consultores de um comitê da ONU que decidiram anular a Lei da Ficha Limpa. Estão, realmente, apostando tudo na desordem.

José Roberto Guzzo é Escritor e Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600

Entre a industria da escavação e a 4ª República

Por Francisco Gaetani

Vivemos tempos inéditos, sem padrões facilmente associáveis a outros momentos da nossa História republicana. Estamos no limiar da Quarta República - que sucede à República Velha (1889-1930), à República Nova (1946-1964) e à Nova República (1985-2018). A repactuação da democracia encontra-se bloqueada por uma neblina que tem entre seus ingredientes a histeria coletiva em que o País se viciou.

Fenômenos sem precedentes estão se multiplicando. Na administração pública federal surge uma nova onda: o florescimento da indústria das escavações. O medo está fazendo as burocracias se dedicarem a escarafunchar o que veio antes. Todos querem distanciar-se do passado. Parte da energia que resta na burocracia federal, que o governo utiliza para suas últimas entregas e para a transição, vem sendo canalizada para exumação de processos antigos, por motivações resumíveis a uma palavra: medo.

Casos do atual governo e anteriores - apresentando evidências de problemas ou apenas suspeitas de irregularidades, não importa - passaram a ser exumados. O País precisa ser passado a limpo. Desde quando? Onde está a linha divisória? Rompeu-se. Nada disso importa mais. Critérios, bom senso e discernimento não são argumentos audíveis nesta conjuntura. Soam como cumplicidade com práticas de corrupção presumivelmente disseminadas por todo o Estado brasileiro e impossíveis de ser combatidas salvo via guerra total. Como se esta fosse uma guerra com começo, meio e fim.

Há uma novidade: não existe mais necessidade de uma provocação de agente externo, como o Tribunal de Contas da União ou o Ministério Público Federal. Os funcionários públicos estão de moto-próprio se dedicando à escavação. As atenções não se direcionam para o presente ou para o futuro, mas para o passado. Alguns desenvolveram uma visão dupla: para cada problema abrem novo processo para responsabilizar quem quer que seja por não ter resolvido o problema original. A burocracia passa a dedicar-se ao passado, a despeito dos esforços que o governo, coordenado pela Casa Civil, pelo Ministério do Planejamento e pelo Ministério da Fazenda, tem desenvolvido para manter o País funcionando.

A explosão punitivista, realimentada pela mídia, produziu uma nova normalidade na esfera pública: todos contra todos. Todos ansiosos para se distanciarem de quaisquer suspeitas sobre práticas passadas. Todos demonstrando um zelo inaudito pelo interesse público. Todos evitando riscos que possam levar à incompreensão quanto a julgamentos, opções e atos anteriores.

Discute-se a questão dos excessos praticados na atual quadra de nossa História contemporânea. A poeira está longe de assentar. Aqui e ali, vozes começam a se manifestar publicamente por reflexões mais ponderadas, comportamentos mais contidos e formação de convicções mais temperadas pelo tempo e pela razão - em contraponto ao imediatismo e à emoção. Estrangeiros irredutíveis no seu otimismo em relação ao Brasil se perguntam como um país com tantas coisas a seu favor, que depende de seus próprios resultados para se desenvolver, é capaz de infligir a si mesmo tantos problemas.

O próximo governo terá de lidar com as múltiplas forças e os comportamentos que têm contribuído para o agravamento da crise nacional e que não param de cavar - seja em benefício próprio, seja por visões equivocadas sobre seu papel. Os eleitos precisarão trabalhar na cicatrização de feridas institucionais profundas e no processamento de pendências inadiáveis que contribuíram para que chegássemos ao atual estado de coisas. Terão de lidar com o fato de que grande parte dos atores - no Congresso, nos tribunais, nos órgãos de controle, no Ministério Público e na burocracia estatal federal, nos três Poderes - serão os mesmos.

Os próximos meses são importantes para o mapeamento de minas, desarmamento de bombas, criação de ambientes de diálogo, incubação de propostas, organização de menus, calibragem de expectativas e início de um longo e penoso processo de reconstrução da confiança do País em si mesmo.

O fomento da indústria da exumação é a consagração da premissa de que todos serão doravante culpados por serem suspeitos e caberá a eles provar sua inocência. Premissas como presunção de inocência, ônus da prova, impedimento à retroatividade de leis, in dubio pro reo, freios e contrapesos, trânsito em julgado são temas postos em xeque pela dinâmica política recente.

O processo de profissionalização da administração pública brasileira é um negócio inacabado. Move-se espasmodicamente, dependendo de aspectos conjunturais. Canalizar o precário capital institucional do Estado para um mergulho nas profundezas do passado em função de apelos midiáticos significa deixar de lado os desafios nacionais para uma expedição errática, cujos resultados prometem infinitas causas judiciais. Este quadro é reversível. Não estamos condenados nem a uma permanente caça às bruxas, nem a este estado de sobressaltos sem fim.

A Controladoria-Geral da União tem trabalhado para introduzir lucidez, clareza, medida e razoabilidade neste contexto. O TCU tem procurado atuar de forma mais ponderada e construtiva. É preciso um esforço maior dos dirigentes e dos quadros permanentes da burocracia para que a racionalidade seja restabelecida. Priorização estratégica, cortes temporais e análises dos custos e benefícios são devem balizar o combate à corrupção.

O País está próximo das eleições e é tempo de virar a chave. A Nova República esgotou-se. É hora de dialogar com o futuro - construir a Quarta República. Do contrário, nós nos perderemos buscando reescrever um passado imprevisível, com a finalidade de proporcionar uma nova acomodação de interesses que não guarda relações com o interesse público.

Francisco Gaetani é Doutor em Governo pela London School of Economics and Political Science. É Presidente da Escola Nacional de Admiistração Pública. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.09.18.

A democracia no chão

Por JR Guzzo

A democracia no Brasil, se quisermos dizer a verdade em voz alta e sem perder tempo com muito palavrório, está valendo cada vez menos hoje em dia. Esqueça essa conversa de que “as instituições estão funcionando”, ou que a democracia brasileira já “está adulta”, ou que “não há mais lugar para aventuras autoritárias” no mundo do século XXI. As instituições não estão funcionando coisa nenhuma. A democracia no Brasil pode estar adulta, mas sua idade mental no momento é de 3 anos. Quanto à falta de espaço para regimes não democráticos no mundo de hoje — bom, aí já dá vontade de rir. Se há alguma coisa que existe de sobra neste planeta, nos dias que correm, é terreno para montar qualquer espécie de ditadura — ditadura sob medida, até, em vários modelos e estilos, de classe econômica a première platinum plus. E o que sobrou de democracia no Brasil — quanto tempo ainda dura até ir para o espaço? É difícil dizer. Pode demorar um tanto mais, um tanto menos. Para a maioria dos brasileiros, tanto faz — estão pouco ligando para o assunto, e quando ligam é para torcer contra. Mas parece certo que os demais, os que se dizem democratas ou ganham a vida nos cargos, funções e atividades que a democracia fornece, estão contribuindo o máximo que podem para que tudo vá o mais breve possível para o raio que o parta.

É claro que estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, e isso precisa de uma ordem democrática para existir. Você pode tomar um ônibus de São Paulo a Goiânia, por exemplo, sem pedir licença a ninguém. Pode falar mal do governo quanto quiser. Pode ir à igreja da sua preferência, ou não ir. A polícia não pode prender uma pessoa sem mandado judicial e é obrigada a fazer um boletim de ocorrência se lhe roubarem alguma coisa. Para tirar um cidadão da casa onde mora, é preciso uma sentença de despejo. Você tem o direito (e a obrigação) de votar, de chamar a ambulância do SUS e de assistir às sessões da Câmara de Deputados, no espaço reservado ao público. Você é dono da Petrobras, do Banco do Brasil e da empresa criada em 2012 para construir o trem-bala, sem contar os canais de transposição das águas do São Francisco, a TV Brasil e a Esplanada dos Ministérios. Mas não são essas coisas que estão faltando na democracia brasileira. O que lhe falta, e põe sua existência cada vez mais em risco, é a lógica comum. A democracia neste país, hoje, é uma geringonça sem pé nem cabeça — e coisas sem pé nem cabeça raramente têm um grande futuro pela frente.

Honestamente: como é possível o país ter democracia e, ao mesmo tempo, ter o ministro Edson Fachin, um dos onze monarcas que hoje se sentam no Supremo Tribunal Federal? Ou se tem uma coisa ou a outra. Todo mundo sabe que não pode existir democracia em lugar nenhum sem que haja plena segurança jurídica — ou seja, sem a expectativa de que a lei será aplicada conforme está escrita e dentro de um entendimento racional, todas as vezes que for necessário e de maneira igual para todos. Mas o ministro Fachin é o que se poderia chamar de insegurança jurídica ambulante — é o contrário, justamente, do que um regime democrático precisa. Onde está a lógica? Dias atrás, num voto no tribunal eleitoral, Fachin passou duas horas inteiras torturando o português, a razão e a lei brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Sim, dizia ele: não há nenhuma dúvida legal de que o ex-presidente Lula é inelegível. Mas uma força superior, segundo nos disse, anula a lei nacional. Que força seria essa? Deus? Não: dois sujeitos que fazem parte de um comitê de dezoito consultores da ONU em direitos humanos. Eles não têm nenhum poder funcional — não são a Corte Internacional de Haia, a Agência de Energia Atômica de Viena ou a Assembleia-Geral. Não têm existência jurídica. Não julgam nada nem decidem nada; só dão pareceres, e acharam que Lula tem o direito de se candidatar à Presidência.

Se há alguma coisa que existe de sobra neste planeta é terreno para montar qualquer espécie de ditadura

Mas só dois, entre dezoito, resolveram isso? Só dois. Ouviram os dois lados — os advogados de Lula e o Ministério Público brasileiro? Não. Só ouviram o lado de Lula. O que decidiram representa uma posição oficial? Não; isso eles só vão dar no ano que vem. Em suma: é uma insânia, e por isso mesmo o tribunal eleitoral negou por 6 a 1 o pedido de Lula. O espanto é que tenha havido esse 1 a favor — o voto de Fachin. Nada do que ele disse fez o mais remoto sentido. E se os dois consultores tivessem decidido que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a monarquia? Fachin acha que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena de ficar na ilegalidade internacional. Se um ministro da nossa Suprema Corte defende um negócio desses, não é possível ter a menor confiança em nada do que o homem venha a decidir. Argumentou-se, é claro, que ele não é sempre assim; ao contrário, tem votado de maneira sensata. Mas aí é que está o problema: ele pode surtar a qualquer momento, sem avisar ninguém, e dar outro voto igual a esse — e não há absolutamente nada que se possa fazer a respeito. Insegurança jurídica é justamente isso. Outra coisa: Fachin não teria direito à sua opinião pessoal? Não desse jeito, da mesma maneira que você não pode dizer: “Na minha opinião a Terra é quadrada”. Isso não é opinião nem democracia.

É esquisita, nessa e em outras histórias similares, a ligeireza com que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os ministros se acharam na obrigação de cumprimentar Fachin pelo seu “brilhante voto”; ele, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que massacraram cada palavra que disse. Todos acharam igualmente “brilhante” a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa armou com essa comissão da ONU. Brilhante por quê, se é um completo disparate? Tudo isso causa a pior impressão. Nossos mais altos tribunais de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, em que a solidariedade entre os sócios se pratica através da puxação automática e perene de saco. Asinus asinum fricat, poderiam dizer uns aos outros — não são eles que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público não entender nada? Pois então; eis aí um pouco de latim para verem se está ao seu gosto. O STF, por sinal, é o retrato vivo de uma democracia na UTI. Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência individual de um funcionário (salário de até 12 000 reais por mês, mais horas extras, chamado “capinha”) que lhe puxa a poltrona na hora de sentar à mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a rainha Elizabeth II tem um serviço assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do mundo. Os ministros acham isso normal, como acham normais seu recente aumento de 16% nos salários diante de uma inflação anual de 4%, seus privilégios materiais, seus dois meses de férias por ano, sua aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora. Isso é simplesmente desigualdade — e como acreditar numa democracia na qual a maior corte de Justiça vive abertamente com direitos individuais de seus ministros superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está assim, imagine-se o resto.

Isso não é democracia — é um arranjo provisório, que só fica de pé porque ninguém ainda se organizou para jogar tudo no chão.
JR Guzzo é Escritor e Jornalista.Este artigo foi publicado originalmente em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599.

Entre a prisão e o hospital

Por Denis Lerrer Rosenfield

Do cárcere, um ex-presidente condenado por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro manipula o processo político via processos ditos jurídicos, agindo por interposta pessoa, no caso, o candidato Fernando Haddad. No hospital, um candidato atacado, vítima de um ato cruel, sobreviveu e se manteve presente politicamente via redes sociais. O primeiro representa uma esquerda degenerada que descambou para o crime e para o aparelhamento dos Poderes constituídos. O segundo representa o antipetismo, tão ancorado na sociedade brasileira, seja por reação ideológica, seja pela necessidade de uma limpeza da vida pública.

Considerar, agora, uma terceira alternativa não é uma proposta séria, por partir de completo desconhecimento da realidade. Esta está dada, e atente pelo nome da oposição entre petismo e antipetismo, entre defesa da corrupção e seu combate. As artimanhas das últimas semanas, permeadas por ideias de uma terceira via, mais servem para apaziguar consciências desnorteadas que, em nome do politicamente, correto, procuram uma fuga da realidade. Para além da iniciativa tardia, imagine-se a confusão nas urnas eletrônicas, com candidatos que lá estariam e não estariam mais!

Como máscara a acobertar uma suposta “justificativa”, aparece a defesa da democracia contra o “fascismo” e outras bobagens do gênero. De repente, num toque de magia, todos se tornaram “democratas”, até mesmo aqueles cuja longa trajetória se caracterizou pela defesa das ditaduras castrista, de Chávez e de Maduro e, de modo geral, do “socialismo bolivariano”. São democratas da mais alta estirpe, certamente! Isso para não falar da corrosão das instituições democráticas, das investidas contra a Lava Jato e da apropriação de empresas públicas, sendo o caso da Petrobrás o mais emblemático.

Os tucanos merecem um tratamento à parte. Não apenas deixaram de ser uma alternativa ao PT, mas vieram a se tornar uma força auxiliar do petismo. O candidato Geraldo Alckmin bate preferencialmente em Jair Bolsonaro, com uma propaganda caricatural e rasteira. O deputado, que sempre lutou contra o “socialismo bolivariano”, é apresentando como se um Hugo Chávez em potencial fosse! Qual foi o resultado disso? Ajudou a desacelerar o crescimento de Bolsonaro, estancou o dele mesmo, se não caiu, e favoreceu o aumento das intenções de voto em Haddad. O PT agradece e manda um forte abraço lá de Curitiba!

Aliás, o namoro do PSDB com o PT não é de hoje. Remonta a uma suposta afinidade ideológica entre os dois partidos, supostamente em torno de ideias social-democratas, embora os petistas jamais se tenham reconhecido em tal denominação. Ao contrário, não cessaram de criticar a tal da “herança maldita” do governo Fernando Henrique. E o ex-presidente tucano não cessa de lançar palavras amigáveis a Haddad, Lula e congêneres, para além de afirmações feitas realmente por Alckmin, e supostamente desmentidas, de que não votaria jamais em Bolsonaro em segundo turno. Numa eleição polarizada, criticar tão fortemente um candidato significa, evidentemente, balizar o caminho para o outro.

Lula talvez nem esperasse tanto, deve estar emocionado! Após as sucessivas tentativas de aviltar a democracia brasileira e suas instituições, além de ter conduzido o País, com a ajuda de outra “eleita” dele, Dilma Rousseff, a uma crise econômica, social e política de vulto, Lula e seu partido se colocam como“vítimas” e, para algumas “boas almas”, como representantes da democracia. Vítima é o povo brasileiro!

Afinal, quais são as credenciais petistas? O Brasil legado pelos sucessivos governos Lula e Dilma é uma verdadeira ruína. A irresponsabilidade fiscal foi tanta que até agora o PIB encontra dificuldades para crescer, após sucessivas quedas. O desemprego atingiu mais de 12 milhões de trabalhadoras e trabalhadores; a classe média ascendente, tanto alegada por seu novo status, fez o movimento inverso, após ter usufruído uma efêmera bonança.

E o pior de tudo é que esse descalabro vem sendo atribuído pelos petistas ao governo Temer, que ousou enfrentar tal situação. A irresponsabilidade é total, marcada pela completa falta de pudor! A narrativa do “golpe”, num claro artifício demagógico, foi o instrumento utilizado para debilitar as instituições democráticas. É como se Lula não fosse um cidadão qualquer, pairando por cima das leis, como se estas devessem estar a seu serviço.

O desrespeito à leis e à Constituição – só aparentemente respeitadas – conduziu o partido e os seus auxiliares na mídia televisiva e impressa a uma investida contra o Judiciário e o Ministério Público. Isso para não falar das tentativas reiteradas de desconsideração da Lei da Ficha Limpa e de levar o “caso” de Lula, julgado segundo a lei em todas as instâncias dos tribunais brasileiros, a um comitê de Direitos Humanos da ONU, como se tivesse jurisdição sobre o País. O próprio Estado Democrático de Direito foi posto em questão.

Lula e o PT jamais esconderam seus sucessivos projetos de controle da imprensa, denominada “controle social dos meios de comunicação”. Basta substituir a palavra social por petista, para que tenhamos a sua plena significação. Foram e continuam sendo defensores do “socialismo bolivariano” e de Maduro, cuja opressão contra seu povo foge de qualquer parâmetro democrático. A violência e a miséria são suas características centrais.

Neste contexto, uma vítima, convalescendo num hospital, é designada como “fascista” e “ditatorial”, numa curiosa inversão de papéis. Se Bolsonaro veio a se consolidar enquanto alternativa, isso muito se deve às mazelas e arbitrariedades petistas, em paralelo com as dubiedades e incoerências tucanas. Aliás, estes aliados “objetivos” ou escondem ou não compreenderam que a candidatura da “direita” é uma resposta à corrupção, à insegurança que grassa pelas ruas e ao politicamente correto. Estão colhendo o que plantaram.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 01.10.18.

Dilma não pode ser esquecida

A campanha eleitoral já está há duas semanas nas ruas do País, mas quase nenhum candidato a presidente foi capaz de abordar aquele que deveria ser um dos principais assuntos desta eleição: o terrível legado dos governos lulopetistas, especialmente o de Dilma Rousseff.

Dilma sofreu impeachment em 12 de maio de 2016 e foi afastada em definitivo em agosto daquele ano. Desde então, o País luta para superar a imensa crise causada por sua incompetência e sua visão de mundo, consubstanciada na ideia segundo a qual “despesa corrente é vida” – frase símbolo do modo Dilma de pensar e que quase levou o País à ruína.

Os números de sua passagem pela Presidência não permitem dúvida sobre o desastre: Dilma saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto deixando atrás de si uma inflação de mais de 9%, uma taxa de juros próxima de 15% e desemprego de 10,9%, contra 6,5% em 2014, quando a petista foi reeleita. O número total de desempregados saltou de 6,4 milhões para 11 milhões nesse curto período, uma alta impressionante de mais de 70%. Tudo isso sob o pano de fundo de uma brutal recessão de 7,6% registrada entre a reeleição de Dilma e seu impeachment – lembrando que a petista recebeu a economia crescendo a uma taxa média de 4,64% ao ano nos quatro anos anteriores, durante o governo de seu criador, Lula da Silva. Nem é preciso grande exercício de imaginação para especular como estaria o País hoje se ela ainda estivesse a presidi-lo.

No entanto, nada disso parece fazer parte dos discursos dos principais candidatos ao Palácio do Planalto, que desde o começo da campanha deveriam ter usado o governo Dilma como exemplo óbvio do que não se pode fazer na Presidência.

Mesmo os presidenciáveis que integravam a oposição àquele tenebroso governo preferem ignorá-la, centrando fogo no atual governo, como se fosse este o responsável pelo descalabro em que o País vive. Pode-se fazer muitos reparos ao trabalho do presidente Temer, mas é preciso reconhecer que, a despeito das imensas dificuldades resultantes do turbulento processo de impeachment, seu governo estabilizou a inflação, reduziu a taxa de juros, realizou algumas importantes reformas necessárias para a retomada da atividade econômica e conferiu um mínimo de racionalidade ao processo político. Tudo isso em menos de dois anos. É um feito, sob qualquer aspecto.

Mesmo assim, é seu governo, e o não o de Dilma, que é tratado como “herança maldita” na campanha eleitoral. Consolidou-se o discurso segundo o qual Temer resume, em si, o que há de pior no País, desde a corrupção até a cassação de “direitos sociais”, passando pelo desemprego e pela lenta retomada econômica – e tudo isso se traduz em uma impopularidade da ordem de 70%, inédita na história nacional. Enquanto isso, Dilma Rousseff aparece como favorita para ganhar uma das vagas ao Senado por Minas Gerais.

Não se chega a tal situação sem uma estratégia muito bem pensada. Quando conquistou a Presidência, em 2003, Lula da Silva tratou logo de qualificar o governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, de “herança maldita”, malgrado o óbvio fato de que, não fosse a estabilidade da economia proporcionada pela administração de FHC, a agenda social lulopetista, que tantos votos ainda rende ao demiurgo petista, não sairia do papel. Mas esse embuste funcionou perfeitamente – tanto que os candidatos tucanos à Presidência depois de FHC trataram de se desvincular do ex-presidente, pois temiam perder votos.

Sem que se faça nesta campanha a denúncia da verdadeira herança maldita com a qual o Brasil tem de conviver desde que o PT alcançou o poder, permite-se que alguns candidatos alcancem bom desempenho nas pesquisas eleitorais oferecendo ao País as mesmas ideias estapafúrdias que fizeram do governo de Dilma o mais desastroso de nossa história recente. Esquecer o que Dilma fez – sob o patrocínio entusiasmado de Lula da Silva, o mesmo que, agora, promete fazer o Brasil “ser feliz de novo” – é condenar o País a um futuro sinistro.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 30.08.18

Um sistema eleitoral corrosivo

Por José Serra


A praticamente três semanas do primeiro turno das eleições, convivemos com episódios que desbordam as fronteiras admitidas na disputa política civilizada. É necessário identificar as causas estruturais dessa radicalização das forças que têm uma visão puramente instrumental – e, por isso, distorcida – da democracia.

Uma das causas – para mim, a principal – é a óbvia inadequação do nosso sistema eleitoral. Por muito tempo o debate sobre a inconveniência (ou não) do voto proporcional tal como o praticamos foi relegado à condição de devaneio intelectual ante os desafios, sempre urgentes, das nossas tumultuadas conjunturas. Acontece que o enfraquecimento da democracia – decorrente daquele sistema – começa a cobrar alto preço, empurrando-nos cada vez mais rumo ao imponderável.

A justificada impaciência dos eleitores com a política deve-se à dificuldade de se formarem maiorias aptas a levar à frente um programa verdadeiramente popular, que conduza ao crescimento sustentável, com emprego e distribuição de renda, e refreie os apetites setoriais e corporativistas que colonizaram o Estado brasileiro. Mais ainda, nos últimos anos tivemos o recrudescimento da violência – que se alastra sob um Estado mastodôntico e inerte. Esse componente, em especial, favorece a guinada de parte do eleitorado para o salvacionismo.

As recentes mudanças feitas na legislação eleitoral – encurtamento das campanhas, fim das doações empresariais e vedação (a partir de 2020) de coligações partidárias – podem ser consideradas positivas, mas de forma alguma serão suficientes. O decisivo é mudarmos a essência do atual sistema eleitoral, baseado no voto proporcional, na direção do voto distrital.

No Estado de São Paulo, por exemplo, os candidatos a deputado disputam o voto de 33 milhões de eleitores, distribuídos em quase 250 mil km2. Na Bahia, são 10 milhões, espalhados em quase 570 mil km2. Sim, a maioria das campanhas tende a se concentrar em determinadas áreas, mas nunca a ponto de abandonar o restante do território dos Estados, que são trabalhados pelos chamados cabos eleitorais.

Esse sistema exige elevados gastos de campanha e, ao mesmo tempo, não requer e não cria laços fortes entre eleitores e eleitos. É um sistema que enfraquece a representatividade democrática. Mais ainda, a partir destas eleições, vigente a quase exclusividade do financiamento público, os defeitos do sistema proporcional se agravarão, pois os candidatos à reeleição têm muito mais força para abocanhar parte maior do dinheiro disponível.

Em suma, trata-se de um sistema eleitoral pouquíssimo sujeito à renovação, que exige enormes gastos de campanha, não cria laços entre eleitores e eleitos, estimula a proliferação de novos partidos e perpetua as mesmas práticas e ideias que a população rejeita. Mais de dois terços das pessoas não se lembram em quem votaram para deputado! O eleitor não se vê representado nesse sistema, o que insufla o espírito bonapartista que hoje vai arrebanhando parcelas crescentes do eleitorado.

Mas há saída para esse impasse: a adoção do sistema distrital misto no lugar do proporcional puro. Os Estados seriam divididos em distritos, onde os eleitores votariam nos candidatos locais, que apresentariam plataformas ligadas a programas de governo: ações no âmbito do distrito, dos Estados e do País. As campanhas seriam muito mais baratas.

O eleitor teria direito a dois votos: um no candidato distrital e outro no partido de sua preferência. Cada partido apresentaria uma lista ordenada de candidatos a deputado e obteria número de cadeiras equivalente ao seu desempenho proporcional, garantidas as vagas dos eleitos nos distritos. Essa mudança contribuiria para implantarmos um sistema político vibrante, que garantisse vez e voz a minorias relevantes, mas sem deixar de levar adiante um programa que atendesse à maioria da população.

Hoje, as eleições saturam o eleitor com candidatos que se amontoam aos milhares na TV e no rádio. Configura-se um ambiente em que é impossível o debate programático verdadeiro, sobrando apenas espaço para as técnicas do marketing. É preciso que a “classe política” acorde para a urgência de reformarmos profundamente o sistema eleitoral. Se, por omissão e culpa dessa classe, nada for feito, o sistema proporcional será cada vez mais foco de instabilidade e crises.

A principal barreira para a aprovação da grande mudança reside, evidentemente, no próprio Congresso, mais precisamente na Câmara dos Deputados. O Senado, diga-se de passagem, já aprovou um projeto de lei complementar (de minha autoria) que prevê a mudança e o remeteu à Câmara, onde aguarda a deliberação.

A resistência de muitos deputados se explica pelo receio de, no contexto de mudanças de regras, não se reelegerem. Trata-se de um sentimento previsível. A reeleição, quando formalmente permitida, é sagrada na vida pública – para vereadores, deputados estaduais e deputados federais. Apenas estes últimos votam na mudança ou não do sistema eleitoral, mas recebem pressões não apenas dos seus cabos eleitorais, são bastante sensíveis à opinião dos vereadores e dos deputados estaduais que têm sido seus aliados nas sucessivas eleições.

Estou convencido de que essa resistência poderá, contudo, ser vencida se as mudanças forem aprovadas bem antes das próximas eleições – quatro anos, se possível –, dando tempo para os deputados se prepararem para as novas regras. Mais decisiva será a pressão da opinião pública, a começar pela mídia.

Melhor seria, se viável, votarmos a mudança ainda neste ano, entre a eleição e o final da legislatura, pois os deputados que não se reelegerem tenderão a votar a favor, vislumbrando a chance de voltarem à Câmara nas eleições seguintes, mediante novas regras de votação.

Substituir o atual sistema eleitoral corrosivo é, de fato, a condição essencial para assegurarmos a estabilidade da nossa democracia.

José Serra é Senador da República (PSDB-SP). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 13.09.18.

As ameaças à democracia

A grande ameaça à democracia brasileira, a julgar pelo que tem saído com frequência cada vez maior na imprensa internacional, é a candidatura presidencial do deputado Jair Bolsonaro. No final de semana passado, o New York Times afirmou que o ex-capitão do Exército “está instigando os brasileiros a voltar a um capítulo sombrio de sua história”, referindo-se à ditadura militar. Já o jornal argentino La Nación destacou os temores de que “a quarta maior democracia do mundo estará em perigo com a possível vitória do deputado ultradireitista”. E esses são apenas os exemplos mais recentes das muitas reportagens e análises de jornais estrangeiros para os quais Bolsonaro, e apenas ele, encarna o que há de mais deletério para a democracia na atual corrida eleitoral. Trata-se, contudo, de uma visão parcial, que ignora um outro grande risco à democracia no País, representado pelo lulopetismo.

O sistemático ataque de Lula da Silva e dos integrantes de sua seita ao Judiciário, ao Congresso e à imprensa deveria ser igualmente percebido no exterior como uma ameaça concreta à democracia. Há muito tempo, o lulopetismo demonstra profunda ojeriza a aceitar os princípios democráticos, especialmente o contraditório e os limites impostos pela lei – que, de acordo com a doutrina lulopetista, só se aplica aos outros.

A ousadia de alguns juízes de condenar e mandar prender o morubixaba Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro, fazendo cumprir o que está na lei, serviu para escancarar de vez o caráter autoritário do PT. O partido recrudesceu sua campanha contra o Judiciário, exigindo que Lula receba tratamento especial. Mais do que isso: Lula está descaradamente usando a atual campanha eleitoral para se livrar da punição a ele aplicada e, se der, voltar à Presidência da República. É um escárnio poucas vezes visto na história pátria.

Na provável hipótese de Lula não poder concorrer, por ser ficha-suja, os petistas esperam que o partido consiga eleger presidente o ex-prefeito Fernando Haddad e que, ato contínuo, o chefão do partido seja solto. Essa estratégia, que ultrapassa todos os limites do aceitável no jogo político, foi candidamente explicitada por Gilberto Carvalho, ex-ministro e um dos principais porta-vozes de Lula. Em entrevista à Gazeta do Povo, de Curitiba, ele declarou: “Na campanha, vamos deixar claro para o povo o seguinte: votar no Haddad é votar no Lula. É o Lula quem vai governar. Vamos tirar o Lula da cadeia em algum momento. Até porque ele não vai passar o resto da vida lá. E vai sair direto para o Palácio do Planalto para cogovernar com o Haddad. Quem vai governar formalmente é o Haddad”.

A desfaçatez de tal declaração é apenas a mais recente manifestação do profundo desapreço do PT pelas instituições. Ajuda a fortalecer a suspeita de que, se conseguirem ganhar a eleição, mesmo depois dos escândalos e desmandos administrativos que protagonizaram, os petistas podem se sentir em condições de reimplantar sua agenda liberticida, frustrada pela incompetência e pelo desplante do poste Rousseff.

O programa de governo do PT prevê o controle da mídia, que é o outro nome para censura; o uso extensivo de plebiscitos para “aprofundar a democracia e empoderar a cidadania” – o que, em linguagem petista, significa atropelar o Congresso –; e a convocação de uma “assembleia constituinte”, providência que, quando adotada nos países sul-americanos governados por ditaduras com as quais o PT simpatiza, serviu para solapar as instituições e fazer evaporar a oposição.

Assim, Jair Bolsonaro representa de fato uma ameaça concreta à democracia, mas não é a única. No caso do ex-capitão, preocupam a sua visão simplista dos problemas nacionais, a sua inexperiência administrativa e a sua admiração incontida por métodos violentos, inclusive por torturadores, e isso basta para vê-lo como um grande perigo. Já Lula da Silva, graças ao formidável aparato de propaganda petista, consegue se fazer passar, aqui e no exterior, por grande democrata, embora seus atos – pelos quais está preso – e suas palavras – contra as instituições – revelem o exato oposto disso.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.08.18

"Golpistas" úteis

A notícia de que o PT se aliou a vários partidos que apoiaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff, publicada pelo Estado, surpreende somente os incautos que ainda acreditam no discurso da pureza ideológica petista. Pois a única ideologia do PT é a que estiver mais à mão para satisfazer seu projeto de poder e de aparelhamento de setores fundamentais do Estado.

Assim, o PT se apresenta hoje como partido de “esquerda” e como líder do “campo progressista” unicamente porque lhe é conveniente, e não por princípio ou convicção.

O assim chamado “socialismo” petista sobrevive apenas no palavrório de seus fanáticos militantes, pois na prova dos noves, quando exerceu o poder, o PT rapidamente esqueceu seu “socialismo”, julgando ser mais interessante associar-se aos compadres do capital para financiar sua permanência no poder.

Flagrado com a boca na botija, e com seu demiurgo Lula da Silva na cadeia, o PT inventou o discurso da “perseguição política” e, em torno disso, retomou a verborreia esquerdista que tanto excita desavisados artistas e intelectuais, mas que, na prática, é mera tentativa de dar substância ideológica e sentido histórico ao que não passa de oportunismo barato.

Esse oportunismo se manifesta explicitamente na formação das alianças do PT nas disputas estaduais. A reportagem mostrou que em seis Estados o partido da defenestrada Dilma Rousseff será cabeça de chapa em candidaturas com legendas que os petistas classificam de “golpistas”. Em outros nove, o PT apoiará candidatos cujos partidos também ajudaram a derrubar Dilma.

É claro que os petistas, diligentes na hora de apontar as contradições dos adversários, já têm na ponta da língua argumentos para justificar seu constrangedor contorcionismo eleitoral. Segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffman, “não há (contradição) porque estamos deixando claro que eles têm de apoiar Lula” e “ em todos esses casos (de alianças com os ‘golpistas’) tem apoio a Lula”.

Ou seja, a necessidade de amparar seu encalacrado comandante obriga o PT a engolir seus alardeados princípios e associar-se a partidos e políticos que até outro dia demonizava furiosamente. É claro que isso tudo foi embalado pela conhecida retórica embusteira do PT – Gleisi informou que os partidos “golpistas” fizeram “uma autocrítica, inclusive”, razão pela qual estão agora devidamente higienizados e aptos a juntar-se aos virtuosos petistas.

No Ceará, por exemplo, o PT abriu mão de disputar uma vaga ao Senado para não atrapalhar a campanha à reeleição de Eunício Oliveira (MDB), que votou pelo impeachment de Dilma. E o presidente do Senado não decepcionou: “Eu sou eleitor do Lula. Eleições livres são eleições com Lula”, discursou Eunício em evento no dia 7 passado em Fortaleza.

O PT integra também a coligação do governador de Alagoas e candidato à reeleição, Renan Filho (MDB), filho do senador Renan Calheiros (MDB), outro que votou pelo impeachment de Dilma. Mas isso são águas passadas: o senador Renan conta com a popularidade de Lula da Silva para reeleger o filho e, por isso, não se constrange em vir a público para declarar apoio desbragado à “candidatura” do ex-presidente e, ao mesmo tempo, para maldizer o governo de seu correligionário Michel Temer. Segundo Gleisi Hoffman, agora Renan é parte do time: “O Renan teve um reposicionamento nessas questões que interessam ao campo progressista e popular”.

O tal interesse do “campo progressista e popular” foi definido de maneira bem mais singela pelo presidente do PT de Mato Grosso, deputado Valdir Barranco, ao explicar por que o partido está apoiando a candidatura ao governo do Estado do senador Wellington Fagundes (PR), que também votou pelo impeachment de Dilma.

Segundo Barranco, não foi possível fechar alianças com siglas de centro-esquerda, razão pela qual o PT se viu obrigado a pensar em “suas prioridades”: “A política está em permanente mudança. Neste momento, a melhor tática é essa. Sem o ‘chapão’, não teríamos quociente eleitoral para eleger deputados”. Simples assim.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 09.08.18.

A Encruzilhada Nacional

Eleições podem ser ensejo para a multiplicação de ilusões com o objetivo de seduzir o eleitor. Não se trata necessariamente de apelar para mentiras ou fraudes, embora isso também aconteça; o que tem marcado as campanhas é o reducionismo marqueteiro, que transforma grandes temas em slogans de fácil digestão. Ganha mais votos aquele cuja lábia convence o eleitor de que é capaz de trazer a felicidade pelo menor custo. O atual momento brasileiro, no entanto, mais do que qualquer outro da história recente, exige que o eleitor saiba exatamente o que lhe estará reservado no futuro próximo caso não sejam tomadas imediatamente medidas de austeridade para tirar o Brasil da beira do abismo. E isso, infelizmente, não está acontecendo - há, pelo contrário, um “enorme grau de incompreensão” da população sobre o “curso absolutamente insustentável” em que o País se encontra, como alertou recentemente o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.

Tendo sido um dos principais responsáveis pela implantação do Plano Real, Malan tem autoridade para falar sobre o quão duro é um processo de estabilização de uma economia em frangalhos. Esse processo demanda, antes de tudo, a colaboração consciente do conjunto da sociedade. O Plano Real funcionou porque, ao contrário dos planos anteriores, não foi implantado de cima para baixo. Na prática, o Real foi uma espécie de convite para que os cidadãos imaginassem a economia sem inflação, com o restabelecimento do valor das coisas, sem a variação diária de preços. A população, aos poucos, aderiu, porque se sentiu como parte da solução. Mas o plano não foi bem-sucedido apenas por isso. Como preço a pagar pela sonhada estabilidade, os brasileiros foram chamados a apoiar uma dura série de medidas, que incluíram a renegociação das dívidas dos Estados, a venda de estatais, a reestruturação do sistema bancário e o ajuste fiscal. Com a notória exceção do PT, o Real foi amplamente aceito - o que significa que, se bem explicadas e transparentes, as reformas necessárias para reequilibrar as contas nacionais podem, sim, como sugere Malan, receber apoio dos eleitores.

Para que isso aconteça, contudo, é necessário preservar a memória recente do País, impedindo que a mistificação prevaleça sobre a realidade dos fatos. Por isso é muito oportuno que respeitados protagonistas desse passado, como o ex-ministro Malan, venham a público para ajudar a combater as desonestas tentativas de desmoralizar todo o hercúleo trabalho que resultou no fim da chaga da inflação e na estabilização da economia, condições sem as quais a festejada “justiça social” dos governos lulopetistas não teria sido possível.

O recém-lançado livro Uma Certa Ideia de Brasil: Entre Passado e Futuro, que reúne artigos de Malan publicados no Estado entre 2003 e 2018, tendo como eixo, portanto, a desastrosa passagem do PT pela Presidência, presta-se a essa imperiosa tarefa de denunciar o logro da propaganda petista - que trata o eleitor como passivo freguês do mercador de ilusões Lula da Silva - e de convidar os brasileiros a ter “consciência social do passado”.

Para Malan, o próximo presidente tem de ter “consciência do que foram os últimos 15 anos, porque (governar com essa herança) será o maior desafio de sua vida dada a situação do País”. Como lembrou o ex-ministro, a campanha eleitoral é a parte menos penosa dessa experiência, porque “disputar a eleição e eventualmente ganhá-la é uma coisa”, mas “governar um país da complexidade do Brasil é algo muito mais complicado” - especialmente quando o eleitor não é advertido previamente de que terá de fazer muitos sacrifícios.

“Estamos num ponto de inflexão, numa encruzilhada que é das mais importantes que tivemos na nossa história recente”, disse Malan ao Estado, dando adequado tom grave ao atual momento. Há quem acredite ser legítimo brincar com fogo, prometendo magicamente fazer o Brasil ser “feliz de novo”, e há quem considere desnecessárias ou não tão urgentes as reformas que se impõem. Como enfatiza o ex-ministro, saber como se chegou à situação atual é o primeiro e indispensável passo para evitar que esses charlatães triunfem neste momento tão crítico para o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 28.08.18

Eleições presidenciais e inelegibilidades

Por Geraldo Brindeiro

A Constituição federal garante a plenitude do processo democrático, mas estabelece condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade, previstas também em lei complementar, para “proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”(Constituição federal, art. 14, §§ 3.º a 9.º). Os pedidos de registro de candidaturas, portanto, devem ser indeferidos pela Justiça Eleitoral se os candidatos não preencherem as condições de elegibilidade ou se incidirem em causa de inelegibilidade.

A Lei Complementar n.º 64/90, com as alterações da Lei Complementar n.º 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), estabelece em seu artigo 1.º, inciso I, alínea e, a inelegibilidade dos que “forem condenados, em decisão (...) proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1) contra (...) a administração pública e o patrimônio público (...)”. O pedido de registro de candidatura a presidente da República, portanto, deverá ser indeferido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se o pretenso candidato tiver sido condenado em segunda instância pela prática de crimes, por exemplo, de corrupção passiva, peculato e outros. Tal pedido formulado perante o TSE deve ser instruído, dentre outros documentos, com “certidões criminais fornecidas pelos órgãos de distribuição da Justiça Eleitoral, Federal e Estadual” (Lei n.º 9.504/97 – Lei das Eleições – art. 11, § 1.º, inciso VII).

Assim, se o pretenso candidato tiver sido condenado em segunda instância, isso constará da certidão, o que obviamente levará o Tribunal Superior Eleitoral, por dever de ofício, a indeferir liminarmente o pedido.

Nesse sentido, é a jurisprudência do TSE. No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n.º 177-23/RJ, de que foi relator o ministro Dias Toffoli, consta do acórdão unânime o seguinte trecho, verbis: “(...) é necessária a apresentação de certidão de inteiro teor quando apresentada certidão criminal com registros positivos, pois cabe à Justiça Eleitoral examinar, de ofício, a satisfação das condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade” (sessão de 29/11/ 2012). E no acórdão proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n.º 53-56/RJ, de que foi relator o ministro Marco Aurélio, observou S. Exa., verbis: “Acredito que, competindo à Justiça Eleitoral apreciar, de ofício, as condições de elegibilidade e constatando, ante os documentos exigidos para apresentação válida do pedido de registro, não ter o candidato certidão negativa quanto a processos criminais, cabe examinar e, a meu ver, indeferir esse registro”. Presidiu a sessão a ministra Cármen Lúcia, que acompanhou os votos dos relatores nos dois processos.

A Justiça Eleitoral exerce funções administrativas, consultivas e regulamentadoras, além da função jurisdicional. Esta somente ocorre se houver ação judicial – em que há autor e réu – e, após apresentadas suas respectivas razões, o julgamento. Não há, obviamente, lide ou litígio sem partes. O pedido de registro de candidatura não é evidentemente ação judicial, mas tem natureza administrativa, devendo ser indeferido se contrário à Constituição e à lei.

Nenhuma aplicação, portanto, tem à hipótese acima descrita o artigo 16-A da Lei n.º 9.504/97 (Lei das Eleições) – que trata de situação sub judice –, pois o próprio pedido de registro de candidatura a presidente da República revela per se, com base na certidão de condenação criminal em segunda instância, a inviabilidade do registro. E, se não há registro de candidatura deferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, não há razão para abrir prazo para ação judicial de impugnação de registro, até porque inexistente causa de pedir (causa petendi). Logo, não há que falar de questão sub judice, locução latina indicativa da situação em que se encontra uma questão, ou controvérsia, submetida pelas partes a julgamento.

O artigo 16-A da Lei n.º 9.504/97 somente tem aplicação nas hipóteses em que o registro de candidatura tenha sido deferido pela Justiça Eleitoral, mas seja objeto de ação judicial de impugnação de registro proposta pelo Ministério Público Eleitoral, por candidatos ou partidos políticos adversários, hipótese em que se mantém o registro até o julgamento pela Justiça Eleitoral. Neste caso, o candidato com registro sub judice poderá participar da campanha eleitoral. Mas não o candidato sem registro, cujo pedido foi indeferido liminarmente por ser contrário à Constituição e à lei.

Finalmente, o artigo 26-C da Lei da Ficha Limpa, ao admitir a possibilidade de o órgão colegiado do tribunal ao qual competir a apreciação de eventual recurso relativo à condenação criminal em segunda instância suspender em caráter cautelar a inelegibilidade, isso somente ocorrerá se o tribunal considerar que há plausibilidade jurídica na pretensão recursal, conferindo-lhe efeito suspensivo para suspender a execução do acórdão condenatório criminal.

Aliás, para evitar eventual exegese falaciosa, é preciso dizer que o que está sub judice, por definição, é a condenação criminal de que caiba recurso. Mas não o pedido de registro de candidatura indeferido liminarmente por ser contrário à Constituição e à Lei da Ficha Limpa. Esta veio exatamente para estabelecer a inelegibilidade com a condenação criminal em segunda instância, sem necessidade de trânsito em julgado.

Geraldo Brindeiro é Doutor em Direito pela Universidade de Yale (Estados Unidos da América do Norte). Professor na Universidade de Brasília. Foi Procurador Geral da República. (1995-2003). Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 09.08.18.

Um País à deriva sem reformas

Por Ives Gandra da Silva Martins

Não há brasileiro consciente que não perceba que, se não houver uma reformulação estrutural na administração pública, o País é o mais forte candidato a seguir a desastrosa trilha de Maduro, o tiranete venezuelano.

Com uma dívida pública explosiva, que pode chegar a 80% do PIB no fim do ano e poderá ultrapassar a dos países desenvolvidos em 2022, pois beirará os 100%, se não houver correção de rumos, visto que há uma ligeira queda nos indicadores das nações desenvolvidas; e com um déficit público financiado pela tomada de recursos no mercado, o que poderá ser cada vez mais difícil no futuro, o quadro é preocupante, justificando o contínuo rebaixamento brasileiro pelas agências de rating. É de lembrar que tais recursos não voltam em investimentos ou obras sociais, mas servem fundamentalmente para financiar a esclerosada burocracia estatal, a renitente corrupção e o fantástico desperdício de recursos em ações sem propósitos desenvolvimentistas – situação agravada por uma carga tributária superior à dos EUA, do Japão, da Coreia do Sul, da China, da Suíça, do México e à da esmagadora maioria dos países emergentes. Por essa razão, cidadãos conscientes percebem que, se não houver um projeto de austeridade pública e de reformas estruturais, a rota para o abismo é uma realidade.

É bem verdade que estava o País quase saindo da inacreditável crise de corrupção e incompetência dos 13 anos dos governos anteriores quando uma cinematográfica, mal conduzida e insustentável operação do anterior procurador-geral da República paralisou a nação em dois pedidos de impeachment, rejeitados, a partir de uma mal explicada atuação de membro do parquet até então ligado ao chefe da Procuradoria-Geral da República e de delações premiadas hoje em plena revisão. Tal desastrada ação paralisou o País, deixando o presidente da República sem condições de implementar as reformas necessárias, tendo apenas, por já aprovada, escapado a reforma trabalhista.

As reformas previdenciária, tributária, burocrática (administrativa), do Judiciário e política foram enterradas, não conseguindo o governo federal sensibilizar os futuros candidatos à Presidência a encampá-las.

Neste ínterim, de terra de ninguém o Brasil passou a conviver com estranhas performances dos principais atores políticos e da administração pública.

Os candidatos, para não se comprometerem com temas polêmicos mas necessários, abandonaram, uns, o governo, e outros – exatamente os que demonstraram maior desconhecimento de finanças públicas, de respeito à lei, de economia e da realidade internacional – passaram a tripudiar sobre as reformas pretendidas.

À evidência, qualquer que seja o presidente eleito, se não quiser ser tão incompetente como Nicolás Maduro, terá de fazer as reformas necessárias a um custo político muito maior do que se tivesse apoiado aquelas propostas no ano passado.

A dois meses e meio, porém, das eleições, nenhum dos candidatos apresentou um verdadeiro projeto para o Brasil, alguns, inclusive, apenas sugerindo voltarmos ao século 19 e à luta marxista de classes.

Por outro lado, o Poder Judiciário, que ganhou visibilidade pública graças à TV Justiça – nos países desenvolvidos os debates judiciais, por serem técnicos, não são televisionados –, apesar da competência e da cultura dos ministros do pretório excelso, passou a exercer um protagonismo político antes inconcebível, sem ter para tanto representação popular ou ser vocacionado à política. Assim, assuntos típicos de administração pública, pertinentes ao Executivo ou de produção legislativa, própria de Parlamento, foram tratados muitas vezes monocraticamente, com impacto na gestão da coisa pública. Executivo e Legislativo, acuados por outros atores ávidos por exposição na mídia, tiveram seus agentes preocupados com sua defesa contra as acusações, muito mais do que com administrar e legislar.

É bem verdade que contra esta assunção de competências que não tem, apesar de exercer o Ministério Público função essencial à administração da Justiça, vem a Suprema Corte limitando o excesso de protagonismo, devolvendo aos delegados de carreira a função de polícia judiciária que lhes dá a Constituição (art. 144, § 4.º), permitindo-lhes firmar delações premiadas e responder diretamente ao magistrado, para quem atuam como vestíbulo das possíveis ações penais.

O certo é que neste quadro de excesso de protagonismo individual, instalado nos Três Poderes, e de falta de proposições consistentes por candidatos, em face do receio de indispor-se com segmentos da sociedade, o Brasil é uma nação à deriva, onde os Três Poderes são desarmônicos e sem real independência constitucional.

Creio que chegou o momento de a sociedade, por meio de suas instituições privadas, principalmente as dedicadas à reflexão política, econômica, jurídica e social, onde melhor se detectam os reais problemas nacionais, manifestar publicamente, por seus maiores expoentes, desvinculados de uma ambição política imediata, o que o Brasil efetivamente necessita, colocando na mídia seus pontos de vista, suas preocupações, suas ideias e suas propostas de soluções, a fim de que o vazio das propostas conhecidas até o presente seja substituído por algo que possibilite tirar o País da crise.

E não excluo a discussão ampla do papel do Brasil na crise econômica mundial gerada pelo presidente Donald Trump, que aparentemente beneficiou os EUA, num primeiro momento, mas que pela guerra comercial que está provocando acarretará problemas, no curto prazo, para o mundo e, no médio e no longo prazos, para os EUA. Apesar de o País estar entre as dez maiores economias do mundo, o certo é que o Brasil tem menos de 2% do comércio mundial, correndo um grave risco de, se o futuro presidente errar na fórmula a ser adotada, despencar nas preferências internacionais, por falta de segurança jurídica, planejamento econômico, estabilidade política e competitividade empresarial.

Ives Gandra da Silva Martins, Advogado e Professor de Direito, é o Presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.07.18.

A política como pornochachanda

Por José Nêumanne Pinto

A República brasileira começou numa parada militar que se tornou um golpe. Quando o desfile acabou defronte ao Arsenal da Marinha, o médico republicano jacobino José Lopes da Silva Trovão foi instado pelo povo, que se recolhera a um botequim, a pagar um trago. A conta somou 40 mil réis e o paladino só tinha 11 mil réis. Resultado: o taverneiro arcou com todo o prejuízo da celebração. A piada pronta, contada no clássico A Formação das Almas: O Imaginário da República Brasileira, do acadêmico José Murilo de Carvalho, revela como ela teve início num porre com pendura.

Até hoje, às vésperas da parada cívica das eleições gerais de outubro (a um mês de completar seu 129.º aniversário), o prejuízo continua sendo arcado pelo empreendedor disponível para financiar a embriaguez geral. Os 40 mil réis bancados pelo taverneiro em novembro de 1889 chegaram ao astronômico déficit público nominal, isto é, a diferença entre receitas e despesas (incluindo os juros da dívida pública), que alcançou a expressiva quantia de R$ 562,8 bilhões. Enquanto o déficit primário (receitas menos despesas, excluindo os juros) na última virada do ano foi de R$ 155,8 bilhões. Em janeiro, esperava-se que o príncipe escolhido pelo povo mataria esse sapo imenso com uma paulada certeira.

O último fim de semana, porém, jogou por terra as ilusões de que um presidente legitimado pelo voto daria um jeito nas contas públicas agônicas. E usaria toda a força obtida nas urnas para avançar na guerra popular contra a corrupção endêmica que mata o País de inanição moral, tuberculose cívica e tumores malignos de despudor. A campanha presidencial está nas ruas e nenhum pretendente ao trono imperial da República cínica gastou um grama de sua saliva para apresentar um plano racional para reduzir a máquina pública devoradora de recursos, pôr fim a privilégios herdados das priscas eras imperiais e impor um garrote de lei e ordem para conter a sangria da guerra civil da violência urbana e rural. O povo esperançoso está é órfão.

O pior é que, em nome desta Nação esfolada, os políticos encarregados de legislar e executar e os juízes aptos a julgar promovem um espetáculo grotesco que não pode ser instalado num picadeiro de circo mambembe por lhe faltarem caráter e pudor, mas sobrar profissionalismo. As comédias do teatro de revista, produzidas por Walter Pinto, e que regalavam o caudilho Vargas, que adorava piadas a respeito dele próprio, são lembranças do pundonor de um passado distante. As aventuras mirabolantes de João Acácio Pereira da Costa, O Bandido da Luz Vermelha, registradas no filme de Rogério Sganzerla, são matéria de contos infantis edificantes, se comparadas com os atuais escândalos de gatunagem.

O ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva chefiou a quadrilha que esvaziou os cofres da República pela qual Lopes Trovão lutou e bebeu, conforme os procuradores que o acusaram, o juiz, os desembargadores e ministros que o condenaram e as evidências dos fatos históricos. À frente de um Partido dito dos Trabalhadores (PT), esse cavalheiro cumpre pena de 12 anos e 1 mês por corrupção e lavagem de dinheiro numa tal “sala de estado maior” da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Ao título de presidente mais amado da História ele adicionou o de presidiário mais celebrado e disputado do inferno prisional, onde, aliás, não vive.

Numa das inúmeras tentativas de garantir um mínimo de limpeza ao exercício de cargos públicos, a Constituição de 1988, que ele próprio assinou, criou a inovação das leis de iniciativa popular. A mais célebre de todas – a Lei da Ficha Limpa – chegou ao Congresso, que a aprovou e foi sancionada por sua mão direita, proibindo desde então candidatura de qualquer cidadão condenado em segunda instância, que é o caso dele. No entanto, sua mão esquerda a rasga, exigindo o absurdo de autorizar o signatário da norma legal a nela escarrar.

A República – que, como Almir Pazzianotto Pinto lembrou, em artigo nesta página, O puxadinho da Constituição, garantiu “pensão vitalícia a D. Pedro II” e autorizou “a compra da casa onde faleceu Benjamin Constant, destinada à residência da viúva” – patrocina hoje a farsa da egolatria de um condenado por furto amplificado. Que outro nome pode ser dado à convenção do PT em que o aplaudido ator Sérgio Mamberti leu um texto do presidiário, que surgiu em imagem e som na exibição de um vídeo?

Esse espetáculo, aliás, foi precedido por outro show, em que dois ídolos da música brasileira e da resistência à ditadura militar, Chico Buarque e Gilberto Gil, usaram uma canção, Cálice, com inspiração bíblica e símbolo da luta contra a censura, para tratar um político preso como se preso político fora. E precedeu o mais espetacular passa-moleque da tradição de engodos desta República dos desfiles: o lançamento do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad para substituir na chapa o poderoso chefão preso, como vice, que terá a vice do vice, Manuela d’Ávila. Arre!

Tudo pode parecer uma pornochanchada da Boca do Lixo, mas é muito pior. Trata-se de uma tragédia permitida pela democracia de facilidades, fundada por um truque em que a classe política usurpou a casa de leis para inventar a farsa do Congresso constituinte, como se cada voto em 1986 valesse por dois. E pior: para nada.

Pois a candidatura duplamente fora da lei de um apenado e ficha-suja não sobrevive apenas pela fé no torneiro mecânico do ABC que virou o beato Luiz Conselheiro da imensa Canudos em que o Brasil se está tornando. Mas também pelo oportunismo rastaquera de quem o usa para se dar bem na “vida pública”. E de alguns figurões do Judiciário, como o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luiz Fux, que inventou a condenação prévia sem efeito algum no despacho em que arquivou o processo que a pediu. Pensando bem, a comparação é injusta para os filmes da Boca do Lixo, que ao menos não furtavam seu público fiel.

José Nêumanne Pinto é Jornalista, Poeta e Escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 08.08.18.

Lula é, sim, inelegível

As artimanhas jurídicas que vêm sendo maquinadas pela defesa do ex-presidente Lula da Silva para viabilizá-lo como candidato à Presidência da República na eleição de outubro não devem prosperar se, como se espera, a Lei Complementar n.º 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, for respeitada. E há bons sinais de que será. O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi taxativo ao afirmar ao Estado que “o candidato condenado em segunda instância já é um candidato inelegível, ele é um candidato cuja situação jurídica já está definida. A Lei da Ficha Limpa impede ele de concorrer, portanto, ele é inelegível”, disse.

Não é a primeira vez que o ministro dá uma declaração nessa linha. Quando tomou posse na presidência da Corte Eleitoral, em fevereiro deste ano, Luiz Fux já tinha dito que “o ficha-suja está fora do jogo democrático”.

Embora o ministro Luiz Fux tenha ressalvado que “não gostaria de personalizar nenhuma questão”, sua afirmação se aplica perfeitamente à situação de Lula da Silva, condenado a 12 anos e 1 mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelos três desembargadores da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre.

Um advogado que integra a equipe eleitoral do PT criticou a manifestação do ministro Fux, que estaria, segundo o causídico, “querendo dar lição de moral em candidato”. A rigor, ainda que Lula da Silva precise, de fato, de algumas lições de moral – e o tempo que passará atrás das grades pode auxiliá-lo na reflexão –, não é disso que se trata. Trata-se tão somente da interpretação de um dispositivo da Lei da Ficha Limpa, redigido em português cristalino: “São inelegíveis: (...) os que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado”, caso de Lula da Silva.

O PT tem até o dia 15 deste mês para fazer o registro, na Justiça Eleitoral, da candidatura do escolhido pelo partido para disputar a Presidência. Como as leis não são vistas como obstáculos aos desígnios do partido, o escolhido é Lula da Silva, sustentado como “único plano” da legenda há meses. Os objetivos da manobra não são outros além de tumultuar o processo eleitoral e garantir ao dono do PT algum protagonismo e evidência nos meios de comunicação. Não sendo o candidato do PT à Presidência, Lula da Silva verá reduzido o seu poder de ditar os rumos da legenda e corre o risco de ser condenado ao esquecimento na cela em que se encontra.

Embora já tivesse exposto seu entendimento quanto à inelegibilidade imediata dos candidatos condenados em segunda instância, o ministro Luiz Fux trouxe à reflexão um aspecto muito importante da interpretação da lei no que concerne às candidaturas sub judice, ou seja, candidaturas que ainda estão sujeitas à apreciação da Justiça Eleitoral. Para o ministro, há uma distinção clara entre candidatos sub judice e candidatos inelegíveis. Lula da Silva é inelegível, ainda que o ministro não tenha citado seu caso em particular. “Não pode concorrer um candidato que não pode ser eleito”, disse Luiz Fux. “Aqueles candidatos que já tiveram sua situação definida pela Justiça não são candidatos sub judice, são candidatos inelegíveis”, completou.

Manter sub judice a suposta candidatura de Lula da Silva – a ser confirmada em convenção partidária até o próximo dia 5 – é uma estratégia do PT para tumultuar um processo eleitoral que já tende a ser aguerrido por si só, mantendo viva, deste modo, a cantilena da “perseguição política” ao “maior líder popular da história deste país”, já que a ficção política é o que resta ante as agruras da realidade jurídica.

É alvissareiro para a saúde do pleito deste ano que a mais alta instância eleitoral do País esteja atenta às maquinações não só de Lula da Silva e de seus acólitos, mas de qualquer candidato que esteja sujeito aos rigores da Lei da Ficha Limpa. O reatamento dos laços entre eleitores e eleitos passa, antes de tudo, pela segurança de que as escolhas feitas na urna estão amparadas pela lei e, portanto, são válidas.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 02.08.18.

Cultura punitiva, sociedade em risco

Por Antonio Claudio Mariz de Oliveira

Um sofrimento infligido a um homem ou à sociedade, quando é adotada uma da reação para extirpá-lo ou minimizá-lo, é acrescido de outro padecimento, de natureza diversa. O exemplo mais claro é o do medicamento que causa efeitos colaterais danosos. Procura-se a cura de uma moléstia e se adquire, como efeito direto do remédio ingerido, um outro mal para a saúde.

O mesmo se dá com os fenômenos advindos da conduta humana. O exemplo a ser analisado é o da criminalidade, violenta ou a denominada de colarinho-branco. A primeira tem como antídoto escolhido a repressão policial. No cumprimento dessa missão, tem-se assistido ao remédio voltar-se contra os doentes, que se tornam vítimas do arbítrio policial. Ademais, os próprios responsáveis pelo combate à doença do crime violento têm sido atingidos pelo tratamento escolhido: inúmeros são os policiais mortos em serviço.

Já o combate ao crime não violento, que encontra na corrupção o seu mais eloquente modelo, vem provocando efeitos colaterais que atingem o ordenamento penal e a segurança jurídica do País.

Instalou-se uma verdadeira “cruzada anticrime”, responsável por uma cultura punitiva criada pelos responsáveis pela persecução penal e caracterizada pelo desrespeito ao sistema de normas constitucionais e legais que regem essa atividade. Como arauto dessa cultura nós temos a mídia, que, por sua vez, influencia uma sociedade cada vez mais raivosamente intolerante e sedenta de castigo e de vingança.

O Direito Penal prevê sanções para as condutas que prejudicam valores, bens e interesses relevantes da sociedade. O cerceamento da liberdade é a punição de maior grau e tem, juntamente com outras, o escopo de proteger aqueles valores.

O Processo Penal, por sua vez, regulamenta o dever estatal de apurar, processar e julgar os infratores das normas penais, ditando as regras para o cumprimento dessas atividades. Deve-se salientar que o sistema legal de natureza penal, ao lado do escopo punitivo, tem o dever de regrar a atuação do Estado de modo a preservar a dignidade, a liberdade e os direitos individuais dos acusados de prática delituosa, de forma a impedir que o processo e a eventual condenação se transformem em vingança e a punição extrapole os exatos limites da responsabilidade pessoal do autor do crime.

O crime é gerado e produz frutos no âmago da própria sociedade, razão pela qual há a possibilidade de qualquer cidadão vir a cometê-lo. Ademais, todo e qualquer membro do corpo social está sujeito a ser alvo de uma acusação falsa ou mais grave do que a sua real responsabilidade.

Nesse sentido, aquele que é levado ao banco dos réus tem o direito subjetivo de ser submetido a um julgamento justo. Para tanto é fundamental que os julgamentos sejam realizados de acordo com e em obediência aos princípios constitucionais, que constituem o chamado garantismo penal, destacando-se a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência, o devido processo legal, o princípio do juiz natural, da legalidade.

Em face dessas considerações, outra se impõe: após o advento da sanha punitiva a que nos referimos, passou a haver uma perigosa flexibilização daqueles princípios de proteção ao homem acusado, em nome da aplicação de sanções penais como forma de combate ao crime. A sistemática reiteração das violações dos postulados garantistas permite afirmar que nós estamos no limiar de uma ruptura do ordenamento, com a instalação de um estado de anomia jurídica e legal.

Diferentemente do que apregoam os prosélitos da cultura punitiva, a punição não é meio de combate ao delito. Sendo um ato posterior ao crime já consumado, a sanção penal não o evita. Verdadeiramente se estaria combatendo a criminalidade se estivessem sendo atacadas as suas causas. No entanto, ao que parece, detectar e enfrentar os fatores desencadeadores da prática delitiva pouco importa. Pode haver crime, desde que haja punição. Parece não se querer melhorar a sociedade, basta que após a ocorrência do delito haja prisão, mesmo antes do julgamento do acusado.

Esquece-se, e isso deliberadamente, de que a prisão não é a única resposta ao crime. Há outras sanções, mais eficientes, menos onerosas e desprovidas dos males da cadeia, que se tornou um perigoso fator de criminalidade, em razão do deletério sistema penitenciário existente.

Dos 750 mil presos - aliás, é o Brasil o terceiro país do mundo em prisões -, 70% já estiveram presos anteriormente. Voltaram a cometer crimes, não se inibiram com a prisão e não foram por ela recuperados. E quem tem a intenção de infringir a lei penal pela primeira vez com mais razão não se sente inibido de fazê-lo diante da simples previsão legal de vir a ser punido. Repita-se, a prisão não impede o crime.

Puna-se o culpado com a sanção justa, pois se estará cumprindo a lei, mas não se engane com a afirmação de que o crime está sendo combatido. Essa assertiva é uma falácia.

Não se deve olvidar, por outro lado, que os homens que investigam, acusam e julgam não perdem a sua condição de seres humanos, portanto, falíveis. Estão sujeitos às influências externas, à mídia, ao chamado clamor social e a pressões das mais variadas espécies.

É necessário que as autoridades, a mídia e a sociedade reavaliem e repensem os seus conceitos sobre o crime, lembrando-se de que ele é um fenômeno social e que todos poderão dele se aproximar, como autores, como vítimas, culpados ou inocentes, e que constitui verdadeira tragédia, não espetáculo midiático. Sendo assim, é imprescindível que o rol das garantias constitucionais e legais, protetoras da liberdade e da dignidade, permaneça intacto e seja rigorosamente obedecido, sob pena de haver ruptura do ordenamento, com a instauração da tirania investigativa e judiciária.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é Advogado Criminalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.07.18.

O grande mal e a grande vilã

Em entrevista ao Estado, o ex-diretor da Polícia Federal (PF) Leandro Daiello disse que “o que tinha de papel e dados digitais na polícia quando eu saí era suficiente para quatro ou cinco anos de operações”. Leandro Daiello, que esteve à frente da PF de janeiro de 2011 a novembro de 2017, dá a entender assim que as grandes operações policiais dos últimos anos não deverão acabar tão cedo. Haveria tanta corrupção a ser investigada que não seria possível o País voltar ao seu leito de normalidade nos próximos anos.

Leandro Daiello fala em “quatro ou cinco anos de operações”. Outros, mais impetuosos, entendem que tal estado de coisas não deve ter prazo para terminar. Com isso, dão mostras de uma visão um tanto peculiar do País, na qual tudo deveria se submeter ao que chamam de “combate à corrupção”.

Ainda que faltem evidências empíricas à tese de que a corrupção é o principal problema do País, sua simplicidade, repleta de certezas, atrai cada vez mais adeptos, como mostram as pesquisas de opinião. A ideia central é simplista: a corrupção não é apenas o maior problema nacional, mas também a matriz de todas as mazelas do País.

A corrupção é, assim, transformada no grande – e, a rigor, no único – inimigo que merece ser combatido. Bastaria aniquilá-lo para que todos os outros problemas do País tivessem um novo e promissor encaminhamento. E o inverso também é válido: enquanto a corrupção não fosse extinta, não haveria possibilidade de uma melhora efetiva do País, por mais que pudesse haver avanços em outras áreas. Tudo seria inútil enquanto o grande mal não fosse vencido.

Tal simplificação da realidade finge que o País pode esperar pacientemente o término do “combate à corrupção”, como se essa contínua produção de escândalos não tivesse nefastas consequências institucionais, sociais e econômicas.

Não há possibilidade de normalidade num ambiente econômico em que a cada semana, às vezes, a cada dia, surge uma nova delação ou um novo documento a demonstrar a suposta podridão de todo o sistema político. Como ficará, por exemplo, a confiança dos investidores, dos empresários e da população em geral com mais cinco anos de Lava Jato?

Essa visão distorcida sobre a corrupção tem também efeitos sobre a democracia e a responsabilidade política. Se o combate à corrupção é o elemento decisivo para salvar o País – se é a Justiça, e não o voto responsável do cidadão, que tem o dever de assegurar um Congresso honesto –, não há necessidade de uma mudança de comportamento do eleitorado, que tem escolhido displicentemente seus representantes. Logo depois da eleição, boa parte dos eleitores nem ao menos sabe qual foi o candidato a deputado federal ou estadual que sufragou.

Achar que a corrupção é o principal problema do País não conduz necessariamente a escolhas responsáveis na hora de votar. Como dissemos neste espaço (Corrupção como medida de tudo, 18/6/2018), “sempre que os brasileiros foram às urnas para eleger não um presidente da República, e sim um campeão contra a corrupção – Jânio Quadros e Fernando Collor, por exemplo –, os resultados foram nada menos que desastrosos”.

Logicamente, toda corrupção deve ser combatida. O bem do País não admite transigência com o crime. No entanto, combater o crime, tarefa essencial num Estado Democrático de Direito, é bem diferente do que “pôr fim à corrupção”, numa espécie de revolução moral e política feita por agentes do Estado sem voto. Hoje em dia, quando se fala de corrupção, não se pede a aplicação estrita do Código Penal, como seria natural e desejável. O clamor é por uma reforma política. “Se não tiver a reforma política, a máquina vai continuar gerando (corrupção). Da maneira que a política é jogada hoje, não sobrevive, não. A fábrica de corrupção está aberta”, disse Leandro Daiello ao Estado. O grande mal seria a corrupção e a grande vilã, a política. Nesse teatro, que nada tem de ingênuo, a população é apresentada como vítima inerme, irresponsável tanto por seu passado como por seu futuro.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 20.06.18

Corrupção como medida de tudo

Não há dúvida de que a corrupção é um dos grandes males do País, há muitos anos. Também não há dúvida de que a Operação Lava Jato e suas congêneres, que vêm expondo de maneira crua a pilhagem do Estado por quadrilhas políticas e empresariais, contribuíram decisivamente para que os brasileiros se dessem conta do tamanho do problema e nutrissem verdadeira ojeriza pelos corruptos. No entanto, a luta contra a corrupção e as denúncias produzidas quase diariamente pela vanguarda dessa campanha acabaram por sequestrar a agenda nacional, de tal modo que os eleitores parecem hoje incapazes de refletir sobre os problemas do País sem vinculá-los de alguma maneira à corrupção – que, como consequência, se tornou a medida de todas as coisas.

Esse fenômeno ficou espantosamente claro em uma pesquisa nacional do Instituto Ipsos Public Affairs a respeito da reforma da Previdência. De acordo com o levantamento, 75% dos entrevistados consideram que “o maior problema da Previdência é a corrupção no sistema, que desvia seus recursos”. Apenas 15% entendem que o maior entrave do sistema previdenciário “é o modo como ele foi pensado e também o envelhecimento da população”.

Ou seja, a maioria dos brasileiros, a julgar por essa enquete, acredita que o galopante déficit da Previdência não existiria se não fosse a corrupção.

A resposta revela um grau tão absurdo de desconhecimento da realidade que só se pode concluir que os brasileiros em geral estão mesmo convencidos de que a corrupção é a fonte deste e de qualquer outro mal que assole o País.

Como mostram os dados publicados regularmente pelo governo e pela imprensa há muito tempo, a Previdência é deficitária porque o brasileiro se aposenta cedo demais e porque não há contribuintes em número suficiente para sustentar a aposentadoria de uma massa crescente de beneficiados – tudo isso sem mencionar privilégios desmedidos concedidos a determinados grupos.

Nada disso obviamente é fruto de corrupção, e sim de um sistema disfuncional construído a partir de deliberações conscientes dos representantes do povo, tudo com amplo respaldo democrático. Ao atribuir a “corruptos” um problema que é, em grande medida, dos próprios eleitores – a escolha de candidatos de triste fama –, os entrevistados parecem ter encontrado uma maneira de transferir sua responsabilidade cidadã a terceiros, devidamente caracterizados como ladrões de dinheiro público. Ou seja: se não fosse a corrupção, tudo funcionaria bem.

Basta notar que, para 51% dos entrevistados, o modelo de Previdência atual “é sustentável, ou seja, pode continuar da mesma forma por muitos anos”. E, mais espantoso ainda, 52% dos entrevistados com curso superior entendem que o sistema vai bem e não precisa mudar. Ou seja, não se pode alegar ignorância, pois se supõe que os entrevistados nessa faixa socioeconômica tenham amplo acesso às informações necessárias para embasar sua opinião.

Assim, fica muito claro que uma parte considerável dos brasileiros, inclusive os supostamente mais esclarecidos, está convencida de que é a corrupção que inviabiliza o País, e não as escolhas malfeitas, tanto nas urnas como na administração do Estado. Não é uma situação de todo surpreendente, ante a desmoralização completa da política em razão do denuncismo que tão bem caracteriza o trabalho de uma parte da força-tarefa da Lava Jato e que ganha manchetes escandalosas dia e noite.

A transformação da corrupção em régua que mede todos os recantos da vida nacional, conveniente tanto para os jacobinos que pretendem destruir a política tradicional como para os eleitores que preferem respostas fáceis para problemas difíceis, está na raiz da indisposição generalizada no Brasil com tudo o que diz respeito ao governo, aos políticos e às próximas eleições – decisivas para o futuro do País. Sempre que os brasileiros foram às urnas para eleger não um presidente da República, e sim um campeão contra a corrupção – Jânio Quadros e Fernando Collor, por exemplo –, os resultados foram nada menos que desastrosos. Mais do que nunca, é preciso impedir que a histeria anticorrupção governe o País.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 18.06.18.

Laços com a sociedade

Por Zeina Latif

A desejada renovação da política não é para já. Em alguma medida porque as regras eleitorais contribuem para reforçar a competitividade dos grandes partidos e dos políticos atuais. Uma trajetória como a de Macron na França enfrentaria muitas dificuldades no Brasil.

Há algo, porém, mais relevante. O engajamento da sociedade na política é um fenômeno recente, não tendo sido possível o surgimento de novas lideranças políticas competitivas. Bons nomes, dentro e fora da política, há. Faltou tempo para depuração. O quadro nas eleições de 2022 será, provavelmente, diferente.

Nem tudo está perdido, no entanto. Há um lado positivo da não renovação neste momento. Diante da urgência de reformas, tudo que o Brasil não precisa agora é de um presidente inexperiente. A reforma da Previdência não pode mais esperar, apenas para citar a mais urgente delas.

Experiência e habilidade política serão atributos essenciais ao próximo presidente. Mais do que no passado. O chamado presidencialismo de coalizão, que caracteriza a busca de maioria no Congresso, dependerá mais da boa política, porque as barganhas tradicionais estarão racionadas. A lei das estatais limita a oferta de cargos políticos e, por conta do orçamento apertado, reduziu-se o espaço para emendas parlamentares e matérias no Congresso que beneficiem políticos e grupos de interesse.

Mas não é só isso. Capacidade de diálogo e de comunicação também serão essenciais. O próximo governo terá, pois, de modernizar a relação da política com a sociedade para ser bem sucedido. A importância do diálogo aumentou, pois a agenda de reformas é desafiadora, demandando apoio da sociedade, hoje mais participativa.

A fórmula usual de comunicação de muitos políticos é apelar para discursos populistas, apontando vilões a serem combatidos. A última vítima foi Pedro

Parente. Vários políticos correram para apontar o dedo contra o ex-presidente da Petrobrás. E o governo sucumbiu. Infantiliza-se e subestima-se, assim, a sociedade.

A velha fórmula, no entanto, já não funciona tão bem. O apoio à greve dos caminhoneiros se reduziu quando a sociedade compreendeu que o custo será pago por todos nós. Os políticos afoitos que apoiaram a paralisação logo precisaram rever suas posições.

Não surpreende que a sociedade não se sinta representada pelos políticos.

Políticos precisam aprofundar e modernizar a comunicação com a sociedade, dando transparência aos problemas e às políticas públicas, expondo custos, objetivos, os beneficiados e seu impacto.

O caminho para maior transparência é longo, mas já foi iniciado. As renúncias tributárias hoje são mais conhecidas, bem como os privilégios que beneficiam alguns grupos, como os militares e a elite do Judiciário. A prática de avaliação de políticas públicas, ainda que lentamente, vai ganhando corpo. Evidência disso foi o trabalho do Banco Mundial avaliando as distorções causadas por algumas políticas sociais e sua baixa efetividade.

Esse passo, porém, ainda não foi dado pela política; mesmo políticos novos. Um exemplo é a gestão João Doria na Prefeitura de São Paulo. O ex-prefeito demonstrou coragem ao enviar à Câmara sua proposta de reforma da Previdência do funcionalismo municipal. A iniciativa não resistiu, porém, ao primeiro teste. O barulho dos servidores públicos contra a medida venceu a razão. E a sociedade, desinformada, assistiu a tudo sem entender quanto a reforma é necessária e precisa ser apoiada. Outro exemplo mais singelo é o programa Cidade Linda, iniciativa que visa melhorar o espaço público. Incompreensível a Prefeitura não ter envolvido a sociedade, pedindo sua ajuda para cuidar da cidade.

O modelo tradicional de comunicação, com bravatas e apontando vilões, está mofado e hoje cola menos. Não dialogar, por temer panelaços e reações nas redes sociais, deixou de ser opção. Os desafios pela frente demandam reforçar os laços com a sociedade, com transparência e discurso honesto. A sociedade clama por participação.

Zeina Latif, Professora, é a Economista-Chefe da XP Investimentos. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.06.18.

Os estragos da greve

O estrago causado pela crise no transporte, iniciada em maio e ainda sem solução, fica mais claro a cada nova notícia positiva sobre a evolução da economia em abril, o mês anterior à paralisação dos caminhões. Ao pôr em xeque o governo e toda a atividade produtiva, os transportadores interromperam um movimento de recuperação iniciado depois de um primeiro trimestre decepcionante. A expansão das vendas no varejo, divulgada ontem, confirma a tendência já indicada pelo desempenho da indústria, com produção 0,8% maior que a de março, 8,9% superior à de abril de 2017 e crescimento de 3,9% acumulado em 12 meses. No conjunto mais amplo do varejo, todos os grandes componentes tiveram resultado positivo na passagem de março para abril. Não se via esse desempenho desde 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

As vendas no varejo restrito tiveram aumento mensal de 1% em abril e superaram por 0,6% as de um ano antes. No quadrimestre foram 3,4% mais volumosas que as de janeiro a abril de 2017. O crescimento em 12 meses bateu em 3,7%. Incluídos carros, motos e componentes e também material para construção se obtém o varejo ampliado. Nesse caso, o aumento mensal foi de 1,3%. Houve ganho de 8,6% em relação a um ano antes, de 7,4% no confronto dos quadrimestres iniciais e de 7% em 12 meses.

As comparações interanuais e os volumes acumulados em 12 meses confirmam a tendência de crescimento observada a partir do começo do ano passado – pelo menos até abril. Mesmo com oscilações de um mês para outro, é clara a trajetória ascendente quando a base de comparação está a pelo menos um ano de distância. Esse movimento é evidenciado também pelos números da indústria. A produção do primeiro quadrimestre foi 4,5% maior que a do período correspondente de 2017. O avanço foi de 3,9% no confronto dos 12 meses findos em abril com os 12 imediatamente anteriores.

Os primeiros efeitos da crise no transporte rodoviário já apareceram em alguns dados da atividade industrial de maio. A produção das montadoras de veículos, até abril em firme recuperação, caiu 20,2% de um mês para outro e 15,3% em relação a maio de 2017. A perda mensal apontada no relatório oficial da associação das montadoras foi de 53,8 mil unidades. Mas esse número só tem sentido quando a base de comparação é o resultado de abril. Quando se considera a tendência de crescimento observada até o mês anterior, percebe-se um prejuízo muito maior, estimado entre 70 mil e 80 mil pelo presidente da organização.

O setor automobilístico vinha liderando a recuperação industrial e contribuindo de forma importante para a reativação das vendas ao consumidor. Essa contribuição explica boa parte da diferença entre a expansão do varejo restrito e a do varejo ampliado. Em abril, por exemplo, as vendas de autos, motos e componentes foram 36,5% maiores que a do mesmo mês do ano anterior. Os números do comércio relativos a maio devem mostrar danos severos causados pela interrupção do transporte rodoviário. Nesse mês, 25 mil veículos deixaram de ser licenciados, segundo o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Antonio Megale.

A crise no transporte provocou uma crise de abastecimento e a extensão dos danos aparecerá no próximo levantamento, comentou a gerente da Coordenação de Serviços e Comércio do IBGE, Isabella Nunes. Mas a perda, segundo ela, será um ponto atípico, fora da série, indicativo de um evento singular. Se essa avaliação estiver correta, a trajetória de recuperação será retomada em pouco tempo. Terá havido danos, mas transitórios.

É cedo, no entanto, para formular essa previsão com um mínimo razoável de segurança. A extensão real dos estragos é desconhecida e, além disso, ainda há dificuldades para a contratação de transportes. Ontem o governo continuava negociando a formulação de uma tabela de fretes, a terceira, porque outras duas haviam sido rejeitadas por alguma parte interessada. A crise continuava, portanto, e os estragos se multiplicavam.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.06.18

Nossos ilegais


Por Odemiro Fonseca

São os 33 milhões de brasileiros que podem e querem trabalhar e não encontram trabalho. A principal razão é a definição de trabalho legal que levanta enorme muralha fiscal entre empregado e empregador e deixa 33 milhões de fora. Uma carteira assinada pelo salário mínimo custa ao empregador três vezes o que recebe o trabalhador. A consequência é que um salário mínimo custa para o empregador 115 % do PIB per capita do Brasil. No máximo, 50% nos países ricos.

Além dos encargos trabalhistas, existem outros impostos, como o transporte e outras contribuições trabalhistas e sindicais. Outro imposto enorme é o turnover. Contratar e descontratar no Brasil é outro salário mínimo, se o turnover da empresa for de 36 meses. Existe forte crença de que aumentar o custo do turnover protege o trabalhador. Engano cruel.

O muro fiscal que barra 33 milhões de brasileiros que querem trabalhar é cruel porque barra as minorias, os mais jovens e os menos qualificados, todos já vítimas de estigmas culturais. Faz muito tempo que o Brasil não passa pela situação de ter a demanda por trabalho maior do que a oferta, como é comum em muitos países. Como nos EUA atual, onde quem defende tornar os ilegais legais são os empresários. Nova lei deve ser aprovada ainda em junho.

Os números no Brasil são patéticos: 33 milhões de carteiras assinadas, 93 milhões de pessoas ocupadas, e precisaríamos ter 125 milhões trabalhando. Temos 33 milhões de desempregados, desocupados e desalentados. Se eles trabalhassem, as possibilidades de proteger quem precisa e investir em fundamentos como educação e saúde seriam muito maiores. E as demandas sociais e o crime seriam menores.

Ter 60% da população trabalhando não é sonho num país adulto. Mas os 28 milhões que são empregadores (empreendedores, profissionais liberais e trabalhadores por conta própria) são forçados a saltar a muralha fiscal e, como mostra artigo recente de Gustavo Franco, são ignorados até pela Constituição. Apenas lembrados quando amarrados em algum pelourinho. Mas são eles que empregam 53 milhões de brasileiros, recolhem impostos para pagar políticos e 12 milhões de funcionários públicos e são os únicos que podem empregar os 33 milhões de desempregados e desalentados.

O muro fiscal seria derrubado por uma reforma previdenciária e trabalhista que recolhesse 11% do que 125 milhões recebessem como salário (pagos compulsoriamente por aplicativo do sistema bancário), que criaria uma poupança anual previdenciária de 9% do PIB. Com 30 anos de trabalho e contribuição, um trabalhador de 60 anos poderia comprar um seguro que pagaria até a sua morte renda mensal maior do que receberia trabalhando. O trabalhador escolheria como e quando se aposentar. E com um salário mínimo por hora de 8 reais, o trabalhador levaria para casa 50% a mais do que leva hoje. Os impostos não seriam mais sobre o trabalho. Nem mesmo os necessários para complementar os que poupassem abaixo de um mínimo. Sistemas híbridos de previdência tendo o governo como segurador de última instância são comuns.

Com tais reformas, os desembolsos por trabalhador cairiam para menos da metade para os empregadores, com segurança trabalhista. E como o recolhimento para previdência individual não é um imposto, a poupança privada total e a carga fiscal do Brasil atingiriam níveis asiáticos (esta proposta para a previdência é de 1989. O ministro da época declarou: “esta é a primeira proposta com começo, meio e fim).

Odemiro Fonseca é empresário. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, RJ, edição de 13.06.18.

Falar é preciso

Por Flávia Oliveira

Fabiana Cozza ficou só e exposta. Ninguém ganha quando uma mulher negra é relegada à solidão que a sociedade brasileira naturalizou. Terminou sem vencedor o Fla-Flu do feriadão nas redes sociais, porque vitimou uma artista de incontestável talento, cantora de repertório impecável. Fabiana é filha de pai preto e mãe branca, se autodeclara negra. Sambista de raiz, conhece a obra e a trajetória de Dona Ivone Lara e tinha relações pessoais com a compositora, a maior que o Brasil já conheceu. Fabiana foi atacada em sua identidade racial — e isso é inadmissível. Ponto. Mas o país que tem por hábito invisibilizar personalidades negras, que clareou seu maior escritor, Machado de Assis, e eternizou Lucélia Santos no papel de uma jovem escravizada, Isaura, precisava falar sobre colorismo. Ainda precisa.


Na minha fé, tempo é divindade. A ele recorri para resistir a apelos e provocações de amigos (e nem tanto) para comentar a sequência de acontecimentos que levaram Fabiana a renunciar ao papel de Dona Ivone Lara — para o qual fora convidada, cabe sublinhar. Há hora de falar e dias de calar. Silenciei em luto pela irmã negra ferida. E também como exercício pedagógico para os que embarcam em polêmicas virtuais no domingo e voltam à programação normal na segunda. Quem é branco pode não pensar em raça; quem é preto não tem o direito de esquecer.


Colorismo é debate necessário, porque cor de pele conta muito no país que foi miscigenado para tornar-se branco. Negros de pele clara ou menos escura — eu, entre eles — são mais aceitos na escola, no mercado de trabalho, nas relações sociais, nas artes. Privilégio no Brasil segue cartela de cores. Não é por acaso que contabilizamos mais de cem denominações étnico-raciais, muitas usadas para escamotear, sobretudo, origens africanas. Aqui, casais se recusam, sem constrangimento, a adotar crianças pretas retintas. Racismo.


É preciso falar sobre pigmentocracia, porque três de cada quatro filmes nacionais lançados em 2016 foram dirigidos por homens brancos, informou a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Em 162 novelas exibidas ao longo de três décadas, a partir de 1984, 91% dos personagens centrais eram mulheres ou homens brancos; só 11 foram protagonizadas por artistas pretos ou pardos, mostrou levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemma/Uerj). Negros e mestiços protagonizaram 11% dos 253 romances publicados no período 1990-2004; 94% dos autores eram brancos, segundo pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè na Universidade de Brasília (UnB).


Sobra invisibilidade aos negros e, por isso, a escolha de Fabiana Cozza para encarnar Dona Ivone virou debate público — repudiadas, por óbvio, as ofensas. A cantora tem legitimidade profissional e pessoal para o papel. Quem discute seriamente colorismo não pôs em dúvida nem o talento nem a identidade racial de uma artista maiúscula, mas a decisão política da produção de reverenciar a grande dama escalando uma cantora de pele mais clara. Não foi censura, mas questionamento à repetição de padrões históricos, agora confrontados.


Havia uma coleção de argumentos a favor de Fabiana, entre eles, a preferência da família de Dona Ivone Lara, segundo declarou o neto André. No meio, uma equipe sem convicção da escolha que anunciou — houvesse certeza, a artista seria blindada, a renúncia não aconteceria, o público decidiria. Do outro lado, estava uma militância cada vez mais crítica, empenhada em discutir privilégios e brigar por representatividade. O ativismo negro não é homogêneo — nem deve ser. É míope quem cobra unidade. Como em qualquer organização, movimento, grupo, há vivências, pontos de vista e ênfases diferentes. No fim, restou uma mulher negra ferida. Perdemos todos.


Flávia Oliveira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 07.06.18.

O muro de Bolsonaro

Por Carlos Andreazza

Só muito raramente escrevo sobre livros que edito. Esta é uma exceção. Impõe-se. O motivo é simples: a obra ajuda a empreitada daqueles que tentam — a sério, sem lhe subestimar a inteligência — compreender Jair Bolsonaro; ou melhor, oferece instrumentos aos que lhe querem decodificar o discurso. Refiro-me a Ganhar de lavada, trabalho em que Scott Adams disseca as técnicas de persuasão por meio das quais Donald Trump não apenas venceu a eleição presidencial americana, mas também reinventou o Partido Republicano, dinamitou o Democrata e minou, como sem precedentes, a credibilidade da imprensa tradicional.

Não se iluda, leitor: Trump ganhou — fez tudo isso — no discurso. Ele identificou os anseios fundamentais do público para o qual poderia falar, aquele que o queria ouvir e que lhe bastaria para vencer, e investiu todas as fichas na percepção de que as pessoas não tomam decisões com base em fatos, e que estão facilmente propensas a ignorar detalhes se atraídas por uma palavra hábil capaz de corresponder a suas prioridades e a seu estado emocional. Mais do que querer as mesmas coisas que o eleitor que cortejava, Trump era — tornou-se — as coisas que o eleitor que cortejava queria; e operou essa complexa justaposição de existências exclusivamente graças à sua apreensão da realidade e ao modo como se comportou a partir dessa leitura.

Não sei se Bolsonaro conhece Adams, se estudou as ferramentas de convencimento do presidente americano, ou se é por intuição que lhe reproduz os métodos. Com sucesso até aqui. Todos se lembram do “muro de Trump”, o paredão que, eleito, ergueria para separar os EUA do México. Trata-se da hipérbole exemplar, a âncora a partir da qual o então candidato cravou para si — com ódio de um lado tanto quanto paixão de outro — uma bandeira objetiva capaz de mobilizar milhões de eleitores e transformá-lo em protagonista, em pauteiro-mor, da campanha.

Não há moralidade quando se emprega tal nível de persuasão. Somente eficácia. Quando Trump afirmava, espetacular e radicalmente, que deportaria milhões de imigrantes, inclusive legais, outra coisa não fazia do que se inscrever — na mente das pessoas — como o único que se preocupava com a porosidade das fronteiras nacionais e com a imigração ilegal, e o único que faria algo prático a respeito, daí o muro. Pormenores sobre como implementar o que prometia? Ora, ele se aprofundaria nas formas de execução quando empossado, com o auxílio de especialistas. Impossível não pensar em Paulo Guedes, no caso bolsonarista, como emblema tranquilizador dessa mensagem postergadora.

Bolsonaro joga esse jogo. Mapeou as duas principais sensibilidades do brasileiro médio — o desprezo pelo establishment político (vide o modo como tentou capitalizar a mobilização de caminhoneiros) e a demanda por segurança pública — e, sobretudo no caso da segurança, estabeleceu-se como o senhor do assunto, o único que verdadeiramente se sensibiliza com o problema, e o único que o enfrenta com a prioridade exigida pela população. Ele também ergueu seu muro. E aqui falamos de ferramentas de convencimento, pouco importando a violência da proposta, segundo seus detratores, tanto quanto sua realização impraticável, segundo o mundo real. A amarra mental de Bolsonaro — o gatilho de choque por meio do qual se eleva como dono da pauta da segurança — é a ideia, afirmada e reafirmada, de armar a população; o tom dessa pregação se intensificará daqui até outubro.

Quem já o viu falar sobre segurança pública certamente se espantou com a superficialidade de seus comentários a respeito. Puro método, no entanto. O deputado pode passar horas tratando da questão sem mencionar, nem sequer de passagem, seu cerne, a fragilidade das fronteiras por meio das quais drogas e armas entram no país, e ainda assim convencer multidões de que é o único consistentemente preocupado com a insegurança do brasileiro. Uma arma na mão e uma defesa na cabeça. Aí está. Abordagem genérica com solução micro: eis o discurso de Bolsonaro. Funciona. Comove. Arrebanha. Persuade. É chamamento individual; convite à participação de sujeitos historicamente excluídos; solução compartilhada — não interessa se estúpida. Bolsonaro, a rigor, não fala de outra coisa senão de proteção à propriedade privada. E acerta.

Não adianta, portanto, cobrar-lhe que se aprofunde, que apresente um programa, tampouco supor que o simplismo exagerado de sua fala sobre segurança seja falho. Não é. Não para efeito eleitoral. Bolsonaro não é um parvo no lugar e no momento certos. Há ciência em sua generalidade. Ele é objetivo. Descarta pormenores próprios à política porque estica seu verbo no sentimento, o da moda, que repele tudo quanto derive da política como atividade. Ele foge da minúcia porque constrói seu discurso numa camada narrativa que prescinde da razão para comunicar e seduzir – uma faixa, legítima, que é essencialmente emocional, e para a qual nuance é blá-blá-blá.

Como Trump, Bolsonaro trabalha para se converter numa ideia, num valor. Ao contrário de Trump, porém, não vencerá. Como Trump, contudo, já ganhou.

Carlos Andreazza é editor de livros.

O resgate da confiança

Por José Renato Nalini

Na visão de Sérgio Abranches e de outros pensadores atuais, as três angústias que afligem o homem contemporâneo são a destruição do meio ambiente, a falência da democracia representativa e as ameaças da 4.ª Revolução Industrial. Todas graves e urgentes. Todas capazes de acabar com a vida no planeta. Pelo menos a vida como acreditamos que ela seja ou deva ser. Só que uma delas tem um encontro marcado com a nacionalidade: as eleições de 2018, para este triste país chamado Brasil.

A política partidária desgastou-se de tal forma que atingiu deterioração inimaginável. Hoje, quem tem coragem de se dizer político parece estar assinando um atestado de corrupto. Generalizou-se o que todos os partidos fizeram, enlameando-se ao confundir o público e o privado, apoderando-se de dinheiro do povo e aprofundando a iníqua desigualdade social, que se agravou nos últimos anos. Ninguém saiu ileso. Respingou a dúvida em desfavor dos poucos honestos que ainda são encontrados nos quadros eleitorais.

Como devolver à população a esperança de que a política partidária continue a ser a fórmula adequada para estabelecer um convívio solidário? Não é fácil, mas não impossível.

Para isso é preciso ter coragem. Muita coragem, o que não é apanágio de tantos. Enfrentar os temas polêmicos. Com firmeza e sem receio de ser politicamente incorreto. Ninguém mais suporta a tergiversação. As pessoas têm nojo do populismo. Principalmente do populismo brega, da mediocridade, do aproveitamento vulgar de tudo o que possa parecer simpático ao eleitor e é utilizado por quem nunca se preocupou com os temas nevrálgicos, mas quer agora aparentar sensibilidade.

Coragem para dizer a verdade. Destemor para ser franco.

Mas mentir é mais fácil. Omitir-se também é uma tática em voga. Ficar na platitude, repetir chavões, dizer o que o auditório quer ouvir. Variar o discurso conforme a plateia.

Não dá mais para esse jogo. Haverá saída?

O caminho só pode ser o que não se espera dos camaleões. Expor-se. Ousar. Ser audaz. Dizer a que veio. Fazer escolhas. Definir-se. Não se iludir com a espera da unanimidade. É melhor o não com clareza do que o talvez ambíguo. Não há partido incorruptível. Toda instituição humana é suscetível de acolher seres humanos com fissura de caráter. Mas condenar o adversário e ocultar as faltas dos parceiros é ignominioso. Impõe-se pedir perdão pela cegueira, por haver-se entregado a praxes hoje inadmissíveis. Aceitar o erro da omissão ou da imprudência de ter navegado nas águas turvas da quase ilicitude. Uma postura de dolo eventual: aceitar o risco de se expor. Conviver cercado de pessoas que não mereciam confiança. Tudo em nome de coalizões nefastas.

Mas a população séria quer muito mais.

Assumir o compromisso de reduzir drasticamente o número de partidos. Uma República de 40 partidos é uma falácia democrática. Acabar com o Fundo Partidário: que o partido seja sustentado por seus filiados. Interromper a sanha irresponsável da criação de mais entidades federativas. Frear o crescimento desenfreado da máquina pública.

Contar a verdade sobre a Previdência, que mais dia, menos dia - e isso está mais próximo do que se imagina - deixará de honrar proventos e pensões. Pois o Brasil real não cabe no PIB. Muito delírio, muita mentira, muita pretensão desancorada de encarar um quadro tétrico: a recessão brava, a estagnação, o desemprego crescente. Não se previu o tsunami da modernidade e nossa indústria perdeu o rumo da inovação. A educação não foi levada a sério por todos os responsáveis, não só pelo governo. Até porque o timing do governo é o da próxima eleição, incapaz de imaginar o que deva ser uma geração adiante da sua.

A população que não está pronta para a mutação estrutural que ciência e tecnologia trouxeram - e já alteraram o que se acreditava estável e permanente - é a mais penalizada. Ainda acredita em diplomas, em cursos universitários de profissões que serão descartadas. E já o são, sem que grande parte dos interessados o perceba.

O próximo presidente, o próximo Congresso, os Legislativos estaduais não terão condições de resolver a tragédia nacional. Mas poderão mostrar que o Brasil tem jeito. E esse jeito não se pode afastar da verdade. Nunca houve uma conjunção de fatores adversos tão sérios e comprometedores. Atraso tecnológico, paralisação da produtividade, violência em ascensão na mesma proporção do desânimo e desesperança.

Quem teve condições procurou abrigo no Primeiro Mundo, num êxodo inverso ao das correntes migratórias que tanto desenvolvimento trouxeram para o Brasil pós-abolição.

Uma responsabilidade enorme recai sobre os próximos governantes. Não se espere que em quatro anos haja reversão do caos. Mas a sinalização de que gente séria assumiu o leme já seria suficiente para conquistar quem não pode sair do Brasil e gostaria de encontrar estabilidade, paz e condições de viver dignamente neste chão em que nasceu. Conscientizem-se disso e abandonem a obsoleta e necrosada fórmula de fazer política. Chega de discurso. Chega de promessas vãs.

Sem isso, nas próximas eleições o espaço estará aberto para a aventura. Para o inesperado e para o temerário. Não se deve correr esse risco. Pode ser a derradeira oportunidade de se garantir o sonho de nação desenvolvida. De se cumprir a promessa do constituinte de 1988, ao acenar com uma pátria justa, fraterna e solidária.

Sem que se admita a falência da democracia representativa neste Brasil que já não crê em nenhum mandatário, sem que as máscaras sejam arrancadas e permaneça exclusivamente o ser humano em cotejo com a sua vontade de encarar a verdade, não haverá futuro decente no horizonte.

O grande eleitor de 2018 será o medo. E o medo não é bom conselheiro.

Não paguemos para ver.

JOSÉ RENATO NALINI, ESCRITOR E DOCENTE UNIVERSITÁRIO, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS. / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.06.18.

Aposta no caos

O estrondoso sucesso da greve dos caminhoneiros – que viram atendidas todas as suas reivindicações e colocaram o governo de joelhos, arrancando urras de parte considerável da população – inspirou os oportunistas de sempre a tentar capitalizar e, quem sabe, ampliar a insatisfação popular.

É o caso, por exemplo, da Federação Única dos Petroleiros (FUP), sindicato petista que decidiu deflagrar “a maior greve da história da Petrobrás” para protestar contra “os preços abusivos dos combustíveis” e “contra o desmonte da empresa que é estratégica para a nação” – razão pela qual exige a demissão do presidente da estatal, Pedro Parente.

Felizmente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) declarou a greve ilegal, estipulando multa diária de R$ 500 mil em caso de descumprimento. Em sua decisão, a ministra do TST Maria de Assis Calsing disse que se trata, “a toda evidência, de greve de caráter político”. Com razão, a magistrada considerou que a pauta dos grevistas representa “forte ingerência no poder diretivo da Petrobrás” e também “em ações próprias de políticas públicas, que afetam todo o País e cuja solução não pode ser resolvida por pressão de uma categoria profissional”. Além disso, escreveu ela, uma greve de petroleiros neste momento provocaria enormes prejuízos à população, especialmente “por resultar na continuidade dos efeitos danosos causados com a paralisação dos caminhoneiros”. E Maria de Assis Calsing arrematou: “Beira o oportunismo a greve anunciada”.

Os oportunistas em questão, é claro, não se fizeram de rogados. “Consideramos inconstitucional (a decisão do TST). A Constituição nos garante decidir quais interesses devemos proteger com a greve”, disse um porta-voz da FUP. A pilantragem hermenêutica apenas confirma o caráter totalmente mendaz desse e de outros movimentos feitos exclusivamente para explorar o apoio popular obtido pela greve dos caminhoneiros.

Esses movimentos pretendem ampliar a já crescente hostilidade ao governo do presidente Michel Temer, transformado pelos jacobinos da luta anticorrupção e por aproveitadores em geral em símbolo de um país carcomido pela corrupção e pelos privilégios a minorias bem articuladas.

Ora, não é preciso morrer de amores por Temer para ver aí um evidente exagero, pois o presidente herdou um país esfrangalhado pela criminosa irresponsabilidade lulopetista e, em pouco tempo, restabeleceu um mínimo de racionalidade fiscal, disso resultando a queda da inflação e dos juros e a retomada do crescimento. No entanto, nada do que esse governo faz, mesmo seus acertos mais evidentes, parece digno de crédito, pois, conforme indicam as pesquisas e a julgar pelo apoio popular aos caminhoneiros, Temer passou a ser um exemplo de governo desastroso.

Esse discurso ressuscitou o que deveria estar morto, isto é, o embuste lulopetista, segundo o qual o País era uma maravilha nos tempos de Lula da Silva e Dilma Rousseff – inclusive com combustível barato, subsidiado. A nostalgia daqueles tempos “dourados” ignora, por exemplo, que a política de subsídios tende a concentrar renda nos grupos organizados da sociedade, restando à maioria desorganizada e pobre arcar com o custo.

Aliás, é preciso lembrar que a crise dos caminhoneiros tem sua origem não só na ilusão do diesel barato, mas também na farra petista do crédito farto, que estimulou muitos a comprar caminhões, inflando assim a oferta do serviço de transporte, o que baixou o preço do frete. Quando veio a crise, a demanda pelo serviço caiu, deixando muitos caminhoneiros endividados e sem trabalho. A racionalização do preço dos combustíveis, para sanear a Petrobrás destruída pelos petistas – os mesmos que ora organizam uma greve para “defender” a estatal –, completou o quadro.

A política de austeridade e as reformas de Temer nada têm a ver com essa crise. São, ao contrário, sua solução, nunca sua causa. Mas é mais fácil acreditar nas patranhas lulopetistas ou, pior, defender a volta dos militares ao poder, do que aceitar a dura realidade de que o Estado não é senão administrador de recursos escassos.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 31.05.18.

Brincando de golpe

Por Eliane Cantanhede

Assim como nos aviões, são duas as decisões mais tensas de uma greve: quando e por que começar, quando e por que parar. A greve dos caminhoneiros começou na hora certa, jogou luz nas agruras do setor, criou um caos no País e foi um estrondoso sucesso. Os caminhoneiros, porém, estão perdendo o timing de acabar a greve e capitalizar as vitórias.

As pessoas apoiaram a revolta, mesmo sofrendo diretamente as consequências, porque se identificaram com as dificuldades dos caminhoneiros e, como eles, estão à beira de um ataque de nervos diante de tanta corrupção. Mas é improvável que apoiem agora, simultaneamente, o “Fora Temer”, o “Lula livre” e a “Intervenção militar já”.

É uma salada indigesta. Pepino, abacaxi e pimenta não combinam e, cá para nós, focar o protesto na queda do presidente Michel Temer raia o ridículo, é como “chutar cachorro morto”. Faltando seis meses para o fim do governo? Com Temer já no chão? É muita artilharia para pouco alvo.

O governo cedeu exatamente em tudo que eles pediam: preço do diesel, redução de impostos, previsibilidade nos reajustes, tabela mínima de fretes e mudança nos pedágios federais, estaduais e municipais. Uma brincadeira que vai custar de R$ 9,5 bilhões a R$ 13,5 bilhões ao Tesouro. Leia-se: a você, leitor, leitora. Agora, a munição do governo acabou. Não há o que fazer.

Eles exigiam mais do que 30 dias de suspensão de aumentos, o governo admitiu o dobro. Exigiam aprovação já, o governo assinou medidas provisórias, que entram em vigor imediatamente. Exigiam publicação do acordo no Diário Oficial da União, o governo fez uma edição extra. Depois de tudo, eles passaram a exigir o corte de R$ 0,46 nas bombas, antes de voltar à ativa. Estão enrolando. Com outras intenções?

Uma coisa é a paralisação de caminhoneiros com reivindicações justas. Outra coisa, muito diferente, é um movimento político com exigências difusas, até contraditórias, e absolutamente inexequíveis. A paralisação deixa de ser justa, perde a legitimidade e passa a ser um ataque oportunista, não a um governo agonizante, mas às instituições e a toda a sociedade.

Ontem, manifestantes já circulavam pela Praça dos Três Poderes e confrontavam o Palácio do Planalto, como ocorreu em junho de 2013. Amanhã, os petroleiros podem começar uma greve sem pauta, movida a ódio e a política. No que isso vai dar? Há um clima de insegurança, de temor, de exaustão, no qual o que mais falta é racionalidade. Não estão medindo as consequências.

Estão todos brincando com fogo: governo, caminhoneiros, os que amam Lula, os que odeiam Temer, os saudosos da ditadura militar... Mas todos eles, que comemoram e se divertem hoje, poderão ter muito o que chorar e espernear amanhã, porque todo esse ódio e essa “revolução” miram um governo em fim de festa, mas podem acabar fazendo a festa de quem menos eles esperam em outubro.

Diz a inteligência, e confirmam os estrategistas, que você só dá passos sabendo onde quer chegar. E deve saber o momento de parar, para renovar energias, ou até recuar, para não bater com a cara na parede. O que se vê hoje, nos radicais que ameaçam as vitórias dos caminhoneiros, e na turba que os aplaude maliciosa ou ingenuamente, é justamente a falta de objetivos, de propósitos. É se jogar de cabeça, sem pensar nos riscos, nos perigos.

Derrubar Temer e colocar Rodrigo Maia na Presidência não pode ser um objetivo sério, um propósito de boa-fé. É uma manifestação irracional de ódio, um desserviço ao Brasil, uma aventura com repercussões nefastas. Quem gosta de brincar com fogo parece torcer por um golpe, mas um golpe de verdade. Que não venham depois chorar sobre o leite derramado, tarde demais.

Eliane Cantanhede é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.05.18.

A greve dos caminhoneiros

A eliminação temporária da cobrança da Cide (conhecida como imposto do combustível) sobre o diesel traz algum alívio para os caminhoneiros, há dias em greve nacional contra as sucessivas altas do preço do combustível. Mas não resolve o problema principal dos grevistas, impõe novas dificuldades ao programa de ajuste fiscal do governo e sua concretização está condicionada a uma decisão responsável de um Congresso cujas atitudes com frequência beiram a irresponsabilidade.

Em meio a protestos de caminhoneiros que alcançaram pelo menos 24 Estados, o governo concordou em zerar a Cide sobre o diesel, mas condicionou a medida à aprovação, pelo Congresso, do projeto que acaba com a desoneração da folha de pagamentos de diversos setores.

A desoneração foi adotada pelo desastroso governo de Dilma Rousseff com o alegado objetivo de estimular os setores beneficiados, mas seus resultados foram pouco notáveis do ponto de vista do crescimento. Do ponto de vista fiscal, porém, comprimiu ainda mais uma receita que já caía em razão da recessão deixada pela administração lulopetista. Para manter o déficit primário relativamente controlado e dentro da meta de R$ 159 bilhões neste ano, o governo propôs a retirada da desoneração de 53 dos 56 setores que haviam sido beneficiados pelo governo Dilma. Entendimentos entre o Planalto e o Congresso haviam elevado o número de setores beneficiados para cerca de 20, o que reduziria fortemente a receita adicional esperada. Agora, com a eliminação da Cide, a receita líquida adicional tende a ser ainda menor, tornando mais penoso o ajuste paulatino das contas da União.

Nem assim, porém, os caminhoneiros ficaram satisfeitos, pois a redução para zero da alíquota da Cide sobre o diesel reduzirá em apenas R$ 0,05 o preço do combustível na bomba. O valor é considerado insuficiente para resolver os sérios problemas que eles enfrentam desde que os preços dos combustíveis passaram a ser ajustados pela Petrobrás de acordo com a variação da taxa de câmbio e da cotação do petróleo no mercado internacional (o preço do óleo passou de US$ 50 o barril em julho do ano passado para cerca de US$ 80). Por essa razão, os caminhoneiros decidiram manter a greve.

A política de preços adotada pela Petrobrás tem sido um dos principais elementos da credibilidade da gestão comandada por Pedro Parente, que tomou posse em junho de 2016. Essa política – fortalecida por outras medidas de teor semelhante – simboliza o afastamento total da interferência política nas decisões da Petrobrás, como as que havia na gestão lulopetista. A compressão artificial dos preços dos combustíveis para conter a inflação, ao lado das operações do amplo esquema de corrupção instalado na estatal pela administração petista, comprometeu seriamente a saúde financeira e a capacidade operacional da Petrobrás. A recuperação da empresa iniciada por sua atual gestão é um dos ganhos administrativos mais marcantes do governo Temer, e não pode ser comprometida por ingerências políticas.

A solução acordada para o problema que afeta os caminhoneiros, por isso, foi a redução da tributação sobre os combustíveis, que é muito alta. Ela corresponde, em média, a 44% do preço da gasolina pago pelo consumidor e a 28%, no caso do diesel. Mas a tributação mais pesada não provém da Cide – daí o baixo impacto de sua eliminação sobre o preço final –, e sim de outros tributos, especialmente o ICMS, que é de natureza estadual. A Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes calcula que o ICMS representa de 25% a 34% do preço da gasolina e de 12% a 15% do diesel.

Enquanto o problema persiste, setores da economia começam a parar. A indústria automobilística já se queixa da falta de componentes, filas de caminhões parados reduzem as operações portuárias, mercadorias deixam de ser transportadas, postos estão ficando sem combustíveis, aeroportos podem parar. É preciso encontrar uma solução rápida.

N. da R. – Este editorial já estava na página quando a Petrobrás anunciou a redução de 10% no preço do diesel nas refinarias por 15 dias. (Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.05.18.

Constituição à la carte

O artigo 102 da Constituição diz, na alínea b do inciso I, que é da competência do Supremo Tribunal Federal “processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. Não há, portanto, nenhuma referência ao momento em que foi cometido o delito, se antes ou durante o exercício do mandato.

Malgrado essa clareza meridiana, o Supremo Tribunal Federal resolveu extrapolar suas funções e invadir seara do Poder Legislativo, ao “emendar” o artigo 102 da Constituição a título de acabar com “os problemas e as disfuncionalidades associados ao foro privilegiado”, como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, em seu voto – que poderia muito bem ser qualificado de “proposta de emenda constitucional”.

Nesse afã de “consertar” a Constituição para adequá-la ao desejo de acabar com a corrupção e a impunidade, o ministro Barroso estabeleceu que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”. Ou seja, se o crime pelo qual o político é acusado tiver sido cometido antes de assumir o mandato, ou se não tiver relação com suas atividades como parlamentar, o processo correrá na primeira instância, e não mais no Supremo, como manda a Constituição.

A tese do ministro Barroso foi amplamente aceita na Corte, apesar de ser claramente subjetiva. Afinal, como estabelecer se o crime em questão está ou não “relacionado às funções desempenhadas”? A vaguidão da “emenda” do ministro Barroso certamente colaborará para que haja inúmeras contestações judiciais, sendo necessário, como já esperam os seus colegas, resolver caso a caso, ao sabor das conveniências monocráticas do magistrado de plantão. Ou seja, cria-se uma regra que não estabelece regra nenhuma, um convite para a confusão.

Mas este não é o único problema grave da “emenda” do ministro Barroso. Graças a ela, os parlamentares ficarão perigosamente expostos a juízes de primeira instância e a procuradores da República convencidos de que todos os políticos são corruptos até prova em contrário. É justamente para proteger a atividade dos políticos eleitos pelo voto direto que existe o foro dito “privilegiado”. Do contrário, corre-se o risco de paralisação do poder público, exercido pelo Congresso e pelo Executivo, cujos integrantes ficarão sujeitos à litigância de má-fé em qualquer comarca.

Além disso, a “emenda” do ministro Barroso não estende a restrição do foro privilegiado aos demais detentores dessa prerrogativa, entre os quais os juízes, os procuradores da República e os próprios ministros do Supremo. Somados, esses operadores da lei chegam a 35 mil dos cerca de 60 mil detentores do foro privilegiado. Os parlamentares federais são menos de 1% do total.

Assim, a título de sanar a “violação aos princípios da igualdade e da República” e de agilizar o trabalho do Supremo, supostamente assoberbado em razão dos processos contra políticos, a “emenda” do ministro Barroso excluiu apenas os parlamentares do rol daqueles que desfrutam do privilégio. E isso tem uma explicação óbvia: o ativismo judicial considera a classe política essencialmente corrupta, sendo a grande responsável pelos males do País; logo, deve ser tratada com maior rigor. Já os juízes de primeiro grau e os procuradores da República, empenhados na caça aos corruptos, merecem tratamento distinto.

É evidente que o Congresso reagirá a essa usurpação de suas funções pelo Supremo, gerando previsível choque – mais um – entre esses Poderes. Nada disso, infelizmente, deverá alterar a questão de fundo – qual seja, a de que o Supremo parece realmente disposto a refazer a Constituição a seu alvedrio, sem ter recebido um único voto para isso.

Ironicamente, o mesmo artigo da Constituição que estipula o foro privilegiado para parlamentares federais diz também que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. Seria bom que o Supremo começasse a respeitá-lo.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 06.05.18

A prevalência da lei

Se o voluntarismo judicial gera uma grave distorção no sistema jurídico, ao fazer com que os efeitos da lei não sejam expressão apenas da vontade do Congresso – mas também da particular vontade de juízes –, ele se torna ainda mais prejudicial na hora de aplicar a Constituição. É o que se tem visto em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que tantas vezes dizem exatamente o contrário daquilo que está expresso nos artigos da Carta Magna.

A Constituição é a lei de maior hierarquia no País. Todas as outras leis devem estar em conformidade com o seu conteúdo. Se o conteúdo constitucional está sujeito a um tratamento fluido, que não respeita a literalidade do texto, todo o sistema jurídico é afetado pela instabilidade e insegurança. Já não existe critério seguro, sendo tudo passível de uma nova e criativa interpretação.

Não resta dúvida de que, às vezes, é preciso fazer uma aplicação sistêmica da lei, corrigindo eventuais omissões e contradições. Tal necessidade, no entanto, não autoriza a desprezar o que o legislador constituinte escreveu. Em geral, as interpretações contrárias ao texto constitucional não se baseiam numa avaliação global do ordenamento jurídico, de modo a conferir-lhe maior unidade. Ocorre justamente o oposto. O que se vê são discordâncias pessoais em relação ao texto legal que levam a interpretações casuísticas, sem nenhuma consistência sistêmica, e que produzem outras e maiores contradições.

Sempre houve uma margem subjetiva na aplicação da lei. O problema é que, atualmente, se perdeu a reverência pelo texto constitucional. Muitos juízes reivindicam para si liberdade total para interpretar a lei, rejeitando qualquer limite objetivo nessa tarefa. Tornam-se soberanos com poderes absolutos.

Como é óbvio, tal lógica confere um poder excessivo ao Judiciário, que teria a faculdade de atribuir à lei o sentido que mais lhe convém. Raríssimas vezes o sentido dado à lei por esses juízes todo-poderosos guarda alguma relação com o texto aprovado pelo Congresso – esse, sim, o locus da soberania.

Quando se discutem essas questões, é frequente tratar o STF com condescendência. Por ser o tribunal de maior hierarquia no Judiciário, diz-se que ele teria o direito a errar por último. Ou ainda que a Constituição não seria o que está escrito no livrinho, mas aquilo que o STF define como sendo a Constituição.

A posição hierárquica do STF confere-lhe, não há dúvida, uma enorme responsabilidade. Mas esta é a responsabilidade de ser fiel ao texto constitucional, não a de ditá-lo como quiser. Sua missão institucional é ser o guardião da Carta Magna. Assim, é um equívoco achar que, por ser a Corte mais alta, o Supremo teria total liberdade interpretativa ou que não precisaria respeitar os limites expressos no texto.

O STF tem o dever de ser exemplo a todo o Judiciário, em especial de respeito ao texto definido pela Assembleia Constituinte. Num Estado Democrático de Direito, não cabem interpretações judiciais que desautorizam o texto constitucional. Os ministros do STF não são árbitros da Constituição. Há juízes, por exemplo, que agem como se fosse da alçada da Suprema Corte retirar vigência de parte do texto constitucional por considerá-lo incompatível com o sentimento atual da população. Agindo assim, os ministros do STF assumem o papel que ninguém lhes outorgou – o de serem oráculos da vontade da população.

A Constituição não é aquilo que o Supremo diz ser. É a Constituição que define o que o Supremo deve ser e como deve se portar. Por exemplo, não cabe aos ministros do STF ponderar se devem respeitar as competências privativas do Congresso Nacional. Não há situação, por mais excepcional que seja, que justifique ultrapassar os limites de cada Poder.

A Carta Magna de 1988 tem muitos defeitos e compete ao Congresso corrigi-los. Mas não se encontra no texto constitucional o disparate de estabelecer que o País será regido pela vontade de 11 ministros, que não receberam nenhum voto popular. Numa República vale a lei – não a arrogância de seu intérprete.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 07.05.18

Segurança e sistema prisional

Por Evandro Mesquita

Adequado, de início, ressaltar a distinção entre cenário social adverso em periferias de capitais e grandes cidades, propício a originar condutas delitivas, a ser medicado em suas causas, e ações criminosas e violentas já em curso, a débito de meliantes sem nenhuma perspectiva de recuperação, especialmente quando integram organizações criminosas consolidadas. Essas são duas situações bem diversas, a merecerem tratamentos também absolutamente diferenciados.

A higidez do meio social depende de retomada vigorosa do desenvolvimento, com elevação de empregos e renda, soluções de médio e longo prazos, envolvendo escolha de caminhos eficientes para maior desempenho global e/ou setorial da economia. Sabe-se também que há espaço para definição de macroplano social para o País, que ultrapasse os limites quadrienais de governos, associado ao exercício de política demográfica que já exercitamos no passado para povoar a imensidão territorial vazia, agora novamente necessária, mas para busca do aprimoramento social, lastreada em paternidade responsável, caminho seguro para a prevalência de referências e valores morais afastados de esgares ideológicos e pruridos do politicamente correto.

Enquanto isso, tendo em vista a ocorrência diária e contínua de crimes de sangue, deve o poder público acelerar a identificação e segregação dos transgressores, retirá-los de circulação, isolá-los. E tendo como razão principal para isso não só o mal já causado, mas a prevenção pelo mal maior que ainda poderão causar.

Nesse sentido, muitas esperanças se depositam nas ações federais de segurança pública em implementação no Rio de Janeiro sob coordenação do Exército Nacional e integrando as Polícias Militar e Civil, cujos resultados poderão definir alternativas também para outros Estados e regiões.

Não obstante, é certo que o incremento da criminalidade guarda estreita relação com o sistema prisional atual, quando se constata que 80% dos crimes mais agressivos praticados contra a pessoa e o patrimônio são de autoria de reincidentes, em geral fora de presídios e penitenciárias por fuga, resgate ou liberdade eventual convertida em fuga. Estando sentenciados, os Poderes Legislativo e Judiciário terão cumprido o que lhes cabia fazer, aprovando leis e prolatando sentenças. O elo fraco, portanto, reside no sistema prisional vigente, que não consegue reter parcela significativa de criminosos violentos, que voltam às ruas e aos morros para a prática de crimes que ascendem à categoria de hediondos.

Cabe, fundamentalmente, aos Estados federados o ônus de custódia da massa carcerária, conquanto o disciplinamento legal respectivo seja basicamente de natureza federal. A ausência da União no sistema prisional e a contenção de repasses do Fundo Penitenciário Nacional são decorrentes da carência de recursos, em face da busca do equilíbrio orçamentário nominal, que reserva cifras cavalares para o serviço da dívida, exaurindo os meios seja para aporte social, seja para investimentos.

A edificação e a manutenção de presídios em locais afastados, e mais ainda em relação aos de segurança máxima, exigem somas excepcionalmente elevadas e nem por isso eliminam fugas por túneis e transposição de muralhas, além do manejo de celulares para contato com o crime organizado externo e o ingresso de armas e drogas. Também o sistema de visitas íntimas estimula a libido, com vasto corolário de consequências indesejadas, como submissão ao homossexualismo perverso e deformação da ordem e disciplina internas, transformando o carcereiro em atendente de motel.

Por outro lado, os estabelecimentos prisionais situados em meio a centros urbanos, com ampla movimentação humana ao redor, alarido de crianças, vozerio de pessoas, visão de mulheres, rumor de veículos, enfim, plena liberdade reinante no entorno, produzem amargor, reação psicológica negativa e anseio insopitável por fugir. O presidiário com longa pena a cumprir, erotizado pelas visitas íntimas, adrenalinado pelo burburinho citadino, estará transformado em verdadeira máquina de fuga.

Diferentemente do que ocorre nos cenários descritos, o sentenciado com pena de média ou longa duração, ao entrar no estabelecimento prisional deverá preparar-se para o período da condenação, revendo anseios sociais, perspectivas de realização pessoal e objetivos econômicos, amoldando-se à ideia de vida singela, tosca, introvertida - pois essa é a realidade de qualquer presídio.

É a possibilidade de superação, ao menos parcial, dessas diversas questões que levam a lembrar a adoção de presídios e/ou penitenciarias em ilhas marítimas. O Serviço do Patrimônio da União possui rol completo de ilhas ao longo do litoral brasileiro, suficiente para determinar as mais adequadas para a finalidade em cada Estado. O manuseio de levantamentos aerofotogramétricos disponíveis facilita a escolha. Capitais privados poderiam interessar-se pelo novo nicho para investimentos.

Trata-se de sugestão sem originalidade. Ilhas-prisão existiram e existem em muitos países. Mesmo o Brasil já dispôs de exemplos. Mas com a adição provisória ou definitiva da modalidade ao sistema prisional estariam no curto prazo minimizados os problemas referidos, dispensando-se dispendiosas edificações e decorrente manutenção.

E, principalmente, porque não só a sociedade, mas também o presidiário serão beneficiários da alternativa. Assim, transplantado do cubículo da cela para o espaço da ilha e a imensidão do mar e do céu que a envolvem, próximo ao potencial construtivo da natureza, livre da promiscuidade e da baixaria dominantes na prisão tradicional, liberto da excitação e das aspirações inviáveis, aí, sim, poderá vicejar o que de bom ainda remanesça na alma e no coração do presidiário.

Evandro Mesquita é advogado e diretor da Fundação Ulysses Guimarães. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.05.18.

Ganhar ou perder

Por Fernando Gabeira

As pesquisas mostraram que há muitos candidatos à Presidência, mas ainda poucos votos. Conheço quase todos os candidatos pessoalmente, incluído Levy Fidelix, cuja campanha documentei em 2015, assim como outros considerados nanicos na época. Discutir suas qualidade e seus defeitos é um esforço válido, mas não é isso que farei em 2018. O que posso fazer apenas é ajudá-los a ganhar ou perder votos, lembrando grandes temas para a sociedade, nos quais nem sempre eles se fizeram presentes.

Poucos dos mais votados falaram, por exemplo, de duas questões muito discutidas no momento: a prisão em segunda instância e a revisão do foro privilegiado. É compreensível que mantenham uma certa distância. Abraçar esses temas e ampliá-los com uma perspectiva de combate à corrupção não é bem visto entre os políticos. Muitos candidatos são discretos nesse ponto porque não querem perder o apoio dos seus pares, muito menos arriscar-se a um confronto com o Congresso, em caso de vitória.

Como em todas as eleições, assumir uma linha política nem sempre representa apenas mais votos. É sempre um jogo de ganha e perde.

A própria esquerda será chamada a se definir, mas hoje, por uma questão de coerência, ela associa a prisão após segunda instância à presença de Lula na cadeia. E certamente terá de adotar a posição mais leniente, que prevê prisão após o trânsito em julgado.

É uma posição defensável, em nome da liberdade individual, sobretudo se omitir suas terríveis consequências, como a sobrevivência do sistema de impunidade, que tanto contribuiu para arruinar o País. Seria assim uma posição ultraliberal, defensável apenas num regime burguês, já que os regimes de esquerda não conhecem essa história de trânsito em julgado: muitos deles prendem sem contemplação, até inocentes.

Mas é importante prever um espaço para a esquerda, sobretudo para o candidato indicado por Lula. Mais da metade dos eleitores de Lula votariam nele.

Se existe um problema de ganha e perde votos, hoje, esse problema é o medo nas cidades brasileiras. Bolsonaro adiantou-se alguns meses, propondo armamento, defendendo a tese de que bom policial é o que mata, e mais alguns componentes que o aproximam de uma política de tolerância zero com o crime.

É isso mesmo, ou existe alguma alternativa? Nesse caso, não vale apenas dizer apenas que é preciso haver empregos, educação e tudo mais. É necessário mostrar que existem escolhas mais eficazes, apresentar uma política específica de segurança pública.

O crime organizado é uma realidade nacional. Ele domina as cadeias e todas as redes de tráfico de drogas no País. Numa cidade como o Rio de Janeiro, as milícias, por exemplo, controlam territórios onde moram 2 milhões de pessoas.

Tudo isso é um desafio para os candidatos. Eles têm de mergulhar no tema e dizer alguma coisa – ganhar ou perder votos, isso é do jogo.

Esse perde e ganha se transporta também para a base. Todos prometem crescimento econômico. Mas que tipo de crescimento? Vão entulhar as ruas de carros individuais? Lembrem-se de 2013.

Os candidatos hoje em dia são aconselhados a evitar alguns temas, escolher apenas o que as pesquisas recomendam. Mas quando alguns temas dominam a cena e os candidatos são protagonistas distantes, sempre vai haver pouco voto.

Mesmo sem esquecer que há um segundo turno, o ideal seria que os candidatos já expressassem grandes correntes. No passado, isso era canalizado pelos dois grandes partidos. Mas PT e PSDB vivem cada um o seu inferno com a Lava Jato.

O PT perdeu seu candidato e o PSDB, embora se afaste de Aécio, não conseguiu dar o passo fora do círculo. Geraldo Alckmin sentiu um alívio porque o inquérito sobre as doações da Odebrecht foi para a Justiça Eleitoral. Sua grande vitória: ter-se livrado da Lava Jato.

É um equivoco. Em primeiro lugar, porque fortalece o discurso de que a Justiça persegue uns e protege outros. Em segundo lugar, se é inocente e está tudo bem, nada melhor do que ser investigado pela Lava Jato, que acumula grande capacidade técnica, até para inocentar. Para um candidato à Presidência, fugir da Lava Jato não é bom esporte neste outono.

Numa corrida em que tudo pode acontecer, a sociedade, que já se desapontou com os grandes partidos, precisa de salvaguardas. Um delas é trazê-los para o debate dos temas que lhe interessam de fato. É sempre possível argumentar que os políticos têm uma linguagem escorregadia e, além disso, nunca cumprem exatamente o que prometem.

Mas não se pode pensar em eleições como se fossem as mesmas sempre. Ainda não é o ideal, mas nunca se teve tanta transparência, nunca se esteve tão atento aos caminhos da política.

Dizem que os 11 ministros do STF são tão conhecidos como a seleção nacional de futebol. Não tenho elementos para contestar ou validar. Sei apenas que muita gente se esforça para escalar aquela muralha de palavras difíceis, citações, para se aproximar do que realmente interessa: saber qual o placar do jogo, se há esperanças no combate à corrupção.

Ainda é muito cedo para prever, mas tudo indica que a indignação não é o único elemento. As pessoas sabem mais do que no passado. Sabem porque conheceram o declínio do sistema político-partidário e sabem porque se dotaram de meios técnicos superiores.

Não vai adiantar muito ficar meio escondido no debate, nem se proteger com um exército de robôs multiplicando fake news. Esta é uma eleição singular no Brasil, depois de tudo o que vivemos. A grande personagem é a sociedade que emergiu de todos esses traumas. Sua atuação é imprevisível. Conheceu a fragilidade humana dos seus líderes e, no mínimo, vai buscar os melhores mecanismos de controle.0

Levado a sério, um programa de governo é um deles.

* FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20 de abril.2018.

Lula atrás das grades

Por Mário Vargas Llosa

Que Lula, o ex-presidente do Brasil, tenha dado entrada em uma prisão em Curitiba cumprindo uma pena de doze anos de prisão por corrupção, e originado protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela ou da Nicarágua, era algo previsível. Mas é menos previsível que tantas pessoas honestas, socialistas, social-democratas e até mesmo os liberais tenham considerado que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que muito se preocupou em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, aparentemente, cerca de 30 milhões de brasileiros de extrema pobreza quando esteve no poder.

Aqueles que pensam assim estão convencidos, aparentemente, que ser um bom governante tem a ver apenas com a execução de políticas sociais avançadas, e isso o isenta de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi levado à cadeia pelas coisas boas que fez durante seu governo, mas pelas más, e entre estas figura, por exemplo, a corrupção espantosa da companhia estatal Petrobrás e de seus empreiteiros, que custou ao castigado povo brasileiro nada menos que três bilhões de dólares (dois bilhões deles em subornos).

Além disso, aqueles que têm Lula em tão alta consideração esquecem o papel feio de alguém “que corre de um canto para outro levando fofocas” que atuou como um emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes corruptos e ministros para que favorecessem essa transnacional com contratos multimilionários de obras públicas.

É por este motivo e outros casos que Lula tem não um, mas sete processos por corrupção em curso e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari ou José Dirceu, seu chefe de gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, golpes e outras operações criminosas. Entre as mais recentes acusações que recaem sobre ele, está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em uma praia do Guarujá (São Paulo).

Os protestos pela prisão de Lula não levam em conta que, desde a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava sufocar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários públicos e banqueiros, foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e há várias dezenas deles que o serão em futuro próximo.

Nunca na história da América Latina havia acontecido algo semelhante: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais, que, a partir de São Paulo, se espalhou pelo País, não contra uma empresa, um caudilho, mas contra a desonestidade, as más ações, os roubos, os subornos, toda a corrupção gigantesca que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a prática política, em todo o país. Um movimento popular cujo objetivo não era nem a revolução socialista nem derrubar um governo, mas sim a regeneração da democracia, para que as leis deixassem de ser letra morta e fossem verdadeiramente aplicadas a todos igualmente, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.

O extraordinário é que esse movimento plural tenha encontrado juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, deram-lhe um canal judicial, investigando, denunciando, mandando para a prisão uma série de executivos, empresários, industriais, parlamentares, funcionários, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é viável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no terceiro mundo, se houver vontade e apoio popular para fazê-lo. Sempre cito Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nestes últimos anos, temos visto no Brasil como seu exemplo foi seguido por inúmeros juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e liberdade que quase tinha sido perdida.

Existem muitas pessoas admiráveis no Brasil; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa ou minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de ação punível; e atletas e desportistas cujos nomes deram a volta pelo mundo. Mas se eu tivesse que escolher um deles como um modelo exemplar para o resto do planeta, não hesitaria um segundo para escolher Sérgio Moro, este modesto advogado natural do Paraná, que, após sua formatura, entrou na magistratura por concurso, em 1996. Segundo comentou, o que aconteceu na Itália na década de noventa, o famoso processo Operação Mãos Limpas, deu-lhe ideias e entusiasmo para combater a corrupção em seu país, usando instrumentos semelhantes aos dos juízes italianos de então, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada e a colaboração da imprensa dos meios de comunicação em troca da redução da sentença. Eles tentaram corrompê-lo, é claro, e é certamente um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos não são, infelizmente, excepcionais. Mas lá está ele, fazendo parte de uma verdadeira – embora ninguém a tenha chama disso – revolução silenciosa: o retorno à legalidade, ao império da lei, em uma sociedade na qual a corrupção generalizada a estava desintegrando impedindo de o “grande país do futuro” que sempre foi ao ser o grande país do presente.

A corrupção é o grande inimigo do progresso latino-americano. Faz estragos nos governos da direita ou da esquerda e um grande número de latino-americanos chegou a acreditar que é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não existe defesa: terremotos, tempestades, relâmpagos. Mas a verdade é que existe e de fato o Brasil está demonstrando que é possível combatê-lo, se há juízes e promotores arrojados e responsáveis, e, claro, uma opinião pública e os meios de comunicação que os apoiam.

Por isso, é bom, para a América Latina, que pessoas como Marcelo Odebrecht ou Lula da Silva tenham sido presos depois de terem sido processados, concedendo a eles todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a justiça é a mesma para todos, os pobres diabos que são a imensa maioria e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro ou suas posições. E são precisamente estes últimos que têm maior obrigação moral de obedecer a lei e para mostrar, em suas vidas diárias, que não são necessárias transgressões para preencher essas posições de prestígio e poder que eles têm alcançado, pois isso é possível dentro da legalidade. É a única maneira pela qual uma sociedade acredita em instituições, rejeita o apocalipse e as fantasias utópicas, sustenta a democracia e vive com o sentimento de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la mais a cada dia. /TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO.

Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, foi candidato a Presidente da República do seu País, o Perú, sendo vencido por Alberto Fujimori, professor universitário, candidato populista. E deu no que deu. Mário, completamente fora da politica partidária em seu País, escreve semanalmente para diversos jornais do mundo e, no Brasil, para O Estado de São Paulo, que publicou este artigo na edição de 16.04.18.

Pior para quem mais sofre

A profunda crise econômica que o lulopetismo legou ao País está sendo duplamente mais penosa para a faixa da população que vive em piores condições. O partido afastado do poder com o impeachment de sua presidente dizia que este era o segmento social para o qual se voltavam preferencialmente suas políticas ditas sociais, mas essa se tornou a parcela da sociedade mais prejudicada pelas aventuras e irresponsabilidades do PT. Na crise, as faixas de menor renda perderam proporcionalmente mais do que as demais e, enquanto outros segmentos da população passaram a sentir os efeitos dos primeiros sinais de retomada da economia, os que menos ganham continuaram a ficar mais pobres. No ano passado, embora o ritmo da atividade econômica tenha começado a se intensificar de maneira ainda tímida, o rendimento real de todas as fontes continuou a cair, mas caiu mais para quem ganha menos.

De acordo com o relatório Rendimento de Todas as Fontes 2017, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 124,6 milhões de pessoas que tinham algum rendimento em 2017 – salários e fontes como aposentadoria, pensões, programas sociais e aluguéis – recebiam em média R$ 2.112. Esse valor é 0,6% menor do que a renda mensal média de R$ 2.124 recebida em 2016.

A redução da renda média foi maior entre os que ganham menos. Os 43,4 milhões de trabalhadores que representam os 50% mais pobres da população com alguma forma de rendimento tiveram perda média de 2,46%. No ano passado, a renda dessa faixa da população era de R$ 754 (contra R$ 773 em 2016), quase 20% menos do que o salário mínimo.

Muito pior era a situação de 10,36 milhões de pessoas que, no ano passado, viviam com apenas R$ 40 por mês, em média. Também entre esses mais pobres a situação piorou no ano passado. Em 2016, a renda real média dos mais pobres era de R$ 49. O que já era pouco há dois anos encolheu 18% em 2017. Pode-se dizer que os pobres ficaram ainda mais pobres no ano passado.

A consequência estatisticamente óbvia da disparidade entre a variação da renda dos que ganham menos e dos que ganham mais foi o aumento da distância entre a base e o topo da pirâmide e o aumento da fatia da renda total obtida pelos mais ricos. No topo, cerca de 2 milhões de pessoas (1% da população) recebiam R$ 27.213 por mês, 36 vezes a renda média dos 50% mais pobres.

Curiosamente, o Índice de Gini, principal medida da desigualdade de renda, permaneceu inalterado entre 2016 e 2017. Mas isso se deveu à queda da renda dos estratos mais altos, não à recuperação proporcional da renda dos mais pobres.

Há uma aparente contradição entre a queda da renda e os sinais, ainda que tímidos, da recuperação do emprego detectados por pesquisas do próprio IBGE e de outros órgãos públicos, como o Ministério do Trabalho. Embora no ano passado o número de pessoas com alguma ocupação tenha aumentado, o aumento se deveu ao mercado informal, onde a renda é menor e as garantias sociais igualmente menores. “Tudo o que o mercado de trabalho gerou de ocupação em 2017 foi voltado para a informalidade”, observou o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo. “Não houve aumento no trabalho com carteira assinada. Isso influencia muito fortemente o rendimento da população.”

A superação dos piores efeitos sociais e econômicos do fracasso das políticas do PT e de seus aliados levará tempo e dependerá da preservação das condições mínimas para o crescimento do País. Isso implica responsabilidade na gestão do dinheiro público, manutenção da inflação em níveis toleráveis, garantia de condições para o investimento produtivo que gera emprego e faz crescer a renda média, entre outros fatores. É de um governo que tenha compromissos como esses que depende a pavimentação da estrada para o crescimento econômico e para a redução da pobreza e das desigualdades sociais. O eleitor terá a oportunidade e a responsabilidade de elegê-lo em outubro.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.04.18

Carta aos sobreviventes

Por Paulo Delgado

Morremos incessantemente vendo alastrar a ousadia dos donos da circunstância nacional. O pouco tempo que nos separa do vazio final que podem vir a ser as eleições de outubro precisa ser preenchido por uma vida menos moribunda. Só a ressurreição dos silenciosos enterra os fantasmas que não querem desaparecer e insistem em assombrar.

Os veteranos que viveram esse modelo, e ficaram imunes a ele, deviam começar a se mexer, buscando a simbiose entre os velhos preservados e os novos promissores. Absorvam os ventos da mudança, transitem para a nova forma de fazer política. Rasguem as fotos, fotografia é esquecimento.

Não é preciso falar o nome dos personagens. São grilos falantes. É necessário um “não saber deles” para melhor lhes responder e opor ao seu desejo de nos impor seus costumes. Encontrar brechas na degradação, abrir nossas fissuras, a fenda que nos resta de liberdade e lucidez. Buscar a vibração esquecida do movimento que ilumina o reino de sombras que resiste à mudança. E impôs a servidão aos sentidos como se fôssemos tontos, cúmplices ou culpados.

Antes de renunciar à esperança desligue a conexão com tagarelas. Movimente você as manobras do movimento deles. Organize o pessimismo. Use sua experiência. A imitação produz semelhanças sociais. Despeça-se de quem tem acentuada tendência para falar de si mesmo. Faça seu corpo ficar aquém da sua idade, sua mente além do seu corpo e seu caráter coincidir com sua boa natureza. Hoje vê melhor quem vê mais fraco, ouve mais quem fala baixo. Evite os fluxos de vaidade que emanam da TV de juízes e da negatividade dos carros de som. Exibicionismo não é transparência, é devassidão. Bem viveu quem bem não viu.

Minorias intimidadoras criaram um estado de exceção fosforescente dentro de um circo de marionetes ofuscantes. Após dose enorme de regularidade, a tolerância a bobagens alcançou enorme prestígio e parece sem fim. Disso se observa a cuidadosa servidão da Justiça que, cheia de dedos, julga e aborda o homem paparicado, líder da classe dominante do capitalismo sem concorrência. Ao impor o método de detenção, exigindo prazo, culto e comício, é evidente o universo de privilégio que cerca o personagem. Incapaz de refletir sobre a solidão e o ócio de uma cela, desatento à fadiga do inconsciente, libera um amontoado de palavras ofensivas ao juiz, misturadas à comiseração por si mesmo. O êxtase fúnebre da alienação de um período improvisador mais se revela. Se a prisão é tão injusta assim, negociar com o opressor é de envergonhar Apolônio. Mas não, o objetivo é enfeitiçar a mídia, atrair devotos para impor desespero à decepção e, meu Deus, gravar um vídeo cuja síntese é: causa justa limpa dinheiro sujo. Não há história, nem penitência. Redimir para voltar a pecar? Aparência e coerência, senhores, são quase toda a conduta.

Aguente as tempestades. Aumente a qualidade da sua solidão. Fuja aos escombros do País abatido pela velha Justiça. Não caia na armadilha de ser parte do que repele. Observe o privilégio como desejo que devora. Tristeza sem desespero, alegria sem contentamento. Não chore, não solte foguete. Um caminho é procurar sua linha de vida, e não estacionar inviável diante dos condecorados. Nem tudo o que tem função tem sentido. E alguns, olhando assim de longe, estão mesmo é com a cabeça quebrada precisando de conserto. A história, de moral baixa, anda cheia de juristas e especialistas, fruto desses vazamentos no crânio, que foram aumentando, e acabou atacado por cardumes. Mas é sempre cada um que arruína a própria reputação, pois os cascos mais protegidos são os dos refratários à adulação. Desde Petrarca, há mais virtude em desdenhar da honra recebida do que ser merecedor dela.

A memória rígida da informática trouxe nova cultura, novo ciclo de verdade, uma moralidade do “fato”, que desmoraliza velozmente o curral político com seu emblemático domínio da versão. Há grandes inimigos do povo que não aceita vida de gado. Houve evolução: lembre-se dos atos secretos do Senado; da nomeação para a Casa Civil escancarada pelo celular; do erro do acusado de querer intimidar a Justiça e pretender ser absolvido sem se confessar; do circuito revelado da fortuna ilegal; dos que romperam o pacto, ajudando o País a ver o lodaçal.

A sociedade amanhece 6 a 5 mais otimista, mas continua ameaçada. Exéquias para quem pactua com o atraso. Não era melhor antes. Era um blefe.

É hora de alguém menos glutão que nos conceda hiatos de sensatez. Capaz de deter a insolência da facilidade e de empurrar quem decidir cair na vala comum que é errar sem se arrepender. Pense na sua experiência. Não jogue luz para fora do seu corpo se não for para iluminar o caminho de alguém. Não se deixe comer pela treva da ideologia de almanaque, o buraco da angústia que fez do Estado negócio de panelinha, uma certa esquerda ligada a certa direita. A arrogância exótica do governante e sua predileção pelo lado oportunista do capital, subtraindo energia da Nação. O que vai abrir espaço para outra formulação é fugir à esclerose em placa do gênio malicioso do fanático. Há outra política, outra economia, um melhor direito, fora da cabeça de heróis bebês e seus assuntos. O reino messiânico dessa gente subjuga o discernimento e o estilo opulento da política que praticam fez sucumbir o rosto da pessoa normal, levando o cidadão sem trejeito a desaparecer como um clandestino.

A alegria interrompida voltará em novos rostos. E jogará luz sobre o povo silencioso, ofuscando a glória dos que produziram a amargura. Um fardo, dar fim ao tempo desse gênero de líderes e autoridades latino-americanas em torno de quem o domínio público perde o poder de iluminar. Tempo que desorganizou a ordem dos afetos, separou famílias e nos roubou o entusiasmo e a admiração uns pelos outros, a única arte da política diante dos abismos do mundo.

PAULO DELGADO, SOCIÓLOGO, É CO-PRESIDENTE DO CONSELHO E ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA DA FECOMERCIO-SP. FOI DEPUTADO FEDERAL PELO PT-MG. ESTE ARTIGO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O ESTADO DE SAO PAULO, EDIÇÃO DE 11.04.18.

Alguns são mais iguais que os outros?

Por Ives Gandra Martins

Ninguém discute o nível intelectual, o conhecimento jurídico ou a idoneidade dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal. São, todos eles, autênticos juristas.

No entanto, o protagonismo individual que se manifesta em alguns casos e a invasão da competência de outros Poderes por parte dos ministros transformaram o debate -travado até 2003 no plenário, em nível elevado- em algo diferente, semelhante aos protagonizados pelos parlamentares nas casas legislativas com direito, inclusive, a ofensas pessoais e manifestação de preferências ideológicas.

Tal protagonismo em questões exclusivas de outros Poderes -o artigo 103, 2º, da Constituição não permite, nem nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Legislativo, que o pretório excelso legisle- colocou o Supremo em posição, no mínimo, vulnerável.

O ex-presidente Lula, por seus advogados pretéritos e atuais, ingressou com pedido de habeas corpus no STF para que o artigo 5º, inciso LVII, da lei suprema seja-lhe aplicado: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

Dessa maneira, se infrutíferos os embargos de declaração contra a condenação imposta pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, não seria recolhido ao cárcere, como foram todos aqueles outros políticos, burocratas e criminosos comuns desde que o STF entendeu que bastaria a condenação em segunda instância, antes de seu trânsito em julgado, para que o acusado fosse colocado atrás das grades.

Embora por contagem apertada, 6 a 5, a decisão prevalece por tempo considerável, inúteis tendo sido até o presente as tentativas de modificar tal inteligência da Suprema Corte.
Agora, seguidores do ex-presidente Lula defendem -embora não tivessem essa interpretação legal quando outros adversários políticos, como Eduardo Cunha, foram encarcerados- que apenas com o trânsito em julgado da decisão condenatória pode-se efetuar a prisão.

Na minha modesta opinião de velho advogado, a exegese correta do dispositivo é a seguinte: efetivamente, só com o trânsito em julgado de uma decisão condenatória alguém será considerado culpado.

O STF, porém, com apoio até cinematográfico do Ministério Público e o aplauso generalizado da sociedade, decidiu que a condenação por tribunal de segunda instância autoriza a decretação da prisão.

Pessoalmente, não interpreto a lei segundo minhas preferências, pois, apesar de considerar correto o encarceramento antes da sentença final, a Constituição não o permite, razão pela qual expus meu desconforto de professor provinciano com a decisão dos iluminados membros do pretório excelso.

A Suprema Corte terá agora que decidir mais uma vez a questão, visto que o eminente ministro Edson Fachin passou para o plenário a apreciação do habeas corpus.

Recentemente, o também ilustrado ministro Alexandre de Moraes incorporou-se à tese do encarceramento após decisão de segunda instância, e a competente presidente da corte, Cármen Lúcia -cujos estudos e escritos sempre admirei, embora com pequenas divergências-, declarou que, se a Suprema Corte tivesse que mudar sua orientação por se tratar do ex-presidente, estaria se "apequenando".

Está o país, portanto, na expectativa de saber se o pretório excelso confirma, e de forma definitiva, a decisão anterior, segundo a qual o ex-presidente deverá ser recolhido ao cárcere como o foram inúmeros outros políticos, burocratas e cidadãos, ou se muda a inteligência do caso, para gáudio de seus seguidores.

Nesta hipótese, passará para o povo não para mim a impressão de que a Suprema Corte assim decidiu por ser o ex-presidente quem é, abrindo, por outro lado, fantástica avenida para que os atuais encarcerados sejam também libertados.

No livro "A Revolução dos Bichos", George Orwell faz a paradigmática afirmação de que "todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros". Numa eventual mudança de jurisprudência, ficará no ar tal sensação?

Ives Gandra Martins, advogado, é Professor de Direito Constitucional na Universidade Mackenzie (SP). Este artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição de 20.02.18.

Que diacho de democracia é esta?

Por José Nêumanne

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso praticamente lançou uma campanha nacional pela anistia exclusiva de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, na convenção de seu partido, o PSDB, que fingiu, ao longo de 13 anos e meio, ser oposição e depois entrou, mas agora saiu, do governo-tampão de Michel Temer. “Prefiro combatê-lo na urna do que vê-lo na cadeia”, disse. Noves fora o erro de português na frase (do que no lugar de uma simples preposição a), a sentença é um habeas corpus preventivo que nem Gilmar Mendes concederia. O “presidenciável” do PT foi condenado a nove anos e meio de prisão na primeira instância, aguarda julgamento de recurso na segunda e as possibilidades de ele vir a ser inocentado são mínimas. O que autoriza o sociólogo a considerá-lo apto a ser votado, se a Lei da Ficha Limpa não o permitiria?

Bem, os destaques da reportagem que relatou esse disparate, assinada por Anne Warth, Daiene Cardoso, Felipe Frazão e Pedro Venceslau, publicada na página A4 deste jornal no domingo 10, a respeito da convenção da véspera, sábado 9, passam a impressão, talvez imprecisa, de que os tucanos têm uma razão forte para isso. “As urnas os condenarão (Lula e o PT) pelo desgoverno, pelo desmonte e pelas obras inacabadas”, disse o presidente nacional do PSDB, Geraldo Alckmin, governador de São Paulo e pule de dez na posição de disputante da sucessão presidencial pela legenda. Como Mané Garrincha perguntou ao técnico Feola no vestiário da partida contra a União Soviética na Copa da Suécia, os senhores combinaram com os russos?

Que nada! As ruas roucas de tanto gritar se calaram, mas qualquer pessoa que frequente um bar de periferia em qualquer metrópole brasileira sabe que nada disso resiste a um átimo de raciocínio racional. Primeiramente, para Lula se candidatar a Justiça terá de absolvê-lo, partindo do pressuposto de que o multirréu está certo: é perseguido pela Polícia Federal (PF), pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça. Ou seja, sem chance!

Last but not least – por último, mas não menos importante –, como diriam os súditos de Elizabeth II, o ninho do tucanato empavonado afunda na titica. O senador Aécio Neves (PSDB-MG) chegou tão perto de vencer a eleição contra Dilma e Temer que não faltam argumentos lógicos a quem acredita que a disputa foi fraudada. Desse fato emergiu a possibilidade de o neto do dr. Tancredo brilhar no cenário nacional como a voz do contra, aquele que poria fim aos desmandos e à roubalheira patrocinados pela aliança PT-PMDB na dúzia de anos anteriores. Mas qual o quê?! O sonho de consumo da sociedade indignada perdeu o cartaz ao ser identificado como “Mineirinho” no propinoduto da Odebrecht.

Flagrada com a boca na botija imunda, a esperança nacional reencarnada passou a ser vista como um réprobo, uma figura a respeito da qual nenhuma família decente comenta algo na ceia diante das crianças. Seus instintos assassinos revelados entre palavras de baixíssimo calão lhe reservaram um lugar no fundo do lixo da História, ao lado dos notórios Eduardo Cunha e Sérgio Cabral. E o partido afundou junto no lamaçal da vergonha alheia. Sua passagem pelo ato em que Fernando Henrique e Alckmin falaram foi sintetizado no olho da reportagem do Estado a esse respeito: “Investigado na Lava Jato, senador mineiro não foi anunciado em convenção, não fez discurso e foi vaiado”.

Essas duas evidências, se não eliminam, no mínimo dificultam esse paraíso na Terra dos tucanos emplumados no qual o multirréu será perdoado e ungido candidato só para perder para Alckmin. Baseados em quê? “Eu ganhei de Lula duas vezes”, contou Fernando Henrique. É verdade. E daí? Por enquanto, o PSDB perdeu até o respeito pela própria História, ao aceitar cargos do presidente que os derrotou nas urnas e não fechar questão em prol da reforma da Previdência – não por ele, mas por nós.

Há, entretanto, algo ainda mais sórdido e grave na escolha de Lula como rival preferencial pelos tucanos nas eleições gerais do ano que vem: é a suprema soberba que os maiorais do partido assumem de que eles se acham acima do bem, do mal e da Constituição. Que autoridade tem o PSDB para abolir o Estado de Direito, no qual o império deve ser da lei (e não dos parlapatões da política), para atropelar uma norma legal de iniciativa popular e firmar um alvará de soltura para um condenado contra o qual foram apresentadas carradas de denúncias, delações e provas? A Veja da semana traz uma foto de Lula com o ex-ditador líbio Muamar Kadafi ilustrando a notícia de que, em sua proposta de delação, o ex-ministro da Fazenda de Lula e ex-chefe da Casa Civil de madame Rousseff promete contar que o PT recebeu US$ 1 milhão para a campanha do então candidato e presidente, em 2002. Agora já não se trata apenas de corrupção pesada, mas de grave crime de traição à Pátria. Ao qual os tucanos se acumpliciam.

Enquanto Lula “voltava à cena do crime” (no dizer de Alckmin) no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) e cometia o desatino de inculpar policiais federais, procuradores e o juiz Sergio Moro pela roubalheira na Petrobrás, cometida em seus dois mandatos e em mais um e meio de sua afilhada, os tucanos ofereciam seu pescoço ao eleitorado. Isso lembra o conselho de Antônio Carlos Magalhães, que os tucanos adotaram como deles, de não votarem o impeachment do “sapo barbudo” (apud Brizola) para “sangrarem o porco” na eleição de 2006. Resultado: Lula esmagou Alckmin em 2006 e Dilma repetiu o feito sobre Serra em 2010 e Aécio em 2014. Como disse Talleyrand sobre os Bourbons, os sabichões “não aprenderam nada e não esqueceram nada”.

Será que eles acham que, se anistiarem seu adversário preferido, também serão eles perdoados? OK, está tudo muito bom, está tudo muito bem, eles venceram, batatas fritas... Mas, nesse caso, que diacho de democracia é a esta, hein?

José Nêumanne é Jornalista, poeta e escritor. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 13.11.17.

Senso Incomum: Judiciário quer nomear Ministros. Sugiro para a Saúde um não fumante

Por Lênio Luiz Streck

A coluna também poderia ter o seguinte título: Alguém que trai a esposa(o) pode ser ministro(a)?

Esta coluna não está preocupada com o destino nem do Ministério do Trabalho e nem da quase-ministra deputada Cristiane Brasil. O que quero discutir é o aspecto simbólico da interferência do Judiciário em assuntos que não são de sua alçada. Uma das grandes vantagens (talvez a única) de criticar o ativismo judicial e as arbitrariedades do Poder Judiciário no Brasil, como venho fazendo desde o século passado, é que nunca tive problema de “falta de material”. Todo santo dia aparece alguma decisão arbitrária e, mesmo que já tenha visto quase de tudo nessa vida, não paro de ser surpreendido. No meu ofício acadêmico, penso que jamais sofrerei de tédio.

Dessa vez, o juiz da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ) resolveu suspender a nomeação da deputada Cristiane Brasil ao cargo de ministra de Estado do Trabalho, pelo fato de que essa nomeação afrontaria a moralidade pública, já que a deputada teria sido condenada em duas reclamatórias trabalhistas.

Pois bem. Dentre as 27 atribuições do presidente da República previstas na Constituição do Brasil, a primeira delas deixa claro que é de sua competência privativa nomear e exonerar ministro de Estado (artigo 84, I da CF/88). O argumento de que a deputada seria imoral para ocupar o cargo, pelo fato de que já foi condenada por duas reclamatórias trabalhistas, é redondamente frágil.

“Mas professor, o senhor quer dizer que a (Não-quase-ou-de-novo) ministra tem moral para o cargo? O senhor gosta dela?”. Não, não quero dizer isso. Nem quero dizer o contrário. Isto porque sou jurista, não sou comentarista político, e é por isso que não interessa o que eu acho, o que eu penso nesse sentido, assim como não interessa o que pensa o juiz. Juiz tem responsabilidade política e é subjacente a essa responsabilidade a tarefa de decidir, não de escolher.

É por isso, pois, que a decisão é frágil. Nem estou dizendo que a argumentação moral, a argumentação política e a retórica são frágeis. Não importa. A argumentação jurídica — essa, sim, a que importa de verdade — é frágil justamente porque se afasta da racionalidade própria do Direito. Quando a nomeação de Lula foi barrada, protestei; quando a nomeação de Moreira Franco foi barrada, protestei do mesmo modo. Por isso, protesto, aqui, mais uma vez contra o ativismo.

Legitimar uma decisão ativista porque concordamos com a racionalidade moral ali pressuposta nada mais é do que legitimar que o Direito possa ser filtrado pela moral. E se aceitarmos que o Direito seja filtrado pela moral, e peço desculpas por fazer as perguntas difíceis, indago: quem vai filtrar a moral? É esse o ponto. Alguém tem de ser o chato da história. Não podemos aceitar o ativismo que agrada. Isso é consequencialismo puro, e devemos rejeitá-lo por uma questão de princípio. Do mesmo modo um réu não pode ser condenado porque o juiz não gosta dele. E nem o réu deve ficar preso porque o juiz fundamenta no clamor social, como se houve um aparelho chamado clamorômetro. Ou como as pessoas que queriam fazer interpretação extensiva ou analogia in malam partem no caso do ejaculador (ver aqui).

Agora dito isso, tomemos emprestado o pessimismo de Kelsen por um momento e aceitemos, para fins de argumentação, que o Direito é assim mesmo e que juiz faz ato de vontade. Se a decisão for mantida (no segundo grau já foi), e o precedente tornar-se obrigatório (quanta gente adora esse stare-decisis-que-não-é-stare-decisis no Brasil, né?), gostaria de sugerir ao presidente, doravante, algumas observações na nomeação dos seus ministros. Dizem que conselho, se fosse bom, não seria de graça. De qualquer forma, lá vão eles:

Penso que se o ministro da saúde fumar, deve ser descartado. Um bom ministro da Saúde deve praticar jogging diariamente. Deve comer salada e assistir o programa Bem Estar na Globo todo dia. O ministro da saúde também não deve ter halitose. E não pode ser gordo. Heráclito Fortes seria vetado.

O ministro da Defesa precisa saber lutar judô. Ou boxe. Se for algum lutador de MMA, melhor ainda. Deve ser feita, ainda, uma pesquisa da vida do ministro, para apurar se foi alvo de bullying na escola. Se sim, deve ser descartado, afinal, que ministro da defesa é esse que sequer conseguiu se defender? É preferível nomear o valentão que fez o bullying.

O ministro das Cidades não pode ser alguém que morou no interior; e o ministro da Agricultura não pode ser alguém que morou na cidade. O ministro da Educação deve sempre dizer “bom dia”, “por favor” e “obrigado”. Se houver qualquer registro de que ele não o fez, é imoral para o cargo. O Ministério da Cultura.... bem, esse eu acho que vai ter que acabar mesmo. Sem chance de resolver esse problema. É que ele deveria saber tudo sobre Machado de Assis, Shakespeare, mas parece crime impossível.

Falando sério agora. Seríssimo: desculpem a ironia, desculpem as perguntas chatas, desculpem a insistência em coisas que, para alguns, já estão ultrapassadas, como força normativa da Constituição, legislação, enfim. Mas isso precisa ser dito. Afinal, se o juiz escolhe como quer, não há critérios, e não mais poderemos exigir o cumprimento da lei. E aí não adianta reclamar do ativismo só quando ele incomoda. (Talvez não tenha ficado claro, mas eu não subscrevo a essas teses que alguns têm levantado, inclusive em livros, de que o ativismo é bom.)

Numa palavra final: se a racionalidade jurídica for substituída pela racionalidade moral, não servimos para nada. Fechemos as faculdades de Direito e matriculemo-nos todos em faculdades de filosofia moral.

Ainda: se a decisão for mantida, teremos que, por coerência e integridade (artigo 926 do CPC) perscrutar/sindicar todos os cargos de livre nomeação. Por exemplo, o presidente do TCU quer nomear João Antônio das Neves para seu chefe de gabinete... só que ele foi multado em duas blitzes ou não pagou o carnê das lojas Renner. Pode ser nomeado? Isso é pior ou menos ruim do que ter duas reclamatórias trabalhistas? O prefeito de Pedregulho das Almas quer nomear Sofrício Ataualpa para uma secretaria..., mas ele não pagou o caderninho da venda ou foi visto saindo de um lugar suspeito de mulheres de vida difícil na periferia. Cabe ação popular? Vai liminar aí?

Eis aí, de novo, a diferença entre Direito e moral. Entre a racionalidade jurídica e os argumentos morais. Ou a moralização do Direito. Não se pode olhar a política como ruim a priori.[1] Se o presidente erra na nomeação de um ministro, o ônus é dele. É o ônus da política. Se não fosse “por nada”, não há previsão constitucional que autoriza o judiciário barrar esse tipo de ato administrativo sob argumentos subjetivos.

[1] Nesse sentido, a excelente análise de Eloisa Machado de Almeida, Folha de S.Paulo de 10.1.2018: “Suspensão de posse de ministra não deveria ser questão jurídica”.

Lênio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório SDtreck e Trindade Advogados Associados. (www.streckadvogados.com.br).

Este artigo foi publicado originalmente no Consultor Juridico, edição de 11.01.18.

O Sindicalismo como profissão

A anunciada greve dos funcionários da Central Única dos Trabalhadores (CUT) diz muito sobre a entidade e os seus reais propósitos. Na terça-feira da semana passada, a direção da central sindical iniciou um Plano de Demissão Incentivada (PDI) que visa à redução de 60% de sua folha de pagamento, hoje composta por quase 180 funcionários.

O objetivo do ajuste orçamentário está definido, a questão é como chegar a ele. Caso a adesão ao PDI seja menor do que a esperada, a CUT começará a demitir até que a massa salarial da entidade chegue ao patamar pretendido. É contra estas demissões que os funcionários da central ameaçam cruzar os braços, seja lá o que estejam fazendo hoje.

De início, é possível afirmar que uma organização que prevê o corte de mais da metade da sua força de trabalho e ainda assim seja capaz de “manter as suas atividades regularmente”, como disse o presidente da CUT, Vagner Freitas, já operava, é evidente, com um corpo funcional inchado. E não é difícil imaginar por quê.

Fundada em agosto de 1983, em São Bernardo do Campo, a CUT sempre se notabilizou por sua atuação acessória à agenda política do PT, fundado três anos antes, do qual mais parece ser um braço operacional do que uma central sindical sinceramente comprometida com a defesa dos interesses dos trabalhadores que deveria representar.

O descompromisso com uma gestão financeira austera, que levou, entre outras coisas, ao superdimensionado quadro de funcionários que a direção da CUT agora pretende reduzir, floresceu em um ambiente de dinheiro farto que por décadas abasteceu a entidade por meio do imposto sindical.

É precisamente o fim do imposto sindical – um dos grandes avanços trazidos pela Lei n.º 13.467, que instituiu as alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e está em vigor desde o dia 11 deste mês – que está na raiz desse “choque de gestão” que a direção nacional da CUT pretende adotar e que pode levar à greve de seus próprios funcionários.

Desde a ditadura varguista, funcionou no País uma verdadeira “indústria sindical” que só pôde operar por tanto tempo graças ao derrame de dinheiro público que, por décadas, abasteceu as contas de organizações sindicais que tinham na defesa dos trabalhadores apenas o subterfúgio perfeito para receber mais dinheiro e assim alimentar suas próprias engrenagens de poder, influência e enriquecimento ilícito de seus próceres.

De acordo com os dados do Ministério do Trabalho, os sindicatos, federações e confederações de classe, tanto as que representam os trabalhadores como as patronais, receberam R$ 3,5 bilhões a título de “contribuição” sindical em 2016. O mais grave é que a aplicação desse expressivo volume de recursos foi pouquíssimo fiscalizada, o que conferia àquelas entidades uma liberdade quase ilimitada na gestão da fortuna que era retirada a contragosto de milhões de trabalhadores.

O benfazejo fim do imposto sindical, que destinava às entidades de classe o valor correspondente a um dia de trabalho de todos os empregados com carteira assinada, sindicalizados ou não, representa também o fim de um modelo de sindicalismo voltado para dentro, como se a atividade sindical fosse um fim em si mesmo, e não um meio para chegar a um estado de desenvolvimento econômico em que os trabalhadores possam ter garantidas condições dignas de trabalho e remuneração.

Uma greve de funcionários da CUT é o exemplo perfeito de um sindicalismo exercido como profissão, e não como um democrático instrumento de negociação entre partes que são desiguais na origem, mas que por meio de legítimos instrumentos de pressão, de lado a lado, podem chegar a acordos benéficos a todos.

Com um quadro de funcionários mais enxuto e um orçamento mais austero, a CUT, ou qualquer outra central, deveria dedicar-se à conquista de apoiadores dispostos a custear seu funcionamento pelos resultados que apresenta, não pela força de uma lei que, em boa hora, não vigora mais.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 28.11.17

A nação judicializada

Por Luiz Roberto Nascimento e Silva

Vivemos numa nação judicializada. O grande Miguel Reale dizia que o fórum era um imenso hospital, ou seja o que iria para ele era patologia da sociedade. Se inquilino e proprietário se acertam sobre o reajuste do aluguel, não haverá processo. Se dois sócios que decidem se separar chegam a um acordo, não há demanda.

No Brasil de hoje tudo é motivo de demanda. Todo mundo recorre de tudo. A expressão “vou recorrer” é uma interjeição, quase uma vírgula. Como somos originais em tudo, temos quatro graus de jurisdição, quando o normal na maioria dos países são dois, no máximo três.

O due process of law deriva do direito anglo-saxão fixado na Magna Carta de 1215, através da qual os barões impuseram limites ao rei João Sem Terra, impedindo que pudessem ser processados ou perdessem seus bens sem o devido processo legal. Percebeu-se depois que a decisão individual de um juiz poderia estar errada, consolidando injustiça. Assim, seria necessário que uma instância acima, o Tribunal, pudesse mantê-la ou modificá-la. Surgiu o duplo grau de jurisdição ou o direito de recorrer, que exercermos com tanta volúpia.

Na nossa sistemática atual os processos se eternizam, causando insegurança e desconforto entre os cidadãos. Uma sociedade mais justa não é apenas aquela que gera crescimento e riqueza, assegura o emprego e distribui a renda, mas também a que permite que a Justiça possa harmonizar seus conflitos num tempo razoável.

O direito é resultado de uma longa luta da humanidade. Na Antiguidade, o credor de uma dívida não paga podia matar alguém da família do devedor como compensação. Na Idade Média, o testemunho de um nobre valia mais do que o de sete servos. No século XVI na Europa, os suplícios penais eram tão cruéis que quando a guilhotina começou a ser usada em 1792 foi considerada um método de execução mais humano por gerar uma morte mais instantânea...

No campo tributário, os processos que se arrastam não por anos, mas por décadas. O Estado em seu sentido amplo — União, estados e municípios — recorre até de decisões pacificadas que deveria respeitar. Depois empurra os pagamentos através de precatórios que atravessam gerações de contribuintes. Quando as decisões são contrárias ao Fisco com a modulação de seus efeitos em geral ex nunc (só geram direitos para o futuro), elas acabam só devolvendo o que foi cobrado errado para frente, passando um apagador no passado.

No campo trabalhista, a ausência de cobrança de sucumbência gera uma total irresponsabilidade com os fatos. Como não há efeitos patrimoniais no caso de perda do processo, a regra é alegar tudo; depois o que sobrar é ganho. A recente reforma trabalhista já está sendo atacada por parte dos juízes. A coisa chegou a um tal ponto que o Tribunal Superior do Trabalho adotará o “princípio da transcendência” para reduzir o número de recursos. Ganha uma bolsa de estudos da Madame Natasha quem conseguir traduzir ou explicar ao cidadão comum o que seja isso.

Temos dois sistemas jurídicos no mundo ocidental. O romano-germânico ou Civil Law, cuja característica central seria a lógica e o bom senso fixadas em leis escritas. É o mais disseminado no mundo, e o nosso deriva dele. O outro, da Common Law, que se formou na Inglaterra, migrou para os Estados Unidos e Canadá, e cuja alma seria a experiência fixada nas decisões dos tribunais. No nosso atual não temos as virtudes de nenhum. As decisões não são mais tão consistentes, e nossa jurisprudência não tem força de precedente, valendo tanto quanto um jornal da véspera.

O Supremo Tribunal Federal deveria voltar a ser uma corte constitucional. Não deveria ter de julgar se solta ou prende um goleiro condenado porque o tribunal de origem não apreciou seu caso de forma definitiva. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha costuma decidir suas questões em menos de um ano. Tem a vantagem que sua sede não fica intencionalmente na capital e suas decisões são públicas, mas as sessões, não. A mistura de Brasília com televisão ao vivo tendo sido mortal para o bom senso.

Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo/RJ, edição de 20.11.17.

Aprendizado para a lava jato

Ainda que haja muitas diferenças, tanto na legislação como na cultura de cada país, a trajetória da Mani Pulite (Mãos Limpas) – a famosa operação italiana anticorrupção que, de 1992 a 2005, investigou cerca de 4 mil pessoas, com mais de uma centena de parlamentares, ministros, juízes e altos executivos de empresas – tem muito a ensinar para o bom encaminhamento da Lava Jato no Brasil, reconheceram unanimemente os quatro palestrantes do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato, promovido ontem pelo Estado em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP).

Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo, juiz e promotor à época da Operação Mãos Limpas, lembraram que o combate à corrupção vai muito além da questão jurídica, envolvendo a cultura e a educação de um país. Nesse sentido, os dois disseram que é preciso ter cuidado ao avaliar os resultados de uma operação que investiga casos de corrupção. Além de ser irreal a ideia de que a operação acabará com a corrupção, essa expectativa é contraproducente, pois pode levar à postergação de seu término, motivando exageros e causando um perigoso desgaste perante a opinião pública.

Piercamillo Davigo, que atualmente é juiz da Corte Suprema de Cassação, comentou a importância, no caso da Mãos Limpas, da colaboração de muitos investigados, o que proporcionou à Justiça informações muito úteis para a investigação de vários crimes. Ressaltou, no entanto, que algumas pessoas falaram apenas parte do que sabiam, como simples forma de se safarem, e depois tiveram “carreiras políticas espetaculares. Esse é um aviso que faço porque pode ocorrer aqui o mesmo fenômeno”, disse Davigo. Ou seja, não cabem ingenuidades a respeito das delações premiadas.

Também participaram do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, e o juiz Sérgio Moro, da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Suas intervenções explicitaram duas maneiras bem diferentes de enxergar a Lava Jato.

Deltan Dallagnol vê na Lava Jato muito mais do que uma simples operação investigativa e judicial. Para ele, a Lava Jato deve ser instrumento de transformação do sistema político. Considera, por exemplo, que diante de corrupção tão generalizada, o Ministério Público estaria autorizado a atuar no debate político. Ao comentar a experiência com o projeto das Dez Medidas Anticorrupção, Dallagnol disse que “a estratégia agora não é mais coletar assinaturas, mas escolher senadores e deputados que tenham passado limpo, espírito democrático, e apoiem o combate à corrupção”. Insatisfeito com as limitações institucionais do cargo que ocupa, o procurador almeja a eficácia política. Parece não se dar conta de que, atuando assim, reproduz os erros, e não os acertos da Mãos Limpas, com sua pretensão messiânica de redimir a política.

Já a fala do juiz Sérgio Moro teve um tom completamente diferente. Sem se negar a ver as limitações do trabalho da Justiça – “toda justiça humana é imperfeita”, reconheceu –, Moro reafirmou que a eficácia da função judicial está justamente em respeitar os limites da lei. Defendeu, por exemplo, o uso em alguns casos da prisão preventiva, mas admitiu que se trata de um tema polêmico. “Sei que existem críticas, e nós temos que ouvir essas críticas”, disse Moro. Ao lembrar que não é o dono da verdade, falou da necessidade de o juiz proferir decisões fundamentadas. Muitas vezes, são possíveis várias interpretações da mesma lei, mas nem por isso a lei deve deixar de ser o critério. O respeito à lei é a garantia de que o combate à corrupção não é arbítrio, mas manifestação do Estado Democrático de Direito.

Sobre a Mãos Limpas, “acho que é uma história de sucesso”, disse Moro. “Mas talvez se tenha esperado mais de uma operação judicial do que ela pode fazer.” Com esse reconhecimento da natureza e dos limites da esfera judicial, Sérgio Moro reiterou, uma vez mais, não ter vocação messiânica. É um juiz, e a redenção da política está fora da sua competência. “O que me cabe”, disse, “é julgar os casos concretos, a partir das provas produzidas nos autos.” Essa profunda consciência de sua tarefa, respeitando os limites do cargo, foi o que permitiu à Lava Jato produzir bons frutos. Afinal, à Justiça não cabe guiar, e menos ainda substituir, a população na esfera política.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.10.17

Imprensa livre, mas sociedade respeitada

Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Numa sociedade em que imperam as franquias democráticas, sob o manto do ordenamento jurídico, dentre as quais a liberdade de expressão e a de informação, impõe-se, para que sejam legitimamente exercidas, um contraponto, representado pelos limites ditados pelos direitos e pelas garantias de outrem. Sem o respeito a outros valores, igualmente protegidos pela nossa Carta Máxima e pertencentes a todos os cidadãos, as liberdades referidas passam a carecer de legitimidade e legalidade e se transformam em licenciosidade, em flagrante abuso de direito, em violação de toda uma gama de relevantes bens morais, que se situam num mesmo patamar de importância e de relevo.

A transposição desses limites cria conflitos de interesses, que, por sua vez, têm o condão de pôr em risco a segurança jurídica e, por consequência, paz e a harmonia em sociedade. Excessivos conflitos, em face do desregramento no relacionamento interpessoal, entre instituições ou organizações privadas, ou ainda no âmbito de várias atividades laborativas, causam um perigoso estado de anomia social.

Em regra, os conflitos coletivos ou individuais se dão exatamente pela ultrapassagem dos limites que cercam o exercício de direitos, com a consequente invasão do território onde se situam direitos alheios. Está demonstrado que os mecanismos legais para coibir os excessos na efetivação e concretização de direitos se têm mostrado insuficientes, mesmo em face do direito sancionatório.

Claro que na raiz dos conflitos se situa uma dose significativa de egoísmo, do querer absoluto, sem atenção ao querer alheio. As questões pertinentes a uma postura voltada para si, com desprezo por outrem, se situam no campo da moral, da ética e, pois, da educação. E o egocentrismo não é só individual, pois grupos e instituições não raras vezes disputam entre si espaços de atuação, sem considerarem os limites legais de sua atuação.

Mas ao lado desse aspecto, podemos dizer, de caráter subjetivo, há um fator de conflitos por desrespeito ao bem alheio, provocado pela sedimentação de uma cultura de aceitação e de complacência por parte da própria sociedade. O desregramento anômico cria fendas na estrutura da sociedade, por onde se esvaem garantias, direitos, honra, dignidade e liberdade.

Os conflitos gerados pelos desrespeitos aos direitos alheios, portanto, provêm da conduta individual, do comportamento de uma coletividade e da omissão e aceitação por parte dos segmentos atingidos.

O exercício de certas atividades pode ser destacado como forma individual e coletiva de invasão na esfera dos direitos de terceiros. Cada exercente da respectiva atividade não respeita limites, o conjunto dos exercentes também os desrespeita e a coletividade aceita os excessos.

Um exemplo eloquente de exercício de atividade legítima, mas que extrapola limites e comete violações, é o referente à imprensa.
Deve ficar claro que a imprensa chamada investigativa tem possibilitado inestimáveis benefícios à sociedade brasileira, pois tem revelado fatos e situações de alta nocividade, até mesmo substituindo as autoridades originariamente competentes para exercer investigações. Ademais, outra atividade desenvolvida pela imprensa, que é o jornalismo crítico, igualmente gozando de plena liberdade, instrui e colabora para a evolução intelectual dos leitores e ouvintes, pois faz pensar.

Ao contrário das duas espécies anteriores, a chamada imprensa informativa, essa, sim, tem abusado da liberdade que lhe é assegurada pela Constituição da República.

Em primeiro lugar, deve ser realçado – isso é o óbvio, mas foi esquecido – que a liberdade de imprensa não é um direito absoluto que paira sobre todos os demais e pode ser exercido de forma ilimitada, sem observância de normas éticas e, especialmente, sem ceder à eventual violação de outro direito. Neste ponto me refiro especialmente aos direitos individuais, ligados à personalidade, à dignidade e à imagem de terceiros.

Por outro lado, esqueceu-se também que o direito de informar existe como instrumento de outro direito que não lhe pertence, qual seja o direito da sociedade de ser informada. O direito é dela, sociedade, e a imprensa o exerce em seu nome.

Aliás, e como terceira observação, a sociedade quer ser informada da verdade e só da verdade. Esse aspecto cria dois deveres impostergáveis para a imprensa: o dever de imparcialidade e o dever para com a verdade. Sem o cumprimento dessas duas obrigações a liberdade de imprensa perde sua legitimidade e legalidade.

Quando a imprensa divulga fatos não consentâneos com a realidade ou, demonstrando parcialidade, informa de maneira seletiva , desvia-se de sua missão precípua de informar a verdade. E muitas vezes assim age por motivos sectários e facciosos.

A motivação para a divulgação de inverdades pouco importa. Importa, sim, realçar os malefícios causados a alguém atingido pelo falso noticiado, à sociedade erroneamente informada e também à própria imprensa, que passa a ser alvo de descrédito e de desrespeito.

A nocividade de uma mídia que informa sem apurar o fato noticiado – portanto, informa de forma leviana e desabrida, sem nenhum respeito aos direitos individuais, aos direitos da sociedade de ser bem informada e à sua vinculação com a verdade – parece acentuar-se quando se trata da mídia televisada.

A imagem fixa mais do que a palavra escrita. Ela atinge os sentimentos sem passar pelo crivo da razão, o que provoca uma ausência de crítica a quem a assiste. Parece que o chamado homem midiático perdeu o senso crítico. Tornou-se refém da imagem, que o manipula sem nenhum esforço.

Em resumo, a mídia informativa em geral e a televisada em especial deveriam repensar-se e ter presente que transmitir a informação de forma açodada, em nome do furo jornalístico, sem indagar a verdade, é subtrair da atividade jornalística o seu substrato ético e retirar da liberdade de imprensa a sua legitimidade e a sua legalidade.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal. Este artigo foi publicado originariamente em O Estado de S. Paulo, edição de 08.11.17.

O partido da lava jato

Aos poucos, a Lava Jato, que caminha para seu quarto ano, vai deixando de ser uma operação contra um esquema de corrupção em estatais e organismos de governo para se transformar em partido político. Essa metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em “saneamento” da política como seu principal objetivo. Ou seja, ao se atribuírem uma tarefa que claramente extrapola o escopo de seu trabalho, imiscuindo-se em seara que, numa democracia, é exclusiva dos eleitores e de seus representantes no Legislativo, esses procuradores acabaram por se comportar como militantes de um partido – e, como tal, passaram a tratar todos os críticos de sua “plataforma” como adversários políticos.

Em recente entrevista ao Estado, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, deixou clara, de vez, essa disposição. Segundo Dallagnol, a Lava Jato não revelou apenas a corrupção de um político ou de um grupo, “mas de grande parte da classe política”. Por essa razão, “o objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei”. Mas, segundo o procurador, “há um problema: elas fazem as leis”. Ou seja, a julgar pelo que diz o coordenador da Lava Jato, a operação só será considerada bem-sucedida se varrer do Congresso “grande parte da classe política”, gente que, em sua visão, faz leis exclusivamente para se proteger da Justiça.

Para atingir esse objetivo, prossegue o procurador Dallagnol, não basta simplesmente levar aos tribunais os políticos que a Lava Jato considera corruptos, pois “apenas punições não resolvem”. É preciso, segundo ele, “avançar para reformas anticorrupção no sistema político, no sistema de Justiça e em outras áreas”, razão pela qual a Lava Jato, a título de se proteger dos atuais políticos, que seriam seus inimigos, considera essencial eleger representantes “que tenham um compromisso claro com a causa anticorrupção”.

O nome disso é política partidária. Em lugar de se preocupar com a obtenção de provas para sustentar as muitas acusações feitas contra políticos, alguns integrantes da Lava Jato parecem mais empenhados em construir a imagem de que a operação veio para salvar o Brasil e que ela se transformou em “patrimônio nacional”, conforme as palavras do procurador Dallagnol. Tornou-se assim, segundo essa visão, não apenas inatacável, mas também única intérprete autorizada dos anseios nacionais.

O problema é que a sociedade dificilmente concordará com isso. “É impossível prever o que acontecerá porque depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro”, reconhece Dallagnol, admitindo que os eleitores eventualmente podem discordar da “plataforma política” da Lava Jato. Se os parlamentares eleitos pelo voto direto – legítimos representantes dos cidadãos – decidirem que algumas das leis e reformas propostas pelo partido da Lava Jato não servem para o País, isso não significa uma vitória da corrupção nem uma derrota da operação, e sim uma rejeição ao que poderia ser desde uma ideia qualquer até uma agressão ao Estado de Direito. Foi o que aconteceu quando o Congresso se recusou a aprovar o pacote de medidas anticorrupção proposto pelos procuradores da Lava Jato e que incluíam barbaridades como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e fim dos prazos de prescrição.

A Lava Jato alcançou grande sucesso – e mudou a percepção de que tudo o que envolve gente poderosa acaba em pizza – quando se limitou a investigar a trama de relações promíscuas instalada na máquina do Estado desde que o PT chegou ao poder. De forma inteligente e sofisticada, a operação mostrou do que é capaz uma ação bem coordenada entre Polícia Federal e Ministério Público, obtendo evidências suficientes para condenar gente muito graúda a vários anos de prisão e o ressarcimento de bilhões de reais aos cofres públicos.

Limitando-se a punir quem deve ser punido, a Lava Jato presta inestimável serviço ao País. Quando se comportam como candidatos em campanha, seus integrantes se arriscam a perder credibilidade.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 24.10.17

Um país "justicialesco"

Por Ives Gandra da Silva Martins

À evidência, todos os brasileiros corretos –e são a maioria—são contra a corrupção. A expressão popular “corrupção” envolve variada gama de crimes, entre os quais concussão, prevaricação, a corrupção propriamente dita, etc. E, na luta para extirpá-la, crimes são praticados pelo Poder Público de desconhecimento do público, como o vazamento de informações por quem deveria guardar sigilo, crime punido pelo Código Penal, artigo 325.

Por outro lado, o Ministério Público não é um Poder, mas função essencial à administração da justiça, no mesmo nível da advocacia (artigos 127 a 135 da CF), razão pela qual, a meu ver, POR NÃO SER POLÍCIA JUDICIÁRIA, não poderiam, seus membros, presidir inquéritos policiais, nos termos do artigo 144 § 4º da CF, que torna exclusiva tal função a delegados de carreira.

Acresce-se que boas notícias não vendem jornais. Mark Twain dizia ser função da imprensa separar o joio do trigo e publicar o joio, de tal maneira que, na situação verificada nos últimos 13 anos, de assalto às contas públicas, a imprensa passou a ser a verdadeira orientadora da opinião pública, tornando a sociedade brasileira ávida de punições. Neste quadro, qualquer delação sem provas, de pessoas presas, temporária ou preventivamente para serem obrigadas a fazer colaboração premiada, é suficiente para conformar um “juízo definitivo” da sociedade sobre a culpabilidade do acusado, tornando difícil o exercício do sagrado direito de defesa, próprio dos Estados Democráticos de Direito.

Com a exposição que a TV Justiça trouxe aos Ministros do Supremo Tribunal Federal --conheço-os todos e os admiro –passaram, todavia, a um protagonismo inaceitável e a promover invasão de competências parlamentares, apesar de proibidos de assim atuar, até mesmo nas inconstitucionais omissões legislativas, por força do artigo 103 § 2º da CF. Tal ativismo judicial tem gerado insegurança jurídica, pois, embora não eleitos pelo povo, os magistrados têm legislado, como fizeram ao não respeitarem o artigo 53 § 3º da CF, nas prisões de Delcídio e Eduardo Cunha; ao tornarem o acusado passível de prisão, nas decisões de Segunda Instância, contra o inciso LVII do artigo 5º da Lei Suprema; ao criarem uma terceira hipótese de aborto impunível, ou seja, o eugênico, no caso dos anencéfalos (artigo 128 do CP); ao criarem uma outra hipótese de união estável constitucional, no caso de pares do mesmo sexo, contra o artigo 226 §1º a 5º da Carta Suprema; ao permitirem que candidato derrotado assumisse, sem eleições diretas ou indiretas, nos casos de governadores e vices afastados (artigo 81 da CF), e em inúmeras outras hipóteses.
Vivemos, pois, em um estado “gelatinoso” de direito, em que todos patinam e em que uma mera alegação sem prova material pode macular a imagem de qualquer pessoa, em dura violação ao inciso X do artigo 5º do Texto Supremo.

E, neste momento de incertezas, em que os Poderes não se entendem e a sociedade não avança em reformas necessárias, pois todos temem que qualquer ação, nesta ou naquela linha, venha a ser suspeita, necessário se faz o retorno à independência e harmonia dos Poderes, sem invasões e gestos cinematográficos, para que o país possa sair da crise.

Neste sentido, coordenado por Marcos da Costa e por mim, com a colaboração de alguns dos mais expressivos penalistas e constitucionalistas do país, estamos lançando, para o XXIII Congresso Nacional da OAB, em São Paulo, o livro intitulado “A importância do direito de defesa para a democracia e a cidadania”, pois entendemos que só a volta às competências originais dos Poderes e a valorização das instituições permitirão dar efetividade ao direito de defesa - inexistente nas ditaduras - verdadeiro alicerce do Estado Democrático de Direito.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, do CIEE/O Estado de São Paulo e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Guerra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e do Centro de Extensão Universitária - CEU. Autor de diversas obras pela RT e Saraiva.

STF se enfraquece

Por Míriam Leitão

Mais importante do que o resultado da decisão do Supremo Tribunal Federal na discussão de ontem é constatar o nível de tensão institucional a que o país chegou. O Supremo está dividido, o Senado fez alertas prévios ao STF sobre a natureza do que ele não aceitaria. O relatório em defesa do presidente Temer acusou o Judiciário de se “mancomunar” com o Ministério Público contra os políticos em geral.

Houve um tempo em que se tinha a impressão, na economia, de que o fundo do poço não chegava nunca. O PIB caía em queda livre e não parecia ter piso. Na política, a sensação que se tem é de que a tensão se eleva cada vez mais. Não parece haver teto. Políticos estão se alinhando, por cima até das mais graves divisões, para construir uma coalizão contra as investigações de corrupção.

O deputado Bonifácio de Andrada não tem maior expressão, portanto, o que ele disse no relatório não teria peso se não fosse o fato de que representa também o pensamento do próprio presidente. E lá foi feita a acusação de que o Poder Judiciário conspira com o MP contra os políticos. É mais um dos sinais de esgarçamento da relação entre os poderes.

O que estava em debate ontem era uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, impetrada pelo PP, PSC, Solidariedade, de 2016, sobre o poder de o STF decretar medidas cautelares contra parlamentares sem ouvir o Congresso. Não era o caso Aécio. Mas teria repercussão direta sobre o presidente do PSDB. Por isso, o que estava em jogo era se o Supremo daria, ou não, mais um passo em direção ao confronto com o Senado.

Quando o ex-senador Delcídio do Amaral, então líder do PT, foi preso, o Senado protestou, mas autorizou. Quando o próprio senador Aécio foi afastado em maio, pela decisão do ministro Edson Fachin, houve protestos mas a decisão foi acatada. Em junho, o ministro Marco Aurélio acabou revogando essa decisão de Fachin. Outros episódios foram absorvidos, como o que aconteceu com o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha.

O caso mais estranho de todos foi o da decisão do ministro Marco Aurélio Mello de afastar Renan Calheiros da Presidência do Senado em dezembro do ano passado. Renan desacatou o Supremo, e o STF recuou da decisão na votação do plenário. Naquele momento, como agora, a Corte temia provocar crise institucional e preferiu se dividir e recuar. Naquele episódio, o ministro Marco Aurélio tinha tomado uma decisão sob um argumento cristalino: o presidente do Senado está na linha de sucessão presidencial, um réu não pode ocupar a Presidência, logo, Renan, depois de ter se tornado réu, não poderia mais ocupar o cargo. O STF fez um estranho contorcionismo e optou por mantê-lo na Presidência da Casa, mas retirando dele a possibilidade de vir a ocupar a presidência da República. Fez uma cirurgia impossível nas atribuições do cargo.

Agora em setembro, a primeira turma decidiu novamente pela suspensão do mandato do senador Aécio, seu recolhimento noturno e a apreensão do passaporte. Elevou-se então a tensão com a reação forte do Senado. Em sua defesa, o senador tem dito que na conversa gravada pelo empresário Joesley Batista ele estava apenas negociando a venda de um apartamento. Existem empresas especializadas em vendas de imóveis e corretores para isso, mas mesmo quando se dá uma transação direta não se paga em dinheiro vivo, nem o pretenso vendedor avisa que o intermediário tem que ser um “que a gente mate antes”. Enfim, aquela conversa é absolutamente explícita. Não se trata de um negócio comum entre vendedor e comprador de imóvel. E a imunidade do mandato não pode ser invocada em indícios de crime comum. O mesmo Senado que protege o senador Aécio Neves não protegeu o ex-senador Delcídio do Amaral. A ordem judicial que tem que ser cumprida por qualquer cidadão pode ser desrespeitada se o cidadão se chamar Renan Calheiros.

Mais relevante do que o resultado da votação de um dia no STF é constatar que a interpretação da lei no país muda conforme a pessoa em questão. O STF votou ontem temendo uma crise institucional, e com o voto de minerva da presidente do Supremo. Essa não é a melhor forma de fazer prevalecer o Direito.

Míriam Leitão, jornalista há mais de 40 anos, é colunista do jornal desde 1991. É autora, entre outros, do livro Saga Brasileira, ganhador do Jabuti de Livro do Ano (2012). Entre seus prêmios, recebeu o Maria Moors Cabot da Columbia University (NY). Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 12,10.17 sob o titulo "Tensão máxima: STF se enfraquece e vota para evitar crise entre poderes".

Tempo de Vergonha

Por Carlos Andreazza

Direitos políticos são direitos fundamentais. O direito de se candidatar a cargo eletivo é um direito fundamental, relevante parte no conjunto de garantias individuais que a Constituição Federal protege — Constituição que tem, ou tinha, 11 juízes designados a guardá-la. Tem ou tinha? Tinha.

A infame sessão da última quarta no Supremo Tribunal Federal cravou essa resposta ao consagrar a prática — a de corregedor moral da atividade política — apregoada, dias antes, por guerreiros como Luiz Fux, aquele segundo quem, quando a um político investigado falta a grandeza de se afastar do mandato, é dever do STF ter por ele essa honradez. Sim: Fux — aquele, indicado por Dilma, cuja grandeza abarcou, em sua bem-sucedida campanha por uma suprema toga, pedir ajuda a patriotas como João Pedro Stédile, Sérgio Cabral e José Dirceu. Ele chegou lá.

Mas: e a Constituição? Aonde? Aonde esses valentes do direito criativo a levaram? À sessão da última quarta — a da vergonha.

Mesmo neste país histérico, em que a militância assaltou o debate público e em que o ativismo político já tem assentos na mais alta corte, mesmo neste país refém do alarido jacobino das redes, jamais pensei um dia ver o Supremo — em decisão de seu pleno — votar para que uma lei retroagisse de modo a punir o réu. É preciso repetir: o STF, a propósito da Ficha Limpa, firmou a jurisprudência de que um cidadão pode ser punido — com a inelegibilidade, interdição do direito político de disputar eleição — por crime ocorrido antes da existência da lei.

O que dizer quando é o Supremo a instituir a insegurança jurídica? O povo vibra, brada a ignorância que transforma em justiceiros magistrados cujos juízos declaradamente têm a ideia popular (e autoritária) de ética, e não o texto legal, como norte. Eis o bicho: o tão atraente quanto perigoso Direito catado na rua. O povo vibra, parvo, com as condições favoráveis — sinalizadas pelo STF — a que prosperem, cedo ou tarde, barbáries como as tais “dez medidas contra a corrupção”, ali onde, vestido de avanço moralizante da sociedade, propunha-se limitar o direito ao habeas corpus.

É o Brasil linchador e fulanizado o que triunfa — esse em que se aceita como necessário, para que presumido bandido nenhum escape, que leis sejam aplicadas a depender do réu, ao sabor do caso concreto, ajustadas ao prumo da indignação vulgar, negação mesmo do espírito impessoal sob o qual leis são concebidas. E se o réu — que às vezes nem réu ainda é — for um político... O leitor decerto pensou no caso de Aécio Neves. Peço, então, que o esqueça — porque o que lhe serve também cabe a todos os parlamentares eleitos para o Congresso Nacional, inclusive Eduardo Cunha.

Um pedido de prisão contra um senador da República ou um deputado federal — senão por flagrante de crime inafiançável — sequer deveria ser recebido pelo STF. E, no caso, não havia flagrante nem se tratava de crime inafiançável. A demanda de Janot era, como de hábito, inconstitucional. Numa corte superior saudável, deveria ter o lixo como destino. Mas o Supremo aceitou apreciá-lo. E aí entra a lógica. Porque, se o recepcionou para deliberação, resta evidente que qualquer decisão emanada do tribunal a propósito seria uma resposta ao pedido de prisão. A Primeira Turma estabeleceu uma medida cautelar — não foi? Ora, simples: uma alternativa à prisão.

Ocorre que a Constituição é expressa a respeito e — salvo se a Barroso já tiver derrubado esta hierarquia — prevalece sobre qualquer outro código: ainda que um senador fosse preso em flagrante de crime inafiançável, a palavra final, para chancelar ou não a decisão da Justiça, caberia ao Senado. E, se esse pode o mais, claro, pode também o menos.

Por isso não haveria razão para a grita: se o Senado quisesse (e já o deveria ter feito, não estivesse acoelhado) deliberar sobre o afastamento de Aécio, poderia, resguardado pela Constituição, e o STF teria de entubar a vergonha decorrente da militância de seus membros.

Ah, sim. Desprezo este blá-blá-blá de harmonia entre Poderes — da qual, de resto, só se fala para encurralar o Legislativo, não raro invertendo a origem da desarmonia. Ou será harmônico que o Supremo legisle e que ignore a Constituição para tomar uma prerrogativa do Parlamento? Ademais: harmonia entre Poderes — entre esses aí? Quem banca isso como essencialmente bom? Ao que serve? Neste país, tende-se mais à harmonia entre pilantras ou virtuosos?

Melhor, para o equilíbrio da República, que se respeite a Carta Magna. Conseguimos?

Esqueça, leitor, para radicalizar o meu ponto aqui, o pedido de prisão contra um senador e a medida cautelar que o impede de sair de casa à noite — e me diga onde, na Constituição, está escrito que um Poder, senão o Congresso, pode afastar um parlamentar de seu mandato?

Cuidado com os tipos que ascendem ao Supremo para fazer política. Já escrevi, sobre juízes como esses, que, se querem fazer leis, larguem a toga e se candidatem ao Legislativo. O problema — a razão da advertência — é que, sem que percebamos, já não é preciso ser eleito para dirigir o Brasil.

Carlos Andreazza é editor de livros. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 10.10.17, sob o título "Tempo de Vergonha no Supremo".

O crime e a política

Na semana passada, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a terceira denúncia, por organização criminosa, contra lideranças de um partido político. Antes haviam sido acusados políticos do PP e do PT. Agora, foi a vez de integrantes do PMDB. Os três casos parecem confirmar que a Procuradoria-Geral da República (PGR) faz uso distorcido do material recolhido pela Operação Lava Jato, dando por certo que os partidos são organizações criminosas. Ou, pior ainda, que a atividade política pressupõe a prática criminosa.

Uma coisa é a existência de criminosos em algumas legendas, outra coisa é que a legenda seja uma organização criminosa. Uma terceira, ainda, é que a política seja necessariamente espúria. Além de ser um tratamento abusivo das provas, já que se deduzem coisas que não estão nos autos, a confusão promovida pelo Ministério Público conduz à mais perigosa das conclusões, nunca dita, mas habitualmente insinuada: a equiparação entre atividade política e atividade criminosa.

Segundo a denúncia apresentada na sexta-feira passada, os senadores Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR), Edison Lobão (MA), Valdir Raupp (RO) e Jader Barbalho (PA) e os ex-senadores José Sarney e Sérgio Machado “integraram núcleo político de organização criminosa estruturada para desviar em proveito próprio e alheio recursos públicos e obter vantagens indevidas”, tendo recebido R$ 864 milhões em propina por contratos na Petrobrás. O caso refere-se a um inquérito da Operação Lava Jato, aberto em março de 2015. A PGR sustenta que a atuação dos políticos do PMDB causou prejuízos de R$ 5,5 bilhões à Petrobrás e de R$ 113 milhões à sua subsidiária Transpetro.

Certamente, cabe à Justiça averiguar as provas contra esses políticos. Se não deve haver espaço para qualquer tipo de impunidade, muito especialmente a lei deve ser cumprida quando se refere à atuação de pessoas que ocupam ou ocuparam altos postos na vida pública. No caso, os denunciados são, ou já foram, membros do Senado Federal. Tais elementos não permitem, no entanto, afirmar que o PMDB e outros partidos políticos são organizações criminosas.

É importante entender o que dizem as investigações da Lava Jato. Elas revelaram que, nas administrações petistas, foi instalado um sistema criminoso no núcleo do poder público, com a cooptação de vários políticos de diferentes legendas. Isso não é o mesmo que dizer, como equivocadamente tenta induzir a PGR, que os partidos políticos eram organizações criminosas. Por mais que haja criminosos num partido, isso não transforma o partido numa organização criminosa.

Reconhecer essa realidade não representa qualquer desculpa para os políticos que desviaram recursos ou causaram prejuízos aos cofres do Estado, das estatais e das empresas de capital misto. Havendo provas de seus crimes, devem ser exemplarmente punidos. O que não se deve fazer é confundir os papéis de cada um dentro do esquema criminoso. Ao se apresentar determinado partido como um “quadrilhão”, apresentam-se seus integrantes como quadrilheiros, o que é evidentemente equivocado. O fato inegável é que, se se abrigam na legenda alguns criminosos, a maioria dos que nela militam é honesta.

Além de causar uma injustiça à honra de políticos honestos, essa deliberada confusão reforça o distanciamento e, em muitos casos, a rejeição da população em relação à política e suas instituições, como se fossem todas corruptas. Assim, a política fica parecendo uma prática ineficaz, esbanjadora e criminosa por definição. E, nesse caso, a democracia será tão vil quanto a política. A indistinção de papéis ainda beneficia o verdadeiro chefe do sistema criminoso, que se vê premiado com a possibilidade de ser encarado apenas como um criminoso a mais, sem uma adequada avaliação de sua responsabilidade, multiplicada pelo exercício de função pública.

A atuação do Ministério Público deve se ater estritamente ao campo jurídico. Tudo o que passa daí cai no terreno da política, fora de sua competência. A Lava Jato deve perseguir os crimes, não a política. E se criminosos se aproveitam da política para exercer seu ofício asqueroso, é justamente nessas horas que é mais necessário o estrito respeito às alçadas institucionais de cada agente da lei, na preservação simultânea da ordem e da democracia.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 14.09.17

Uma decisão surpreendente

Por Carlos Velloso

Analisemos, sem quebra da reverência e do respeito devidos, a decisão proferida, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no agravo interposto na cautelar requerida pela Procuradoria-Geral da República, cautelar apresentada pelo mesmo órgão do Ministério Público, com base em gravação feita por Wesley Batista, um dos donos da JBS, com o fito de obter perdão consistente numa colossal imunidade penal. Esse senhor acabou preso, a requerimento do Ministério Público, porque se descobriu que mentira. Na cautelar foi pedida a prisão do senador e seu afastamento do mandato que lhe foi outorgado pelo povo.

A decisão, com todo o respeito, foi surpreendente.

O voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello, minucioso e longo, foi pelo não cabimento da prisão, do afastamento e demais medidas alternativas. No mesmo sentido, o voto do ministro Alexandre de Moraes, largamente fundamentado. Os ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes deixaram claro que, conforme expresso na Constituição, “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”, caso em que “os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão” (artigo 52, § 2.º). No tocante ao pedido de prisão, todos os integrantes da turma ficaram de acordo com os votos dos ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes.

Em seguida vieram os votos divergentes quanto às medidas alternativas, capitaneados pelos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux.

Surpreendente. É que, se não ocorrem os motivos da prisão, nem ela seria cabível, é evidente que também ausentes os motivos ou fundamento para a imposição de medidas alternativas. A decisão é, portanto, no mínimo, contraditória.

E mais: sem que houvesse denúncia, regularmente recebida pelo Supremo Tribunal, ao senador foi imposto o afastamento do mandato. Se denúncia tivesse sido recebida contra o parlamentar, depois de lhe ter sido assegurado o direito de defesa, ainda nessa hipótese seria discutível a medida. Ao que entendo, somente a Casa a que pertence o parlamentar pode afastar um de seus membros. Investido este no mandato, pelo voto popular, expressão maior da cidadania, somente quem da mesma forma está investido poderia afastá-lo. O parlamentar encarna a democracia representativa que praticamos.

Assim posta a questão, a medida consistente na suspensão do mandato, da forma como adotada, representa um desrespeito ao voto popular e ao Poder Legislativo, constituindo ofensa ao princípio da separação dos Poderes (artigo 2.º da Carta Magna), traço caracterizador do presidencialismo, a que a Constituição confere status de cláusula pétrea (artigo 60, § 4.º, III).

E o que me parece incompreensível: foi adotada, contra o senador, dentre outras medidas, a obrigatoriedade do recolhimento domiciliar noturno. É inacreditável e imperdoável que se possa invocar, no ponto, disposição inscrita no Código de Processo, pretendendo, dessa forma, invocar a Constituição no rumo da lei ordinária, quando esta, sim, há de ser invocada no rumo da Constituição. Na verdade, ao parlamentar foi imposta, com ofensa à Lei Maior, a pena de prisão em regime aberto. Nesse caso, ao Senado Federal devem ser remetidos os autos, em 24 horas, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a medida alternativa que, na realidade, é prisão em regime aberto (artigo 53, § 2.º da Lei Maior).

Gostemos ou não, o que importa é que seja cumprida a Constituição, a menos que se renegue o Estado de Direito. O preço que se paga, no caso, por vivermos num Estado de Direito Democrático não é caro. Convém lembrar que o Parlamento é o poder que melhor representa a democracia. E que – vale repetir um velho brocardo – ruim com o Parlamento, pior sem ele. O que temos de fazer é pugnar pelo aperfeiçoamento do voto e da representação. Encarar a representação como mero serviço público, desprestigiá-la, é obra de quem não tem apreço pela democracia.

O ministro Marco Aurélio, um juiz independente, que a comunidade jurídica respeita, manifestou-se, expressamente, em entrevista à mídia, no sentido de que “o que nós tivemos foi a decretação de uma prisão preventiva em regime aberto. Vamos usar o português”.

Arroubos juvenis de moralismo – ponderou-me, certa feita, um velho juiz de Minas – não ficam bem. Esses arroubos desvirtuam o caráter da Justiça. O que deve ficar acertado é que a Justiça, proclamou o patriarca do Direito Civil brasileiro, Clóvis Beviláqua, “é o Direito iluminado pela moral” – coisa diversa de moralismo, acrescentamos, que, de regra, é moral sem ética.

Combater a corrupção é dever de todos. O Império Romano, que foi dono do mundo e senhor da guerra, começou a decair e acabou quando seus soldados e seus homens públicos se corromperam. Mas o combate à corrupção se faz com observância da lei e da Constituição, assim como das garantias constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal, “joia das instituições republicanas”, apregoava o bastonário Levi Carneiro, é, naturalmente, o Poder moderador dos Poderes. E há de ser, sempre, o que tem sido ressaltado por seus eminentes juízes e pelos homens e pelas mulheres do Direito, a derradeira trincheira das garantias constitucionais da liberdade.

*Advogado, ministro aposentado e ex-presidente do STF e do TSE, professor emérito da UNB e da PUC-MG, em cujas faculdades de Direito foi professor titular de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito Público, é membro de honra da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.

O autor não é advogado do senador Aécio Neves no caso objeto deste artigo. Em dois antigos inquéritos, um já arquivado e o outro sob investigação, advoga para o senador Aécio Neves.

Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 29.09.17.

Um cenário surrealista

Por Fernando Rodrigues

Supremo Tribunal Federal decidiu afastar o senador Aécio Neves (PSDB-MG) do mandato. Proibiu o tucano de sair de casa à noite, de viajar ao exterior, de entrar no edifício do Congresso e de falar com outros investigados.

Muito bem. Quem acompanha a degradação acelerada dos costumes políticos sempre festeja quando algum político se dá mal. Os adversários do PSDB vão celebrar e podem já ir pensando no escárnio para 2018, quando serão lembradas as camisetas de 2016 com a inscrição “a culpa não é minha: eu votei no Aécio”.

Até aí, jogo jogado.

Mas o fato a ser observado — goste-se ou não — é que o Brasil é regido por uma Constituição. Embora outro dia a nova procuradora-geral, Raquel Dodge, tenha cometido um barbarismo dizendo que ninguém deve estar acima ou abaixo da lei, o fato é que a Constituição está acima de todos nós.

A Constituição brasileira não tem em nenhum dos seus artigos e capítulos a figura do “congressista afastado do mandato”. É o que Aécio Neves será a partir de agora.

É curioso que do outro lado do Congresso há um deputado federal que passa a noite na penitenciária da Papuda e sai durante o dia para exercer o mandato — inclusive durante o recesso. Enquanto trabalha (sic), Celso Jacob (PMDB-RJ) é recebido até pelo presidente da República.

Ou seja, de um lado, no Senado, o senador Aécio Neves não pode exercer o mandato, embora ainda não tenha sido condenado. Do outro, o deputado Celso Jacob, já cumprindo a pena, pode dormir na cadeia e aprovar leis durante o dia na Câmara.

Se isso não é contraditório, mude-se o significado dessa palavra.

Note-se que não se trata de defender ou de condenar o tucano Aécio Neves. Quem deseja o aprimoramento institucional do país deve abstrair num momento como este os nomes dos envolvidos.

O que é indisputável é a formação de um cenário surrealista pela decisão da 1ª Turma do STF, por 3 a 2, com os votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber. Foram contra esse desfecho Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes.

Abre-se agora o seguinte ambiente de incerteza institucional, sobretudo porque não existe na Constituição nenhuma determinação para o STF afastar congressistas do mandato da forma como ocorre agora com Aécio Neves. Eis os pontos obscuros decorrentes da decisão do Supremo:

vaga aberta e Minas Gerais com um senador a menos — como Aécio está sendo afastado pelo STF, Minas Gerais ficará com uma vaga a menos no Senado. Não há regra definida para que o suplente assuma nesses casos. O presidente do Senado, Eunício Oliveira, não pode simplesmente chamar um suplente, pois isso não está em nenhum dispositivo legal numa situação tampouco estipulada na lei ou na Constituição;
recurso ao Senado — o PSDB deseja questionar no plenário do Senado a decisão do STF. Eunício Oliveira não tem saída e terá de submeter o tema aos seus colegas. “Quem vai decidir é o plenário“, disse ele ao editor do Poder360, Tales Faria. Se os senadores derrubarem o que o Supremo decidiu, aprofunda-se a crise política entre 2 Poderes da República;
desfecho longo e incerto — o STF demora vários anos para concluir o julgamento contra políticos (em média, historicamente, mais de 7 anos). Ou seja, Aécio pode passar o ano eleitoral de 2018 inteiro afastado do mandato;
candidato a deputado — como possivelmente não terá sido condenado em definitivo (nem absolvido), o tucano poderá disputar uma vaga de deputado federal por Minas Gerais em 2018, mesmo estando afastado das funções e sem poder sair de casa à noite;
deputado eleito poderá assumir? — como o processo não terá sido concluído em 2019, Aécio pode protagonizar um cenário ainda mais surrealista caso consiga uma vaga na Câmara: não terá certeza de que poderá assumir a cadeira, até porque uma das decisões do STF impede o tucano de entrar nas dependências do Congresso.
Justiçamento
Houve um certo regozijo dos ministros do STF nesta 3ª feira ao afastar Aécio Neves do mandato. É compreensível. Homens de bem, incomodam-se com a sem cerimônia de políticos que seguem delinquindo mesmo depois de mais de 3 anos de "lava jato".

O ministro Luiz Fux foi o mais eloquente e falou que “imunidade não é sinal de impunidade”. Caprichou no sarcasmo ao dizer que o STF estava, na realidade, ajudando Aécio Neves. Vale a pena visitar esse trecho da fala do magistrado:

“Muito se elogia porque ele [Aécio] se despediu da presidência do partido. Ele seria muito mais lisonjeado, muito mais elogiado se ele tivesse se despedido ali do mandato, tivesse se distanciado. (…) Tudo se resume num gesto de grandeza que um homem público deveria ter adotado. E já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a que se porte tal como deveria se portar. Pedir, não só para sair da presidência do PSDB, pedir uma licença, sair do Senado Federal para poder comprovar à sociedade a sua ausência de toda e qualquer culpa nesse episódio que acabou marcando de maneira dramática, pra nós que convivemos com ele, a sua carreira política“.

Luís Roberto Barroso, cada vez mais loquaz e sincero, afirmou que no Brasil houve “uma certa naturalização das coisas erradas” e que muitas pessoas “deixaram de ter consciência das coisas erradas”.

O ministro Barroso está certo. Mas o problema não é só esse. Como resolver agora, do ponto de vista institucional, as consequências do afastamento de um senador do mandato? Como impedir que o Poder Legislativo reaja ao vácuo jurídico que se abriu?

Em breve saberemos.

O plenário do Senado deve dar a palavra seguinte (não a final) a respeito. Há poucas certezas neste momento. Apenas que poderá se abrir uma crise institucional profunda entre o Legislativo e o Judiciário.

P.S.: na madrugada desta terça-feira (26/9) para quarta-feira (27/9), chegou uma análise complementar relevante de um grande especialista constitucional e nas regras congressuais (que pede reserva sobre seu nome, pois não pretende ser confundido como alguém a favor ou contra determinados políticos ou partidos):

“Mesmo que o processo contra Aécio Neves prossiga e o senador for condenado criminalmente ao final, o STF então comunicará o Senado. A partir desse comunicado, a Mesa Diretora do Senado ou um partido político é que terão a legitimidade para oferecer uma representação contra Aécio Neves — e não o STF.

“O constituinte de 1988 quis deixar na mão daqueles que têm mandato popular, ou seja os próprios congressistas, o poder de propor qualquer medida punitiva que atinja o mandato. Isso também vale para a Câmara também.

“Observe que há em andamento no STF muitos processos referentes a congressistas. Se prosperar a tese de o STF de afastar um deputado ou um senador, poderemos ter em breve o afastamento de 1, 2, 3 ou mais apenas com base na análise e decisão do próprio Supremo”.

Fernando Rodrigues é Jornalista. Este artigo foi originalmente publicado no site Poder360 , no qual é Editor, nesta terça-feira (26/9) com o título Cenário surrealista de Aécio tende a aprofundar crise entre STF e Senado.

O legado de Janot

Por Fernão Lara Mesquita

A Odebrecht roubava pela via tradicional do superfaturamento de obra pública. Já a JBS assaltava direto o Tesouro Nacional, via BNDES. Não precisava de gazua. Era uma “marca fantasia” dos guardiões das chaves. Simplesmente entrava e se servia.

Se a delação de Marcelo Odebrecht e seus 77 asseclas, construída num trabalho de anos, fez sumir de cena a “narrativa” do costume e varejou de rombos o casco do lulismo com os seus modestos 415 políticos “ajudados”, é de imaginar o estrago que poderiam fazer as dos 2ésleys até a eleição que decidirá se a democracia no Brasil vai ou não se tornar “excessiva” como a da Venezuela se tivessem tido, de Brasília, os mesmos incentivos para contar tudo o que eles tiveram de Curitiba.

Não pelos 1.820 desencaixes que confessam ter feito para 4,3 xs mais políticos que a Odebrecht, como era de lei. Pela saga épica, mesmo, da nata do banditismo petista infiltrada no comando dos fundos de pensão e dos bancos públicos alistando a escória planetária do crime organizado em Estados nacionais – Venezuela, Cuba, a Argentina kirchnerista, Angola, Guiné Bissau e por aí – para montar, a partir de um modesto matadouro de Anápolis, sob a batuta de um Foro de São Paulo voando nas asas do Estado brasileiro, uma lavanderia global de dinheiro roubado abarcando 30 países. Como foi, bilhão por bilhão, que o PT fez da Petros, entregue à “gestão” de um fundador da CUT, sócia dos carniceiros de Goiás. O que mais, além do casal Santana, exportou de cleptotecnologia proprietária para párias da civilização e aprendizes de genocida para ter o conforto de superfaturar em dólar longe dos controles brasileiros e, ora com, ora sem o concurso da Previ, do Funcef, do Postalis, do Itamaraty e sabe-se lá do que mais, mas sempre com o dessa gente boa, ir comprando a “competência” com que os 2ésleys esmagaram um a um os seus concorrentes nacionais e internacionais até toda a jogada ser “branqueada” pelo BNDES e os maiores laranjas de todos os tempos ficarem sozinhos na arena global com mais de R$ 180 bilhões no caixa por ano. E tudo para, como foi minuciosamente mapeado na sentença do mensalão e eles repetem de viva voz todos os dias, ressuscitar dos mortos, agora marrom, o totalitarismo que foi vermelho no século 20.

O resultado prático da cruzada de Rodrigo Janot e Luiz Edson Fachin – aquele que subiu ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelos palanques dos comícios do MST para Dilma, em que discursava cheio de paixão, e acaba de avalizar a “isenção” do companheiro – foi privar o mundo de conhecer essa odisseia, o que, incidentalmente, livra Lula das manchetes todas que ela poderia render até outubro de 2018. Quinze anos de Lula por 15 minutos de Temer e lá se vão, em velocidade recorde, os 2ésleys, com seus iates, aviões, bagagens e arquivos, para o mundo dos muito, muito ricos, liquidando a toque de caixa suas operações na América Latina enquanto o Brasil, à beira do colapso, discute firulas à espera do momento de decidir nas vésperas do dia da eleição se arranca Lula do palanque para a cadeia em pleno comício ou carrega-o para a Presidência da República.

No fim de agosto, o acinte: a plena e eternamente indultada JBS, na qual até o STF soberanamente proibiu-se de tocar, mandou informar a quem interessar possa que, sendo assim, fica recusada a auditoria forense requisitada pelo BNDES para medir os prejuízos incorridos e mantido Wesley na presidência para comandar, ele próprio, uma “investigação independente” sobre o paradeiro do dinheiro que os Batista são acusados de nos roubar...

Tudo isso pede uma reflexão serena sobre os custos e benefícios desta nossa exaustiva ciranda. Ministério Público, Judiciário e imprensa dificilmente erram por aquilo que fazem. Acusar ou prender alguém que não tem culpa nenhuma; mentir frontalmente contra fatos seria expor-se a ser desmascarado na sequência. Mas omissão é o assassinato sem cadáver. Não acusar quem esteja atolado em culpas; não expor a falcatrua de que se tem conhecimento; e suprimir ou supervalorizar a circunstância que qualifica o fato são opções que não produzem flagrante nem prova.

Mas como matam!

O instrumento da delação premiada foi importado dos EUA pela metade. Não há dúvida nem sobre a eficácia da ferramenta nem sobre a perigosa discricionariedade que o seu uso requer. Mas lá o eleitor tem o poder de cassar ou eleger juízes e promotores, o que faz a discricionariedade pender sempre para o lado certo. No Brasil, promotores e juízes habitam o Olimpo, e para sempre. E tudo o que põem para andar “fecha” necessariamente no máximo em 11. Reclamações para o bispo...

Isso de bom ou mau negócio depende sempre da parte na transação de onde vem a avaliação, mas, se algo ficou indiscutivelmente demonstrado nestes quase quatro anos é que o sentido das delações, agora reajustadas “on demand”, depende tanto de quem as colhe quanto de quem as faz; que os marajás com seus “reajustes” leoninos para corrigir inflações que não há estão ficando cada vez mais ricos e o Brasil, cada vez mais pobre; que a reforma dessa mamata está cada vez mais longe e os impostos, cada vez mais altos; e que as instituições democráticas estão mais arrebentadas a cada minuto que passa.

Muitos políticos merecem o que estão recebendo, mas o Congresso é só a ponta mais televisionável do longo mergulho do Brasil inteiro na permissividade. Fingir que não era essa a regra pela qual todos jogaram não vai nos levar a nada de bom. A alternativa possível é construirmos pela e com a política que ainda podemos eleger e deseleger a cada quatro anos uma saída para reformar o País, em vez de atirar (ou não) em pessoas. Oferecer a quem quiser aderir ao Brasil a oportunidade de comprometer-se com uma nova regra do jogo a ser “apitada”, daqui por diante, diretamente pelos eleitores seria um tipo de contrato com garantia de execução. Mas, abandonados à vingança da vingança da vingança, como vamos, seguiremos nos entredevorando ao sabor de um jogo que, definitivamente, não é o nosso.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com

Procuradoria Política

Com a aproximação do fim de seu mandato, que se encerra no dia 17 de setembro, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, aproveitou uma vez mais sua função institucional para fazer oposição ao Palácio do Planalto. Na sexta-feira passada, Janot ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), de n.º 5.766, contra dispositivos da Lei 13.467/2017, que trata da reforma trabalhista. Insatisfeito com o teor das tão necessárias reformas aprovadas pelo Congresso, o procurador-geral tenta dificultar sua aplicação prática, com medidas que aumentam ainda mais a insegurança jurídica.
Além de Janot criar obstáculos políticos ao governo federal – a ponto de ter sido objeto de arguição de suspeição –, tem-se a situação peculiar de uma população que luta por sair da crise econômica e social enquanto o procurador-geral da República parece fazer de tudo para minar essa capacidade de reação, dando a entender que o seu objetivo no cargo é manter o País no enrosco em que o PT o colocou.
Em junho, Janot ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Adin contra a Lei da Terceirização (Lei 13.429/2017). Entre outros pontos, o procurador-geral da República insurgiu-se contra a principal novidade trazida pela lei: a extinção, em razão de sua completa obsolescência e desconexão com a realidade, da distinção entre atividade-fim e atividade-meio como critério de legalidade da terceirização. Com a aprovação da Lei 13.429/2017, restou autorizada a terceirização das chamadas atividades-fim. Era o Congresso pacificando intermináveis discussões judiciais sobre o que é atividade-fim e o que é atividade-meio, controvérsia que apenas emperrava os investimentos e as contratações. No entanto, insatisfeito com as alterações na legislação, Janot foi ao STF para tentar que seja declarada inconstitucional a lei em questão, pois, no seu entender, ela viola o “emprego socialmente protegido”. Assim, ele conseguiu restabelecer o cenário de insegurança jurídica.
Agora, Janot volta sua artilharia contra a reforma trabalhista. Na Adin 5.766, ele questiona alguns dispositivos relativos a custas judiciais e a honorários periciais e de sucumbência, sob o argumento de que as novas disposições violariam garantias constitucionais de amplo acesso à Justiça. Na verdade, Janot confunde casos muito díspares. Uma coisa é o direito constitucional de recorrer à Justiça para a defesa de seus interesses, outra coisa bem diferente é o sistema de irresponsabilidade judicial, no qual uma das partes, mesmo que perca o processo, não arque com os respectivos custos processuais. A garantia do acesso à Justiça não pode levar a uma situação de irresponsabilidade, como ocorria na legislação anterior e que gerava a indústria das reclamações trabalhistas. A Lei 13.467/2017 veio justamente instaurar um pouco de equilíbrio nessa relação processual.
Além de ser um equívoco jurídico, a argumentação apresentada na Adin 5.766 manifesta um claro posicionamento político-ideológico. “Com intensa desregulamentação da proteção social do trabalho, a Lei 13.467/2017 inseriu 96 disposições na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a maior parte delas com redução de direitos materiais dos trabalhadores”, diz a petição apresentada ao STF. Ora, os direitos dos trabalhadores foram elencados na Constituição. O procurador-geral da República, no entanto, não se furta até mesmo de questionar a fundamentação utilizada por parlamentares durante a tramitação da reforma trabalhista no Congresso, em descompasso com os limites institucionais do Ministério Público, que não é uma espécie de juiz do Legislativo, mas tão somente um servidor da lei.
Especialmente nas circunstâncias atuais, o País sente falta de um Ministério Público centrado em suas tarefas institucionais, sem utilizar demandas jurídicas para a promoção de causas políticas derrotadas nas urnas. Quando atua ideologicamente, não apenas perde a isenção. Essa importante instituição de Estado perde autoridade e passa a ostentar tão somente os vícios de mera corporação.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 30.08.17

Pior que o previsto

Gastos com pessoal consumiram praticamente 60% da receita corrente líquida dos Estados em 2016

A crise fiscal nos Estados é muito pior do que se supunha. O fato de os gastos com pessoal terem consumido praticamente 60% de toda a receita corrente líquida dos Estados em 2016, conforme apurou a Secretaria do Tesouro Nacional, dá a nova dimensão, muito maior, de um problema que já se sabia muito grave – e não há sinais de que a situação tenha melhorado em 2017. Para ter ideia do tamanho dessas despesas e de seu impacto sobre as finanças dos Estados, convém lembrar que o limite de 60% da receita para os gastos com a folha de pessoal tornou-se um marco cuja superação prova de maneira inquestionável a gravidade da situação financeira do setor público. É esse, por exemplo, o limite fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para a despesa total com pessoal nos Estados e municípios.

Há diferenças entre a metodologia de aferição dos gastos com pessoal pelo Tesouro – apresentados no Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais 2016 – e os critérios definidos na LRF. Assim, nem todos os Estados que, segundo o Tesouro, gastam com o funcionalismo mais do que 60% estão em situação irregular, o que implicaria sanções a seus gestores financeiros. Mas todos estão, decerto, em grave crise fiscal, o que resulta não apenas em riscos para sua solvência futura, como, sobretudo, em perda de qualidade da administração, visto que dinheiro que poderia ser utilizado em investimentos em saúde, educação, infraestrutura, entre outros programas, está sendo transferido para o pagamento do funcionalismo ativo e inativo.

Para evitar que Estados e municípios cheguem à situação extrema, a LRF prevê medidas de prudência cuja intensidade se acentua conforme as contas se deterioram. São medidas como a proibição de concessão de vantagens salariais, provimento de cargos vagos e pagamento de horas extras. Em casos de desequilíbrio financeiro mais grave, o Estado ou município poderá até reduzir a jornada de trabalho com a consequente redução dos vencimentos, mas terá de adotar um programa de retorno gradual ao equilíbrio fiscal. A pena para o ente que descumprir a LRF é a suspensão de transferências voluntárias da União e proibição de contratação de operações de crédito.

Nos últimos dois anos, porém, os Estados não foram nem sequer incomodados por causa da deterioração de suas finanças. Ao contrário, foram beneficiados por uma generosa renegociação de suas dívidas, que resultou na suspensão do pagamento de R$ 19 bilhões de juros e amortizações devidos à União. Além disso, obtiveram receitas adicionais, por meio de transferências extraordinárias da União de cerca de R$ 13 bilhões, como parte do programa de repatriação de recursos, provisão para segurança pública na Olimpíada e recursos para fomento às exportações.

A despeito dessa ajuda bilionária, as contas dos Estados continuaram a se deteriorar. É fácil encontrar o foco do desajuste. Enquanto as receitas se mantiveram praticamente estáveis como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), as despesas com pessoal ativo e inativo cresceram em 6,9 pontos porcentuais da receita corrente líquida e os gastos com custeio, em 3,3 pontos. Só aí se consumiu uma fatia adicional equivalente a 10% das receitas. O ajuste fiscal, de péssima qualidade para a sociedade, foi feito basicamente por meio do corte da fatia dos investimentos, que perdeu 6,7 pontos porcentuais da receita.

O Boletim do Tesouro mostra que também quanto aos sistemas previdenciários dos Estados a situação é pior do que a apresentada pelos respectivos governos. No ano passado, os Estados declararam um rombo previdenciário de R$ 55 bilhões, mas o Tesouro calculou que os gastos excederam as despesas em R$ 84,4 bilhões. É uma diferença de praticamente R$ 30 bilhões. Também nesse caso, a diferença decorre do uso de metodologias diferentes, mas, qualquer que seja o número, há grave desequilíbrio na Previdência dos Estados.

Mais do que o encontro de metodologias, o que se exige são reformas que contenham o agravamento da crise fiscal nos Estados.

Editorial de O Estado de S.Paulo, edição de 21.08.17

A ética deprimida

Por Eugênio Bucci

“A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.” – Fernando Pessoa (1888-1935), em Livro do desassossego

Lá se vão quase cem anos desde que Fernando Pessoa escreveu os fragmentos que seriam publicados, somente depois de sua morte, no Livro do desassossego, mas parece que foi ontem. Quando lemos a passagem acima, temos a sensação de que ele fala dos nossos dias – e do Brasil. Hoje, como naqueles tempos, os jornais não primam pela beleza. Aliás, também não primam pela limpeza: ao manusear as versões impressas dos nossos matutinos, o leitor fica com os dedos tingidos de tinta escura. Veja você, que metáfora incômoda: a leitura dos jornais suja as mãos do público.

Como no universo poético da prosa de Fernando Pessoa, os diários não nos contam novidades inspiradoras. Bem ao contrário, nas suas páginas que se esparramam como toalhas quebradiças sobre a mesa do café da manhã, predominam relatos que desalentam, que desnorteiam, que desassossegam. Seja pela pauta, seja pela forma do discurso, seja pelos padrões éticos ali implicados, o que sai dali nem sempre é sangue, mas invariavelmente dói. Diariamente, a imprensa entrega à sociedade um inventário de perfídias que desafiam não apenas o senso de justiça, mas a própria capacidade que a razão tem de classificar os comportamentos humanos. Pessoa tinha razão: a leitura dos jornais é sempre penosa do ponto de vista moral.

Portanto, ao nos queixarmos de que as notícias não têm sido exatamente edificantes sobre o Brasil, lembremos que não é de hoje que as notícias dos jornais causam desassossegos às sensibilidades menos cascudas. As coisas não vão bem na nossa República Federativa, mas esta não é a primeira vez na história da humanidade que a imprensa vem nos soterrar com episódios degradantes, relatados em estilo vil, sobre personagens repugnantes, desfiguradas por vagas de ganância inominável. Agora, quando as manchetes parecem anunciar o fim do mundo moral, tenhamos em mente que o fim ainda não chegou de verdade. A trama da realidade ainda pode piorar. Vai piorar.

E como reagir a tudo isso? Talvez com o desânimo. Ainda sobre a leitura dos jornais, Fernando Pessoa dizia que as guerras e as revoluções causavam “não horror, mas tédio”. Eis aí outro paralelo como os nossos dias. A “brava” gente brasileira, que já teve seus dias de brabeza furiosa, de indignação cívica e de nojo, atualmente guarda pouco além de tédio no espírito. Alguns tentam resistir e lançam mão da teimosia. Alguns chegaram a ponto de tentar organizar um ato de repúdio contra a corrupção na Avenida Paulista no final de semana. Quanto voluntarismo. Eu vi fotografias – nos jornais, evidentemente. Lá estavam uma ou duas dúzias de manifestantes envergando camisetas brancas. Fiquei tentando reconhecer as fisionomias, que não me eram estranhas. Mas eram poucas. Pouquíssimas. Tive a impressão de que um sinal fechado numa faixa de pedestres na esquina de Rebouças com a Faria Lima junta mais gente.

Uns poucos ainda alegam que, se houver “pressão popular” nas ruas, o governo de Michel Temer não resistirá. Acontece que a tal “pressão popular” jogou a toalha. Tirando o pessoal do ato da Paulista e aquele outro pessoal que põe fogo em pneus para bloquear as rodovias, só o que se vê é a indiferença generalizada. O Brasil desce aos infernos num itinerário macabro, seguido de perto pelos jornais e simplesmente ignorado pelo povo. O Brasil derrete sem protestos, sem passeatas, sem manifestações públicas. O Brasil sucumbe num suspiro de mau hálito. Quanto às multidões, bem, elas faltaram ao encontro.

Em lugar da bandeira das “Diretas Já”, as preguiçosas massas omissas optaram por se conformar à praticidade das “diretas já-já” (em 2018 mesmo, não faz mal). Derrubar Temer não interessa a mais ninguém. Muitos dos que o xingavam de golpista preferem agora deixá-lo onde está. Apostam que o desgaste de sua ínfima popularidade (em índices quase negativos) abastecerá de cólera os palanques da oposição no ano que vem. É o paradoxo dos paradoxos: como presidente, quem diria, Michel Temer virou um ótimo cabo eleitoral dos que o detestam.

Enquanto não cai o governo Temer, vão caindo os tapumes da hipocrisia nacional. O Brasil ainda não mostrou a cara, como queria Cazuza, mas já se desescondeu um pouco mais, descortinando comprometimentos que antes ficavam ocultos. Problemas que até outro dia eram percebidos como flagelos isolados uns dos outros, como focos localizados, revelam-se conectados entre si, numa rede articulada, orgânica e peçonhenta. Ficam expostos os nexos funcionais entre a violência urbana e as quadrilhas que desviam recursos públicos, entre as licenciosidades da política educacional e a compra e venda de votos no Congresso Nacional, entre a falência das universidades públicas e as joias arrematadas pelo governador gente boa. O Brasil ainda não mostrou a cara, mas já dá para ver que a cara do Brasil é um organismo parasitário complexo e totalizante, que parece ter o monopólio de todos ilícitos e conseguiu até fincar postos avançados no exterior.

Do lado de fora desse organismo, restam a indiferença, o tédio e uma certa falta de ar. O novíssimo sonho de consumo da classe média nacional é emigrar. A exemplo dos muito ricos (entre eles alguns delatores) que já têm residências alternativas em terras distantes, agora são os remediados que, desiludidos, sonham com um passaporte estrangeiro. Só não dão conta de ir embora de vez porque se deixaram baquear, porque não encontram nem forças nem economias para pôr um projeto de pé, nem mesmo o projeto de sumir do mapa.

No Brasil, enfim, a leitura dos jornais é um suplício estético, um desconforto linguístico e um tormento moral. A vida real é tédio. O destino é imobilismo e resignação. Enquanto isso, a disposição ética se deprime.

Eugênio Bucci é Jornalista e Professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.08.17.

Na escuta da lei

Recentemente encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF), o relatório da Polícia Federal sobre as gravações que o ex-senador Sérgio Machado fez de conversas com vários políticos manifesta um bom senso cada vez mais raro na aplicação da lei penal. Com a acuidade que se espera dos agentes da lei, a delegada Graziela Machado da Costa e Silva, autora do relatório, faz notar a distância entre o que de fato consta nas gravações e aquilo que alguns gostariam que estivesse presente.

No ano passado, Sérgio Machado – que também foi presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobrás – apresentou gravações que havia feito de conversas suas com o senador Romero Jucá (PMDB-RR), o então presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL) e o ex-presidente da República José Sarney (PMDB-AP). Na tentativa de obter um abrandamento de suas penas, Machado trouxe material que supostamente provaria a obstrução da Operação Lava Jato por alguns dos caciques do PMDB. Naturalmente, a divulgação das gravações, contendo comentários negativos à Operação Lava Jato, causou imediata repercussão política.

Agora, a Polícia Federal traz um pouco de bom senso à discussão do caso, ao cotejar o conteúdo gravado com o que a lei penal estabelece. “O conteúdo dos diálogos gravados e a atividade parlamentar dos envolvidos no período em comento não nos pareceu configurar as condutas típicas ‘impedir’ ou ‘embaraçar’ as investigações decorrentes da Operação Lava Jato”, diz o relatório.

A delegada Graziela Machado da Costa e Silva reconhece que “as conversas estabelecidas entre Sérgio Machado e seus interlocutores limitaram-se à esfera pré-executória, ou seja, não passaram de meras cogitações”. Esse ponto é de extrema importância, pois não raro alguns membros do Ministério Público dão como prova cabal o que não passa de presunção. Ouve-se uma coisa que não é crime e se supõe a ocorrência de outra coisa, já dentro da esfera penal. E esse indevido passo lógico é ainda revestido de pompas de diligência e sagacidade.

Não é conluio com a impunidade exigir provas no processo penal. É simplesmente a garantia de que, num Estado de Direito, não há espaço para se condenar com base em preconceitos ou juízos prévios sobre o caráter do réu, por pior fama que ele possa ter. O bom Direito sempre impõe o princípio da presunção da inocência.

O relatório da Polícia Federal é didático ao abordar o que pode ser considerado, pela lei penal, como obstrução da Justiça. “Quando Sérgio Machado propõe, por exemplo, um ‘acordo com o Ministério Público para parar tudo’, não implica admitir como factível tal proposição, e o mesmo se aplica à suposta interferência que advogados poderiam exercer em decisões do ministro Teori Zavascki. É preciso mais”, diz a delegada.

O relatório recorda o óbvio, que, com frequência, é esquecido. Eventual comentário negativo a respeito do Poder Judiciário ou de determinado órgão, seja quem for o autor da crítica, não obstrui a Justiça. Esse aspecto é de especial relevância para a liberdade de expressão e, no caso concreto dos senadores, para a livre atuação parlamentar. Faz parte da competência de cada um dos Poderes zelar, dentro de suas atribuições, pelo bom funcionamento dos outros Poderes e órgãos públicos. Poder sem controle não é da natureza de um Estado de Direito.

A Polícia Federal conclui que, a respeito do inquérito analisado, “a colaboração (de Sérgio Machado) mostrou-se ineficaz, não apenas quanto à demonstração da existência dos crimes ventilados, bem como quanto aos próprios meios de prova ofertados, resumidos estes a diálogos gravados nos quais é presente o caráter instigador do colaborador quanto às falas que ora se incriminam”, e que, portanto, não caberia destinar a Sérgio Machado os benefícios legais da colaboração premiada.

Fosse mais habitual essa interpretação serena da lei, estaria resolvida boa parte das atuais instabilidades políticas e, principalmente, alguns criminosos confessos teriam um destino mais adequado aos seus atos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, de 31.07.17

A voz da política

Avança na Câmara dos Deputados o procedimento relativo à denúncia contra o presidente Michel Temer, feita pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Na terça-feira passada, o deputado Sérgio Zveiter (PMDB-RJ) foi escolhido relator da denúncia na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O deputado afirmou que analisará a acusação formal contra o presidente Michel Temer com total independência e assegurou que seu parecer será “predominantemente jurídico e, possivelmente, com um viés político”.

Uma denúncia contra um presidente da República é, por si só, um assunto grave, que desperta especulações sobre os seus possíveis desfechos e, naturalmente, gera consequências na economia, na política e na governabilidade. No caso em questão, a despeito das evidentes fragilidades da peça de acusação, a denúncia agrava a crise nacional, produzindo, além dos políticos, efeitos econômicos de monta. Não é de estranhar, portanto, que o País tenha pressa em resolver o assunto o quanto antes.

Em razão de suas inconsistências, a peça apresentada por Rodrigo Janot mais parece um pedido de investigação do que uma acusação formal. Por exemplo, a Procuradoria-Geral da República não apresenta provas da corrupção passiva nem indica as circunstâncias do recebimento pelo presidente da República da alegada propina da JBS. Sendo assim, não deixa de ser exasperador ver o destino do País pendente de um documento juridicamente tão falho.

Diante desse quadro, é especialmente importante que as instituições envolvidas trabalhem diligente e serenamente, dentro de suas atribuições constitucionais. Um cenário como o atual é propício a oportunismos e protagonismos indevidos, que pouco contribuem para o interesse nacional. É hora de seguir a cartilha institucional, ciente de que esse é o único caminho apto a levar o País a bom porto.

No final do mês de junho, o processo na Câmara dos Deputados relativo à denúncia contra o presidente (Solicitação para Instauração de Processo – SIP 1/2017) foi encaminhado à CCJ, conforme dispõe o Regimento Interno da Casa. A comissão deverá apresentar um parecer sobre a autorização da denúncia, que depois irá à votação pelo plenário da Câmara.

A CCJ é uma comissão permanente da Câmara e seu papel é apreciar as matérias que lhe são encaminhadas tendo como critério firme a Constituição. Cabe-lhe, portanto, desvelar ao País, sem medo de pressões, o exato valor jurídico da denúncia feita por Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer.

Mais do que mero procedimento formal, a tarefa da CCJ pode contribuir para desmistificar o conteúdo da denúncia, dando-lhe sua real dimensão. Além disso, o parecer da comissão, se bem feito, pode ir muito além das consequências imediatas relativas ao futuro pessoal do presidente Michel Temer. Ele pode ser a oportunidade para o Congresso esclarecer alguns temas importantes e atuais, que andam um tanto confusos sob a batuta exclusiva do Ministério Público.

A CCJ poderá mostrar ao País, por exemplo, que o combate à corrupção e à impunidade não comporta desleixos com as garantias individuais nem é sinônimo de apoio incondicional a práticas avessas a nosso Direito. O critério deve ser a lei, e não a interpretação que alguns fazem dela.

Ao analisar a SIP 1/2017, a Câmara tem a oportunidade de apresentar uma resposta responsável e equilibrada aos múltiplos anseios da população, que não deseja corrupção, mas também não quer o arbítrio nem tampouco a estagnação do País na crise. Atualmente, muitos querem calar os políticos, todos os políticos. Mas é a Constituição que confere às instituições políticas o direito – e também o dever – de se manifestarem livremente. A Câmara dos Deputados tem uma importante missão a cumprir. Devemos estimular seus membros a cumprir fielmente seus deveres. Afinal, quando as instituições trabalham bem, dentro de suas atribuições, as crises arrefecem e os conflitos se pacificam.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 07.07.17.

A mentira comprometedora


A validade dos chamados acordos de delação premiada depende fundamentalmente de dois elementos, cuja falta é grave o bastante para suscitar a anulação dos termos da colaboração: a voluntariedade e o compromisso inarredável com a verdade.

Um investigado, acusado ou réu não pode estar sentado à mesa de negociação com o Ministério Público ou com a autoridade policial sob ameaça ou coação. Ele precisa estar disposto a contar o que sabe por livre e espontânea vontade, em troca dos benefícios relativos à persecução penal a que está sujeito pelo crime que lhe é imputado. Além disso, para ser digno de receber tais prêmios, que podem chegar ao perdão judicial, é mandatório que diga a verdade às autoridades, por mais óbvio que isso possa parecer.

Esses requisitos obedecem a um imperativo legal – conforme as disposições da Lei 12.850 de 2013, que trata das organizações criminosas – e serão verificados pelo Poder Judiciário em dois momentos: a voluntariedade, na fase de homologação do acordo; e a veracidade das alegações, no momento da sentença, após a reunião de um conjunto de provas no curso do processo que comprove o que o colaborador disse às autoridades. De acordo com o mesmo diploma legal, nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador.

Desde sua divulgação, em maio, o acordo de colaboração premiada firmado entre a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o sr. Joesley Batista, controlador da J&F, vinha sendo bastante criticado por variados segmentos da sociedade pela disparidade entre o que o delator ofereceu de informações ao Estado e o que dele recebeu em troca, a saber, a imunidade total para os gravíssimos crimes que confessou ter cometido.

Já seria questionável, de pronto, a concessão de imunidade total a um criminoso confesso e contumaz, atitude que não se coaduna com o próprio conceito de justiça que deve sempre pautar as ações da PGR. Causou ainda mais estranheza a irrazoabilidade dos termos negociados no acordo com o sr. Joesley Batista, cujo resultado, como já foi dito neste espaço, foi uma denúncia inepta por corrupção passiva contra o presidente da República.

Sabe-se agora que sr. Joesley Batista mentiu para a PGR. Durante as tratativas para o fechamento do acordo de colaboração premiada, ele negou ter tido qualquer de seus negócios facilitado por Antonio Palocci no âmbito do BNDES. Entretanto, de acordo com informações veiculadas pelo Estado, a JBS – uma das empresas controladas pela holding J&F – pagou, entre dezembro de 2008 e junho de 2010, cerca de R$ 2,1 milhões à Projeto Consultoria Empresarial e Financeira, empresa do ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, em troca das gestões de Palocci com a direção do BNDES para o aporte de US$ 2 bilhões do banco estatal que serviram para a compra da Pilgrim’s Pride Corporation pela JBS por cerca de US$ 2,8 bilhões em 2009. Vale dizer, por meio da intervenção remunerada de Antonio Palocci, a JBS ampliou seus negócios nos Estados Unidos utilizando mais de 70% de capital do BNDES. É importante repetir que, mesmo quando questionado, o sr. Joesley Batista negou ter recebido auxílio de Antonio Palocci para fechar seus negócios bilionários.

Além de ter negociado os termos do acordo de colaboração premiada da JBS contrariando ditames legais, vê-se agora que a PGR negociou mal. É inadmissível que uma delação que baseou uma denúncia contra o presidente da República venha eivada de mentira. Não se pode supor que um fato dessa gravidade seja um mero “descuido” da PGR, que de pronto acreditou na palavra do delator e não fez uma averiguação prévia de sua veracidade.

O açodamento e o desmazelo do Ministério Público Federal no tratamento das informações entregues pelo sr. Batista reforçam a percepção de que os objetivos da delação são, antes de tudo, eminentemente políticos.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 08.07.17.

A denúncia contra o Presidente

O resultado do generoso prêmio dado ao empresário Joesley Batista por sua delação envolvendo o presidente Michel Temer é uma denúncia inepta. Finalmente apresentada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na segunda-feira passada, para basear pesadas acusações de corrupção contra o presidente, a peça não acrescenta nada ao que já havia sido tornado público com o vazamento da delação de Joesley. Ou seja, a denúncia de Janot contra Temer é baseada somente na palavra do delator e em diálogos que deveriam ser interpretados com bem menos ligeireza, não só porque estão entrecortados, tornando-se incompreensíveis em vários momentos, mas principalmente porque foram captados pelo empresário com a intenção evidente de comprometer o presidente, sabe-se lá por que obscuras razões.

Por esses motivos, o Supremo Tribunal Federal faria bem se mandasse arquivar a denúncia, pois é claro que não se pode tratar de um processo criminal contra um presidente da República – que implicaria seu afastamento do cargo – sem que haja sólidas evidências a ampará-lo. E tudo o que se pode dizer, da leitura das pouco mais de 60 páginas da denúncia do procurador-geral, é que as acusações evidentemente carecem de base.

A denúncia se baseia principalmente na acusação de que o presidente Temer ganhou de Joesley Batista “vantagem indevida de R$ 500 mil”, por intermédio do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures – que foi flagrado em vídeo recebendo a quantia em uma mala. Para a Procuradoria-Geral, o simples fato de que Rocha Loures era próximo de Temer – o presidente citou o nome do ex-deputado no diálogo com Joesley – foi suficiente para inferir que o dinheiro não era para Rocha Loures, e sim para o presidente.

Esses R$ 500 mil seriam parte de uma estupenda mesada que Joesley teria aceitado pagar em troca de uma intervenção do presidente Temer, por meio de Rocha Loures, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em favor de sua empresa, a JBS. No entanto, a própria denúncia admite que, “no exíguo prazo deste inquérito, não foi possível reunir elementos que permitam concluir que o interesse manifestado por Rodrigo Rocha Loures (no Cade) tenha provocado, no seio daquele órgão, ações ou decisões precipitadas ou desviadas da boa técnica”.

Essas incertezas se multiplicam em outros pontos da denúncia. A respeito do suposto pagamento de propina para comprar o “silêncio” do deputado cassado Eduardo Cunha, que Temer teria avalizado, segundo interpretou a Procuradoria-Geral a partir de um famoso trecho da conversa grampeada por Joesley – “tem que manter isso aí” –, a denúncia admite que ainda é preciso “uma análise mais cuidadosa, aprofundada e responsável” dos elementos disponíveis.

Por fim, a denúncia cita um suposto esquema em que o presidente Temer teria favorecido uma empresa da área portuária por meio de um decreto. Mesmo nesse caso, porém, o procurador-geral Rodrigo Janot admite ainda que é preciso instaurar “investigação específica” para “melhor elucidar os fatos”.

Logo, todos os pilares sobre os quais se sustenta a denúncia não permitem nenhuma conclusão, muito menos uma que seja sólida o suficiente para tirar o presidente da República de seu cargo, ao custo de enorme instabilidade para o País. Mas isso não impediu Rodrigo Janot de encerrar sua peça dizendo que “não há dúvida” de que Michel Temer cometeu “práticas espúrias” e que o presidente “ludibriou os cidadãos brasileiros”, causando “abalo moral à coletividade”.

A única coisa sobre a qual não resta dúvida é que a denúncia de Rodrigo Janot contra Michel Temer, de tão rasa, só serve a interesses políticos, e não jurídicos. Tanto é assim que o procurador-geral prepara uma série de novas denúncias, a serem apresentadas a conta-gotas, mantendo o presidente sob permanente ameaça. Não se pode reprovar quem veja nisso uma tentativa de inviabilizar de vez um governo já bastante acossado.

Diante disso, cabe ao presidente Michel Temer lutar para reunir maioria no Congresso não apenas para rejeitar a denúncia, mas para seguir adiante com as reformas. O País não pode continuar refém de irresponsabilidades.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 28.06.17.

Coração de Mãe

A delação dos irmãos Joesley e Wesley Batista representou o perdão de crimes cujas penas somadas poderiam alcançar de 400 anos a até 2 mil anos de prisão, informou Marcelo Godoy no Estado. Ainda que impressionem, os números não vão ao extremo. Se o juiz tivesse mão pesada, a pena podia chegar a quase 2.500 anos de cadeia.

A conclusão é resultado de uma simples conta aritmética. Os irmãos Batista contaram à Procuradoria-Geral da República (PGR) que tiveram 240 condutas criminosas, sendo 124 casos de corrupção e 96 de lavagem de dinheiro. Para compilar a listagem completa dos crimes, foram necessários 42 anexos, entregues ao Supremo Tribunal Federal (STF). Pois bem, a Lei 12.683/2012 prevê pena de reclusão de 3 a 10 anos, além de multa, para quem comete o crime de lavagem de dinheiro. Já o Código Penal estabelece para o crime de corrupção ativa a pena de reclusão de 2 a 12 anos, mais multa. Se fossem aplicadas penas máximas às condutas narradas, a pena dos irmãos Batista chegaria a 2.448 anos.

Diante desse expressivo passivo penal, o mínimo que se deveria esperar da PGR era uma extrema prudência na negociação com os irmãos Batista, sem deixar margem para que a tão contumazes criminosos o crime compensasse. Ao mesmo tempo, todo esse histórico criminal conferia uma confortável posição de negociação à Procuradoria, já que os irmãos Batista tinham muito a acertar com a Justiça. A não concretização do acordo de colaboração premiada deixaria os srs. Joesley e Wesley numa situação delicada, expostos a várias investigações criminais. Como se vê, havia muito terreno para negociar, já que era possível recortar muita pena e ainda sobrar outro tanto, dando-se por cumprida, ainda que imperfeitamente, a lei penal.

E no caso de ainda a Procuradoria-Geral ter alguma insegurança a respeito de suas margens de negociação, ansiosa que estava por não perder a oportunidade de saber quais eram aqueles graves crimes que os irmãos Batista tinham a delatar, a PGR podia se valer do exemplo proporcionado pela negociação com o sr. Marcelo Odebrecht. Não foi preciso perdoar-lhe todas as penas para que o empreiteiro contasse o que sabia.

Surpreendentemente, a PGR não aproveitou qualquer espaço de negociação de que dispunha e concedeu, assim se lê no termo do acordo de colaboração premiada assinado com o sr. Joesley Batista, “o benefício legal do não oferecimento de denúncia” em relação a todos “os fatos apresentados nos anexos (...), objeto de investigação criminal já em curso ou que poderá ser instaurada em decorrência da presente colaboração”.

Sem dúvida, o caso dos irmãos Batista constituirá um capítulo esquisito da história da Procuradoria-Geral. Comprometeu-se a PGR a conceder completo perdão a centenas de crimes com a simples condição de que eles fossem narrados aos procuradores. O que for aqui contado, parece dizer o termo assinado pela PGR, estará imediatamente perdoado.

Certamente, a população gostaria de saber a razão de se conceder tamanha indulgência a um pessoal que, pelo que se deduz de suas próprias palavras, não era nada exemplar. Pela lei, seus crimes mereceriam 2 mil anos de prisão.

Como se não bastasse o caráter inexplicável do acordo, fugindo da lógica de qualquer negociação, seus termos são expressamente ilegais, já que a Lei 12.850/2013 veda o benefício concedido pela Procuradoria-Geral da República aos irmãos Batista a quem liderar organização criminosa. O sr. Janot achou que os irmãos Batista não eram os líderes?

A coroar o triste episódio de impunidade, quem tinha o dever de sustar toda essa ilegal negociação também foi iludido pelos irmãos Batista. Para surpresa de uma população que ainda deposita esperanças no Poder Judiciário, o ministro do STF, Edson Fachin, homologou, sem atinar para as evidentes ilegalidades, o perdão dos 2 mil anos de prisão à dupla.

Certamente, merece outro nome essa generosidade, que tão flagrantemente fere a lei e os bons costumes.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 07.06.16

Governador Geral da República

Por Carlos Andreazza

Aécio Neves é — ainda — um homem livre. Investigado, mas livre. Senador suspenso, mas cidadão livre.

Sim. É verdade. Nunca me enganou. Não me enganava quando, posando de vítima, acusava os petistas de abuso de poder econômico em campanha eleitoral. Não me enganará agora, abusador que também foi. Mas esse é juízo pessoal. Não há, porém, qualquer condenação a Aécio Neves — sujeito livre, portanto.

Escrevo isso, essa obviedade repetida, porque alarmado com as licenças que Rodrigo Janot se concede. O procurador-geral da República — que não raro subjuga o Supremo — é hoje a única autoridade que faz o que quer neste país. Ou haverá outra forma de compreender a ousadia, golpe nas liberdades individuais, de que reforce o pedido de prisão preventiva contra Aécio usando uma foto — divulgada pelo próprio senador — em que este aparece em reunião com integrantes de seu partido?

É isto mesmo: Janot trata formalmente o encontro — entre pessoas em pleno exercício de seus direitos políticos — como evidência de ameaça à ordem pública, exemplo de “uso espúrio do poder político”. É escandaloso. Porque, ora, é possível — não serei eu a botar a mão no fogo por ele — que haja ações do senador para obstruir as investigações contra si; mas tais certamente não estarão representadas naquela imagem.

Note o leitor que, na investida de Janot, muito mais que um movimento contra Aécio Neves, vai explícita a criminalização da atividade política. É da ordem da barbárie difundir uma reunião entre políticos como conspiração contra a democracia. Mas essa generalização — que a todos iguala por baixo — serve a um projeto. A reabilitação do PT, especificamente a de Lula, só está em curso porque se enterrou a política na lama.

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Escolhido por Dilma Rousseff e reconduzido ao cargo por ela, Janot é hoje — mérito consequente de muita determinação — o homem mais poderoso do Brasil, trabalhador incansável por fazer justiça, guerreiro cujo entusiasmo por acusar poderosos é outro desde que o PT saiu do Planalto.

Está aí um patriota a quem o impeachment liberou.

Senhor da agenda que pauta — e paralisa — a vida pública no país, há semanas tem o presidente sob a ameaça de uma denúncia ao Supremo, com cujo ritmo brinca como se fosse João Gilberto com o tempo de uma canção. Nesse período, diariamente, vaza-se à imprensa que talvez a cousa seja formalizada amanhã, mas que, bem, pode ser na semana que vem. Depende. Depende — digo eu — do momento. Do momento político. De um em que Michel Temer se encontre vulnerável.

Na luta purificadora contra a desgraça da política, causa que atualiza jacobinos em janotistas, Janot se permite desviar do timing da Justiça — que é o próprio compasso do estado de direito — para aplicar a estratégia do lutador que calcula os golpes round a round, toureando o adversário, à espera da brecha por meio da qual encaixar o soco. Uma hora ela aparece. O país aguarda em suspensão. É para nocautear o vampiro, afinal. Ninguém gosta dele. Logo, aplaude-se. Até o dia em que esses métodos se voltarem contra um dos nossos. Aí, será o quê? Estado policial?

Normal também se tornou que, como num folhetim, surjam — diariamente — novas supostas revelações contra o presidente, vendidas (e compradas) como comprometedoras antes mesmo de que se possa examiná-las. Não importa. Normalizou-se entre nós que se condene — a conta-gotas, numa narrativa cuja técnica única é a sobreposição de acusações — antes de se investigar.

Nesta fase raçuda, a Procuradoria-Geral da República — que se alçou a quarto poder — atua com paixão sem precedentes, razão pela qual recorre a expedientes que os legalistas, esses ultrapassados, consideram heterodoxos. Por exemplo: admitir e veicular como prova uma gravação não periciada. Qual é o problema?

Os detalhistas prejudicam o Brasil. Essa é a verdade. Não entendem que o mandato de Janot termina em setembro e que ele é o primeiro procurador-geral da República da história que quer deixar um legado. Qual é o problema?

Qual é o problema, aliás, no acordo firmado com os donos da JBS, tornados inimputáveis, se em troca o que falam puder derrubar o presidente? É aceitável — no justiçamento — improvisar e queimar etapas do processo legal, se há uma meta maior a ser alcançada. Se para incriminar Temer, por que se apegar a formalismos? Se for possível apeá-lo da Presidência, que mal haverá na licença poética que o faz bandido protagonista do conjunto corruptivo — de matriz e condução petista — que modelou o império dos Batista? Mesmo sabendo que o campeão nacional em que se anabolizou a JBS foi bombado durante os governos do PT, que gravidade haverá no recurso seletivo ficcional que põe Lula e Dilma (e o BNDES) numa nota de rodapé dessa trama?

Não sem aviso, chegamos ao momento em que um tipo como Joesley Batista diz que Temer é líder da “maior e mais perigosa organização criminosa deste país” — e fica tudo por isso mesmo. Ai, ai...

Os desconfiados — teóricos da conspiração — atrapalham o Brasil. Essa é a verdade.

Dificilmente, contudo, atrapalharão o movimento orgânico dos que militam para que Janot se candidate a senador em 2018, pelo Estado de Minas Gerais, na vaga a ser aberta por Aécio Neves. Mas pode ser a governador. Será pelo PT? Ou disfarçaremos numa linha auxiliar? Rede?

Carlos Andreazza é editor de livros. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de 20.06.17.

O Atlas da violência


Elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base em dados de 2015 extraídos do Sistema de Informação sobre Mortalidades do Ministério da Saúde, o Atlas da Violência revela que o quadro da criminalidade no Brasil continua dramático, a ponto de o número de pessoas na faixa etária de 15 a 29 anos assassinadas, que apresentou sinais de estagnação nos primeiros anos da década de 2000, ter crescido 17,2% entre 2005 e 2015. “Os homicídios no Brasil representam mais de 10% de todos os homicídios no mundo. É uma crise civilizatória”, afirma o economista Daniel Cerqueira, um dos responsáveis pelo levantamento.

Entre 2005 e 2015, 318 mil jovens foram vítimas de homicídio. Segundo o levantamento, de cada 100 vítimas, 71 eram negras, 54 eram jovens e 73 não possuíam o ensino fundamental completo. A idade média dos jovens mortos em 2015 foi de 21 anos – na década de 1980, quando esse tipo de pesquisa começou a ser feito, ela era de 25 anos. O estudo do Ipea revela também que, enquanto a taxa de homicídios de negros cresceu 18,2%, entre 2005 e 2015, a taxa de homicídios de não negros caiu 12,2% no mesmo período. O estudo avaliou ainda grupos de negros e não negros com mesma escolaridade, faixa etária e sexo, concluindo que a possibilidade de um negro ser morto é 23% maior do que a de um branco.

Comparando os números por Estado, os dados mais alarmantes foram registrados no Rio Grande do Norte, onde a taxa de homicídios de negros subiu 331,8%, entre 2005 e 2015. Segundo o estudo, os sete Estados em que a taxa de homicídios de jovens dobrou são das Regiões Norte e Nordeste. Na comparação de cidades com mais de 100 mil habitantes, o maior índice foi registrado em Altamira (Pará) e o menor em Jaraguá do Sul, cidade catarinense que se destaca pelo alto número de adolescentes e jovens matriculados em escolas do ensino básico.

Esses dados mostram que a educação é decisiva para diminuir a exclusão social e reduzir a violência. “Relega-se à criança e ao jovem em condição de vulnerabilidade social um processo de crescimento pessoal sem a devida supervisão e orientação e uma escola de má qualidade, que não diz respeito aos interesses e valores desses indivíduos. Quando essa criança ou jovem se rebela e é expulso da escola, faltam motivos para uma concordância dele aos valores sociais vigentes e sobram incentivos em favor de uma trajetória de delinquência e crime” – diz o estudo. “Se a juventude é o futuro da nação, estamos conspirando contra o nosso ao condenar jovens a uma vida de restrições materiais e de falta de oportunidades educacionais e laborais”, afirma Cerqueira, depois de chamar a atenção para a importância da adoção de programas de prevenção social focados nessa faixa etária.

Além dos crônicos problemas do sistema educacional, os pesquisadores do Ipea atribuem o crescimento da violência à falta de compromisso da União, dos Estados e dos municípios com a formulação e implementação de uma agenda eficiente de segurança pública. “O Brasil não tem uma política de segurança pública nacional nem trata o cenário trágico dos homicídios como prioridade. Faltam políticas efetivas por parte do Estado, enquanto sobram ações midiáticas como reação a alguma comoção pontual. É preciso uma política sistêmica nacional, com a União coordenando uma política de redução de homicídios”, diz Cerqueira.

Não há novidade nessa argumentação, que é procedente e já apresentada nas edições anteriores do Atlas da Violência. Diante do cenário sombrio descrito por pesquisas como essa, é inaceitável que dirigentes, corporações e partidos que se sucedem no poder continuem relegando para segundo plano o desafio de pôr fim a uma guerra que se trava no País e que, como reconhecem os analistas do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, produz mais vítimas do que muitos conflitos contemporâneos.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 8.06.17

É isto a justiça?

O juiz federal Sérgio Moro defendeu as delações premiadas, dizendo que, sem elas, “não teria sido possível descobrir os esquemas de corrupção no Brasil”. Segundo o magistrado, “a ideia é usar um criminoso menor para chegar ao maior, para pegar os grandes”. Quanto ao fato de os delatores terem sua pena abrandada ou até ganharem a liberdade, Sérgio Moro afirmou que “é melhor você ter um esquema de corrupção descoberto e algumas pessoas punidas do que ter esse esquema de corrupção oculto para sempre”, ou seja, “é melhor ter alguém condenado do que ninguém condenado”.

Trata-se de uma visão muito peculiar de justiça. Não se pode negar que as delações premiadas foram importantes para puxar o fio da meada que levou o País a conhecer o petrolão, maior esquema de corrupção da história nacional. O problema é que, atualmente, a julgar pelo que chega ao conhecimento do público, as múltiplas acusações feitas pelo Ministério Público contra figurões do mundo político estão baseadas somente, ou principalmente, nas delações, sem que venham acompanhadas de provas materiais suficientes para uma condenação. Quando muito, há provas testemunhais, nem sempre inteiramente dignas de crédito ou confiança.

Criou-se um ambiente em que as delações parecem bastar. Se é assim, o objetivo não é fazer justiça, mas uma certa justiça. Aliás, ensinava o juiz Oliver W. Holmes que juiz não faz justiça, aplica a lei. Há tempos ficou claro que certos membros do Ministério Público têm a pretensão de purgar o mundo político daqueles que consideram nocivos. Para esse fim, basta espalhar por aí, por meio de vazamentos deliberados, que tal ou qual político foi citado nesta ou naquela delação para que o destino do delatado esteja selado, muito antes de qualquer tribunal pronunciar sua sentença.

Foi exatamente o que aconteceu no episódio envolvendo o presidente Michel Temer. Em mais um vazamento de material em poder do Ministério Público, chegou ao conhecimento dos brasileiros uma gravação feita pelo empresário Joesley Batista com Temer na qual o presidente, segundo se informou, teria avalizado a compra do silêncio do deputado cassado Eduardo Cunha. Quando a íntegra da gravação foi finalmente liberada, dias depois, constatou-se que tal exegese era, no mínimo, controvertida. Mas em todo o episódio prevaleceu a interpretação feita pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para quem o diálogo é expressão cabal de uma negociata – e isso bastou para Temer ser visto por muitos como imprestável para permanecer no cargo de presidente. Assim é a política, como bem sabem os vazadores.

Enquanto isso, o empresário Joesley Batista, por ter grampeado o presidente da República para flagrá-lo em suposto ato de corrupção e por ter informado ao Ministério Público que deu dinheiro para quase 2 mil políticos com o objetivo de suborná-los, não passará um dia sequer na cadeia nem terá de usar tornozeleira eletrônica. Poderá até morar nos Estados Unidos, para onde já levou a maior parte de seus negócios. Isso, nos termos do escandaloso acordo de delação endossado pelo sr. Janot.

Se é verdade, como diz o juiz Sérgio Moro, que o objetivo dos paladinos do Ministério Público é “pegar os grandes” criminosos, como explicar que alguém que confessa crimes dessa magnitude, como fez Joesley Batista, não será punido? A resposta é muito simples: o objetivo não é pegar os grandes criminosos, mas apenas aqueles que, na visão dos procuradores da República, devem ser alijados da vida nacional – isto é, os políticos. Ainda que nenhuma prova apareça para corroborar as acusações, o estrago já estará feito. E, no entanto, há muitos políticos honestos neste país.

Assim, as delações se tornaram instrumentos eminentemente políticos. Na patética articulação em curso para encontrar um “substituto” para Temer caso o presidente caia, a primeira qualificação exigida é que o nome do candidato não tenha sido sussurrado por nenhum delator. Só então será considerada sua capacidade de governar o País. Essa é a prova de que a agenda nacional, em meio a uma das mais graves crises da história, foi definitivamente contaminada pelo pressuposto de que o Brasil só será salvo se a classe política for desbaratada, como se fosse uma quadrilha. Isso não costuma dar boa coisa.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 01.06.17

Necessidade de revisão técnica, e não política

Por Érica Gorga

A defesa da infalibilidade do Ministério Público Federal (MPF), veementemente apresentada nos últimos dias por procuradores que se manifestaram em diversos veículos da mídia, tomou as proporções de “questão de fé”. No culto ao Ministério Público, o sr. procurador-geral da República argumenta que “não (...) corrompeu a política nacional”, que não erra, baseando-se sempre em provas e circunstâncias concretas, e que sua luta é apenas pelo futuro e prosperidade da sociedade brasileira.

Inovam os procuradores ao alegar que o Judiciário – no caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) – não poderia rever os termos da delação do acordo celebrado com os srs. Joesley e Wesley Batista, a despeito da previsão legal de revisão judicial contida no caput e no § 8.º? do artigo 4.º?da Lei 12.850/2013. Argumentam que isso desnaturaria o instituto da colaboração premiada e poria em xeque o futuro de novas delações e da própria Operação Lava Jato.

Esquivam-se do cerne do problema. A lógica do instituto da colaboração premiada baseia-se e justifica-se na busca da revelação da hierarquia da organização criminosa para que se possa desbaratá-la com a identificação de seus líderes. O Estado dedicou três excelentes editoriais à delação dos irmãos Batista (22, 23 e 24/5) e especificamente apontou que os líderes de uma organização criminosa não podem receber o benefício do não oferecimento de denúncia, pelo que rege o artigo 4.º?, § 4.º,? I, da lei – argumento já constante no editorial de 23/4.

A primeira resposta do sr. Rodrigo Janot, publicada no portal UOL em 23/5, não aprofundou argumentos jurídicos, além de menções genéricas à “gravidade de fatos”, a “crimes graves em execução” e “dezenas de documentos e informações concretas”. O editorial de 24/5, em réplica à resposta de Janot, reforçou o questionamento técnico: “Não era necessária especial sagacidade à Procuradoria para atinar que o sr. Joesley era, de fato e de direito, o líder da organização criminosa. Nos vídeos gravados pela PGR, a fala do sr. Joesley é explícita a respeito de quem tinha a voz de comando na operação, definindo o que fazer e o que não fazer”.

Ora, esse é o ponto fundamental que põe em xeque a legalidade da decisão do procurador-geral, que, em vez de atacar a principal questão técnica suscitada pelo editorial (o que, por questão de responsabilidade, lhe competiria), em contratréplica publicada na Folha de S.Paulo de 25/5 novamente não enfrentou o ponto, limitando-se a discutir argumentos secundários entremeados por frases de efeito, em nítida defesa política das ações do MPF.

Vamos aos fatos. O pré-acordo de colaboração premiada foi assinado em 7 de abril e o acordo final, em 3 de maio. Portanto, o prazo de todas as tratativas, do início ao fim, durou menos de um mês – prazo exíguo para a apuração técnica séria e cuidadosa dos fatos e das provas apresentadas e produzidas.

A cláusula 4.ª do pré-acordo de delação estabelecia que as “medidas premiais” avaliariam a quantidade, a gravidade, o período dos ilícitos praticados, os benefícios auferidos por Joesley Batista e a repercussão social e econômica dos fatos, em atendimento aos critérios listados pelo artigo 4.º, § 1.º,? da Lei 12.850 para a concessão do benefício premial. Assim, difícil é entender como, de posse de todas as informações que surgiram no período entre o pré-acordo e o acordo definitivo, envolvendo corrupção de quase 2 mil políticos, pôde Janot concluir que os srs. Joesley e Wesley não eram líderes da organização criminosa. Quem, então, o seria?

Não foi a quantidade de corrompidos por eles grande e grave o suficiente? O R$ 1,4 bilhão estimado na distribuição de recursos ilegais, incluindo propinas, não atenderiam ao critério da repercussão econômica e social do crime? O período de tempo dos delitos, que em dez anos possibilitaram o crescimento estrondoso do faturamento do grupo, seria, então, curto? Os benefícios bilionários auferidos teriam sido pequenos? Seriam os srs. Joesley e Wesley apenas vítimas do sistema de corrupção política – como sua nota de desculpas levou a crer –, sem nenhum poder para freá-la? Teriam sido coagidos a praticar crimes?

No caso do petrolão, a identificação dos líderes da organização criminosa é obscura porque os ilícitos foram perpetrados via sociedade de economia mista (Petrobrás), cujo controle é exercido pela pessoa jurídica da União Federal. Logo, questiona-se quem seriam os líderes políticos que controlavam a empresa e a orientavam para a realização dos crimes: Lula, Dilma ou os ministros da Fazenda do governo do PT? Eis a questão controvertida em discussão nos processos criminais em Curitiba.

Mas no caso da JBS tal problema não se coloca. Trata-se de sociedade privada, com poder de controle acionário bem definido nas mãos das pessoas físicas dos irmãos Batista. Os presidentes do conselho de administração e da diretoria da empresa eram os próprios Joesley e Wesley – este último continuando no comando do grupo empresarial. Tivessem Wesley e Joesley dito “não”, os crimes não teriam sido cometidos. Não reconhecer isso é negar a estrutura de controle do grupo, regrada pelo direito privado brasileiro (Lei 6.404/76, artigo 116). O controle das decisões e dos atos criminosos no caso da JBS simplesmente não se encontra na esfera política, tal como ocorre na Petrobrás.

As justificativas políticas apresentadas por Janot levam a crer que nada seria revelado à sociedade se ele não aceitasse a condição da “imunidade criminal total” para os irmãos Batista. Tal argumento é retórico e não supre o requisito legal da necessidade de análise e fundamentação sobre o porquê de o colaborador não se configurar como líder da organização criminosa, que é fundamental para a aplicação do benefício maior da ausência da denúncia criminal. É o que se espera que o STF analise de maneira técnica, e não política.

Érica Gorga é Doutora em direito (USP), professora no MPGC-FGV, lecionou nas universidades do Texas, Cornell e Vanderbilt e foi pesquisadora em Stanford e Yale. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 30.05.17.

Poder e responsabilidade

A Constituição de 1988 deu a cara que o Ministério Público (MP) tem hoje. Alçou a instituição à condição semelhante de poder independente e a inseriu no dia a dia da vida dos brasileiros. Até então, o órgão padecia de uma espécie de conflito existencial, ora atuando como patrono dos interesses do Estado, ora como fiscal dos atos de agentes deste mesmo Estado, de quem, em última análise, dependia para funcionar. A nova Carta Magna reconfigurou o papel do MP e deu origem a uma instituição totalmente autônoma - funcional e administrativamente - e independente de quaisquer controles dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

O Ministério Público foi uma instituição que saiu muito fortalecida da Assembleia Nacional Constituinte. À independência administrativa, funcional e financeira, somou-se a significativa ampliação da esfera de atuação do órgão - especialmente com o instituto da Ação Civil Pública -, dando-lhe projeção, protagonismo e, sobretudo, poder. Tanto é assim que é justamente o Ministério Público que abre o Capítulo IV da chamada “Constituição Cidadã”, o que trata das funções essenciais à Justiça. Sem dúvida, fortalecer o Ministério Público representou um enorme ganho para a sociedade brasileira, que saíra havia pouco de uma ditadura que a privou do exercício dos mais elementares direitos.

Entretanto, ao significativo ganho de poder do Ministério Público na vida institucional do País não houve correspondência na criação de mecanismos de controle que pudessem conter eventuais excessos e, nos casos mais graves, abusos dos membros daquela instituição. O controle interno - e único - dos atos de promotores e procuradores de justiça é exercido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), criado em dezembro de 2004 pela Emenda Constitucional n.º 45.

O colegiado é composto pelo procurador-geral da República, que o preside, e mais 13 conselheiros, que são indicados pelas instituições de origem às quais pertencem - Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar, além de advogados - e devem ser aprovados pelo presidente da República e pelo Senado. Em suma, promotores e procuradores têm as suas condutas controlados fundamentalmente por seus pares. Trata-se de uma excrescência da ordem constitucional brasileira que precisará ser enfrentada com coragem numa necessária revisão da Carta.

Em um regime que se propõe democrático, é essencial o controle externo de uma instituição republicana por outra - o chamado sistema de pesos e contrapesos. Ora, se este balanço institucional vigora plenamente para os Três Poderes da República, por que não haveria de valer para uma instituição que, repita-se, foi alçada à categoria de poder independente pela ação de seus próprios membros? Lembre-se que Executivo e Legislativo são ainda mais controlados, dada a natureza eletiva dos cargos que os compõem.

O Ministério Público tem prestado um grande serviço ao País. A Operação Lava Jato tem produzido bons resultados, tanto do ponto de vista jurídico como do ponto de vista da opinião pública, que passou a ver nela as razões para restaurar a confiança no primado elementar da igualdade de todos os cidadãos perante a lei. De pouco valerá este legado, no entanto, se, tal como cruzados, promotores públicos e procuradores de justiça insistirem em assumir o papel de purificadores da vida institucional do País, promovendo a explosão da legítima atividade político-partidária, usando a justa indignação da sociedade como combustível para levar a cabo seus próprios desígnios corporativos.

Não são apenas a Presidência da República, o Congresso Nacional, a classe política em geral que estão sob escrutínio da sociedade, como é natural num regime democrático. O Ministério Público também. Os inegáveis avanços da Operação Lava Jato lhe parecem um salvo-conduto para agir sem questionamentos. Não são.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 29.05.17.

Os desafios da lista de Fachin

A revelação da lista dos inquéritos abertos, no âmbito da Operação Lava Jato, pelo ministro Edson Fachin no Supremo Tribunal Federal (STF) é um verdadeiro cataclismo para o mundo político. Vê-se ali toda a cúpula da política nacional citada nas delações dos executivos da empreiteira Odebrecht. Revelada pelo Estado na terça-feira passada, a chamada lista de Fachin inclui 8 ministros de Estado, 3 governadores, 24 senadores e 39 deputados. São, no total, 98 investigados com foro privilegiado. Além disso, outros pedidos de investigação, como os referentes aos ex-presidentes Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, foram encaminhados às instâncias inferiores, já que os envolvidos não têm mais foro privilegiado. Na primeira instância, são 201 os investigados.

Se a extensão da lista de Fachin impressiona, não se pode perder de vista o que ela de fato é. Não é uma lista de condenação nem tampouco de acusação. São autorizações para investigar políticos, a partir de informações obtidas por meio das delações dos executivos da Odebrecht. Relembrar essa realidade é importante nos tempos atuais, em que o clima de indignação contra a corrupção parece transformar a mera citação de um nome num documento de investigação em prova cabal de culpa penal. São coisas distintas, e, numa democracia, é essencial que cada um preserve a capacidade de diferenciá-las.

O sereno reconhecimento da exata natureza da lista não diminui, no entanto, a sua gravidade. É estarrecedor constatar como pairam acusações sobre toda a cúpula política do País. É necessário, portanto, que o STF – em especial, o ministro Edson Fachin, mas não apenas ele – dê às investigações o especial tratamento que merecem. Seria de enorme crueldade com o País admitir a possibilidade de que esses inquéritos se arrastem no tempo. Seria condenar o País a viver uma crise prolongada desnecessariamente, com sérias consequências para a qualidade de nossa democracia e de nossa economia. Ambas precisam, agora, de revigorantes e não de mais sangria. Cabe portanto ao Judiciário imprimir toda a diligência possível nas investigações, esclarecendo o quanto antes à sociedade quem é culpado e quem é inocente.

Ciente de não se tratar de um trabalho isolado da Suprema Corte, cabe ao relator, ministro Edson Fachin, exigir do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) a diligência requerida pelo caso. Não se pode condenar o País a ficar em compasso de indefinida espera, com a desculpa de que o STF tem outros importantes processos a resolver. A alta posição dos investigados na República demonstra, com folga, a necessidade de uma velocidade especial no andamento desses inquéritos.

Além do evidente interesse público presente no caso, a projeção dos envolvidos na vida nacional exige um rápido desfecho das investigações. Além disso, é incompatível com um Estado Democrático de Direito deixar expostas em praça pública, indefinidamente, acusações penais contra quem quer que seja. Como relator, o ministro Edson Fachin é o guardião constitucional da reputação de toda essa gente, que agora está exposta.

Se a lista de Fachin impõe um desafio ao Judiciário, ao exigir-lhe uma excepcional diligência, ela também esporeia o Executivo e o Legislativo. Cabe a todos, também aos investigados, continuarem exercendo com denodo suas funções públicas.

Há uma grave crise econômica, social e moral a ser enfrentada. Parte importante desse empenho se concretiza no andamento das reformas propostas pelo presidente Michel Temer, com especial destaque para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/2016, que altera as regras da aposentadoria.

O País sofrerá um castigo imerecido se as investigações decorrentes das delações da Odebrecht paralisarem ou atrasarem as reformas. A limpeza da política deve facilitar a resolução dos problemas nacionais, e não complicá-la ou impedi-la. Simplesmente é irreal achar que a vida do País e das pessoas pode ficar em suspenso até que o STF conclua suas investigações.

No momento, este é o grande desafio nacional, que envolve diretamente os Três Poderes. Sem qualquer atraso, é preciso combater a corrupção, investigando com diligência e isenção, e, também sem atraso, é preciso devolver ao País as condições para seu desenvolvimento econômico e social.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 13 de abril de 2017.

A crise de representatividade

Há quase um ano, a Câmara dos Deputados, ao acolher o pedido de impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, expôs ao País a baixa qualidade da atual representação parlamentar. Não pelo resultado – ansiado pela maioria dos brasileiros –, mas pelo tom pitoresco, por vezes humorístico, adotado por cada parlamentar ao anunciar seu voto.

Durante quase dez horas de sessão, o Brasil assistiu aos breves pronunciamentos de 504 dos 513 deputados, tempo suficiente para patentear a distância entre eleitos e eleitores, evidenciando o que se convencionou chamar de “crise de representatividade”. A mediocridade dos parlamentares humilhou a Nação.

A chaga da corrupção exposta em quase todas as esferas do poder público – contrária à natureza íntegra que caracteriza a imensa maioria do povo brasileiro – também contribui decisivamente para este descolamento. A cada novo escândalo que vem à luz é como se os brasileiros honestos sentissem as fraturas que, pouco a pouco, fragilizam as fundações de nossa democracia.

Trata-se de uma grave constatação. Já no preâmbulo, a Constituição consagra o Estado Democrático como diretriz basilar de nossa organização política. Imprescindível, também, é o papel exercido pelo Congresso para que os direitos fundamentais não se submetam ao arbítrio do Estado forte. É no Congresso que o povo se faz representar e exerce a sua soberania, ao lado da representação dos Estados.

É paradoxal, portanto, que a expressão “eles não me representam”, referindo-se aos parlamentares, venha sendo constantemente utilizada nos protestos populares. A contestação soa ainda mais descabida posto que nenhum parlamentar recorreu à força para ocupar o seu espaço no Congresso. Ao contrário, ali chegou pelo voto, ou seja, pela vontade do povo. É desta incongruência que trata Jairo Nicolau, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisando os dilemas da representação em entrevista concedida ao Estado.

Em seus estudos, Nicolau atribui o “enorme abismo” em que caiu a atividade parlamentar, quando comparada à de 15 ou 20 anos atrás, a dois fatores: os descaminhos do voto – situações nas quais “a intenção original do eleitor, diante da urna, nada tem a ver com o resultado concreto de sua escolha” – e a pouca ou nenhuma atração que a política exerce hoje sobre as elites – intelectual, jurídica, empresarial e artística –, desestimuladas pela sucessão de escândalos que marcaram a atividade na história recente.

Entretanto, o problema pode ter raízes ainda mais profundas. Um terremoto político que ficou conhecido como “Pacote de Abril” propaga ondas capazes de distorcer a representação congressual mesmo 40 anos depois dos atos assinados pelo então presidente Ernesto Geisel.

Sob o pretexto de que o MDB, partido de oposição ao governo, dificultava a aprovação de uma emenda que mantinha indiretas as eleições para os governos estaduais de 1978 – à luz da Constituição em vigor, o pleito deveria se dar por voto direto –, Geisel decretou o fechamento do Congresso e, nesse período, editou 14 emendas à Constituição, à qual acrescentou 3 artigos, e baixou 6 decretos-leis, medidas que, em essência, visavam à manutenção da maioria governista no Legislativo.

Além do intento original, Geisel determinou a ampliação das bancadas de representação dos Estados em que a Arena – partido de sustentação do governo – obtinha bons resultados eleitorais, isto é, no Norte e no Nordeste. Instituiu-se, assim, um modelo de representação que distorceu a realidade política e econômica dos entes federativos e produziu resultados nefastos à boa organização do Estado brasileiro que repercutem até hoje.

Diante deste quadro, agravado pela crise, principalmente a crise moral que corrói a vida política nacional, urge fazer uma reforma política que corrija as distorções históricas e incentive a renovação dos quadros políticos, o que não será alcançado por meio de propostas esdrúxulas como a do voto em lista fechada. Assim agindo, o Legislativo terá oportunidade de reconciliar o povo com sua Casa de representação.

(Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 02.04.17)

Só um expurgo político salvará o País

Por Ricardo Noblat

Governo, Congresso e partidos respiraram aliviados com o fracasso das manifestações marcadas para ontem em defesa da Lava Jato e contra a anistia ao caixa dois, o voto em lista fechada e a anulação de delações que possam comprometer suspeitos de corrupção.

Governo refém do Congresso depende dele para aprovar reformas. Congresso refém de delatores não merece a confiança de ninguém. Vida que segue.

Em duas ocasiões, na semana passada, talvez por descuido, o PT tirou a máscara ao tratar do uso de dinheiro sujo nas eleições.

Relator da reforma política na Câmara, o deputado Vicente Cândido (SP) defendeu que o Congresso enfrente o desgaste de discutir anistia aos alvos da Lava Jato como forma de "distensionar o país".

Em seu site, o partido postou um estudo que justifica o uso do caixa dois.

“O que é melhor para a sociedade nesse momento? Até aprovar uma anistia, seja criminal, financeira, tudo isso é possível, não é novidade no mundo", justificou Cândido.

O estudo da seção mineira da corrente “Construindo um Novo Brasil”, majoritária dentro do PT, pretende “contribuir para o exercício reflexivo” às vésperas do 6º congresso do partido, a ser realizado até junho próximo.

“As eleições brasileiras foram feitas mediante contribuições não contabilizadas. O PT, provavelmente, se utilizou das mesmas regras que os demais usavam. (...) Como o PT poderia disputar eleições sem recursos enquanto todos os partidos neoliberais o tinham de sobra? Seria impossível disputar com chances de vitória sem os instrumentos necessários”, sustenta o estudo.

Nem Cândido nem o estudo se detiveram sobre a verdade universal de que não existe Estado de Direito sem justiça e sem eleições livres e democráticas. E que eleições corrompidas por qualquer meio, sobretudo pelo abuso do poder econômico, podem ser tudo menos democráticas, livres e justas.

Inexiste o bom e o mau ladrão a não ser na cena da morte de Jesus. Mesmo assim por excesso de bondade do Nazareno.

Em 1994, a poucos meses de disputar a segunda eleição que perderia, Lula avisou de público: "Em princípio, nós não aceitaremos dinheiro da Odebrecht".

Por que a princípio? E por que da Odebrecht? Porque a construtora, na época, já estava envolvida em escândalos e Lula queria marcar distância dela. Em 2002, Lula chamou José Dirceu é disse: “Só disputo outra vez se for para ganhar”.

Ganhou - com a ajuda da Odebrecht. O “partido limpo” beijou a cruz e chafurdou na lama como os demais partidos. Se os neoliberais podiam chafurdar por que o partido dos trabalhadores não?

Tudo por uma boa causa, a de melhorar a vida do povo. Melhorou – e também a vida dos que se diziam destinados pela Providência a tirar o povo da miséria, do analfabetismo e das doenças.

O “Estado Odebrecht” foi uma invenção do PT para permanecer no governo por no mínimo 20 anos. Com Lula durante os oito primeiros (deu certo), com Dilma durante quatro (deu certo) e com Lula por mais oito.

Aí Dilma estragou tudo. Quis ficar por mais quatro. E afundou o país na maior recessão econômica de sua história dos anos 30 do século passado para cá. O resto se sabe.

O que não se sabia com detalhes se torna conhecido com as delações de executivos da Odebrecht. É de arrepiar.

Fora da Lava Jato não haverá salvação. Ou melhor: só haverá se promovermos em 2018 um expurgo político extraordinário que limpe governos, Congresso e assembleias legislativas.

Ricardo Noblat é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente no blog do Noblat, em O Globo, RJ, edição de 27.03.17

A falência da responsabilidade

A gastança, o desmando e a irresponsabilidade são direitos de todo governo estadual, segundo uma das leis mais veneradas no mundo político brasileiro. Por essa mesma lei, nunca escrita, o Tesouro Nacional é obrigado a socorrer, sem contrapartidas, todo Estado levado à falência por seus governantes.

Se as autoridades do Estado falido quiserem tomar medidas para fortalecer e disciplinar suas finanças, poderão fazê-lo, observadas pelo menos duas condições: a concordância do funcionalismo e a aprovação do plano pela Assembleia Legislativa. Esse funcionalismo pode ter sido mimoseado, durante anos, com salários aumentados de forma insustentável pela arrecadação estadual. Não importa.

Os cidadãos de outras unidades da Federação serão obrigados a garantir, por meio do pagamento de impostos federais, a continuidade do pagamento àqueles servidores.

Esta lei generosa de apoio à irresponsabilidade, ao desperdício de dinheiro público e à gestão inconsequente da folha de pessoal continua inspirando muitos congressistas. Inspirou-os, com certeza, quando deformaram e amaciaram, há meses, o primeiro projeto de lei de ajuda aos Estados em crise financeira.

Continuará a guiá-los, provavelmente, quando estiver em tramitação o novo projeto proposto pelo Executivo para possibilitar e regular o socorro aos Tesouros estaduais devastados pela incompetência e pela imprudência, associadas, em algumas circunstâncias, a fortes doses de corrupção.

Derrotado na primeira tentativa, o governo agora propõe uma espécie de lei de falência para Estados, com regras para ingresso no programa, benefícios amplos e uma lista de contrapartidas para recuperação e fortalecimento das finanças públicas. Os Estados poderão ficar três anos sem pagar sua dívida ao Tesouro Nacional, com possibilidade de prorrogação do acordo. Os governos poderão negociar pagamentos a fornecedores por meio de leilões e, além disso, pedir aos bancos credores a reestruturação de seus débitos. Mas terão de cumprir várias condições, como o aumento da contribuição previdenciária de servidores, o corte de incentivos fiscais e a proibição de contratações e de aumentos salariais.

Quando o governo estadual pedir ingresso nos programas, a Assembleia Legislativa já deverá ter aprovado as contrapartidas necessárias, incluída a autorização, se for o caso, da venda de empresas controladas pelo Estado. No Rio de Janeiro já foi aprovada a privatização da Cedae, a Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro.

A necessidade das contrapartidas é evidente, até porque a crise dos Estados decorreu, de modo geral, do afrouxamento, com as bênçãos do governo petista, das condições definidas na Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada no ano 2000. Mas muitos congressistas parecem continuar impermeáveis à noção de manejo responsável – e, se possível, competente – de todo tipo de recurso disponível para os governantes. A nova lei, segundo alguns, deveria apenas autorizar o acordo entre a União e os Estados falidos, ficando as contrapartidas para negociação entre os governos da União e dos Estados.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem sido um dos defensores dessa ideia. Outros parlamentares continuam falando contra a definição geral de contrapartidas. Segundo eles, os problemas financeiros e soluções possíveis podem variar de Estado para Estado. Há até uma aparência de sensatez neste argumento. Mas, de toda forma, negociações caso a caso serão muito mais complicadas, com maior custo político para o Executivo federal, maior risco de acordos frouxos e, portanto, novo estímulo ao desmando e à irresponsabilidade.

Governadores e muitos parlamentares estão dispostos a valorizar a ideia de Federação quando se trata de defender a amplitude de escolhas políticas e administrativas, mas atribuem ao poder central a obrigação de socorrê-los quando entram no atoleiro. Talvez se devesse, para variar, deixar Estados – e municípios, é claro – afundar e ajeitar-se por seus meios na hora de pagar a conta da irresponsabilidade. Ou isso ou algo tão sério quanto o novo projeto do governo federal.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 22.02.17.

Silêncio cúmplice

Aproveitando o anseio da população pelo fim da impunidade, têm surgido com alguma frequência manifestações a favor de um Direito autoritário, próprio das tiranias. Ainda que seja apresentado em cores novas, trata-se do velho sofisma de prometer, ao preço das liberdades e garantias individuais, um Estado perfeitamente eficiente no combate ao crime.

Não é justificável a defesa dessas ideias, mas é compreensível que, numa sociedade democrática e plural, haja quem considere conveniente restringir as liberdades pessoais em troca de uma eventual redução da impunidade. Surpreende, no entanto, a ausência de vozes a denunciar essas ideias equivocadas, mesmo quando elas são defendidas por gente em posição de destaque na vida pública.

Não é segredo para ninguém, por exemplo, que vários membros do Ministério Público Federal (MPF) propuseram e defenderam as tais Dez Medidas Anticorrupção, apesar dos explícitos abusos contidos em seu bojo, como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e o fim, na prática, do prazo de prescrição.

Também não é segredo para ninguém que procuradores atuantes na força-tarefa da Lava Jato – entre eles o seu coordenador, o procurador da República Deltan Dallagnol – defendam a possibilidade de condenar uma pessoa mesmo que paire alguma dúvida se de fato ela cometeu o crime do qual é acusada.

São preocupantes tais ideias, mas ainda mais preocupante é a falta de reação diante delas. Não se ouve, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitir um claro posicionamento sobre tais disparates, como também não se ouvem as associações da magistratura, tão atuantes quando se trata de defender privilégios da classe, protegendo o bom Direito. Atuando assim, tais entidades correm o risco de serem vistas como corporativistas e nada mais – seriamente empenhadas nos interesses de seus membros e desleixadas quando é o interesse público que está em jogo.

Caso ainda mais grave é o do Ministério Público Federal, que, diante da notória atuação de alguns de seus membros em defesa desses abusos, não informa a população de que tais ideias não representam posição da instituição, sendo mera opinião pessoal de alguns procuradores. Fica parecendo que a instituição comunga com estripulias incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.

Os evidentes méritos da Operação Lava Jato não são garantia de infalibilidade das pessoas que nela atuam. Justamente por isso são graves as omissões de quem pode e deve apontar eventuais equívocos, já que tal silêncio fragiliza a operação que até agora produziu muitos resultados positivos e ainda precisa produzir outros tantos. Seria lamentável pôr tudo isso em risco por simples medo de serem mal interpretados, como se estivessem a defender a impunidade.

O apoio da população à Lava Jato deve estimular uma atuação diligente de quem pode e deve corrigir eventuais desequilíbrios. Uma omissão nesse campo, por medo de setores radicais da opinião pública, significaria incorrer no mesmo equívoco que a Lava Jato vem combater – a prevalência do interesse pessoal frente à lei e ao interesse público.

A força da Lava Jato está no cumprimento da lei. Quando alguns de seus responsáveis, empenhados em combater o crime, ultrapassam eventualmente os limites da lei, devem ser alertados. Com inúmeros exemplos, a história mostra que a omissão das instituições na defesa do bom Direito tem um alto custo social e institucional, servindo muitas vezes de pavimentação para caminhos não democráticos.

Prevalece, por exemplo, a tendência, a pretexto de combater a corrupção, de condenar todas as doações empresariais feitas a partidos e políticos, como se todas fossem igualmente ilícitas. Como se sabe, doação empresarial não é coisa boa para uma democracia, como bem reconheceu o Supremo Tribunal Federal (STF), considerando-a incompatível com a Constituição. No entanto, por um bom tempo, elas foram legais. Tratar todas como se fossem propina é um despautério jurídico, com graves efeitos políticos e sociais. Se quem pode e deve falar se cala, dá assim sua vênia. Pode até ficar bem com certos colegas no momento, mas corre o sério risco de não ser perdoado pela história.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 09.02.17.

O tempo da lava jato no STF

A principal responsabilidade do novo relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) é tirar a impressão, já um tanto saliente, de que a Suprema Corte é o sepulcro das ações que envolvem acusados com prerrogativa de foro. Ainda que dura, essa apreciação encontra sólidos fundamentos na realidade. Ao longo dos últimos três anos, foram muitas as evidências de que existe um descompasso entre o ritmo, que diríamos normal, dos processos penais na primeira instância – especialmente em Curitiba, mas não apenas lá – e o passo lento das ações em Brasília.

Até dezembro do ano passado, 120 condenações decorrentes da Lava Jato haviam sido proferidas na primeira instância. Já o STF ainda não deu nenhuma sentença no âmbito da operação. Não há sequer um processo concluso para julgamento. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), até o final do ano passado, o que havia da Lava Jato na Suprema Corte eram 15 denúncias, 18 inquéritos abertos e 3 ações penais, com 48 acusados. Na primeira instância, 259 pessoas já foram acusadas.

Diante das críticas à disparidade do ritmo processual entre a primeira instância e o STF, mais de uma vez o ministro Teori Zavascki afirmou que a culpa pelo atraso da Lava Jato na Suprema Corte não era dos ministros, e sim da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Para corroborar sua afirmação, o ministro apresentou, no fim de 2016, um balanço da Lava Jato sob sua relatoria.

Fez notar, por exemplo, que, dos 74 inquéritos da Lava Jato que haviam chegado até ele, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ainda não havia apresentado denúncia em 58 deles.
Seja qual for a parcela de responsabilidade de cada órgão pela lentidão dos processos penais no STF, o fato é que não têm andado em bom ritmo – e isso é preciso mudar com urgência. O descompasso entre a Suprema Corte e as instâncias inferiores vem provocando uma esquisita situação. Na primeira instância, os juízes tomam decisões às vezes inusitadamente enérgicas, enquanto o STF parece nada fazer. Com isso, a opinião pública tem aprovado, de forma cada vez mais contundente, os passos dados pelos juízes da primeira instância, mesmo que sejam juridicamente duvidosos.

Tal foi o caso da recente prisão preventiva de Eike Batista. O magistrado não apontou um fato concreto para justificar a medida, considerando suficiente afirmar que o empresário estava obstruindo a Justiça. Certamente, obstruir o trabalho da Justiça é motivo para decretar a prisão preventiva, mas é preciso mostrar como essa obstrução se deu de fato. A omissão, no entanto, não foi empecilho para o imediato aplauso da opinião pública à prisão.

Não é exagero dizer que o ritmo lento do STF vem contribuindo para esse desequilíbrio da opinião pública na avaliação das decisões da primeira instância. Logicamente, pelo simples fato de serem céleres, tais decisões não são necessariamente corretas, e é necessário que o Poder Judiciário tenha condições de corrigir, com presteza, eventuais equívocos.

O problema é que, com sua lentidão no julgamento dos processos penais – lentidão que não é exclusividade da Lava Jato, como o senador Renan Calheiros pode bem testemunhar, respondendo que está a procedimento quase a completar uma década de existência –, o STF perde autoridade perante a sociedade para corrigir os eventuais excessos das instâncias inferiores.

A situação agrava-se pelo fato de que na Suprema Corte não são julgadas penalmente as pessoas comuns, e sim as mais altas autoridades – os poderosos da República. Assim, o ritmo lento do STF só faz alimentar a ideia de que o foro privilegiado é instrumento de impunidade. Não é preciso muito para que essa impressão se torne tolerância com abusos judiciais que possam ocorrer na primeira instância, como se essa fosse a resposta adequada à aparente passividade da Corte superior.

São graves, como se vê, os efeitos sociais e institucionais de uma atuação lenta do STF. Cabe ao novo relator da Lava Jato no STF corrigir com diligência esse perigoso quadro. Urge que os famosos “tempos da Justiça” – infame desculpa para a morosidade judicial – se transformem em tempos de lei, e não em tempos de impunidade. Especialmente na Suprema Corte.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 02.02.17.

Sobre a segurança pública e a segurança nacional (2)

Por Alberto Cardoso

Assim encerrei a primeira parte deste artigo (publicada em 17 de janeiro): “Essa visão (estratégica do Estado) tem de arrostar a pujança crescente e hoje próxima de incontível do mercado ilegal (de drogas), e o papel preponderante que o tráfico antes tendia a assumir e hoje demonstra ter assumido no ciclo causal do empoderamento das quadrilhas.

Os estrategistas governamentais devem ter em mente que a ilegalidade do tráfico está eivada de tabus, ideologias e interesses, que precisam ser expostos e permanentemente questionados”.

É preciso também estimar cenários de segurança pública sob o enfoque da probabilidade de decréscimo do poder das organizações criminosas com o tráfico descriminalizado em médio ou longo prazo – reitero: após se constatar o êxito de uma estratégia de prevenção primária do uso de drogas competente, séria, pertinaz e prioritária.

Caso se decida abrir o contraditório, que não seja a partir de posições estratificadas em décadas de aceitação da criminalização por ideologia, conveniência ou temor da quebra de um paradigma que tem sido fundamento de políticas preponderantemente repressivas e inócuas. Devem-se considerar êxitos e fracassos de experiências alheias, mas que não sejam o argumento, pois as circunstâncias nacionais diferem. Inclusive porque, no nosso caso, deve prevalecer a busca de solução para derrubar, por anemia, os Estados paralelos criminosos robustecidos pela ilegalidade do tráfico.

Não se devem esperar resultados em curto prazo. Mas é preferível ter dois objetivos secundários (educação preventiva com a mesma prioridade da repressão e descriminalização no médio ou longo prazo) e uma meta principal (enfraquecimento das organizações criminosas, com contenção ou redução da criminalidade) a ter apenas a mesma meta principal, orando para arquétipos prioritariamente repressivos ineficientes, já tentados, nos levarem a ela.

Em síntese, a atualização do pensamento oficial tem de passar pela compreensão de que:

1) A crise permanente da segurança pública deixou de ser conjuntural, tornou-se estrutural e nos impulsiona em marcha batida para a descrença popular nas instituições;
2) devem-se reavaliar as causas da consolidação da crise, em busca de fatores ainda não discutidos;
3) o tráfico ilegal de drogas, alimentado pelo consumo, e as disputas de organizações criminosas por esse mercado ilegal estão na raiz da quase totalidade dos crimes com violência;
4) as tentativas de enfrentamento pelo Estado continuam seguindo pelos mesmos caminhos curtos, várias vezes percorridos ineficientemente;
5) as conexões internacionais das organizações criminosas com vizinhos produtores de drogas e repassadores de armas têm feito tábula rasa do nosso controle sobre o território abrangido pelas rotas que utilizam;
6) as consequências dessa grave crise estrutural colocam a segurança pública na seara da segurança nacional.

Explico a última assertiva, alertando que incluirei opinião pessoal em vários pontos – o que retira do texto qualquer caráter doutrinário oficial.

Segurança nacional é conceito muito mais abrangente do que a defesa militar da Nação. É condição básica, decorrente da capacidade do País para garantir a soberania, a integridade da Nação, do território, do mar territorial e do espaço aéreo; a paz social; e os interesses e objetivos nacionais. Mas não só isso.

O País tem de ser capaz também de gerar nos cidadãos a convicção de que o Estado tem poder e vontade para cumprir essas atribuições e para lhes assegurar o exercício dos direitos e deveres constitucionais, onde se inclui o preceito constitucional da segurança.

Verifica-se que, além da defesa do patrimônio da Nação, segurança nacional tem que ver com a percepção das pessoas de que têm liberdade para exercer a cidadania.

Tudo isso requer políticas de Estado que não fiquem ao sabor de achismos ou de interesses de pessoas e grupos. Por exemplo, a sugestão de criação de um Ministério da Segurança Pública, panaceia recorrente nos momentos de afloramento das consequências da distorção estrutural que vimos analisando.

O Ministério da Justiça tem órgãos suficientes para executar a parte federal no eixo repressivo. Deve, sim, perder elementos importantes, mas desviadores do foco em segurança pública. É importante a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – eixo preventivo federal – voltar ao seu status supraministerial, na Presidência da República.

Tais políticas podem ser reunidas em três grandes grupos:

1) Segurança (Relações Exteriores, Defesa Nacional, Segurança e Ordem Públicas);
2) Desenvolvimento Nacional (Planejamento e Orçamentação; Infraestrutura; Integração Nacional; Ciência, Tecnologia e Inovação);
3) Progresso Social (Moradia e Saneamento; Saúde; Educação e Cultura, com atenção especial aos valores e ao enraizamento da democracia; Alimentação, Trabalho e Renda).

Constata-se que o tema básico deste artigo não pode ficar solto na ação governamental e que recebe influência de (e influi sobre) diversos outros. Daí ter de ser compreendido no âmbito do sistema da Segurança Nacional, que abarca setores intrinsecamente relacionados com segurança pública e outros com especificidades próprias, mas influentes sobre ela.

O nível político do Estado tem de gerir essas políticas setoriais sistemicamente, adicionando ao foco institucional inerente a cada área a visão de segurança pública. Fazendo-as interagir nos pontos comuns e criar sinergia que potencialize a capacidade do País para produzir desenvolvimento, progresso social e a já tão distante condição constitucional de direito à segurança

Alberto Cardoso é General de Exército reformado, foi ministro-chefe do gabinete de segurança institucional da Presidência da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 25.01.17.

Quem Pode Julgar o Juiz?

Por Nelson Motta

Quando se fala desse assunto deve-se pesar muito bem cada palavra. Basta algum juiz de qualquer lugar achar que há algo de errado, ofensivo ou calunioso nelas, e você pode ser processado. E pior, o processo vai ser julgado por um colega do ofendido. Com raras exceções, jornalistas processados por supostas ofensas a juízes são sempre condenados por seus pares.

Sim, a maioria absoluta dos juízes é de homens e mulheres de bem, mas eu deveria consultar meu advogado antes de dizer isto: o corporativismo do Judiciário no Brasil desequilibra um dos pilares que sustentam o Estado democrático de direito. Basta ver os salários, privilégios e imunidades.

A brava ministra faxineira-chefe Eliana Calmon está sob fogo cerrado da corporação por defender os poderes constitucionais do Conselho Nacional de Justiça e chamar alguns juízes de “bandidos de toga”. Embora não exista melhor definição para Lalau e outros togados que aviltam a classe.

Como um sindicato de juízes, a Ajufe está indignada porque a ministra Eliana é contra os dois meses de férias que a categoria tem por ano, quando o resto dos brasileiros tem só um (menos os parlamentares, que têm quatro). Se os juízes ficam muito estressados e precisam de dois meses “para descansar a mente, ler e estudar”, de quantos meses deveriam ser as férias dos médicos? E das enfermeiras? E aí quem cuidaria das doenças dos juízes?

“Será que a ministra diz isso para agradar a imprensa, falada e escrita? Para agradar o povão?”, questiona a Ajufe. Como não é candidata a nada, as posições da ministra têm o apoio da imprensa e do público porque são éticas, republicanas e democráticas. Porque o povão, e a elite, julgam que são justas.

Meu avô foi ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado pelo presidente JK em 1958, julgou durante 15 anos, viveu e morreu modestamente, entre pilhas de processos. Suas únicas regalias eram o apartamento funcional em Brasília e o carro oficial. Não sei se foi melhor ou pior juiz por isto, mas sempre foi para mim um exemplo da austeridade e da autoridade que se espera dos que decidem vidas e destinos.

NELSON MOTTA é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, de 30.12.11. (O avô ao qual se refere é o Professor Cândido Motta Filho, que foi, aliás, um dos mais respeitados Ministros do Supremo Tribunal Federal, (1956-67).

A República Corporativa

Por Gilmar Mendes

Os pensadores que se propuseram a ensaiar explicações abrangentes sobre a formação de nosso país, de um modo ou de outro, afirmaram as características da colonização portuguesa e o ranço patrimonialista que dela herdamos.

Em seu ensaio sobre o segundo escalão do poder no Império, Antonio Cândido afirma que uma das formas de ascensão social no Brasil estava na nomeação para cargo público, o que aproximava o funcionário dos donos do poder, dava-lhe amplo acesso à burocracia, propiciando-lhe, assim, proteção institucional de direitos, interesses e privilégios.

Claro que a crítica se centrava na nomeação de apaniguados, muitas vezes não habilitados para o exercício das funções públicas. A nova ordem constitucional procurou, por meio da regra do concurso público, prestigiar o mérito para a investidura no serviço.

Ocorre que isso acabou por alimentar a capacidade organizacional das categorias de servidores, situação institucional facilitadora da conquista de direitos e privilégios, muitas vezes em detrimento da maioria da sociedade civil, a qual não conta com o mesmo nível de organização.

Infelizmente, a Constituição de 1988 não encerrou esse ciclo. Conta-se que Sepúlveda Pertence, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, costumava dizer que o constituinte foi tão generoso com o Ministério Público que o órgão deveria ver o Brasil com os olhos de uma grande nação amiga.

Na prática atual, no entanto, os altos salários, muitas vezes inaceitavelmente acima do teto constitucional, e os excessos corporativistas dos membros do Parquet e do Judiciário nos levam a enxergar a presença de um Estado dentro do Estado, obnubilando, por um lado, a divisão de tarefas entre as instituições, que deveria viabilizar o adequado funcionamento do governo, e escancarando, por outro, o crescente corporativismo que se revela a nova roupa do nosso velho patrimonialismo.

Em contexto de abalo das lideranças políticas e de irresponsabilidade fiscal, esse cenário nos levou a vivenciar fenômenos como liminares judiciais para concessão de aumento de subsídios a juízes -travestido de auxílio-moradia- e também conduziu o Congresso à aprovação de emenda constitucional que estendeu a autonomia financeira à defensoria pública, o que obviamente se fez acompanhar por pressões de diversas outras categorias para obter o mesmo tratamento.

Tais providências trazem grandes prejuízos, tanto por reduzirem drasticamente a capacidade de alocação orçamentária dos Poderes eleitos para tanto como porque sempre são adotadas em detrimento dos que necessitam de políticas publicas corajosas e eficientes.

Reiteradas vezes afirmei que o Brasil está a se transformar em uma República corporativa, em que o menor interesse contrariado gera uma reação descabida, de forma que a manutenção e conquista de benesses do Estado por parte de categorias ganham uma centralidade no debate público inimaginável em países civilizados.

A autonomia financeira que se pretende atribuir aos diversos órgãos e as reações exageradas contra quaisquer projetos que visem a disciplinar seus abusos são a nova face de nosso indigesto patrimonialismo.

Diante da realidade fiscal da nação e dos Estados, é imperioso acabarmos com vantagens e penduricalhos ilegais e indevidos concedidos sob justificativas estapafúrdias e com base nas reivindicadas autonomias financeiras e administrativas que todo e qualquer órgão pretende angariar para si.

Esse tipo de prática alija o Poder Legislativo do processo decisório, tornando, assim, extremamente difícil o exercício de qualquer forma de controle sobre essas medidas.

No momento em que encerramos um dos anos mais difíceis de nossa história recente, devemos pensar no futuro do país e de nossos filhos e netos. É hora de finalmente ousarmos construir uma sociedade civil livre e criadora e colocar freios em nosso crescente corporativismo.

Gilmar Mendes é Ministro do Supremo Tribunal Federal e Presidente pela segunda vez do Tribunal Superior Eleitoral. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 28.12.16.

Governo das Reformas

Por Moreira Franco

O Brasil está num momento único e tem que escolher que tipo de país quer ser. Fazer as grandes reformas — previdenciária, trabalhista, tributária, fiscal e política — e conquistar um lugar entre as grandes economias do mundo, ou seguir como está, com espasmos de crescimento seguidos por crises e períodos de instabilidade.

Este governo acredita que é possível construir a ponte para um futuro sólido e de ganhos para todo o povo brasileiro. Não uma pinguela. Uma ponte duradoura, concreta, acessível. Daí a primeira marca do governo ser a responsabilidade. Alcançamos isso nos primeiros três meses, com a aprovação da PEC do teto de gastos, o ajuste fiscal e a Lei das Estatais. A partir deste ano, nossa marca será as grandes reformas, que foram sistematicamente negligenciadas pelas gestões anteriores.

Itamar Franco, FH e Lula adotaram fundamentos de valores comprometidos com a responsabilidade fiscal, o controle da inflação, o superávit primário para pagar as dívidas, política cambial em apoio ao crescimento e segurança jurídica. Enquanto praticaram essas políticas, colheram resultados positivos e mais de 30 milhões de brasileiros melhoraram as suas vidas. No entanto, não se mantiveram firmes nestes propósitos originais, os quais Dilma jamais praticou, deixando enorme déficit nas contas públicas, inflação e mais de 12 milhões de desempregados.

Estamos fazendo a lição de casa. Somos o governo da plantação, não da colheita. E isso, infelizmente, impõe sacrifícios a todos. O custo para o governo, principalmente no primeiro ano, pode ser a perda de popularidade. Faremos as reformas necessárias. Você já viu alguém que gosta de fazer reforma em casa? Faz barulho, sujeira, custa caro, atrasa, mas depois a casa fica em ordem, o encanamento funciona, a luz não dá problema, e a vida melhora.

Vamos aproveitar os dois anos que temos e arrumar a casa, colocar o país em ordem. Quem vai ganhar com isso? Todos os brasileiros. Não serão anos fáceis. Mas a nossa missão é entregar um país melhor do que recebemos para o próximo presidente e para todos nós. Para que possam olhar pra gente como o governo da herança positiva, do bom legado. Nossa preocupação é, acima de tudo, com o emprego.

Nosso termômetro não serão os aplausos. Serão inflação em queda, juros menores, mais vagas de emprego, contas públicas no azul e economia crescendo. E o desafio é maior, pois só temos metade do tempo de um governo normal — pouco mais de dois anos. Temos que trabalhar em dobro.

Num momento de crise, medimos o sucesso pela melhora dos indicadores. Em poucos meses, aprovamos 54 medidas importantes, praticamente uma a cada três dias. Daí a inflação está caindo e já abriu espaço para os juros diminuírem. Em seguida, virão investimento e crescimento. E, finalmente, o mais importante: emprego. Essa sim é a melhor maneira de distribuir renda.

Por último, seremos o governo que vai gerar igualdade de oportunidades e estabilidade. Igualdade de oportunidades de emprego para o trabalhador, de investimento para os empresários. E um ambiente saudável, de estabilidade e transparência para todos que trabalham no Brasil, seja no setor público como no privado. Vamos devolver a esperança ao brasileiro.

Wellington Moreira Franco, ex-Governador do Estado do Rio de Janeiro, é secretário-executivo do Programa de Parcerias de Investimentos. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 16.01.17.

O Brasil tem saída: a de sempre

Por Fernão Lara Mesquita

Tem sido um linchamento. Cada vez que estremece e esboça uma reação, cai com mais fúria a chuva de pauladas sobre o corpo moído da Nação.

No País sem voz é a guerra; 60 mil mortos por ano, 12 milhões de famílias não sabem se comem amanhã. Daí para cima, ou é prostração, ou um mal contido pânico travestido de “fervor cívico” sem propósito definido nem pontaria certa. Nesse segmento “mobilizado” a ordem cronológica está subvertida.

Posto diante das entranhas daquilo a que sempre esteve acomodado, esse Brasil não se admite mais como o que é. Projeta como realidade vivida aquilo que deveria ter sido. Todos cobram “dos outros” o que cada um se recusa a entregar de seu. Ninguém se assume como parte constitutiva de um organismo doente e isso tira de cena a ideia de buscarmos juntos uma cura. A conflagração ocupa todos os espaços. O passado transformou-se em arma de destruição do futuro.

Quem “ganha”, quem “perde” com cada golpe desferido? O dano infligido ao País nunca entra em consideração. O interessado em reformas “é o governo”, não o País. A imprensa não cobre o Brasil, a imprensa cobre a disputa de Brasília pela carniça do Brasil. Lá, sim, são “impopulares” as medidas de salvação nacional. Não há desempregados discutindo a crise na televisão. Tudo é filtrado pela óptica do poder e é isso que alimenta esse pandemônio.

Não tem nada a ver com jornalismo trombetear aquilo a que facções em luta “lhe dão acesso” na hora e no lugar que elas escolherem. Isso não é informar, é tornar-se parte. A garantia de sigilo para alardear “furos” que não são “furos” contrata os próximos atentados contra a Nação. De prático ela só fica com a retaliação da retaliação da retaliação. O Judiciário ataca Renan porque Renan desafiou os privilégios do Judiciário. E Renan só desafia os privilégios do Judiciário porque o Judiciário atacou Renan. Não tem nada a ver com justiça nem com zelo pela austeridade.

Essa briga só acaba se for “narrada” como o que é. Nesse filme a sequência é que é o fato, não cada factoide tomado isoladamente. A quebra da impunidade dos corruptos arrombou a porta, mas a luta pelo poder montou nas costas dela. Doze milhões de empregos morreram quase ignorados. Mas então a gangrena da arrecadação cessante tomou o Rio Grande do Sul e subiu para o Rio de Janeiro. Agora é em Minas Gerais que o sangue deixou de circular. Não vai parar por aí. Com o naufrágio do Estado seguindo o da Nação com três anos de atraso e a súbita virada dos ventos do sacrifício, a luta tornou-se, de repente, feroz. Exumam-se velhos cadáveres e cobram-se dívidas há muito acochambradas numa sequência frenética, mas não há rigorosamente nada que já não se soubesse ou não tivesse sido extensamente publicado. É impossível ignorar em boa-fé a relação de causa e efeito entre esses requentamentos e cada tentativa esboçada de impor limites ou recuos aos privilégios de corporações poderosas.

Prender e soltar pessoas de forma seletiva e arbitrária sob o pretexto de crimes de todos conhecidos, mas sempre relevados, não são vitórias da justiça, são só expedientes para impedir que o ajuste das contas públicas avance pelo único caminho pelo qual ele pode de fato se dar.

Nesse lado do problema os dados são claríssimos. Não há preço, na arena global, que comporte os privilégios das corporações que se nutrem de quem produz no Brasil. Essa referência é inamovível. Não há liminar, falcatrua regimental, “acordão”, “movimento social” ou estelionato inflacionário suicida que consiga tirá-la de onde está. As coisas terão obrigatoriamente de ser arrumadas desse marco para trás ou permaneceremos expulsos do mundo.

A PEC do Teto de gastos (que está na Constituição, mas ninguém cumpre), a reforma da Previdência e os ajustes microeconômicos, todos imprescindíveis, só põem dinheiro no caixa lá adiante, mas o País está falido aqui e agora. Não há como escapar. Vai ser preciso mexer no “imexível”. Carros, frotas de jatos, mordomias e “auxílios” obscenos, isenções, acumulações, viagens, supersalários, superaposentadorias, tudo isso vai ter de sair da conta para que possam voltar a caber nela os salários e aposentadorias sem mais adjetivos dos funcionários que não entraram no serviço público pela janela e mais a saúde e a segurança pública que se requer. O mínimo fora do qual é o caos.

Parece impossível hoje, mas as prerrogativas medievais dessa casta são biodegradáveis. Dissolvem-se no escândalo das proporções indecentes que tomaram assim que forem expostas ao sol. Eis aí um bom papel para a imprensa.

Apressar o inevitável é um meio certo e seguro de evitar o desperdício de mais uma geração e salvar milhões de famílias das tragédias que vêm vindo a galope. Mas mesmo que ela persevere na omissão de fazer da denúncia desses privilégios a sua obsessão, a agonia do funcionalismo desadjetivado vai produzir o milagre. E logo. Só que aí o preço será dobrado...

O Brasil precisa estar vivo para chegar ao fim desta travessia. E é com os políticos que temos que teremos de fazê-la. Seguir olhando só para trás é mergulhar inevitavelmente na conflagração. O Brasil não tem conserto dentro do que é hoje. O remédio para a doença que nos aflige é conhecido desde 1776. Chama-se igualdade perante a lei. Não existe outro.

Consiste em reestruturar o Estado e a Nação segundo o princípio de que tudo o que não vale para todo mundo tem de deixar de valer para quem quer que seja. E sendo os operadores da República no Judiciário e no Legislativo os principais beneficiários da situação que exige reforma, estender os direitos dos eleitores para depois das eleições com a instituição do “recall” dos representantes e do “referendo” das leis dos Legislativos por iniciativa popular tem sido, historicamente, o instrumento que, ao transferir o poder de decisão final das mãos dos “contribuídos” para as dos contribuintes, inicia esse tipo de revolução pacífica e a torna irreversível.

Fernão Lara Mesquita é Jornalista. Escreve em www.vespeiro.com.br / Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Oaulo, edição de 20.12.16.

Sobre a segurança pública e a segurança nacional (1)

Por Alberto Cardoso

Diante da matança em presídios, anunciam-se providências governamentais compondo um bom plano, as quais amenizarão o impacto da barbárie sobre a sensibilidade pública. Mas elas tendem a ser sobrepujadas pelo crescimento inercial do crime violento, germinado na disputa do mercado ilegal de drogas.

Não se soluciona o problema porque se incorre no engano de não o analisar sistemicamente, com as causas reais, e, em consequência, não aplicar as ações de longo prazo necessárias.
Como há que responder à correta pressão da mídia e interferir o quanto antes no processo de formação da opinião pública, inclusive internacional, recorre-se aos estalos de soluções assistêmicas que logo se exaurem e, finalmente, agravam o problema.

O plano foca os mesmos pontos principais das declarações de intenções anteriores de governos federais e estaduais:

• Redução do número de homicídios dolosos,
• combate ao tráfico de drogas e armas,
• e modernização e construção de presídios.

Onde o enfrentamento estrutural e permanente da gênese real da violência? Onde o destaque para a prevenção primária do uso de drogas? Onde os tabus a serem derrubados?
Um destes é o tráfico ilegal, causador maior da violência. Voltarei a ele adiante, mas antecipo três pontos: 1) enquanto for ilegal, será cada vez mais incontrolável; 2) enquanto o consumo aumentar, o tráfico será cada vez mais rentável; e 3) a descriminalização tem de ser condicionada ao êxito de esforço nacional para educação da juventude, que a capacite a discernir entre usar drogas ou não. A métrica será o ritmo e o nível de redução do consumo.

Em 19/6/1998 foi instalada a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), eixo governamental da coordenação da prevenção primária do uso de drogas, cuja criação o presidente da República determinara à Casa Militar – depois, Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Na ocasião, respondi a uma jornalista que me indagara se era a favor da descriminalização das drogas: “Sim. Mas somente após Estado, famílias, religiões e escolas cumprirem o dever ético de educar crianças e jovens sobre os malefícios que as drogas causam à saúde orgânica e mental e ao comportamento social”. Estimei o prazo máximo de uma geração, ou 20 a 25 anos.

A despeito da dedicação e do empenho dos secretários (em especial Paulo Roberto Uchôa, que teve apoio da comunidade terapêutica e fez importantes articulações intragovernamentais, com a sociedade e com homólogos estrangeiros), não se obteve a indispensável mobilização nacional efetiva. A Senad, que ia muito bem, foi esvaziada após a saída desse secretário, em 2011, e se perdeu o conceito de sua criação e posicionamento supraministerial, na Presidência da República. Os fatos mostram que o dever coletivo não foi cumprido. O consumo aumentou e inflou a rentabilidade do mercado. As quadrilhas estruturaram-se nacional e internacionalmente para disputar o mercado, que, por ser ilegal, pressupõe luta armada, aética e amoral.

O rolo compressor do tráfico tem criado consequências maléficas muito além da saúde e do comportamento dos usuários e atinge a Nação e o Estado por via da afronta ao poder, autoridade e soberania populares delegados aos chefes do Poder Executivo nas três esferas da administração pública.

Em fins dos anos 90, em face do crescimento da criminalidade e por ordem do presidente, o GSI começou a elaborar o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública. Tínhamos convicção de que se caminhava para romper os limites impostos pela interpretação errada do artigo 144 da Constituição federal, que via segurança pública sob responsabilidade única dos Estados federados. Visávamos à entrada direta da União nos esforços de solução.

Consultaram-se muitas pessoas e organizações e produziu-se um plano geral que contemplava, sim, a repressão. Mas tinha viés preeminentemente preventivo no seu Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Enfrentamento dos Indutores de Violência (Piaps), com ambientação municipalista. Ele viria aliar-se à estratégia de prevenção do uso de drogas da Senad.

Existiam resistências à quebra do falso paradigma do artigo 144, em setores do âmbito federal e nos Estados. Havia que aguardar a oportunidade para o argumento final. Infelizmente, ela surgiu com a comoção nacional pelo sequestro do ônibus 174, em 12/6/2000, no Rio de Janeiro, no qual houve (pasmem!) duas mortes – a jovem refém e o bandido.

Oito dias depois, o plano nacional era lançado pelo presidente. O Piaps, que o diferia de qualquer outra estratégia, foi implantado nas quatro regiões metropolitanas com maiores índices de violência: São Paulo, Rio, Vitória e Recife. Integrava programas com vocação social de 13 ministérios, dos Estados, municípios, de ONGs e, sobretudo, envolvia lideranças comunitárias locais. Em 2002 foi complementado pelo Sistema Nacional de Inteligência de Segurança Pública.

A métrica da Fundação Instituto de Administração da USP mostrava que o Piaps avançava. Era provável que atingisse as metas de contenção e redução do crime se a visão estratégica de Estado – logo, de longo prazo – permeasse os governos seguintes, o que não ocorreu. Essa visão tem de arrostar a pujança crescente e hoje próxima de incontível do mercado ilegal, e o papel preponderante que o tráfico antes tendia a assumir e hoje demonstra ter assumido no ciclo causal e realimentador do empoderamento das quadrilhas. Os estrategistas governamentais devem ter em mente que a ilegalidade do tráfico está eivada de tabus, ideologias e interesses, nem todos honestos, que precisam ser expostos e permanentemente questionados.

Na segunda parte deste artigo relacionarei segurança pública e segurança nacional.

Alberto Cardoso é General de Exército reformado, foi ministro-chefe do gabinete de segurança institucional da Presidência da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 17.01.17.

A caminho do brejo

Por Cora Rónai

Um país não vai para o brejo de um momento para o outro — como se viesse andando na estradinha, qual vaca, cruzasse uma cancela e, de repente, saísse do barro firme e embrenhasse pela lama.

Um país vai para o brejo aos poucos, construindo a sua desgraça ponto por ponto, um tanto de corrupção aqui, um tanto de demagogia ali, safadeza e impunidade de mãos dadas.

Há sinais constantes de perigo, há abundantes evidências de crime por toda a parte, mas a sociedade dá de ombros, vencida pela inércia e pela audácia dos canalhas.

Aquelas alegres viagens do então governador Sérgio Cabral, por exemplo, aquele constante ir e vir de helicópteros. Aquela paixão do Lula pelos jatinhos. Aquelas comitivas imensas da Dilma, hospedando-se em hotéis de luxo.

Aquele aeroporto do Aécio, tão bem localizado. Aqueles jantares do Cunha. Aqueles planos de saúde, aqueles auxílios moradia, aqueles carros oficiais. Aquelas frotas sempre renovadas, sem que se saiba direito o que acontece com as antigas.

Aqueles votos secretos. Aquelas verbas para “exercício do mandato”. Aquelas obras que não acabam nunca. Aqueles estádios da Copa. Aqueles superfaturamentos. Aquelas residências oficiais.

Aquelas ajudas de custo. Aquelas aposentadorias. Aquelas vigas da perimetral. Aquelas diretorias da Petrobras.

A lista não acaba.

Um país vai para o brejo quando políticos lutam por cargos em secretarias e ministérios não porque tenham qualquer relação com a área, mas porque secretarias e ministérios têm verbas — e isso é noticiado como fato corriqueiro da vida pública.

Um país vai para o brejo quando representantes do povo deixam de ser povo assim que são eleitos, quando se criam castas intocáveis no serviço público, quando esses brâmanes acreditam que não precisam prestar contas a ninguém — e isso é aceito como normal por todo mundo.

Um país vai para o brejo quando as suas escolas e os seus hospitais públicos são igualmente ruins, e quando os seus cidadãos perdem a segurança para andar nas ruas, seja por medo de bandido, seja por medo de polícia.

Um país vai para o brejo quando não protege os seus cidadãos, não paga aos seus servidores, esfola quem tem contracheque e dá isenção fiscal a quem não precisa.

Um país vai para o brejo quando os seus poderosos têm direito a foro privilegiado.

Um país vai para o brejo quando se divide, e quando os seus habitantes passam a se odiar uns aos outros; um país vai para o brejo quando despenca nos índices de educação, mas a sua população nem repara porque está muito ocupada se ofendendo mutuamente nas redes sociais.

O Brasil caminha firme em direção ao brejo há muitas e muitas luas, mas um passo decisivo nessa direção foi dado quando Juscelino construiu Brasília, aquela farra para as empreiteiras, e quando parlamentares e funcionários públicos em geral ganharam privilégios inéditos em troca do “sacrifício” da mudança para lá.

Brasília criou um fosso entre a nomenklatura e os cidadãos comuns. A elite mora com a elite, convive com a elite e janta com a elite, sem vista para o Brasil. Os tempos épicos do faroeste acabaram há décadas, mas os privilégios foram mantidos, ampliados e replicados pelos estados. De todas as heranças malditas que nos deixaram, essa é a pior de todas.

Cora Rónai é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 08.12.16.

Gargalhadas demoníacas e tirânicas

Por Roberto Romano

Uma foto possui a qualidade de falar aos olhos e à mente. Ela mostra o real sentido da palavra “evidência”: o que aparece de modo insofismável. No século 20 algumas fotografias mostraram ao mundo fatos graves e ridículos, terríveis e comoventes. Recordo algumas delas: a menina que foge do napalm, no Vietnã; o beijo dos enamorados após a 2.ª Guerra Mundial, nos EUA; o vestido de Marilyn Monroe que se ergue por virtude do vento; a figura de Trotsky cortada na foto por ordem de Stalin; o horror de corpos quase mortos nos campos nazistas. Tais imagens testemunham a brutalidade humana, mas também exibem instantes de frágil ternura, inteligência ou estupidez.

Em formas televisivas ou fílmicas, além da evidência existe a vantagem das figuras em movimento, inclusive e sobretudo no campo da face. Esta última tem sido um meio de estudos filosóficos, artísticos (especialmente no teatro), políticos importantes. Em momentos pouco felizes da ciência, como nas teses avançadas por Lombroso, a cara revelaria o caráter das pessoas, suas mazelas escondidas. Em outro sentido, Diderot, pai das Luzes democráticas, utilizou muito o livro de Le Brun sobre as paixões reveladas na face. Charles Darwin tem um contributo relevante para o tema. As tentativas de velar a linguagem do rosto, desde a mais remota vida em sociedade, encontram nas máscaras o seu grande instrumento. Um capítulo essencial do clássico Massa e Poder traz análises profundas de Elias Canetti sobre a maquiavélica dissimulação permitida ao poderoso mascarado.

Os bisonhos e incultos políticos brasileiros não controlam a técnica do mascaramento. A sua maioria exibe sem nenhum pudor o que lhe vai nas entranhas, confiante na impunidade trazida pelo indecente privilégio de foro.
No dia 23 de novembro último, O Estado de S. Paulo apresentou na primeira página uma foto estarrecedora.

Deputados riem às escâncaras em companhia do então ministro Geddel Vieira Lima. Este proclamara que “não havia nada de imoral” em conversar sobre assuntos privados com um colega, em proveito próprio. O quadro exibido no jornal mostra explícito deboche das leis e do povo soberano. Temos nele uma visão completa das pessoas que dominam nossas instituições políticas. Segundo Milan Kundera, “o riso é o domínio do diabo”. Nem todo riso, no entanto. Existe, diz ainda o romancista, o riso dos anjos, movido pela admiração da bela ordem dada ao universo pelo ser divino. A gargalhada demoníaca mostra a quebra daquele ordenamento, o absurdo entronizado nas coisas mundanas (O Livro do Riso e do Esquecimento). A pândega dos deputados, a zombaria e o desprezo pelos cidadãos comuns, traz o selo do Coisa Ruim, do Não-sei-que-diga. Renan Calheiros piorou a dose ao reduzir o episódio a um caso de hermenêutica. Caolha como todas as demais por ele efetivadas, sobretudo no plano da ética pública.

Certa feita a imprensa trouxe notícias bem fundadas sobre o uso, na Câmara dos Deputados, de verbas para o bem-estar de prefeitos e hóspedes de parlamentares. Entre as comodidades e os serviços, a prostituição. Na semana em que a denúncia invadiu páginas de jornais e telas da TV, apareceu outra novidade: a Mesa da Câmara providenciava nova leva de cargos em comissão para servir aos parlamentares. Sem apurar o primeiro escândalo, veio o outro, urdido em silêncio.

Um jornalista da TV Record entrevistou Inocêncio de Oliveira. Este negou, rindo muito, a existência de qualquer ato visando a criar cargos. Deu adeus aos brasileiros, virou as costas e seguiu adiante, rindo. Na tela, apareceu o documento oficial criando os cargos.

A mentira e o deboche suscitaram minha indignação. Escrevi um artigo intitulado, justamente, O prostíbulo risonho. Ele me valeu muito ódio dos chamados representantes do povo. Um deles me processou, com apoio de seus iguais. Na oitiva das testemunhas, um auxiliar do acusador assim falou ao jovem magistrado: “Gosto muito do professor Roberto Romano. Mas ele abusou da escrita. Imagine, Excelência, que o professor afirmou existir corrupção no Congresso Nacional!”. Nem o juiz pôde conter o riso, agora angélico.

As gargalhadas dos “nossos representantes” seriam apenas ridículas se não gerassem lágrimas de famílias brasileiras aos milhares A corrupção retira da economia, das políticas públicas, da vida nacional bilhões para lucro dos que deveriam zelar pelo bem comum. Desde a Grécia, o pensamento ético e jurídico ocidental define a prática de usar os bens coletivos em proveito próprio como tirania. O governante correto “guarda a piedade, a justiça, a fé. O outro não tem nem Deus, nem fé, nem lei. Um tudo faz para servir ao bem público e manutenção dos governados. Mas o outro tudo faz para seu lucro particular, vingança ou prazer. Um se esforça por enriquecer seus governados, o outro só eleva sua casa sobre a ruína dos dirigidos (…) um se alegra ao ser avisado em toda liberdade, e sabiamente corrigido, quando falha. O outro não suporta o homem grave, livre e virtuoso (…) um busca pessoas de bem para os cargos públicos. Mas o outro só emprega os piores ladrões para os utilizar como esponjas” (Jean Bodin, Os Seis Livros da República, capítulo IV).

Em A República, ao desenhar a tirania Platão afirma que o péssimo governante realiza uma purga invertida no corpo político: expulsa os cidadãos livres e bons e usa os salafrários como sua base política. Heinrich Heine, poeta lúcido, disse certa feita: “Quando penso na Alemanha, à noite, choro”.
Termino citando um baiano que merece respeito. Dada a desfaçatez exibida na política brasileira, Castro Alves retomaria seus versos candentes: “Mas é infâmia demais! (...) Da etérea plaga/ Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!/ Andrada! arranca esse pendão dos ares!/ Colombo! fecha a porta dos teus mares!”.

Roberto Romano é filósofo e Professor deÉtica na USP. É autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão', Editora Perspectiva. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 28.11.16.

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com o panorama político. As apreciadas historinhas do nosso folclore político estão no final.

Conselhão ativo

O governo decidiu retomar as atividades do Conselho de Desenvolvimento e Social, o chamado Conselhão. Trocou nomes, dando mais pluralidade e representação ao órgão. Nomes de peso como Jorge Paulo Lemann, Jorge Gerdau, Roberto Setúbal, Roberto Rodrigues sentam, lado a lado, com sindicalistas, como José Calixto, da NCST-Nova Central, ou intelectuais como Helena Nader, presidente da XBPC. O Conselhão agora terá voz e vez : escolhe temas, define prioridades, cobra políticas, dá ideias. Diferentemente do passado, quando servia apenas de audiência passiva.

Temas para 2017

As sete oficinas de trabalho criadas escolheram os temas que balizarão os debates de 2017, tais como a desburocratização e a modernização do Estado, a produtividade e a competitividade, emprego e renda, entre outros. Os participantes sugeriram, por ocasião do primeiro encontro, segunda-feira, que o governo avance nas reformas. E que seja identificado como "Governo das Reformas".

Calero x Geddel

Nas conversas de bastidores, em Brasília, a hipótese ganhou consenso : Marcelo Calero queria um motivo para deixar o Ministério da Cultura do governo Temer. Geddel Vieira Lima, ministro da Secretaria do Governo, chegou mesmo a falar com ele, mas não a ponto de fazer pressão para liberação da obra do prédio, em Salvador, onde comprara um apartamento. Foi apresentada ao ex-ministro a sugestão : ficar ou sair depois de ouvido parecer da Comissão de Ética da Presidência. Mas ele não aceitou aquela sugestão. Decidiu não esperar. Tende a ser candidato a deputado em 2018.

Paisagem fosca

Os sinais no horizonte começavam a ser claros. Mas, de repente, tornaram-se foscos. Uma névoa pesada cobre o amanhã. As projeções sobre o desempenho da economia mostram recuo de alguns índices, a partir da queda de 0,6% do PIB no segundo semestre. Comparada à igual período de 2015, a queda do PIB foi de 3,8%. Com o resultado, o PIB acumula - nos primeiros seis meses do ano - retração de 4,6%, comparativamente aos seis primeiros meses de 2015. Os dados das Contas Nacionais Trimestrais foram divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e indicam, no acumulado dos quatro trimestres terminados no segundo trimestre de 2016, decréscimo (-4,9%) em relação aos quatro trimestres anteriores. Em valores correntes, o PIB no segundo trimestre de 2016 alcançou R$ 1,5 trilhão.

Frente política

Na frente política, o governo deverá aprovar a PEC do Teto dos Gastos no Senado, em votação de segundo turno, marcada para dia 13 de dezembro. Quanto à reforma da Previdência, a intenção do governo é de apresentar sua proposta de reforma ainda este ano. Mas, diante das tensões que se acumulam na área política (Calero x Geddel), é bem possível que a reforma previdenciária seja inserida na agenda do Parlamento apenas na próxima legislatura.

Delação do fim de mundo

Até amanhã deverá estar concluído o acordo de delação de mais de 50 executivos da Odebrecht. Será a "delação do fim de mundo". O juiz Sérgio Moro faz votos para que o "Brasil sobreviva". As delações do Grupo que faturou 125 bilhões de reais em 2015 reuniram 400 advogados.

Especialização no PL 4302

O PL 4302, que trata da especialização de serviços, tende a ser o foco do governo e do setor de serviços terceirizados. Tem competente e denso parecer do deputado Laércio Oliveira/SD-SE. Esse projeto, aprovado pela Câmara, foi ao Senado, onde recebeu emendas, voltando, então, à Câmara. Já o PLC 30, que também trata da terceirização e está no Senado, ganhou um relatório desastrado do senador Paulo Paim. Rejeitado pelo setor. O marco regulatório da terceirização aguarda aprovação pelo Congresso há três décadas. O setor é regulado pela extravagante súmula 331, do TST, defasada no tempo.

Confiança em expectativa

A confiança no amanhã é um vetor que anima parcela forte do setor produtivo. Mas essa confiança está na balança que, ora pende para a esquerda, ora cai pela direita. Em certos momentos se equilibra no meio. A expectativa é que o Brasil comece a se recuperar em 2017. Os investidores prestam atenção no confiômetro.

Sigilo de conversa

O advogado Fernando Augusto Fernandes esclarece que a conversa gravada e veiculada na mídia entre um advogado e o ex-governador Garotinho não foi com ele. E alerta que a comunicação entre advogados e clientes está sob sigilo de acordo com a lei 8906/94. O levantamento de sigilo pelo juiz e o fornecimento de informações à imprensa estão fora dos objetivos da lei. Por isso, quando isso ocorre comete-se um crime na forma do art.10 da lei 9296/94. O advogado diz que o juiz que abriu o sigilo de conversa com o ex-governador responderá por este ato.

Fernando, admirado

A propósito, Fernando Fernandes é um dos maiores criminalistas do país. Acaba de ser eleito um dos mais admirados advogados. Seu escritório - Fernando Fernandes Advogados - está também na relação dos principais do país.

Abuso de autoridade

A lei de abuso de autoridade está na pauta do Senado e recebe prioridade para votação nos próximos dias. A questão é polêmica. De um lado, uma parcela forte de pensamento enxerga na lei uma tentativa de quebrar o poder de juízes e membros do Ministério Público. Uma espécie de tiroteio contra a Lava Jato. De outra parte, advogados e políticos que consideram extravagantes e arbitrárias ações de integrantes do Judiciário e do MP. Uma coisa é certa : a lei precisa chegar a um bom termo. Sem prejudicar as funções dos protagonistas que operam o Direito. Nem lá, nem cá.

Rubens Approbato

Minhas homenagens póstumas a uma das maiores figuras com quem tive a honra de trabalhar : Rubens Approbato Machado. Portador de grandes virtudes : seriedade, dignidade, respeito pelo próximo, lealdade, amizade, ampla visão da vida, conhecimento das leis e dos meandros do Direito, coragem, simplicidade. Rubens, um homem magnânimo. Um grande caráter. A ele posso atribuir a expressão de José Ingenieros, o magistral escritor argentino : "Os caracteres excelentes ascendem à própria dignidade, nadando contra todas as correntes baixas, a cujo refluxo resistem com energia. É fácil distingui-los imediatamente em face de outros, pois não se desvanecem nessa névoa moral em que aqueles se descoloram. Sua personalidade é toda brilho e aresta : firmeza e luz como cristal de rocha".

Estados falidos

A situação dos Estados é de falência. Quebrados, sem recursos, muitos terão dificuldades de pagar salários de fim de ano aos servidores. Anos de desorganização financeira, empréstimos externos, dívidas se acumulando e sendo postergadas, falta de planejamento, obras faraônicas são alguns dos fatores que deixam os Estados em pleno despenhadeiro. A repartição de recursos repatriados será a salvação passageira. Mas esses recursos, parcos, são uma gota d'água no deserto de carências.

Roberto Freire

O novo ministro da Cultura, Roberto Freire, é o quinto pernambucano no Ministério do governo Temer. Freire é um quadro dos mais qualificados da política. Presidente do PPS, será um braço mais à esquerda do corpo governamental.

Bons ministros

Os ministros Bruno Araújo, Helder Barbalho, Mendonça Filho e Gilberto Kassab, das Cidades, da Integração Nacional, da Educação e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, respectivamente, são muito bem avaliados pelo Palácio do Planalto. Costumam ser citados como exemplos de quadros proativos, eficientes e diligentes.

Neymar sob denúncia

MP da Espanha pede dois anos de prisão para Neymar. Motivo : corrupção nos contratos. Quem acreditará nisso ? Mas a acusação pode redundar em pesada multa.

Fecho a coluna com as historinhas do nosso folclore político.

Um par de chifres

No velório de Jânio (1992), apareceu um homem aos prantos. Jurava que, muitos anos antes, estava no alto de um prédio disposto a se matar quando Jânio, então um jovem vereador, gritou :

- Não faça bobagem.

Ele explicou que ia pular porque a esposa o traíra. Jânio dissuadiu o suicida :

- O que tua mulher te arrumou foi um par de chifres, não um par de asas. Desça daí já !

Salvou o homem.

Perspectivas e características

Quais as perspectivas que se apresentam ao Brasil em um contexto de crise ? Confesso que não sei responder. Mas uma historinha do Sebastião Nery sobre perspectivas pode ajudar a responder : Luís Pereira, pintor de parede, dormiu com 200 votos e acordou como deputado Federal. Era suplente de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, em Pernambuco, cassado pela ditadura. Chegou a Brasília de roupa nova e coração vibrando de alegria. Murilo Melo Filho melou o jogo, logo no aeroporto, com a pergunta abrupta :

- Deputado, como vai a situação ?

Confuso, nervoso, surpreso, sem saber o que dizer, tascou :

- As perspectivas são piores do que as características.

Pois é, a esta altura, tem muito Luís Pereira perorando por aí...

Torquato Gaudêncio, Cientista Político, é Professor Titular da USP e Conselheiro pessoal do Presidente da República.

A reconstrução de uma Nação arrasada

Por Ives Gandra Martins

Corrupção, protagonismo excessivo, reformas e desenvolvimento – embora pareça contraditório, esse é o retrato do momento brasileiro. Luta-se contra a corrupção, há excesso de protagonismo das autoridades - apesar de
idôneas - no seu combate, as reformas são necessárias, mas atingem interesses burocráticos, políticos e de grupos, e o desenvolvimento só se fará se o país voltar a ter paz para que o governo, com corretas sinalizações, venha a implementá-las. De que o juiz Sérgio Moro com a colaboração do Ministério Público e da Polícia Federal passarão à História, pois representam um verdadeiro divisor de águas entre o Brasil antes e depois da operação Lava Jato, não tenho a menor dúvida. Conscientizaram o país de que a corrupção, nos meios políticos, tem que ser combatida e os novos políticos –São Paulo, nas eleições municipais, deu um exemplo— terão que possuir, antes de tudo, um perfil ético. O povo não aceita mais governos corruptos. Nem por isto sua ação deixou de ultrapassar, por vezes, os limites estabelecidos para autoridades de seu nível. Os crimes investigados têm mais o perfil de “concussão”, imposição, pelos governantes, de condições para que empresas contratassem com o Estado - sem o que teriam que paralisar suas atividades -, do que “corrupção”, em que empresários corrompem autoridades. Por outro lado, a midiática atuação do Ministério Público para acusar não condiz com a serenidade necessária que o “Parquet” deve ter, para dar densidade a suas acusações. O próprio Supremo Tribunal Federal, constituído de onze excelentes juristas, na onda de um protagonismo no passado inconcebível, tornou-se legislador constituinte, sobrepondo-se ao poder do Congresso de criar normas, superando disposições constitucionais e causando turbulências no processo legislativo. Basta, por exemplo, verificar a postura do Pretório Excelso, ao modificar o regimento interno do Senado, impondo novas regras para o “impeachment”. No impedimento do Presidente Collor, dois dias após a decisão da Câmara, o Senado determinou sua destituição, enquanto no da Presidente Dilma, levou quase um mês, em que o país ficou, praticamente, sem governo. Dilma, não era presidente, senão formalmente, e Michel
Temer não podia governar, nada obstante a certeza do afastamento aprovado pela Câmara dos Deputados.

O Brasil, todavia, precisa de maior serenidade agora, em que é apresentado um projeto coerente de reconstrução de uma nação arrasada, com seus alicerces passando a ser reconstruídos a partir da PEC 241. O primeiro passo é controlar as despesas de uma burocracia esclerosada. Na Comissão do Senado de que participo, presidida pelo Ministro Mauro Campbell e com relatoria do Ministro Dias Toffoli, temos elaborado por Aristóteles Queiroz, um anteprojeto de desburocratização que deverá em breve ser levado à Casa da República. A PEC 241 está neste caminho. Há, porém, algumas reformas fundamentais que devem ser promovidas para que um novo edifício institucional seja construído. A reforma política é necessária. Embora eu, pessoalmente, defenda o
parlamentarismo desde os bancos acadêmicos que coordenei sob o título “Parlamentarismo, utopia ou realidade?”com 24 ínclitos juristas de reconhecimento nacional e internacional creio que o primeiro passo será a adoção de cláusula de barreira, com avaliação da performance partidária para a manutenção dos partidos; voto distrital misto, ou seja, metade dos
deputados sendo eleitos no distrito e metade por eleições proporcionais; financiamento de campanha sob rígido controle e eliminação de coligações partidárias. A reforma previdenciária, embora de impacto a mais longo prazo, é
imprescindível. Se não vier, a população que trabalha não terá como sustentar uma população superior aposentada, no futuro. A reforma trabalhista, no que concerne à terceirização e às convenções coletivas de trabalho, é relevante para reduzir o desemprego, que a CLT de 1943
(verdadeira “vaca sagrada intocável” dos indianos) de longe não protege. Quanto a reforma burocrática, temos esperança de que o nosso
anteprojeto, que surge de uma Comissão criada pelo próprio Senado com esta finalidade, possa ser aprovada.

A reforma tributária não pode esperar mais. Reclamam os governantes dos Estados, os quais embarcaram na guerra fiscal inconstitucional (assim a
definiu o STF), que não têm dinheiro. Foram, todavia, os responsáveis por
uma irracional política de incentivos, tendo deixado de cobrar ICMS de grupos que se instalavam em seus territórios, inclusive gerando
descompetitividade no próprio Estado. É de se lembrar que o Supremo sempre considerou inconstitucional tal pratica, sem que os Estados se
curvassem, pois editavam novas leis padecendo do mesmo vício, tão logo a lei anterior era declarada violadora da Carta da República.

A reforma do Judiciário é importante. A Constituição Federal sinalizou a necessidade de uma nova lei orgânica da Magistratura. Como a iniciativa é
do próprio Judiciário, até hoje não houve qualquer proposta neste sentido, continuando a velha e ultrapassada lei complementar de 1975 (LC 35) a
reger um Poder, que, de longe, nada obstante ser o melhor dos três Poderes, não atende mais a necessidade dos jurisdicionados.

Enfim, poderá o Presidente Michel Temer, hábil político e excelente constitucionalista, com sua capacidade reconhecida de articulação e
serenidade de pronunciamentos não demagógicos, dar início a esta árdua empreitada, para que o país saia de uma crise sem precedentes em sua
história, construída pelos desastrosos governos dos últimos 13 anos. É o que os brasileiros esperam, para que as potencialidades do país possam
permitir a sua gente o crescimento que merece.

Ives Gandra Martins é Advogado em São Paulo. Professor da Universidade Makenzie. Este artigo foi publicado em O Estado de São Paulo, edição de 14.11.16.

O amanhecer da democracia

Por Murilo Aragão

Existe em todo o mundo um grande mal-estar com a democracia. Seu fracasso é proclamado todos os dias. Eventos como o Brexit, no Reino Unido, e a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA, além da onda de xenofobia na Europa e na América, são proclamados como indícios de que o sistema está em crise.

Sem dúvida, existe um mal-estar. Existe uma crise. Mas a crise, como o mal-estar, é inerente à democracia. Uma vez que a democracia deve arbitrar decisões que agradam e desagradam, o mal-estar sempre estará posto. Ao arbitrar em desfavor das minorias, a democracia gera desconforto. Gera tensões e crises.

No processo de desagradar apresenta-se uma grave dicotomia. Muitas vezes os descontentes não se acalmam. Buscam por meios democráticos, ou nem tanto, expor seu descontentamento. A situação se complica quando segmentos que, embora não majoritários, têm acesso privilegiado à mídia e ganham maior exposição para seus argumentos do que a maioria.

Muitas vezes há uma superrepresentação de determinadas posições. A exacerbação de críticas visando a apontar a falência do modelo é um dos caminhos. Já quando existe convergência com o governo, tudo corre bem. O ex-presidente Lula viveu um momento especial de conjunção de expectativas positivas, com as esquerdas contentes, o sistema financeiro confiante, trabalhadores felizes, mídia próspera (incluída aquela sem leitores e telespectadores) e os pobres ganhando renda.

Mas quando o governo se depara com uma oposição que, mesmo sendo politicamente minoritária, é “midiaticamente” predominante, criam-se graves impasses, que devem ser resolvidos pelo líder. Pois se estabelece outro paradoxo. Apesar de o ideal da democracia buscar a força das instituições, suas contradições extrapolam a dependência de lideranças pessoais fortes. Os EUA precisaram de Roosevelt. Churchill salvou o mundo do nazismo.

No Brasil a situação é mais séria. O mal-estar é agravado pelo grave problema de representação. A elite não considera adequada, e com razão, a representação política no País. A tensão natural é agravada pelo fato de os mecanismos tradicionais de representação não serem considerados válidos. Em especial, caso o desempenho da política desagrade às elites. A maioria, no entanto, é a vontade soberana da democracia. E, contrariando ou não o senso comum e o bom-mocismo, a vontade da maioria deve prevalecer. É o contrato. Vale o que está escrito.

Minha peroração, até aqui, não explica a crise da democracia. Pelo simples fato de que considero a crise inerente ao processo democrático. Não é uma questão episódica. A democracia existe para arbitrar conflitos e lidar com crises. Decerto, sem crises não teremos um regime plenamente democrático. Pois a democracia pressupõe a existência de diferenças e da prevalência da vontade da maioria. A gênese da crise está no fato de que dificilmente o regime obterá unanimidade. Em sendo assim, o desconforto dos descontentes estará sempre presente. Faz parte do jogo.

Logo, não devemos reconhecer a crise da democracia como uma excepcionalidade ou sinal de fracasso, mas aceitar que é inerente ao processo. E que precisamos buscar o aperfeiçoamento desse processo. Sem crise temos simulacros de democracia ou um regime autoritário. A crise deve nos impulsionar.

Questões como a xenofobia são parte das crises inerentes à democracia. Mas, sobretudo, decorrem da decepção dos governantes em lidar com os desafios que se apresentam. Até em lidar com suas fraquezas e incompetências. Sabe-se que no fracasso dos liberais há uma tendência a buscar no fundamentalismo a solução. Já quando as coisas andam bem, o fundamentalismo é relegado a plano inferior.

Nos picos de crise as lideranças são testadas. Caso a ex-presidente Dilma Rousseff tivesse ouvido vozes sensatas, ter-se-ia salvado do impeachment. Se o ex-primeiro-ministro David Cameron tivesse ouvido vozes sensatas, não teria provocado o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. Ambos foram líderes fracos e incompetentes. Assim como a Europa, por exemplo, se apresenta de forma pouco competente para lidar com o desafio dos refugiados do Oriente Médio.

Não devemos condenar a democracia. Nem acreditar que ela nunca funcionará de modo adequado por causa de suas deficiências ou pela fragilidade do líder de plantão. Por outro lado, é uma expectativa falsa crer que a democracia vá funcionar perfeitamente. Mas, sem dúvida, o processo em que ela se realiza pode ser bastante aperfeiçoado. E, nesse sentido, estamos na infância da democracia.

Por conseguinte, o processo de crescimento da democracia apresenta imensos problemas, tais como a representação desequilibrada, o processo eleitoral desregulado, um Legislativo pouco funcional, a hipertrofia do Poder Executivo, a bagunça partidária, o ativismo judiciário, além da influência nefasta da criminalidade organizada, do terrorismo, da corrupção e do corporativismo exacerbado do funcionalismo, entre outros.

No entanto, a evolução e as inovações estão nos provocando todos os dias. Temos as redes sociais e a maior e mais ampla circulação de informação da História da humanidade. A mídia já não está controlada por poucos. A telefonia celular expande, impressionantemente, a capacidade de interação dos indivíduos. A maior participação da mulher caminha para ser predominante e modificar as agendas.

A judicialização da política, em especial no Brasil, também será decisiva em nossos aperfeiçoamentos. E ainda teremos fatores externos, como a globalização e a transnacionalização do combate à corrupção, impulsionando a qualidade da política.

Tudo o que mencionei já está sendo decisivo para o aperfeiçoamento da democracia nos próximos anos. Se olharmos para trás, veremos que estamos no amanhecer da democracia. Ainda é cedo para desistir. O jogo está apenas começando.

* MURILLO DE ARAGÃO É ADVOGADO, CONSULTOR, MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNB; AUTOR DO LIVRO ‘REFORMA POLÍTICA – O DEBATE INADIÁVEL’. Este artigo foi publicado originalmente em o Estado de S. Paulo, edição de 12.11.16.

Porandubas Políticas

Por Torquato Gaudêncio

Abro com uma historinha mineira para aliviar o peso das notas abaixo.

Quiçá e cuíca

Benedito Valadares, governador, foi a Uberaba para abrir a Expozebu. E passou a ler o discurso preparado pela assessoria. A certa altura, mandou ver : "cuíca daqui saia o melhor gado do Brasil". Ali estava escrito : "quiçá daqui saia o melhor gado". A imprensa caiu de gozação. Passou-se o tempo. Tempos depois, em um baile na Pampulha, o maestro, lembrando-se do famoso discurso na terra do zebu, começou a apresentar ao governador os instrumentos da orquestra. Até chegar na fatídica cuíca. E assim falou : "e esta, senhor governador, é a célebre cuíca". Ao que Benedito, querendo dar o troco, redarguiu com inteira convicção :

- Não caio mais nessa não. Isto é quiçá !

(Historinha enviada por J. Geraldo)

Mais tons de cinza

Há um mês, os horizontes pareciam mais claros. Índices de confiança eram registrados com entusiasmo, sinais de resgate de investimentos surgiam em muitos setores, a esfera política tendia a se acalmar. Nos últimos dias, os horizontes ganharam acentuados tons de cinza. Dois fatos contribuem para o adensamento de nuvens plúmbeas nas dobras do presente : a prisão do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o acordo para delação premiada de Marcelo Odebrecht e mais 50 executivos do Grupo na operação Lava Jato.

A delação de Cunha

Primeiro, é oportuno lembrar que eventual delação premiada de Cunha visa preservar a situação da família - a mulher, jornalista Claudia Cruz, e a filha Daniela. Parece forte o argumento de que o juiz Sérgio Moro não pretende aliviar a situação do ex-deputado, mostrando disposição para puni-lo e dando vazão ao sentimento popular. Ao longo dos últimos meses, Eduardo Cunha tornou-se um "símbolo do mal". Parcela ponderável da carga de imagem negativa que recai sobre ele provém da maciça cobertura midiática de seu envolvimento na operação Lava Jato.

Punição

Sérgio Moro tem uma antena ligada à opinião pública. Seria desconfortável para ele e os procuradores aceitarem uma delação que transformasse a prisão de Cunha em uma retenção na residência, mesmo sob o constrangimento do uso de uma tornozeleira eletrônica. Dá mostras de que aplicará pesada condenação. Mas o deputado fará tudo o que for possível para mostrar a ausência de motivos para sua prisão. O fato é que sua detenção abriu densa camada de tensão na órbita política. Ele ajudou a uma gorda leva de deputados em suas campanhas. Deverá dar nome aos bois. E estes, por sua vez, terão de demonstrar se os recursos canalizados pelo ex-presidente da Câmara foram devidamente registrados nas planilhas entregues aos Tribunais Regionais Eleitorais de sua região.

Grande ou médio impacto ?

No Parlamento, espraia-se a versão de que os impactos de eventual delação premiada de Cunha não serão tão violentos quanto inicialmente se imaginava. Os efeitos tenderiam a ser menores do que as ameaças proclamadas. Por enquanto, tudo é especulação. Nada se pode afirmar. Cunha é uma pessoa inteligente, engenhosa, e saberá onde e como apertar os calos de ex-amigos, principalmente aqueles que o teriam "traído". O fato é que a delação, qual seja sua extensão, demandará tempo. O foro privilegiado arrastará as investigações e decisões para longe.

Delação Odebrecht

Já a delação dos componentes do Grupo Odebrecht é considerada mais impactante, eis que os delatores poderão contar casos em minúcias, com nomes, datas, números, abordagens, situações específicas. O grande número de delatores - 50 - tende a aumentar o peso da delação. Nesse caso, a imagem que se tem é a do dominó : a queda de uma pedra empurrando outra e assim por diante. O PT e seus protagonistas serão o alvo central, mas outros partidos, como PMDB e PSDB, poderão entrar na lista.

Lula, o epicentro

Luiz Inácio será alvejado de frente. Sabe-se, a essa altura, que seu codinome - amigo - o coloca no centro das investigações. E o fato de ser amigo do pai de Marcelo, Emílio Odebrecht, será usado para desfiar um denso novelo. Essa história dos R$ 8 milhões que a ele teriam sido destinados, negociados pelo ex-ministro Antônio Palocci, virá à tona com muita força. A intermediação de negócios para favorecer a empreiteira deverá ser esclarecida. Recursos para partidos políticos, nomes de favorecidos, enfim, o rolo será todo desvendado. Os mistérios virão à tona. A tênue esperança da área política é que as investigações sejam levadas para as calendas. Assim, adentrariam nos portões do amanhã.

Calendas

Sabe-se que um delator faz, em média, 10 depoimentos. Mas, a depender do perfil do delator, ele poderá prestar até 50 depoimentos. Na delação conjunta da Odebrecht, o número de delatores poderá chegar a 68. Mesmo com um grande número de investigadores, como se pode inferir, o final das investigações tomará muito tempo.

Resgate do PT ?

Lula planeja correr o país fazendo uma campanha onde dirá que se conspira contra ele e os ganhos sociais conquistados na era PT. Vai se fazer de vítima. Tentará mostrar que estão tramando um golpe contra ele. Para afastá-lo da peleja presidencial de 2018. Conseguirá ? Já ensinava Heráclito de Éfeso na Antiguidade : "Um homem nunca atravessa o mesmo rio duas vezes".

Contrastes

O fato é que o clima ambiental voltou a subir muito. As tensões aumentam. E os contrastes emergem aqui e ali. Vejamos. Já se ouve que o Brasil começa a entrar novamente nos trilhos. Esse discurso se alarga nas fronteiras do mercado. A economia entra na linha de arrumação, sob a esperança da aprovação da PEC do teto de gastos (241), cuja última votação no Senado está prevista para 14/12. A inflação dá sinais de arrefecimento. O dólar cai, a bolsa sobe. Mas o desemprego e a subocupação chegam a somar quase 17 milhões de pessoas. Se a confiança começa a ser resgatada, as interrogações se multiplicam na paisagem. É o Brasil dos contrastes.

Poder de compra

O poder de compra dos brasileiros caiu 9% em dois anos, voltando ao nível de 2011 : ou seja, de R$ 3,49 trilhões para R$ 3,17 trilhões.

Poderes em guerra

A tensão se avoluma. A invasão do Senado e a prisão de agentes policiais da Casa pela Polícia Federal abrem mais uma arena de guerra entre os Poderes. Renan Calheiros, o presidente do Senado, denuncia a ação da PF no Senado por decisão de "um juizeco de primeira instância". Com isso, abre querela com o Judiciário. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, rebate : "Onde juiz for destratado, eu também sou", exigindo respeito dos demais Poderes da República. Renan também chama o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, de "chefete da polícia", atirando em um alto quadro do Poder Executivo. O presidente da República, Michel Temer, com sua índole conciliadora, tenta acalmar os ânimos. Possivelmente, reúna a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, o presidente do Senado, Renan Calheiros, e o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, no lançamento do Pacto Nacional pela Segurança Pública, previsto para esta sexta-feira.

A palavra do ministro Gilmar

O país está muito tenso. Judiciário polêmico. É também o que se vê. O ministro Gilmar Mendes tem sido um contundente e constante analista do comportamento de juízes da primeira instância. Argumenta que a competência para uma ação no Senado compete ao Supremo Tribunal Federal e não a um juiz de grau inicial. Na entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Gilmar fez contundente crítica ao corpo judicial, dizendo que os 55 mil juízes brasileiros querem imitar Sérgio Moro. Lembra, ainda, que a operação Lava Jato não pode ser instrumento para reivindicar aumento salarial. Há dias expressou ácida crítica contra os componentes do TST, atribuído a alguns um voto ideológico. Gilmar tem sido um ministro duro e direto nas análises sobre o papel de nossas instituições. Merece aplausos.

Pano de fundo

Por trás do imbróglio criado com os últimos eventos nas frentes das instituições há um conjunto de posições, pleitos, intenções e disputas : 1. O Poder Legislativo enxerga suas funções diminuídas pelo ativismo judicial ; 2. O Poder Judiciário quer avançar posições e fazer valer sua força, inclusive em defesa corporativa de salários etc. ; 3. O Poder Judiciário ocupa espaços em função da ausência de legislação infraconstitucional em determinados campos ; 4. O Poder Executivo luta para arrumar a economia e adensar sua base política, mas vê ameaçada tal meta ante a avalanche de denúncias na esfera congressual, que deixa o corpo parlamentar mais sensível ao clamor das ruas ; 5. Os atores políticos passam a cobrar custo mais alto quando se vêem acossados pela operação Lava Jato ; 6. O Poder Legislativo quer aprovar a Lei da Autoridade para evitar abusos de operadores do Direito, mas sente-se acuado diante da reação contrária da opinião pública.

Prioridades do Executivo

O Poder Executivo tem os seguintes desafios (entre outros) pela frente : a. Aprovar a PEC 241 ainda este ano ; b. Aprovar a Reforma da Previdência no 1º trimestre de 2017 ; c. Aprovar a modernização da Reforma Trabalhista em 2017 (se o STF não o fizer por meio de interpretação constitucional sobre a súmula 331 do TST e a questão do acordado sobre o legislado) ; d. Ver aprovada pelo Congresso parte da Reforma Política ; e. Negociar com Estados uma política de teto de gastos ; f. Aprovar a Reforma Educacional (segundo grau) ; g. Sustar a curva crescente do desemprego ; h. Recompor a confiança de investidores ; i. Fazer um ajuste fino em uma ou outra Pasta ; j. Administrar pressões de entidades como Centrais Sindicais.

Reclamação no CNJ

A OAB Federal e a OAB/SP entraram com uma reclamação disciplinar no Conselho Nacional de Justiça contra magistrados trabalhistas da 2ª região, que despacharam em reclamações trabalhistas promovendo adiamento de audiências para 2017. Tais juízes usaram como justificativa para não trabalhar adesão a um ato definido pela sua associação de classe contra a PEC 241/2016 (controle de gastos públicos), PEC 62/2015 (desvinculação de subsídios da magistratura dos subsídios dos ministros do STF) e PL 280/2016 (abuso de autoridade). Argumento da Ordem : "não pode um magistrado usar de sua autoridade para praticar atos processuais estranhos à lide ou às partes, como redesignação de audiências para meses ou anos seguintes, fundamentando na participação em ato de caráter político-corporativo, qual seja, combater projetos legislativos de interesse de sua corporação".

Conselhão

O governo editou decreto recriando Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que tem como tarefa o assessoramento do presidente da República na formulação de políticas e diretrizes voltadas ao desenvolvimento econômico e social e apreciar propostas de políticas públicas, reformas estruturais. Terá 80 componentes.

Torquato Gaudêncio é cientista politico e Professor Titular na Universidade de S. Paulo. Este texto foi publicado originalmente em Migalhas.com.br, edição de 27.10.16.

Lei da mordaça para o Judiciário e Ministério Público

Por Modesto Carvalhosa

Na madrugada seguinte à da tragédia aérea que abalou o País, a Câmara dos Deputados, por obra dos 313 parlamentares que compõem a facção criminosa conhecida pela alcunha de Comando pró-Corrupção, promoveu uma das maiores afrontas que o povo brasileiro já sofreu em sua história.

Eles massacraram, na calada da noite, os 103 deputados que integram a combativa Frente Parlamentar Anticorrupção, presidida pelo deputado Mendes Thame, e aprovaram uma pretensa lei que criminaliza os magistrados e membros do Ministério Público (MP).

Acontece que essa medida demandaria um projeto de reforma constitucional (PEC) para ser reconhecida no ordenamento jurídico.

Com tal providência o Comando pró-Corrupção pretende impor a lei da mordaça ao Judiciário e ao MP, contendo o famigerado diploma conceitos vagos e subjetivos que permitem aos políticos corruptos condenar e afastar de suas funções qualquer juiz ou promotor que, por exemplo, se manifeste publicamente sobre um caso ou, simplesmente, falte com o “decoro”.

Embora não tenham nenhum decoro na relação com seus pares e as empreiteiras, os parlamentares corruptos, com certeza, exigirão dos juízes e dos promotores o mais alto nível de discrição no exercício de suas funções, de modo a não ferir os sentimentos dessa casta criminosa, sob pena de esta – pasmem – os condenar ao impeachment! Dá para acreditar?
Criminaliza-se toda a atividade de julgamento e de investigação.

Qualquer político pertencente à facção criminosa da Câmara, investigado ou condenado, poderá alegar que houve abuso do promotor e do julgador, de modo a afastá-los de suas funções e buscar a anulação do processo ab initio. Trata-se do escabroso “crime de hermenêutica” adotado na Alemanha nazista contra os juízes. Nem Berlusconi poderia imaginar solução tão perfeita para legalizar o crime de corrupção.

Os parlamentares corruptos, que formam a maioria esmagadora da nossa “Casa de Leis”, conseguiram desvirtuar completamente o projeto defendido pelos deputados Joaquim Passarinho e Onyx Lorenzoni, e subscrito por 2,5 milhões de brasileiros, ignorando totalmente o que previam as “10 Medidas” exigidas pela população nas ruas. O projeto que visava a punir a corrupção de políticos se transformou em projeto de punição de juízes e membros do MP. Acontece que a ação legislativa criminosa esbarra na Constituição da República.

A propósito, cabem alguns esclarecimentos sobre crime de responsabilidade. Trata-se de matéria regida pelos artigos 29-A, 50, 52, 85, 100 e 102 da Constituição federal. Estão incursos nesse crime apenas o presidente da República, ministros de Estado, prefeitos, vereadores, ministros do STF, procurador-geral da República e os presidentes de Tribunais de Justiça, estes apenas quando retardarem ou frustrarem a liquidação de precatórios.

Ainda que a Lei 1.079/50, sobre crimes de responsabilidade, seja mais extensiva, sua recepção pela Constituição está restrita exaustivamente aos agentes públicos previstos na própria Carta Magna. Não pode agora a hegemônica facção criminosa da Câmara estender esse tipo de delito aos juízes e aos promotores. A não ser que, no seu caviloso intento de legalizar a corrupção, consigam aprovar uma PEC que estenda a estes o impeachment em razão do mérito de seus julgados ou suas investigações.

O crime de responsabilidade estabelecido na Constituição define-se como uma conduta ilícita praticada pelos agentes político-administrativos ali apontados e cujos julgamento e sanção são também políticos, o que não se coaduna com a atuação dos juízes e do MP. Por se tratar de infrações político-administrativas, elas são, em regra, processadas e julgadas no âmbito do Poder Legislativo. O julgamento é político e a sanção não tem natureza criminal, apesar da denominação “crime de responsabilidade”.

Esse tipo de crime jamais pode ser cometido por pessoas enquanto exercem atividades jurisdicionais ou investigativas. A submissão de juízes e membros do MP a esse crime esvaziaria completamente as funções precípuas e cotidianas dessas instituições.

O que se busca é punir um agente político que impeça o correto funcionamento dos Poderes do Estado. Isso nada tem que ver com a função de julgamento, promovida pelos juízes, ou de investigação e proteção do interesse coletivo, exercida pelos promotores.

Juízes e integrantes do MP não são agentes políticos, sua atuação está limitada ao cumprimento das funções judicantes e de defesa da sociedade atribuídas pela Constituição.

O Judiciário e o MP, já saturados de trabalho, teriam, se aprovado o sórdido projeto, de se consagrar primordialmente a responder por crime de responsabilidade ajuizados pelos réus e pelos investigados que desejarem opor obstáculos ao processo ou à investigação, ou simplesmente retaliar politicamente o Judiciário ou o MP.

Em consequência, haveria uma enxurrada de processos de impeachment por crimes de responsabilidade que deveriam ser julgados pelos parlamentares, desviando-os da sua função precípua de legislar (?!).

Essa medida espúria teria como efeito a completa “politização da Justiça” e o desequilíbrio entre os Poderes, banalizando função extremamente excepcional, atribuída ao Legislativo, de julgar os membros dos demais Poderes por práticas político-administrativas ilícitas, exaustivamente previstas na Constituição. Os investigados passariam a julgar os investigadores e os réus passariam a julgar os julgadores.

Cabe a todos nós tomar as ruas para apontar, um por um, os 313 membros do Comando pró-Corrupção e repudiar suas ações criminosas no seio da Câmara, adotadas na sinistra madrugada de quarta-feira. Trata-se de medida “legislativa” que afronta a Constituição federal não só por ferir os princípios da moralidade e da impessoalidade, mas por desvirtuar a natureza restrita e especialíssima do crime de responsabilidade.

Modesto Carvalhosa é advogado. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 03.12.16

Marketing político derrotado?

Por Gaudêncio Torquato

Entre os instrumentos usados pelos atores políticos para obter vitórias, um é típico da civiliza­ção do consumo e abriga o campo do simbolismo. É conhecido como marketing político. Tem origem na liturgia do poder, fazendo-se presente na História da humanidade como sistema de camuflagem para lapidar a imagem de governantes, imperadores, reis, príncipes, presidentes, políticos e celebridades. Quinto Túlio já o experimentava em 64 A.C. quando aconselhava o irmão Marco Cícero, famoso tribuno romano, candidato ao consulado, a se apresentar como um “homem novo bem preparado para conseguir a adesão entusiasmada do povo”. César cal­culava os gestos públicos.

Já Maquiavel ensinava o Príncipe a divertir o povo com festas e jogos. Luís XIV desfilava nos espetáculos que pro­movia. Napoleão era um pavão vestido de púrpura quando se coroou para receber a benção do papa em Notre-Dame. Hitler foi treinado em aulas de declamação (por um professor de oratória chamado Basil) para agitar as massas, usou a cruz gamada para propagar o nazismo, podendo-se dizer que o marketing político ganha status profissional sob o comando de Joseph Goebbels, o “mar­queteiro” hitlerista.

Pois bem, essa engenharia de encantamento das massas aportou há mais de cinco décadas no Brasil para criar uma cultura de elevação do Estado-Espetáculo. Em 60, tivemos as primeiras campanhas marque­teiras. Começou com a mobilização das massas nas ruas. Passou pela adoção de símbolos, cores e cantos até ganhar, nos tempos atuais, uma dimensão piro­técnica, principalmente ao privilegiar a forma sobre o conteúdo. Nesse caso, políticos costumam ser transformados em figuras mais artificiais. Esse é um desvio do bom marketing. Slogans se antecipam a programas (quem não se lembra do Fome Zero e do PAC?). Implanta-se a telecracia, em que atores canhestros são ensinados a engabelar a fé dos tele-eleitores. Não é de admirar que a representação política, plasmada pela cosmética mercadológica, acabe criando imenso vácuo no meio social. Na eleição desse ano, os eleitores não entraram muito no jogo do marketing.

A transformação da política em extensão do show business tem sido o ofício de uma classe treinada para ampliar os limites do Esta­do-Espetáculo a fim de garantir o sucesso de seus clientes. Os nossos profissionais, alguns muito bons como Chico Santa Rita ou o guru das pesquisas e da neurociência aplicada à propaganda, Lavareda (no livro Neuropropaganda de A a Z, o cientista social Antonio Lavareda e o jornalista João Paulo Castro selecionam e explicam conhecimentos básicos da neurociência na Propaganda) são referências de qualidade. Ocorre que os eleitores, mais racio­nais, desconfiam do discurso eleitoral, na esteira da lama que escorre nos vãos e desvãos da política. Temem se deixar enganar facilmente. Ou seja, comprar gato por lebre.

O fato é que a varinha de condão é usada para empetecar atores pelo País afo­ra. Nessa eleição, este bordão não teve muito sucesso: “Fulano fez, fulano faz e fará melhor”. O eleitor está mais atento. Isso é oba-oba de candidato. Como as tais obras não aparecem, o que há é uma reversão de expec­tativas. Os geniais “feitores” desmoronam. Prefeituras e governos, ao se encostarem no monumental paredão de pasteurização construído com a argamassa do marketing de má qualidade, acabam soterrados. A grande distância entre a imagem dos entes governativos e a realidade social transforma o instrumento do marketing em arma mortal contra ele próprio.

A degradação da política, sabe-se, é um processo em curso e resulta da antinomia entre o interesse individual e os interesses coletivos. Essa pertinente observação de Maurice Duverger, quando estabelece comparação entre o liberalismo e o socialismo, explica bem nossa crise. A democracia liberal abriu imensas comportas para a corrupção e o socialismo revolucionário se arrebentou sob os destroços do Muro de Berlim. Daí a procura por um novo paradigma capaz de resgatar a velha utopia expressa por Aristóteles, em sua Política: a de que o homem, como animal político, deve participar ativamente da vida da polis (cidade) para servir ao bem comum. A polis, portanto, não pode ser um negócio particular. E o marketing político, por sua vez, não deve e não pode ser instrumento para mudar o conceito de política, de missão para profissão.

Gaudêncio Torquato, Jornalista, Professor Titular na USP, é consultor politíco e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato.

O pleito e os primeiros sinais do futuro

Por Gaudêncio Torquato

O PSDB aparece como o grande vencedor do pleito que se encerra. Deverá eleger mais de 800 prefeitos, 15% a mais do que obteve em 2012. A vantagem dos tucanos se dá principalmente na esfera das 92 maiores cidades brasileiras, onde já elegeu 15 prefeitos no primeiro turno, disputando hoje em outros 19 municípios. Sua vitória permite divisar horizontes. O primeiro diz respeito ao campo doutrinário. A social-democracia, de matiz brasileira, sai fortalecida. Isso quer significar a fixação de pinos no espaço central do arco ideológico, com tendência de ocupação mais forte no campo de centro-esquerda. Esse empurrão mostra um eleitor contrário aos radicalismos e extremos ideológicos.

O tucanato se alinha ao governo Temer, endossando sua política de racionalização do Estado com a consequente desestatização de áreas, e adoção de programas de cunho social, entre eles o da Bolsa Família, gerado no ciclo petista, importante instrumento de distribuição de renda. A vitória do PSDB também representa um veto do eleitor ao PT e suas lideranças, a partir de Lula e Dilma, aos quais se atribuem a derrocada da economia e a maior recessão de nossa história. Portanto, o maior derrotado é o PT, que leva a fama de ter coordenado monumental esquema de corrupção, objeto de investigação da Operação Lava Jato. O último bastião petista, João Paulo, ex-prefeito do Recife, tende a ser derrubado, hoje, pelo atual alcaide, Geraldo Júlio, do PSB.

Os tucanos ganham cacife para entrar fortes no tabuleiro de 2018. Três deles se apresentam como protagonistas centrais: Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra. Alckmin certamente assume posição de maior relevo em função da extraordinária vitória de João Doria no primeiro turno em São Paulo, metrópole de maior densidade eleitoral do país. Já a vitória ou derrota do tucano João Leite, em Belo Horizonte, medirá a temperatura de Neves. Caso vença, melhora sua posição no ranking. A recíproca é verdadeira. José Serra, atual chanceler, acompanhará atentamente o desenrolar do ativismo tucano nos próximos tempos para tomar, mais adiante, a decisão: se quiser ser candidato à presidente em 2018, poderá sê-lo em outra agremiação.

CAPILARIDADE DO PMDB

O pleito mostra, ainda, que o PMDB continuará a dar as cartas no jogo, eis que, mesmo não obtendo a maior votação, contará com o maior número de prefeitos: elegeu 1029 no primeiro turno, vencendo em 5 das 92 maiores cidades e disputando, hoje, em mais 15. Trata-se da entidade com maior capilaridade no território. Além de médios, abarca considerável quantidade de pequenos municípios. O PMDB simboliza o equilíbrio da balança do poder, fazendo alianças à esquerda ou à direita, detendo, assim, imensa capacidade de ser o maestro da orquestra. Sua força poderá ainda ser avaliada pelo maior número de vereadores eleitos, ao qual se somam as maiores bancadas de deputado estadual, federal e de senadores.

Partidos médios e pequenos avançam nas cidades, sendo mais competitivos que na eleição de 2012. Chamam a atenção candidatos dessas siglas disputando o segundo turno em Belo Horizonte (Alexandre Kalil-PHS), Aracaju (Edvaldo Nogueira-PC do B), Belém do Pará (Edmilson Rodrigues- PSOL), Macapá (Clécio Luís-Rede), Vitória( Luciano Rezende-PPS) e no Rio, onde o PSOL tem o perfil para conquistar o maior número de votos, Marcelo Freixo. Os partidos médios, em sua maioria (exceção do PDT, parte do PSB), tendem a se incorporar ao amplo grupamento que ancora o governo, reforçando a tese de que os horizontes do amanhã ganharão uma tintura acentuadamente situacionista.

A FORÇA DO SITUACIONISMO

Analisemos a hipótese. Sobre o território municipalista que hoje estabelece nova base serão edificados os pilares das campanhas estaduais e federal de 2018. A radiografia política que começa a ser vista exibe um corpo intensamente situacionista, formado por um aglomerado de partidos inseridos na base do governo. Os traços oposicionistas, fragmentados e dispersos, sugerem que as forças por eles representadas terão chances reduzidas de marcar forte presença na paisagem eleitoral de 2018. O PT foi praticamente triturado do mapa político, transferindo ao pequeno PSOL a herança de oposição ideológica no espectro partidário. O PT não estará morto e Lula continuará muito vivo para tentar resgatar a história de conquistas do partido. Mas em dois anos essa perspectiva é remota.

O calibre da força e da fraqueza da situação e da oposição será dado pela economia. Arrumada, organizada, trará confiança ao mercado, recuperará investimentos e diminuirá o tamanho da massa desempregada. Sob essa hipótese, é provável que o aumento do Produto Nacional Bruto da Felicidade e da Harmonia produza intensa adesão à gestão governamental. Os atores políticos agirão sob o pragmatismo. Governo aprovado puxará seguramente seu apoio. Nesse caso, também a recíproca é verdadeira. Se o país permanecer no fosso da recessão e do desemprego, os blocos oposicionistas ganharão volume. Nessa onda, PT, PSOL e PC do B teriam chances de apostar em urnas gordas. Dessa forma, fatores exógenos – recuperação da economia, diminuição do desemprego – determinarão os rumos partidários.

Se a conjuntura econômica, portanto, se apresentar favorável, é viável apostar na hipótese de que candidatos mais competitivos em 2018 serão aqueles que colaboraram para a melhoria de vida da população. PSDB, PMDB, PSD, PSB ou DEM, por exemplo, serão motivados a lançar candidatos. Nesse caso, dois, três ou mesmo quatro competidores deverão surgir, representando sentimentos e posicionamentos de um gigantesco centro social: um mais centro-direita, outro mais centro-esquerda e até outro que encarne o papel de antipolítico, nos moldes de Doria, em São Paulo, ou Kalil, em BH. Haverá tempo para uma acomodação das “placas tectônicas” da política até as margens de 2018. O ano de 2017 será acompanhado com muita atenção, deixando espaço para trocas partidárias, reposicionamentos de lideranças, formação de parcerias. A tendência de agregação de siglas será forte caso o governo Michel Temer adquira musculatura e aprovação social.


Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

Lula, o intocável

O ex-presidente Lula da Silva não aceita ser julgado pelas cortes do Judiciário, mas somente pelo tribunal da história. Diante da iminência de ter de esclarecer, sob juramento, por que recebeu tantos favores de amigos empreiteiros e por que, sob seu governo, nasceu e floresceu o maior esquema de corrupção da história do País, o chefão petista, na falta de uma resposta plausível a essas questões, pretende convencer o País de que seu caso é parte de um ataque generalizado às “conquistas sociais” que o período petista supostamente protagonizou. Ou seja, Lula quer ser visto não como um cidadão com direitos e deveres como todos os demais brasileiros, e sim como a encarnação dos pobres em geral, de modo que obrigá-lo a prestar contas à Justiça seria o equivalente a criminalizar os menos favorecidos.

Nem é preciso enfatizar o quanto de autoritário há nesse pensamento. Os piores ditadores da história contemporânea tinham como estratégia confundir-se com o povo, transformando todos aqueles que pretendiam fazê-los responder por seus crimes em “inimigos do povo”. Além disso, colocavam-se acima e além das instituições. Houve época em que até se faziam adorar como deuses. Mais modesto, Lula tem-se limitado a exaltar a pureza cristalina de sua alma. Ele, que nunca foi exatamente um democrata, parece ter decidido enveredar de vez por esse caminho autoritário, que ofende as instituições democráticas, como se estas estivessem a serviço de conspiradores hostis aos pobres e desvalidos.

Talvez desesperado ante a perspectiva cada vez mais real de ser preso e enfrentar o frio da carceragem de Curitiba, do qual se queixou o deputado cassado Eduardo Cunha, Lula mandou seus amigos criarem um movimento nacional para defendê-lo. Conforme reportagem do Valor, os petistas acreditam que não basta responder aos processos nos tribunais – Lula é réu em três ações penais. Para eles, é preciso defender também seu “legado”, por meio de uma campanha que inclui a criação de comitês estaduais pró-Lula.

Nem mesmo a reconstrução do PT – que depois de ter sido massacrado nas eleições municipais corre o risco de sofrer uma debandada de parlamentares e enfrenta uma feroz luta interna de chefetes que disputam seus caquinhos – tem precedência sobre o mister de salvar Lula da cadeia. Gilberto Carvalho, boneco de ventríloquo do chefão petista, mandou avisar: “Antes de nos preocuparmos com a sucessão no PT, temos de nos mobilizar em defesa do Lula”.

Nessa mobilização, Lula, como sempre faz quando se sente acuado, prometeu percorrer o País, “mas não em sua defesa pessoal, e sim na dos direitos que ajudou a conquistar e que o atual governo quer extinguir”, explicou o ex-ministro Gilberto Carvalho, que articula a campanha. “Além do processo de criminalização do Lula e do PT, há um movimento para retirar direitos da população”, disse Carvalho.

Com isso, está dada a senha para ligar a defesa de Lula à defesa dos pobres, como se aquele e estes fossem uma coisa só. A estratégia é dizer, na forma de slogans, que “justiça para Lula” é o mesmo que “justiça para todos”. Na mesma linha, segundo planejam os marqueteiros, os simpatizantes do chefão petista sairão às ruas bradando, ao mesmo tempo, “tirem as mãos dos nossos direitos” e “tirem as mãos de Lula”.

Pode-se esperar, portanto, um recrudescimento do desrespeito de Lula e dos petistas ao Judiciário. Anda a pleno vapor sua campanha de desmoralização do Brasil no exterior, por meio de petições e denúncias esdrúxulas em que seus advogados questionam a lisura dos magistrados de todas as instâncias, com o indisfarçável propósito de criar um clima para, na undécima hora, se não houver alternativa, conseguir que algum regime amigo lhe dê asilo.

No front interno, Lula gravou um vídeo em que diz que os procuradores que o denunciaram são “reféns da imprensa” e os convidou a refletir sobre isso. Já o também denunciado Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula, pediu ao juiz Sergio Moro, em sua defesa prévia, que “supere a imagem mental já construída sobre os fatos”. Ou seja: para essa gente, só quem está sob influência da imprensa ou se deixa levar por preconceitos é capaz de apontar o dedo para a “viva alma mais honesta deste país”.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 25.10.16.

Um vale tudo judicial

Por Eloisa Machado de Almeida

A prisão preventiva somente pode ser decretada em condições excepcionais, já que ocorre antes da condenação. Os requisitos legais são claros: o réu ou investigado deve oferecer risco à instrução do processo, como a destruição de provas, ou à aplicação da lei penal, como a fuga, ou ainda atentar contra a ordem pública, cometendo novos crimes.

Mesmo com esses critérios, o Judiciário abusa das preventivas: pelo Departamento Penitenciário Nacional, 40% dos presos no Brasil nem sequer tiveram uma condenação em primeira instância. A excepcionalidade que a lei impõe à prisão preventiva se perde em um sistema de justiça que investiga mal e prende muito.

Por esse viés, a decretação da prisão preventiva do deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é comum.

Os fundamentos apresentados pelo juiz Sérgio Moro repetem aqueles usados pelo STF quando determinou a suspensão de seu mandato: Cunha abusava de seu poder como presidente da Câmara dos Deputados, interferia em CPI e obstava o Conselho de Ética. Nada de novo.

No mais, a decisão faz conjecturas sobre o risco de fuga, medo de testemunhas e sobre a prática de novos crimes. Entretanto, faz isso sem apresentar nenhum fato novo, com base em risco abstrato. O próprio Moro argumenta que desconhece “a total extensão das suas atividades criminais e a sua rede de influência”. Isso é um problema.

Quando se permite que um juiz decida sobre a perda de liberdade de uma pessoa, antes da sentença, sem provas de que estaria obstruindo o processo, viola-se a lei. Isso é um problema mesmo sendo comum e mesmo que essa pessoa seja Eduardo Cunha.

Contra isso, a decisão diz que excepcional não é a prisão, mas a corrupção, o que permitiria a flexibilização da lei, uma versão repaginada da máxima de que os fins justificariam os meios (nas prisões preventivas, nos grampos, nos vazamentos). Nessa toada, excepcional será a Lava Jato, um vale-tudo judicial.

Eloísa Machado de Almeida, professora e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.10.16

Uma cínica reforma da reforma

A proibição de doações eleitorais de pessoas jurídicas para candidatos e partidos estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro do ano passado e já aplicada no atual pleito municipal provocou a reação previsível dos políticos: para eles, foi um desastre. Antes da conclusão dessa rodada eleitoral com a realização do segundo turno onde isso se tornou necessário, os políticos se articulam para, no âmbito da reforma política, restabelecer as doações de empresas. É a reforma da reforma.

A decisão do STF proibindo o financiamento de campanhas políticas por empresas privadas limitou a influência, no processo eleitoral, de interesses de grupos econômicos que corrompem o princípio “um cidadão, um voto”. É esse princípio que estabelece plena igualdade entre os cidadãos no momento mais significativo e decisivo desse processo, aquele em que cada eleitor escolhe seus representantes. Empresas não votam e, de resto, dispõem de muitas maneiras legítimas para defender seus interesses.

O argumento de que “a democracia tem um custo” é óbvio, mas não pode significar que esse custo deva ser coberto com a transformação de eleição de representantes do povo em balcão de negócios, já que é igualmente óbvio o fato de que nenhum empresário faz doação eleitoral como ato filantrópico em benefício do aperfeiçoamento da democracia, mas como investimento com retorno prévia e cuidadosamente estabelecido.

É no mínimo estranho que, mesmo depois de tudo o que o mensalão e a Operação Lava Jato e congêneres já revelaram, ainda haja quem defenda o restabelecimento de uma generosa oportunidade “legal” – a doação eleitoral “declarada e registrada na Justiça Eleitoral” – para que homens de negócio e políticos possam se associar em iniciativas destinadas a corromper um processo eleitoral que está longe de ser perfeito.

Os argumentos a favor do restabelecimento das doações empresariais partem do princípio cínico de que só é possível fazer eleição com muito dinheiro. Os políticos estão alarmados com a forte redução das doações eleitorais nesta eleição municipal – o que era perfeitamente previsível –, mas o fato é que tudo transcorreu na mais perfeita normalidade. O primeiro turno foi realizado, todos os vereadores já estão eleitos nos mais de 5,5 mil municípios e só será necessário segundo turno para decidir a disputa para a prefeitura em 55 cidades. A inexistência de doações de pessoas jurídicas pode ter afetado contas bancárias de políticos especializados na arte de ganhar dinheiro até perdendo eleição, mas forçou a aproximação do candidato com o eleitor, o que é salutar para o fortalecimento do sistema representativo.

De acordo com a edição de ontem do Estado, articula-se no Congresso o restabelecimento da doação eleitoral de empresas. Há, porém, um artifício para dourar a pílula: a criação de um fundo eleitoral, administrado pela Justiça Eleitoral, por meio do qual os recursos doados seriam distribuídos “com transparência” entre os partidos.

Há também duas hipóteses para a configuração dessa possibilidade. Na primeira, a Justiça Eleitoral recebe e distribui as doações a partir de critérios talvez parecidos com o que ocorre atualmente com o Fundo Partidário: a cota de cada partido corresponde ao tamanho de sua representação no Congresso. A segunda hipótese, porém, é risível: ao doarem para o Fundo, as empresas definem antecipadamente quais partidos ou candidatos devem ser beneficiados. Quer dizer: é apenas a reconstrução do modelo já proibido pelo STF, mas que burocratiza o que foi reformado, na medida em que estabelece um intermediário para as doações.

Há ainda outro argumento, igualmente cínico e falacioso, a favor da reforma da reforma: a constatação, pelo Tribunal Superior Eleitoral, de que houve grande número de irregularidades na prestação de contas sobre as doações de pessoas físicas, como a de um beneficiário do Bolsa Família que doou R$ 75 milhões para um candidato, desautorizaria o modelo vigente. Ninguém imagina que não possa haver fraude também nas doações de pessoas físicas. Mas esse é um problema afeto à Justiça Eleitoral, não ao sistema eleitoral nem, muito menos, a políticos com crise de abstinência do dinheiro fácil.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 19.10.16.

Retrocesso na democracia

Por Luciano Bandeira

Todos desejam o combate efetivo da corrupção. Desconheço um único cidadão brasileiro, salvo os próprios envolvidos, que não defenda o fim dessa pratica no nosso sistema de poder. Deveria ser, nesse aspecto, fácil combater e erradicar esse problema, uma vez que é um dos poucos consensos da nossa sociedade. A verdade, contudo, é outra.

O anseio por soluções rápidas e absolutas nunca é correto. Pior, pode causar o retrocesso de um processo civilizatório fundado na liberdade e na democracia. As medidas apresentadas pelo Ministério Público Federal para combater a corrupção reduzem direitos e, consequentemente, a liberdade.

Devemos ter consciência de que o combate à corrupção não se faz com a criação de novas leis, com o aumento de penas e, muito menos, com a limitação do direito de defesa. A corrupção no Brasil não existe por falta de legislação dura que permita o seu combate. O exemplo disso são os diversos casos e operações de combate à corrupção em curso no nosso país.

A corrupção reflete questões enraizadas na sociedade que somente serão resolvidas de forma efetiva com mais democracia e direitos. A forma mais eficiente de combater a corrupção e reduzi-la está na garantia de um sistema eleitoral livre do financiamento empresarial, o que já foi feito pelo STF. A fiscalização dessa conquista da sociedade ataca as causas da corrupção e um sistema que vincula os eleitos aos seus financiadores. Punir o direito de defesa e criminalizar a advocacia não resolve qualquer problema; simplesmente produz injustiça.

Quando existe uma proposta que limita a capacidade de defesa do cidadão perante o Estado, não estamos falando de Justiça e sim de autoritarismo. Até porque, um processo não demora porque existem recursos ou advogados, mas pela incapacidade de gestão eficiente da máquina pública, especialmente do Poder Judiciário.

A transformação do nosso país em um Estado policial, onde todos são culpados, até que provem o contrário, é um retrocesso absurdo. Esse é o perigoso espírito dessas medidas que não resolvem o problema na sua raiz e buscam a hipertrofia da acusação. Observar a proposta da criação de uma modalidade de prisão denominada “extraordinária” realmente assusta.

Estamos percorrendo o caminho do abismo com a flexibilização das garantias. Ao aceitarmos soluções menos democráticas para resolver um problema, mesmo que seja grave, como a corrupção, estamos deixando a porta aberta para o retrocesso do progresso democrático. Neste momento, devemos nos concentrar em produzir mais transparência, aprofundar a democracia e proteger o pleno direito de defesa. A limitação do habeas corpus, a prisão “extraordinária” e a redução dos recursos não vão acabar com a corrupção.

Luciano Bandeira é Advogado. Diretor da OAB-RJ. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 12.10.16

Um País afundado em dívidas

Com o governo atolado em dívidas e sem perspectiva de arrumar suas finanças a curto prazo, as empresas brasileiras mais endividadas terão de buscar no mercado a solução para seus problemas. As condições internacionais ainda são benignas, mas poderão piorar quando os juros subirem de novo nos Estados Unidos. Quando isso ocorrer, muito dinheiro hoje disponível para os emergentes será provavelmente desviado para aplicação em ativos americanos.

Riscos financeiros são hoje elevados em todo o mundo e a situação de alguns grandes bancos europeus preocupa os mercados. Mas governos do mundo rico e de alguns países emergentes têm algum espaço para socorrer companhias endividadas e facilitar o ajuste do sistema bancário. No Brasil, o setor público terá de se empenhar prioritariamente, por muitos anos, em melhorar o próprio balanço.

Este quadro resume informações importantes – e pouco animadoras – de dois documentos liberados na semana passada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e comentados por diretores da instituição. Um relatório sobre finanças globais mostrou um cenário de curto prazo melhor que o esperado e uma coleção de riscos significativos a médio prazo. Outro relatório mostrou como o enorme endividamento público e privado impôs desafios à política fiscal. Nos dois estudos, mas especialmente no segundo, o Brasil aparece em situação especialmente vulnerável.

A dívida bruta do setor empresarial, das famílias e dos governos atingiu US$ 152 trilhões no ano passado, valor correspondente a 225% do produto bruto mundial. Oito anos depois do estouro da última grande crise financeira, em 2008, o risco financeiro permanece elevado. A recessão foi superada na maior parte do mundo, mas o crescimento continua insatisfatório, desajustes importantes subsistem e o endividamento excessivo ameaça de novo a estabilidade mundial.

Vários fatores negativos diferenciam a posição brasileira nesse quadro. Depois de dois anos de recessão, a economia continua em marcha lenta, a inflação ainda é elevada, as contas públicas estão arrasadas e o setor não financeiro – público e privado – enfrenta os efeitos do endividamento acumulado nos últimos anos. Com a contração dos negócios e o aperto do crédito, a situação financeira das empresas, principalmente das grandes, ficou muito complicada.

Segundo o FMI, as firmas “fracas”, isto é, com dificuldade para cobrir os juros, devem cerca de US$ 51 bilhões, aproximadamente 11% de todo o débito corporativo. Num cenário adverso, a dívida em risco poderá subir para US$ 88 bilhões. A recomendação é aproveitar as condições internacionais por enquanto favoráveis.

Em países com menor aperto fiscal os governos poderão socorrer as firmas endividadas. O caso do Brasil é muito diferente. A dívida bruta do setor público bateu em 73% do Produto Interno Bruto (PIB), 30 pontos acima da média de outros emergentes.

Se o governo conseguir arrumar as próprias contas nos próximos anos, já fará um serviço muito importante. Se mostrar forte compromisso com a pauta de ajustes e de reformas, empresários e investidores privados se animarão a intensificar os negócios e isso facilitará a recuperação geral da economia.

Pelas projeções do FMI, o saldo primário das contas públicas – sem os juros, portanto – continuará deficitário até 2019. Para 2020 está estimado um saldo positivo equivalente a 0,3% do PIB. O resultado deverá chegar a 0,7% no ano seguinte. Mas isso ainda será insuficiente para impedir a deterioração geral das contas. O saldo nominal – com o custo dos juros – continuará no vermelho, com valores negativos de 7% em 2020 e 6,4% em 2021.

Como o dinheiro, até lá, será insuficiente para o pagamento integral dos juros, a dívida bruta chegará a 90,8% do PIB em 2020 e a 93,6% no ano seguinte. Em 2021, a dívida pública dos emergentes e dos países de renda média corresponderá a 52,6% do PIB, de acordo com o FMI. Para a América Latina, a média projetada é 63,6%. Também a deterioração da situação financeira do setor público brasileiro expressa nesses números é parte da herança deixada pelo PT.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 10.10.16

Votando e aprendendo a votar

Por Fernando Gabeira

Não tenho o hábito de comemorar derrota de adversários, porque me lembro de que também já tive as minhas, aritmeticamente, humilhantes. No entanto, o resultado das eleições é uma espécie de confirmação eleitoral do fim de uma época.

Na verdade, o marco inaugural foi o impeachment, que muitos insistem em dizer que foi produto de uma articulação conservadora e dos meios de comunicação. Os defensores dessa tese têm uma nova dificuldade. Se tudo foi mesmo manobra de uma elite reacionária, se estavam sendo punidos pelo bem que fizeram, por que o povo não saiu em sua defesa nas urnas?

Sei que a resposta imediata é esta: a Operação Lava Jato, o bombardeio da imprensa, tudo isso produz uma falsa consciência. Esse argumento é uma armadilha. Nas cartilhas, exaltamos a sabedoria popular. Vitoriosos nas urnas, é para ela que apontamos, a sabedoria popular. De repente, foram todos hipnotizados pela propaganda?

Considero que estas eleições mostraram também uma grande distância entre campanhas e eleitores. No entanto, o declínio geral do sistema político não pode servir de refúgio para esconder a própria derrota.

Em certos momentos da História é difícil delimitar a fronteira entre um movimento político e uma seita religiosa. Mesmo antes do período eleitoral, tive uma intuição do que isso representa. Estava pedalando pela Lagoa, no Rio de Janeiro, e uma jovem com fone no ouvido gritou: “Golpista!”. Saía da natação, era uma bela manhã de setembro, sorri para ela.

Na verdade, estava a caminho de casa para ler o relatório da Polícia Federal sobre as atividades de Antônio Palocci que envolvem os governos do PT. Imaginava o que iria encontrar. Ao chegar em casa pensei nela, na moça com dois fios saindo do ouvido. Se pudesse ler isso que li e tudo o que tenho lido, talvez compreendesse o que é ser dirigido por uma quadrilha de políticos e empreiteiros.

Num raciocínio de rua, pensei ao cruzar com operários da Odebrecht que trabalham nas obras do metrô na Lagoa: esses são gentis, dizem bom-dia.

Bobagem de manhã de setembro, mas uma intuição: enquanto se encarar a queda de um governo que assaltou e arruinou o Brasil como um golpe de Estado, será muito difícil deixar os limites da seita religiosa e voltar à dimensão da vida política.

Há derrotas e derrotas. A mais desagradável é quando não existe uma única voz sensata, dizendo a frase consoladora: o pior já passou.

Quem lê o que se escreve em Curitiba, não só os contos de Dalton Trevisan, mas os relatórios da Lava Jato, percebe que muita água vai rolar.

As eleições não mostraram apenas uma derrota do PT, mas revelaram a agonia do sistema político. Certamente, as de 2018 serão ainda mais decisivas para precipitar a mudança.

Esse é um dos debates que já correm por fora. Às vezes, tocando em aspectos do problema, como o foro privilegiado, o número de partidos; às vezes, discutindo uma opção mais ampla, como a mudança do próprio regime.

Certamente, um novo eixo mais importante de debate se vai travar entre as forças que apoiaram o impeachment. Não são homogêneas, têm diferentes concepções.

A derrocada do populismo de esquerda não significa que não possa surgir algo desse tipo no outro lado do espectro político. Os eleitos de agora têm uma grande responsabilidade não somente com a aspereza do momento econômico, mas também com sua própria trajetória.

Se o sistema político está em agonia, isso não significa que será renovado a partir do zero. A História não começa nunca do zero. Um novo sistema político carregará ainda muitos feridos das batalhas anteriores. E talvez alguns mortos, por curto espaço de tempo.

Creio que o alto nível de abstenção e votos nulos possa fortalecer esse debate. Embora a abstenção elevada seja um fenômeno internacional.

No mesmo dias das eleições municipais no Brasil, a Colômbia votou o referendo sobre o acordo de paz. Abstenção: 62%. Na Hungria, votou-se o projeto europeu de cotas para receber imigrantes. O número de eleitores foi inferior a 50%, invalidando a votação.

Cada lugar tem também suas causas específicas para que tanta gente não se importe com algo que nos parece.

As eleições confirmaram que a qualidade dos políticos representa muito no aumento do descrédito. Mesmo em países com voto facultativo e, relativamente, altos níveis de abstenção, isso parece confirmar-se. Uma campanha como a de Obama atraiu mais gente para as urnas nos EUA.

Depois das eleições começa a etapa em que a superação da crise econômica entra para valer na agenda. Sempre haverá quem se coloque contra todas as reformas e projete nelas todas as maldades do mundo.

Mas entre os que consideram as mudanças necessárias é preciso haver a preocupação de que os mais vulneráveis não sejam atingidos. O instrumento para atenuar o caminho é um nível de informação mais alto sobre cada movimento.

Tenho a impressão de que o Ministério da Educação compreendeu isso na reforma do ensino médio. Outros fatores contribuem para que a discussão seja adequada ao momento. Várias vozes na sociedade já se manifestam a respeito da reforma.

E, além disso, é um tema bastante debatido. Lembro-me de que em 2008 Simon Schwartzman me alertou para o absurdo do ensino médio brasileiro. Defendi a reforma e não me recordo de ninguém que defendesse o ensino médio tal como existe hoje. Por que conter o avanço?

É o tipo do momento em que é preciso esquecer diferenças partidárias. Os índices negativos estão aí para comprovar.

O Congresso pode discutir amplamente o tema, apesar da forma, por medida provisória. Mesmo as críticas sobre a retirada da obrigatoriedade da educação física devem ser consideradas – embora eu ache a educação física facultativa mais eficaz que a obrigatória. E mais agradável para o corpo.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.10.16.

A falácia dos partidos nacionais

Por Murillo de Aragão

Em quase 127 anos da proclamação da República, de acordo com pesquisa da cientista política Maria Tereza Sadek, o Brasil teve nada menos que oito sistemas partidários. Nenhum deles deu certo. Mais recentemente, a história política da redemocratização brasileira tem como ponto lamentável a crescente fragmentação do sistema partidário. No início de 2016 tínhamos 36 partidos registrados oficialmente na Justiça Eleitoral, 27 deles com representação no Congresso Nacional.

A fragilidade do nosso sistema partidário motivou comentários relevantes. Recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que os partidos existiam somente no Congresso, e não na sociedade. O procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos líderes da Operação Lava Jato, foi além e afirmou, durante entrevista coletiva sobre a 28.ª fase da operação, que, tendo em vista as investigações, era possível concluir que o sistema partidário brasileiro se encontra “apodrecido”.

Com a fragmentação, o presidencialismo de coalizão busca estabilidade e governabilidade construindo coalizões no Congresso que, pela amplitude e diversidade de interesses, criam dificuldades adicionais de gerência no relacionamento.

Na atualidade, o maior partido da Câmara não tem 66 deputados num total de 513; e apenas três partidos, incluindo o PMDB, têm mais de 50 deputados em suas bancadas. São muitos os partidos disputando posições e verbas. A base de Michel Temer na Câmara tem, pelo menos, 14!

Além da fragmentação partidária, que corrói o sistema político, temos a falácia do caráter nacional dos partidos. O anacronismo é tanto que legendas aliadas no nível federal podem ser – e muitas vezes o são – adversárias no âmbito estadual e municipal. Tal fato revela grave incongruência constitucional. De acordo com a Constituição federal, os partidos devem ter caráter nacional, o que pressupõe que sua orientação política, ideológica e programática deve ser igualmente nacional. Não há sentido em exigir que o partido tenha caráter nacional se ele pode, em suas representações estaduais e municipais, adotar orientação contraditória à tendência nacional.

Em outras palavras: se um partido se coliga a outro para disputar as eleições presidenciais, não é razoável admitir que se coligue, em nível estadual, a partido adversário do coligado nacional. Tal situação ocorreu diversas vezes nas eleições de 2014. Por exemplo, PT e PMDB estavam coligados nacionalmente. Mesmo assim, enfrentaram-se no nível estadual. E não raro estiveram coligados a partidos que tinham outro candidato presidencial. Houve situação específica em que o PMDB do Rio de Janeiro apoiou Aécio Neves, do PSDB, em desfavor de Dilma Rousseff, do PT, e de Michel Temer, do PMDB!

Para dar ampla e total liberdade aos partidos políticos no âmbito estadual e transformar em letra morta o seu caráter nacional o Congresso aprovou, em 2006, emenda constitucional que permitiu ampla liberdade de coalizão a partir dos interesses partidários estaduais. Tal entendimento, não tenho dúvida, contraria a Constituição quando esta atribui, de forma claramente preferencial, caráter nacional aos partidos políticos.

Ora, sem querer ser exaustivo em matéria de Direito Constitucional, é sabido que existem normas constitucionais que são inconstitucionais, ainda que não vulnerem cláusulas pétreas. Vários juristas, entre eles Otto Bachoff, trataram da existência paradoxal de normas constitucionais que seriam inconstitucionais. É o caso em tela. A ampla liberdade de coligação em nível estadual contraria o desejo expresso pelo constituinte em favor dos partidos nacionais. A liberdade dos partidos, prevista no artigo 17, deve ser interpretada tanto a partir do aspecto nacional dos partidos quanto do resguardo do regime democrático.

É de estranhar que a Ordem dos Advogados do Brasil, assistindo à completa deterioração do sistema partidário nacional, tanto pela fragmentação abusiva quanto pela inconstitucional liberdade de coligação, não assuma essa bandeira nem busque reparar tal anomalia mediante uma ação de declaração de inconstitucionalidade. Acredito que teria pleno êxito no Supremo Tribunal Federal (STF), tendo em vista o reconhecimento tácito da completa bagunça do sistema partidário, da omissão do Legislativo em organizá-lo e da confusão que coligações partidárias nas eleições municipais e estaduais promovem na cabeça do eleitor.

Caso o dispositivo constitucional que liberou as coligações fosse declarado inconstitucional, o caráter nacional dos partidos seria preservado e as coligações eleitorais passariam a ser verticalizadas a partir da decisão do diretório nacional. Poderiam existir coligações entre partidos, mas elas teriam de se repetir em todo o País, criando um padrão de unidade programática. Não deveria haver mais coligações contraditórias entre as disputas estaduais e a disputa federal, resolvendo-se um dos mais graves problemas do sistema partidário nacional. Seria uma intervenção, mais do que bem-vinda, do STF no sistema político, com excepcionais consequências para as eleições no País.

O fortalecimento dos partidos políticos deveria começar pelo cumprimento do que dispôs o constituinte ao determinar o seu caráter nacional. Reformas constitucionais, como a emenda em discussão, não podem mudar conceitos fundamentais estabelecidos. Apenas o reconhecimento dessa evidente inconstitucionalidade já representaria um passo decisivo para o aperfeiçoamento do sistema partidário brasileiro com vista às eleições gerais de 2018. Outros avanços devem ser perseguidos, como a cláusula de desempenho e a proibição de coligações para eleições proporcionais. Porém, ao dar um padrão às coligações, estaremos fortalecendo a instituição partidária e buscando dar o devido caráter nacional que os partidos políticos devem ter.

Murillo de Aragão é Advogado, consultor, mestre em ciência política e doutor em sociologia pela UNB. É autor do livro ‘Reforma Política - o debate inadiável". Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 04.09.16.

Dez medidas salvadoras. Serão mesmo?

Por Antonio Claudio Mariz de Oliveira

O reconhecimento de que a chamada Operação Lava Jato tenha, sem embargo de seus excessos e desvios, prestado inestimável benefício à necessária punição dos corruptos é indiscutível. Referi-me à punição e não mencionei o termo combate.

Com efeito, o combate ao crime, de um modo geral, se dá com o ataque às suas causas, para evitá-lo. A punição, que é imprescindível, se dá pós-crime e sua eficácia como elemento inibidor é praticamente nenhuma. O corrupto, ou qualquer outro criminoso, em regra, não se intimida com a punição alheia e por vezes nem com a própria. Pena não evita crime. Prisão não evita nova prisão. A prova provada é que 75% dos encarcerados já foram hóspedes de nossas cadeias.

Portanto, não se diga que as dez medidas (do Ministério Público) são necessárias para o “combate” à corrupção, pois para um eficiente combate é fundamental que sejam atingidas as causas. A criação de sistemas que dificultem sobremodo a prática de ilicitude contra o erário, bem como a adoção de uma consciência ética de respeito absoluto ao bem público pela sociedade, em especial, e pela classe política, em particular, são situações que atingirão diretamente as causas, e não os efeitos da corrupção, como ocorre com a punição.
Deve ser observado que tais medidas são genéricas, não se dirigem exclusivamente a determinado tipo penal. Atingirão todos os delitos e todos os acusados, não só de colarinho branco.

Por outro lado, as dez medidas também não se apresentam como indispensável condição à punição dos corruptos, pois a Lava Jato, sem que as medidas propostas estivessem em vigor, como ainda não estão, mostrou- se eficiente no cumprimento de seu desiderato punitivo. Centenas de pessoas já foram investigadas, acusadas, condenadas, estão cumprindo pena e muitas optaram pela delação premiada.

Apregoa-se que mais de 2 milhões de pessoas aderiram ao projeto de implementação das medidas. Pergunta-se: embora algumas tenham formação jurídica, a maioria absoluta é jejuna em Direito e por tal razão tanto apoiam medidas jurídicas como poderiam apoiar, por exemplo, propostas que versem sobre modificações das normas técnicas de engenharia ou sobre a adoção de novas técnicas cirúrgicas. Aderiram ao projeto simplesmente porque acreditaram no que lhes foi passado como verdade absoluta: as medidas são indispensáveis para o “combate” à corrupção.

Outra observação se faz necessária. Os autores das medidas, sem uma clara explicação, retiram do juiz o poder de avaliar e de julgar a legalidade e a procedência de certas instrumentos jurídicos, pois o projeto de antemão impede a sua utilização em casos determinados.

O exemplo marcante é o do habeas corpus, sagrado instrumento de defesa da liberdade que terá sua abrangência e sua efetividade substancialmente restringidas. É lamentável, porque esse instrumento constitucional possibilita levar aos tribunais os abusos praticados contra qualquer cidadão, em especial contra a população mais pobre, diariamente vítima do arbítrio e da truculência policiais.

O habeas corpus está permitindo que os pobres cheguem aos tribunais superiores. Os alegados abusos em suas impetrações deverão ser coibidos pelo Poder Judiciário. Deixem o habeas em paz. Qualquer um de nós poderá precisar dele, até os que não nutrem por ele grande simpatia.

Mas, indiscutivelmente, a joia da coroa das medidas é a admissão da prova ilícita. Tenho certeza que haverá um abalo, um choque entre juristas do mundo todo, ao ser divulgado que no Brasil do século 21, não nos referimos à época da Inquisição, toda a doutrina construída por séculos sobre a proibição de utilização de provas ilegais ruiu por terra. Que dirão os americanos, que de forma vigorosa não só proíbem – como tantos outros países – a prova ilícita, mas também o construíram a teoria dos frutos da árvore podre? Vale dizer, prova originária de prova ilícita ilícita também o é.

Igualmente ficarão estupefatos os doutrinadores espanhóis, germânicos, portugueses, italianos; etc., etc., que deram preciosa contribuição à construção de um Direito Penal garantista, em prol da liberdade e da pena justa, contra os abusos do Estado. Como coibir os excessos punitivos, se a prova obtida de forma ilegal terá valor, desde que haja boa-fé?
Invasão de casas para obter provas, prisões ilegais, quebras de sigilo, busca e apreensão, condução coercitiva e tantas outras agressões aos direitos individuais poderão ser perpetradas e não passarão pelo crivo do Poder Judiciário. A validade da prova ficará a cargo de quem a obtiver, bastando declarar ter agido de boa-fé.

É necessário que se indague e que alguém responda: o que é a boa-fé? De quem a boa-fé? Sua presença será verificada antes ou depois de a prova ilegal ter sido colhida? Quem vai fazer essa avaliação?

Uma última questão: boa-fé consistente em não saber da ilicitude da prova, ou boa-fé apenas quanto aos seus objetivos?
Parece-me ser a boa-fé quanto às finalidades da prova, isso porque parece não se querer criar embaraços às condutas investigativas. O desiderato final, qual seja, obter provas para acusar e punir, justifica quaisquer excessos ou ilegalidades. Aí reside a boa-fé.

Na realidade, estamos assistindo a uma perigosa escalada punitiva, pela qual se imagina, enganosamente, conseguir pôr fim à corrupção, e em seu nome garantias e direitos poderão ser violados. Essas características nos aproximam perigosamente do autoritarismo judiciário.

A antítese do autoritarismo judiciário é a dialética processual, o contraditório, a oposição, a ampla e livre discussão de ideias e de propostas, incluídas as dez medidas, exercidos quer dentro do processo, quer no plano do pensamento jurídico, e que refletem a democracia que deve reger o sistema judiciário.
Nesse sentido, para a manutenção do sistema judiciário democrático é imprescindível o reconhecimento de que todos nós, por sermos humanos, estamos sujeitos a erros e a acertos e, portanto, nenhum de nós é detentor da verdade.

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é Advogado Criminal em São Paulo. Atua nos Tribunais Superiores em Brasília. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.09.16.

Os Românticos de Cuba

Por Arnaldo Jabor

Dilma foi a Cuba. Eu também já fui. Somos, eu e a presidente, quase da mesma geração e provavelmente ficamos extasiados com os 12 guerreiros de Fidel e Che que, sozinhos, declararam do alto da Sierra Maestra: "Os dias da ditadura de Batista estão contados".

Na adolescência, vivíamos animados pelas imagens da conquista de Havana, com os heróis lindos e suas metralhadoras, hippies armados, intelectuais corajosos.
Fidel era jovem, macho, libertador, barbado, tudo. Já contei esse "causo" aqui e vou repeti-lo. Vale a pena ler de novo.
Fui a Cuba em 87, com meu filme Eu Sei Que Vou Te Amar, que passou no Festival de Havana.

Mas, muito antes de ir, eu sonhava com essa ilha tropical igual à Bahia (vi depois), onde o socialismo paranoico de Stalin seria criticado e salvo. Naquela época, o socialismo era nossa religião e os operários, os santos, símbolos do futuro.

Eu era editor do jornal dos estudantes da UNE e às vezes ficava até de madrugada na Lapa, na oficina gráfica. E via os operários como ídolos, sentia em sua força calma uma beleza "pura", uma grandeza simples, superior aos intelectuais neuróticos. Como amávamos os operários!... Na alta madrugada, eu os olhava imprimindo as páginas ainda no chumbo e eles, com seus braços fortes, pareciam gravuras soviéticas. Andava atrás deles, com ensinamentos políticos, elogios, sorrisos.

Éramos tão fascinados pelos futuros "sujeitos" da História, os líderes hegelianos que hoje vejo que alguns até ficavam desconfiados de nosso estranho amor. "Serão bichas, esses garotos? Serão veadinhos?", pensavam com certeza. Não - éramos apenas comunistas.

Passaram-se 20 e tantos anos e, finalmente, fui a Cuba. Depois da derrocada de uma fé atrás da outra, restava-me ainda a paixão pela paixão que eu tivera por aquela utopia e seu Comandante. Comi lagostas no ex-palácio do milionário Dupont em Varadero e ouvi o jazz do grande Arturo Sandoval.

Mas, minha primeira impressão foi um choque: as casas de Cuba não estavam pintadas; todas as fachadas de tradição espanhola se descascavam em verdes pálidos ou em rosa desmaiada. Senti ali o primeiro calafrio de decepção - o descuido com a beleza e a preservação. Achava que o trabalho socialista era do amor à coisa pública, o cuidado com a tradição.

Não sabia ainda do burocratismo, dos privilégios da "nomenklatura", do egoísmo e da pouca generosidade do trabalho coletivo. Aliás, o que mais me entristeceu no socialismo foi a incompetência geral que percebia em detalhes, na lentidão das providências, no medo de decidir que eu via entre os funcionários. O filme Guantanamera, de Gutiérrez Alea, é um retrato perfeito da ineficiência cubana.

Claro que sabia do cruel bloqueio comercial americano e da "ajuda" soviética oportunista. Além dos desmandos posteriores de Fidel, da repressão, dos fuzilados, meu sonho acabou quando vi Cuba caindo nos braços de Kruchev.

Mas, minha fé e meu amor, mesmo em 87, ainda me faziam esquecer as dúvidas e decepções.

Uma noite, fui a um coquetel no Hotel Nacional.
A grande atração seria o próprio Fidel. Suspense geral entre os convidados. Tudo ficava meio provisório, porque Fidel iria chegar. Lá pelas tantas, estou de costas para a porta e senti, como um vento, a chegada do Comandante, cercado de seguranças, que entrou pela sala como um trem.

Fidel foi cercado por todos, latinos, europeus, asiáticos. Uma amiga ao meu lado fez uma crítica fashion: "Uniforme de tergal, com esse verde horroroso... Tinha de ser de puro algodão, sei lá, outro verde..." Senti um pouco da crise do socialismo estampada naquele tergal barato.

Mas, tudo era pequeno diante da presença de Fidel. Era a materialização de um herói, como se Aquiles tivesse saído da Ilíada pra conversar comigo. Enfiei-me no grupo que o cercava e consegui chegar até bem perto dele.

"Comandante!..." - falei com firmeza. Fidel me olhou, sorriu e me deu a mão. Arfante, agarrei-lhe a mão e comecei a falar: "Soy de Brasil... hago peliculas..." Mas o grupo de 'tietes' era voraz e Fidel foi empurrado para o outro lado da sala. Firme em meu propósito, continuei agarrado em sua mão, enquanto ele respondia à pergunta de um asiático pigmeu chatíssimo falando do "bloqueio". Fidel jogava como um barco e eu ali, grudado, não largava sua mão.

Lembro-me até hoje que sua mão era quente e larga, a palma generosa e macia. Sua mão se aninhava confortavelmente na minha, enquanto eu tentava lhe falar. "Comandante"... - comecei de novo, gago de emoção. Fidel me olhou, vagando naquele mar de gente e eu, feito um náufrago da revolução, pressionava sua mão com vigor, sorrindo-lhe, fixando-me em seus olhos para ele me ouvir. Mas, os 'tietes' ridículos me atrapalhavam.

Foi então que a mão de Fidel começou a sentir demais a presença da minha. Sua palma começou a estranhar aquele contato. O que fora uma irmanação política, fraternal de "companheiros", foi virando uma intimidade física, com as duas peles se colando. Uma finíssima camada de suor umedeceu a palma do Comandante, pois se apagava a fina fronteira entre a amizade revolucionária e o perigo homossexual: dois homens ali de mãos dadas.

E a mão de Fidel começou a querer se livrar do firme aperto da minha. Ela tentou sair pela direita, pela esquerda, se contorceu, se apinhou em dedos juntos e foi se desprendendo da minha, que insistia no aperto emocionado. Eu lutava para não largar a palma do Comandante, mas sua mão, cada vez mais sinuosa, impaciente, se apequenou e num esforço, quase um solavanco, conseguiu afinal se libertar da minha, enquanto o olhar espantado de Fidel cortou o meu olhar por um segundo.

"Será que é uma bicha brasileira, infiltrada?" - tenho certeza que ele pensou. Não, comandante, eu não era uma bicha; apenas um ex-comunista. Foi a única vez que vi Fidel.

Arnaldo Jabor é cineasta e jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 07.02.12

Pensando 2012

Por Aziz Santos

As eleições de 2012, além de seu valor intrínseco, constituem-se em importante prévia para o pleito de 2014, razão pela qual todos os partidos que aspiram influir nos destinos do Maranhão estão mobilizando suas forças para participar do certame, com especial atenção para a capital maranhense.

Por onde deve caminhar o PDT nas eleições de São Luís? Apoiar o PSDB, como fez em 2008, no segundo turno e, neste caso, emprestar-lhe o vice, como querem uns poucos companheiros? Coligar-se com um bom número de partidos do campo progressista, aí, também, contentando-se com uma candidatura a vice? Ou lançar candidatura própria para recuperar o legado histórico do Partido, como entende o seio maduro da agremiação?

Vamos examinar cada uma das alternativas de per si: a primeira delas, coligar-se com o PSDB na provável candidatura à reeleição do Prefeito João Castelo, oferecendo-lhe o candidato a vice (se isso for do desejo do senhor Prefeito) a quem isto interessaria? Não falta ao PDT experiência de vice-prefeitura, daí que os eventuais benefícios dessa alternativa podem ser bem avaliados pelo conjunto dos companheiros.

Além disso, ao convidar filiados do PDT para compor o seu governo, o Prefeito tem deixado claro que o convite não se estende à Instituição, mas se limita ao convidado, razão pela qual, até onde percebo, o Partido não se sente partícipe da sua administração. Nem vamos aqui colocar lenha na fogueira ao registrar os descuidos de linguagem de S. Exa. ao afirmar em discursos repetidos que São Luís não tinha prefeitos desde o tempo de dona Gardênia.

Não difere muito da primeira a segunda opção, qual seja a de coligarmos com outros partidos do campo progressista, também aí oferecendo o vice (se quiserem). Neste caso, careceria conhecermos o titular da chapa, posto que há nomes que não merecem exame da parte do Partido. Claro que a (im) provável candidatura de FlávioDino, atual campeão das pesquisas, obrigaria todos a repensarem suas posições.

Parece-me, contudo, que Dino guarda suas intenções de voto numa grande gaveta para deles “usufruir” mais tarde. É natural que a morte prematura do seu filho – que todos lamentamos – exerça influência imponderável na sua decisão.

A candidatura própria, última alternativa a ser analisada, tem ganho a simpatia de muitos, senão da maioria dos companheiros, por alguns motivos: o PDT continua sendo o maior e mais organizado partido de esquerda do Maranhão e de São Luís; é depositário do legado de ter assumido quatro vezes a Prefeitura de São Luís, com administrações exitosas, inclusive, no caso do companheiro Jackson Lago, considerado três vezes o melhor prefeito de capitais do Brasil; reúne equipe com larga experiência de administração pública e conhecedora dos complexos problemas dos município; dispõe de quadros de estatura política e moral para a disputa, entre eles, mas a eles não se restringindo, dra. Clay Lago, dr. Igor Lago, dr. Clodomir Paz, Prof.Moacir Feitosa, dra. Sandra Torres e o ex-ministro Edson Vidigal, este, aliás, testado recentemente em duas eleições majoritárias (governador e senador) com ótimo desempenho; o fato, já assinalado, de que a maioria dos militantes e de muitas das principais lideranças do Partido se inclinarem por esta opção.

Em qualquer dos casos, é absolutamente necessário, imprescindível mesmo, que o Partido busque eleger uma grande bancada de vereadores, que possa fiscalizar com correção e ética os atos do Prefeito eleito, além de propor projetos com o selo de nossa tradição histórica. Aqui, então, temos bons nomes com experiência parlamentar e dezenas de outros com razoável desempenho eleitoral.

O ano político de 2012 começou cedo, com movimentações tanto na seara da oposição como nos campos situacionistas. Como o PDT, diversos partidos vivenciam divergências internas que precisam ser superadas se quiserem influir no pleito municipal, falando uma linguagem única, ao invés de uma ou outra ala apenas comprometer-se com as táticas e estratégias para o próximo pleito.

Aziz Santos, economista, foi Vice Prefeito de São Luis, MA, e Secretário do Planejamento do Governo Jackson Lago. É do grupo de fundadores do PDT no Maranhão.

O Impasse no PDT do Maranhão

Por Igor Lago

À Executiva Nacional do PDT: Presidente Sr. Carlos Lupi; 1º Vice-Presidente Deputado André Figueiredo; 2º Vice-Presidente Deputado Brizola Neto; Secretário Geral Nacional Sr. Manoel Dias; Secretário Adjunto Deputado Paulo Pereira; Tesoureiro Sr. Marcelo Panella; Consultor Jurídico Prefeito José Queiroz; Sec. de Relações Internacionais Deputado Vieira da Cunha; Sec. Adjunto de Relações Internacionais Vereador Márcio Bins; Vogal Deputada Cidinha Campos; Vogal Sra. Miguelina Vecchio; Líder no Senado Federal Senador Acir Gurgacz; Líder na Câmara Federal Deputado André Figueiredo; Vice-Presidente Regional Sul Sr. Alceu Collares; Vice-Presidente Regional Sudeste Prefeito Sérgio Vidigal; Vice-Presidente Regional Centro-Oeste Senador Cristovam Buarque; Vice-Presidente Regional Nordeste Sr. Ronaldo Lessa; Vice-Presidente Regional Norte Deputado Sebastião Bala Rocha; Vice-Presidente de Relações Institucionais Sr. Hélio Santos; Vice-Presidente de Relações Parlamentares Deputado Miro Teixeira; Secretário Nacional de Finanças Sr. Francisco Loureiro e Secretário Nacional de Divulgação e Propaganda Sr. Mário Heringer,

Senhoras e Senhores,

Companheiras e Companheiros,

Por meio desta venho, em primeiro lugar, manifestar a minha “profunda discordância” com a forma com que os senhores Carlos Lupi e Manoel Dias trataram a questão do Maranhão, no que se refere a não-prorrogação da última Comissão Provisória ou a não-homologação da Comissão Provisória deixada pelo ex-governador Jackson Lago, com a substituição do nome dele pelo meu ou de qualquer outro dos fundadores do partido maranhense, assim como a não-marcação da data de uma Convenção, para que o Partido tenha a oportunidade de escolher, democraticamente, os seus representantes(Apesar de todos os esforços empreendidos por meio de conversas telefônicas, pessoais e por cartas, estes senhores mostraram-se totalmente alheios às nossas legítimas reivindicações);

Segundo, manifestar o meu “não-reconhecimento” da nova Comissão Provisória, uma vez que foi feita por decisão autocrática do presidente Carlos Lupi, numa demonstração de profundo desrespeito à história de nosso partido, à maioria de seus líderes e militantes e ao próprio legado de nosso Jackson Lago. Essa decisão revela um tremendo descompromisso com as boas práticas partidárias, tão preconizadas em nosso Estatuto, e compromete, de forma catastrófica, os destinos de um partido democrático e popular com toda uma história de luta contra a Oligarquia Sarney. Não é demais dizer que, também, revela a natureza antidemocrática com que tem sido conduzida a nossa questão, já que a maioria de nosso partido não foi auscultada e, muito menos, respeitada. Para que se tenha uma adequada noção dessa Comissão formada pelos senhores Lupi e Manoel Dias, quatro dos cinco cargos da Executiva da Comissão, isto é, aqueles que tocam e administram o Partido, são pertencentes à minoria, o que revela um total desrespeito pela maioria de nosso Partido, um nítido exemplo de parcialidade e desequilíbrio por parte de quem tomou a fatídica decisão (Seria uma traição a todos os nossos princípios e valores de um Partido Democrático e Trabalhista, uma subserviência ao pragmatismo político, uma resignação diante do mal feito, à lógica de que os fins justificam os meios etc);

Terceiro, solicitar a “retirada” de meu nome da mesma, uma vez que não a reconheço pelas razões citadas acima, além de não poder participar de uma Comissão feita à revelia dos melhores valores cívicos, democráticos e republicanos. A decisão torna-se ainda mais insólita, senão trágica, quando nomeia-se para esta Comissão alguém de pouca representatividade política, que não participa das atividades partidárias, não contribuiu para a reorganização do Partido e, para cúmulo dos absurdos, ainda participa da última reunião do dia 30 de janeiro, com membros de nosso Partido e os senhores Lupi e Manoel Dias, na qual faltou com respeito e consideração a nossos companheiros e agrediu-me, covardemente, na frente do próprio presidente nacional do Partido.

Quarto, solicitar à Executiva Nacional, baseado no artigo 88 de nosso Estatuto, Titulo VI, Das Disposições Gerais e Transitórias, Capítulo I, que diz: “Das decisões dos diversos órgãos partidários caberá recurso, no prazo máximo de 90(noventa) dias, “ex-officio” ou a pedido da parte prejudicada à Comissão Executiva Nacional e, desta, em caráter terminativo, ao Diretório Nacional”, que a decisão “seja reavaliada por todos os membros desta Executiva Nacional com o intuito de referendá-la ou não”, a qual, para mim, em particular, é fruto da desinformação, da retaliação, da iconoclastia, bem como do que há de pior no exercício da política partidária, que é o não exercício da democracia interna.

Como um partido, que se diz democrático, pode atuar, a todo instante, de forma autoritária e decidir que uma minoria assuma as responsabilidades partidárias em detrimento da maioria?

O artigo 12, de nosso Estatuto, no seu segundo parágrafo, diz: “As decisões serão tomadas, sempre que possível, por consenso e, se este não for alcançado, a minoria acatará a decisão da maioria, devendo todos trabalhar para sua aplicação prática”.

Os senhores citados no primeiro parágrafo demonstraram compromisso com esse artigo? Ou apenas basearam-se, de forma minimamente questionável, no artigo 56, referente à competência da Executiva Nacional que, dentre vários itens, o de letra k diz: “aprovar a nomeação de Comissões Provisórias Estaduais e a designação de delegados do Partido junto ao Tribunal Superior Eleitoral”?

Cabe aqui perguntar se a Executiva Nacional de um partido verdadeiramente democrático não deveria pautar-se no artigo 12, citado acima, para cumprir, de forma democrática, com o item do artigo 56?

Não seria mais prudente e sensato uma postura de concordar com o que a maioria partidária deseja neste ou naquele estado, ao invés de pautar-se pela relação próxima de supostos dirigentes com o único intuito de obter apenas um controle cartorial de um partido político?

O que se faz nas mais diversas decisões coletivas de uma sociedade democrática, em seus grêmios estudantis, sindicatos, movimentos sociais e cívicos em geral, não é justamente essa simples praxe democrática que vem de longe e velhos tempos, espalhando-se pelo mundo, desde a Grécia e as terras nórdicas?

Poderá um partido político sobreviver às crescentes demandas de democracia, cidadania e mudanças da sociedade brasileira assumindo e cultivando tão reprováveis práticas?

Todos sabemos que o Brizola é insubstituível, mas porque não seguirmos o seu exemplo de dirigente partidário que, com toda a sua legitimidade política e histórica(não esqueçamos de sua fama de caudilho!) era sensível aos anseios das maiorias de nosso Partido?

São perguntas que não podem calar diante de nossa realidade partidária nacional.

Penso que a questão maranhense é crucial para o PDT. É uma causa que expõe o Partido e revela a natureza de seus dirigentes. É uma espécie de fronteira para todos nós: Ou tomamos a consciência de que o nosso Partido tem e deve ser democrático (até para poder honrar com os valores do Trabalhismo!) ou aceitaremos que as razões de existência do mesmo mudaram e todos devem seguir os ditames da política convencional, fisiológica e descompromissada com os melhores valores civilizatórios.

Quando assumimos a presidência da Comissão Provisória do Maranhão, a convite da maioria de seus membros (8 de 11) em substituição ao nome do ex-governador Jackson Lago, falecido no dia 04 de abril de 2011, após esperar a homologação pela Comissão Permanente desta Executiva durante 56 dias, tratamos de reorganizar o Partido com a participação de todos os seus membros, seguindo os preceitos estatutários e da boa prática partidária. Tivemos êxito ao organizar o PDT em 211 dos 217 municípios maranhenses. Foi um trabalho árduo e coletivo. E, vale dizer, não contamos com nenhum apoio do PDT nacional, apesar de termos feito gestões junto ao Secretário Geral Nacional.

Após o falecimento de nosso principal e insubstituível líder, sempre considerei que o PDT maranhense estava à mercê de interesses alheios e de alguns membros de nosso próprio Partido que, a rigor, não tem projeto partidário maior, a não ser os seus próprios ligados ao imediatismo da política convencional, como a aquisição de cargos, mandatos negociados que comprometem a vida partidária, adesismos de diversos matizes etc. Empreendi todos os esforços para reorganizar o PDT para que pudéssemos dialogar com os outros partidos do campo democrático e popular, baseados numa relação leal, sincera e cordial, sobre possíveis estratégias e alianças para as eleições de 2012, sem submissão, adesismos ou acertos de conveniência política e eleitoral.

Estes interesses tornaram-se mais evidentes, na medida em que organizávamos o partido e aproximava-se o fim da vigência de nossa Comissão Provisória (01 de dezembro de 2011).

Houve uma tentativa de se criar um ambiente de crise para que a nossa Comissão Provisória fosse terminada antes de seu tempo, algo que contornamos cuidadosamente em outubro, no Encontro Regional em Fortaleza, quando tivemos a oportunidade de contra-argumentar e acordar a prorrogação de nossa Comissão com os senhores Carlos Lupi, Manoel Dias e alguns membros da Comissão do PDT maranhense.

Quando surgiram as primeiras denúncias a respeito das relações impróprias dos ex-assessores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com ONGs e da famosa viagem ao Maranhão em dezembro de 2009 que, a rigor, foi (mal) organizada e feita com o intuito de privilegiar a candidatura a deputado federal do então jovem assessor do ministro Carlos Lupi, a nota do MTE citando o PDT do Maranhão e o ex-governador Jackson Lago como responsáveis pela viagem, assim como as declarações de cobrança do então presidente em exercício, deputado federal André Figueiredo, ficamos atentos diante da gravidade das mesmas e, quando procurados, demos declarações no sentido de colaborar para o esclarecimento dos fatos e, principalmente, repor a verdade, que está documentada nas declarações de contas de nosso Partido junto ao Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão.

Repito mais uma vez que o ex-governador Jackson Lago, cassado em abril de 2009, num conluio entre poderosos de Brasília para satisfazer a oligarquia Sarney e, diga-se de passagem, recebeu pouca ou nenhuma solidariedade dos dois principais dirigentes nacionais de seu próprio Partido, participou dessa viagem como convidado, numa deferência a um ministro e presidente de seu Partido em viagem a trabalho ao Maranhão. A agenda foi organizada por sua assessoria que, volto a repetir, não somente mal organizou aquela viagem, como também mal justificou a cada tentativa quando do período da crise do MTE, o que expôs ainda mais o ministro.

No final do mês de novembro, demos conhecimento por meio de carta eletrônica (email) aos nossos companheiros e à sociedade em geral, das articulações feitas por dois membros bem relacionados do PDT maranhense (e apoiados, segundo os mesmos!) com aqueles do primeiro parágrafo, que divulgavam que a Executiva Nacional não renovaria a nossa Comissão. A repercussão dessa Carta fez com que o então ministro me telefonasse para dizer “que não tinha nada com aquilo e que estava tudo igual ao que fora acordado em Fortaleza”. Então, em comum acordo com ele, fiz uma segunda Carta, na qual relatava o seu telefonema com suas declarações.

No dia 02 de dezembro liguei para o Sr. Manoel Dias para cobrar a prorrogação da Comissão. Disse-me que a Executiva se reuniria na terça-feira seguinte para fazer a prorrogação e que estava tudo dentro da normalidade. No dia 03, ligo novamente para o Sr. Manoel Dias para sugerir a inclusão do nome do Sr. Edson Vidigal (após consultar vários membros de nosso Partido) na vaga de um deputado estadual que saíra recentemente de nosso Partido e que fazia parte da Comissão. Contudo, nem pude fazer a sugestão, pois o mesmo afirmara que havia uma mudança por parte da Executiva, que seria preciso ele ir ao Maranhão, etc. Nos prontificamos em recebê-lo mas, infelizmente, até o presente momento, o Sr. Manoel Dias não veio ao Maranhão. Ao contrário, e mal gastando as verbas partidárias, arcou com passagens para alguns companheiros membros e não-membros de nossa Comissão Estadual para dizer, abertamente, “que o Igor Lago não poderia ser mais presidente do Partido por suas declarações que contrariaram muito ao ministro”.

Após tomar conhecimento dessa grave e equivocada posição de nosso Secretário Geral, que deveria pautar-se pela imparcialidade e isenção, a fim de poder avaliar a situação e decidir com mais fundamento, restou-me aguardar o cumprimento de sua promessa de vinda ao Maranhão para conhecer a nossa realidade partidária.

Também tive a iniciativa de ligar duas vezes para o Sr. Carlos Lupi, então ministro, no mesmo dia 03 de dezembro, contei-lhe do telefonema ao Manoel Dias e da nova decisão, disse-me que não tinha conhecimento e, a última, no dia 17 de dezembro, quando disse ao já ex-ministro que não estava apenas defendendo os interesses maiores do Partido mas, a honra e o legado do nosso ex-governador Jackson Lago, e que tudo aquilo parecia ser uma grande retaliação por nossa posição de defender o esclarecimento dos fatos durante a crise do MTE.

Estabelecido o impasse da prorrogação ou não de nossa Comissão, alguns companheiros tomaram a iniciativa de escrever uma Carta à Executiva Nacional, pregando o bom senso, o diálogo, a prorrogação da Comissão sem exclusão de nenhum nome e a marcação de uma Convenção, a qual foi assinada por Neiva Moreira, Clay Lago, Reginaldo Telles e todos os membros fundadores de nosso Partido, a grande maioria de prefeitos e ex-prefeitos, dois dos três deputados estaduais, pela maioria dos representantes dos movimentos de nosso Partido, pela maioria dos presidentes de Diretórios e Comissões Provisórias Municipais, ex-secretários estaduais e municipais etc, a qual foi entregue pelo ex-deputado federal Wagner Lago na sede do PDT nacional no dia 20 de dezembro (Infelizmente a essa Carta não foi dada a devida importância, pois o já presidente Lupi não a havia lido, conforme sua declaração na reunião do dia 30 de janeiro!). Também tive a iniciativa de escrever uma Carta à Executiva Nacional formalizando todas as nossas posições, assim como a própria Clay Lago que, numa Carta muito lúcida e simbólica, preconizava pela altivez, consideração e respeito ao nosso Partido.

Apesar de todas essas iniciativas, além das outras realizadas pelos mais diversos líderes e militantes de nosso Partido, da reunião do Diretório Nacional no dia 30 de janeiro, da reunião após esta última com os senhores Carlos Lupi, Manoel Dias e alguns membros de nosso Partido, confirmou-se o “esbulho” no último dia 16 de fevereiro, ao constatarmos a formalização da nova Comissão Provisória junto ao sítio eletrônico do TRE com data retroativa a 02 de dezembro de 2011.

Sentimos, ao igual que a maioria de nosso Partido, um verdadeiro golpe, uma traição, um desrespeito e uma desconsideração imensuráveis ao legado de Jackson Lago, a seus fundadores, à maioria de seus líderes e militantes, às boas práticas e virtudes de um Partido democrático e popular.

Espero que, diante do exposto acima, todos os membros desta Executiva Nacional tenham percebido a real dimensão da nossa causa, simbólica para todo o Partido.

Desejo altivez e coragem para corrigir esta decisão que macula a imagem de nosso Partido e, aos olhos de nossos líderes, militantes e da sociedade, configura-se nada mais como uma verdadeira RETALIAÇÃO.

Saudações Trabalhistas!

Igor Lago, membro do Diretório Nacional do PDT, foi Presidente da Comissão Provisória Estadual do Maranhão entre 06 de junho e 01 de dezembro de 2011.

Deportaram? Deportaremos.

Por Élio Gáspari

Fora do mundo do palavrório, a diplomacia da doutora Dilma praticou o primeiro gesto prático na defesa dos cidadãos brasileiros: comunicou ao governo espanhol que a partir de abril seus viajantes que chegarem aos aeroportos de Pindorama deverão cumprir as mesmas exigências que são feitas aos brasileiros que descem em Madri. A saber: comprovar que têm pelo menos US$ 100 para cada dia de permanência, ou crédito disponível no cartão, reserva de hotel quitada, mais passagem de volta. Quem não o fizer será deportado.

A truculência da polícia espanhola e o descaso (ou desprestígio) de seu serviço diplomático obrigaram o governo a dar aos espanhóis o mesmo tratamento recebido pelos brasileiros. A providência veio com três anos de atraso.

Até agosto de 2011, 1.005 brasileiros foram impedidos de entrar na Espanha. Nenhum dos dois países exige vistos de entrada e a polícia espanhola argumenta que cumpre a legislação comum da União Europeia. É verdade, mas desde 2008 o governo e o Congresso brasileiros reclamam de episódios exorbitantes.

Houve casos de professores brasileiros deportados quando desceram em Madri a caminho de Lisboa. Em 2003 uma pesquisadora da USP ficou três dias numa pequena sala, com outras trinta pessoas, dormindo no chão. Anos depois a sala tinha 30 metros quadrados, com 300 detidos.

Numa ocasião, seus beliches eram compartilhados por homens, mulheres e crianças. Banho? Nem pensar.

Jamais houve um pedido de desculpas. Nem mesmo ao padre a quem um policial perguntou se o que tinha na mala era uma fantasia de carnaval. Eram paramentos litúrgicos.

Não seria justo julgar a civilidade do governo espanhol a partir dos modos dos policiais do aeroporto de Barajas. Eles estão lá para impedir a entrada de pessoas que pretendem viver na Espanha sem a devida documentação.

Há quadrilhas que exploram mulheres levando-as para a Europa (o tio da duquesa de Cambridge orgulha-se de ter um plantel de brasileiras disponíveis em Ibiza). Há também europeus grisalhos que vêm sozinhos para as praias no Nordeste.

Em 2008, num sinal de que o governo brasileiro poderia reagir, sete turistas espanhóis foram barrados em Salvador. Não se conhecem as gestões dos embaixadores espanhóis junto a seu governo.

Para o público brasileiro, insistiram em dizer que a Espanha segue a legislação europeia e as reclamações das vítimas eram “superdimensionadas” pela imprensa, até mesmo com “manifestações (...) inteiramente fora de propósito”, como escreveu o embaixador Carlos Alonso Zaldívar.

Faltou-lhe sorte. No mesmo dia chegara ao Brasil um plantel de deportados que passara dois dias detido, sem acesso a bagagem de mão, remédios, sabonete ou escova de dentes. (Numa das refeições, serviram-lhes sardinhas.)

Durante três anos o Itamaraty mostrou seu desconforto. Ou o serviço diplomático espanhol não conseguiu fazer com que seu governo entendesse o que estava acontecendo ou, tendo entendido, ele achou que a última palavra devia continuar com a meganha de Barajas.

Com a reciprocidade de exigências, os dois governos podem entrar numa competição saudável: passam a tratar direito os viajantes que apresentam documentação julgada insuficiente e não servem sardinhas a quem não pode escovar os dentes.

Élio Gáspari é historiador e jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, de 22.02.12.

A Nova Séde do TSE

Inaugurada há dois meses, a nova sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é mais um exemplo do modo perdulário como o Judiciário gere recursos públicos. Bastaram poucas semanas de funcionamento para que os seus usuários - advogados, procuradores eleitorais e serventuários - descobrissem os graves erros do projeto arquitetônico do prédio. Como em todas as obras públicas em Brasília, ele é de autoria do escritório do arquiteto Oscar Niemeyer e foi escolhido sem licitação.

Os ministros da Corte reclamam das falhas do projeto, alegando que Niemeyer não respeitou a tradição do Judiciário brasileiro. No desenho do plenário, ele seguiu o estilo americano, colocando os ministros numa bancada virada para a plateia, o que os obriga a se virar quando têm de falar entre si.

Nos tribunais superiores brasileiros, as decisões são públicas e os ministros dialogam entre si. Nos EUA, as discussões ocorrem nos bastidores e só o veredicto é anunciado publicamente, em plenário.

Já os servidores alegam que a nova sede do TSE tem várias áreas sem janelas para a entrada da luz do dia, o que resulta em altos gastos de energia elétrica numa região marcada por sua luminosidade. Os advogados reclamam da distância entre a tribuna, onde fazem a sustentação oral, e a bancada dos ministros.

Na antiga sede, a tribuna ficava próxima do balcão dos ministros, o que tornava a relação menos formal. "O ideal era uma tribuna mais próxima dos ministros, mas não havia como se alterar o projeto, porque implicaria mais gastos", diz um dos ministros, que não quer se identificar.

Como o prédio está em funcionamento há seis semanas, afirma ele, não faz sentido reivindicar uma reforma para torná-lo mais funcional.

Com eleições realizadas a cada dois anos, o TSE é uma Corte sazonal. A carga de trabalho se concentra durante as campanhas eleitorais e a proclamação dos resultados dos pleitos. Depois disso, o TSE tem pouco o que fazer. Em média, o plenário é usado apenas duas vezes por semana.

Dos cinco tribunais superiores, o TSE é o que tem o menor número de ações para julgar. Em 2009, ele recebeu 4.514 processos - no mesmo período, o Supremo Tribunal Federal recebeu mais de 103 mil ações e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou 354 mil processos.

Além disso, o TSE tem apenas sete ministros, dos quais três integram o Supremo Tribunal Federal e dois pertencem ao STJ. Lá eles dispõem de amplos gabinetes e estrutura própria, o que torna a nova sede - com 115.578 metros quadrados - desnecessária.

Na realidade, somente dois ministros do TSE - os que representam a classe dos advogados - precisam de gabinetes.

A construção da nova sede do TSE foi decidida em 2006, quando a Corte era presidida pelo ministro Marco Aurélio de Mello. "Teremos uma base maior para prestar bons serviços", disse ele após a inauguração da obra, em dezembro. Na mesma ocasião, o atual presidente, ministro Ricardo Lewandowski, comparou o prédio a uma "verdadeira obra de arte" e a um "abrigo condigno para o verdadeiro tribunal de democracia".

Quando o projeto de Niemeyer foi anunciado, em 2007, a nova sede do TSE tinha um custo estimado em R$ 89 milhões. Em 2008, a estimativa subiu para R$ 120 milhões e, em 2010, para R$ 285 milhões. Até dezembro de 2011, haviam sido gastos R$ 327 milhões só com a construção. Com móveis e decoração, a estimativa é de que o custo total fique em torno de R$ 440 milhões.

Durante a construção, o Tribunal de Contas da União constatou indícios de superfaturamento e o Ministério Público Federal impetrou ação civil pública, alegando que a obra feria os princípios constitucionais da economicidade, da moralidade e da finalidade da administração pública.

Para cortar custos, o TSE reduziu gastos com revestimentos e materiais de acabamento. Por maior que tenha sido essa economia, nada justifica o tamanho e o luxo de sua nova sede. Em vez de gastar rios de dinheiro com mais um palácio suntuoso e desnecessário, a Justiça deveria ter concentrado seus gastos na melhoria de atendimento da primeira instância, para dar tratamento digno aos cidadãos comuns que a ela recorrem para preservar seus direitos.

(Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 15.02.12.)

Insegurança nas Empresas

Por Francisco Dorneles

A tributação dos lucros de empresas brasileiras auferidos no exterior, através de controlada ou coligada, está trazendo enorme insegurança para as multinacionais brasileiras. Três são os critérios (ou princípios) definidores do poder tributário no que tange ao imposto de renda: o da nacionalidade, o da residência e o da fonte.

O princípio da nacionalidade significa que os nacionais devem pagar, ao respectivo Estado, imposto correspondente a todos os rendimentos que recebem, sem que seja tomado em consideração o local de residência do contribuinte ou o local onde o rendimento auferido foi produzido. O princípio da residência, por sua vez, significa que os nacionais e estrangeiros devem pagar imposto, por todos os rendimentos que recebam, ao Estado onde residem, independentemente do local onde tais rendimentos foram produzidos.

Já o princípio da fonte atribui o poder de tributar a renda de uma pessoa ao Estado em cujo território os rendimentos foram produzidos (teoria da fonte produtora), ou em cujo território foi obtida a sua disponibilidade econômica ou jurídica (teoria da fonte pagadora).

Os Estados Unidos, por exemplo, adotam os três critérios, concedendo, entretanto, de forma unilateral, um crédito correspondente ao imposto de fonte estrangeira e tributando os rendimentos produzidos no exterior por seus residentes ou nacionais somente quando efetivamente recebidos (tax deferral).

O Brasil adota os critérios da residência e da fonte pagadora concedendo, em relação ao imposto devido no Brasil, crédito correspondente ao imposto pago no exterior. A Secretaria da Receita Federal tem recusado a ideia de tax deferral e entende que uma empresa domiciliada no Brasil tem a disponibilidade sobre os lucros de suas controladas ou coligadas no exterior independentemente de sua distribuição.

O conceito de aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica - fato gerador do Imposto de Renda - tem dado lugar a muita divergência, inclusive no Supremo Tribunal Federal, que na ADI 2588, impetrada pela CNI, examina a matéria.

Cabe destacar nesse julgamento o voto proferido pela ministra Ellen Gracie, no sentido de que a disponibilidade dos lucros de empresas domiciliadas no Brasil, gerados no exterior, só existe caso tenham sido apurados por controladas, não se configurando disponibilidade no caso do lucro das coligadas.

No entanto, a tributação de rendimentos recebidos por empresas domiciliadas no Brasil e auferidos em países com os quais o Brasil mantém acordos para eliminar a dupla tributação da renda é regida por seus dispositivos, que prevalecem sobre a legislação interna. Os acordos mencionados, ao tratarem da tributação do lucro de empresas, adotaram o modelo da OCDE, que estabelece que "os lucros de uma empresa de um Estado contratante só são tributáveis nesse Estado".

Assim, não podem ser tributados no Brasil os lucros de empresas domiciliadas em países com os quais o Brasil mantém acordo para eliminar a dupla tributação, mesmo sendo elas coligadas ou controladas por empresas domiciliadas no Brasil. Somente no caso de serem distribuídos podem esses lucros ser tributados no Brasil, com base em dispositivo específico, relacionados à tributação de dividendos.

Dessa forma, o não reconhecimento pela Receita Federal de princípios de tributação internacional constantes dos acordos para eliminar dupla tributação, assinados pelo Brasil, precisa ser urgentemente reexaminado. FRANCISCO DORNELLES é senador (PP-RJ).

Francisco Dorneles (PP) é Senador pelo Estado do Rio de Janeiro. (Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo,RJ, em 18.02.12.)

Só Nos Consultando

Por Edgar Flexa de Lima

A democracia à brasileira está se fragilizando a cada eleição. E não dá mais para acreditar em reforma política que se faça sem consulta direta aos eleitores.

O brasileiro pode saber em quem votou, mas não tem nenhum controle sobre seu voto – a manifestação de sua vontade política – depois que aperta o botãzinho.

As urnas elegem como representantes do povo uma turma que nada tem a ver com a vontade do povo.

Sabemos em quem votamos, mas não sabemos quem se elegeu com nosso voto. Então, vota-se em qualquer um: no mais famoso, no mais grotesco, no mais engraçado...

Não sabemos quem nos representa. Isso é grave, pois não temos a quem cobrar diretamente. E já que não podemos individualizar a cobrança, eles não têm a quem responder pessoalmente. E comportam-se como querem e lhes convém.

O resultado disso se vê a cada dia, e mais claramente o quanto mais distante os representantes estiverem do eleitorado.

A Câmara dos Deputados, isolada lá longe, é uma reunião de irresponsáveis pronta a cometer todo e qualquer tipo de insensatez. Boa parte da produção legislativa – sem contar aquela que lhe é enfiada goela abaixo pelo Poder Executivo – é de muito má qualidade.

Quando é de interesse do Executivo negocia-se tudo: votos por ministérios, postos para apadrinhados, verbas, vantagens, etc.
Quando a idéia parece boa perante a opinião pública, e anódina aos olhos oficiais, pode-se votar tudo, até para não acontecer nada. Só para dar manchete na imprensa e minutos de celebridade para o dono da idéia.

A justificativa para que isso ocorra é de que toda manifestação de vontade do eleitor deve ter conseqüência. Cada voto deve ser aproveitado.

Logo, dizem os chefões dos partidos políticos, se minha legenda teve esse voto eu o quero para mim. Não lhes importa quem foi votado: o eleitor vota primeiro no partido e influi apenas na distribuição interna dos votos recebidos na legenda.

E assim eles, os chefões e os eleitos de todo tipo, nos tiram – nós eleitores - da jogada. Chama-se uma celebridade, um famoso qualquer, e se elege uma coorte de penduricalhos que não representam ninguém, nem tiveram votos para estar aonde estão.

“Nunca antes na história deste país” se viu macaco serrar o galho em que está sentado.

Por isso, agora, nosso papel é reclamar o direito de decidir que reforma política queremos. É nosso direito e nosso dever.

Edgar Flexa de Lima entende de politica.

Questão de Estado

Por Merval Pereira

A PEC-300, que trata da questão salarial dos policiais militares, aprovada em primeiro turno por unanimidade há um ano e meio devido à atuação do governo federal e dos partidos aliados, agora está sendo firmemente combatida pelos mesmos personagens, que de repente descobriram os malefícios de uma lei que já foi tida como virtuosa e rendeu muitos votos na eleição presidencial de 2010.

Ela passou por unanimidade no Congresso, o que indica também que os partidos de oposição não tiveram força para assumir a posição mais correta, que era votar contra a aprovação da PEC. Seguiram o arrastão governista e avalizaram uma decisão que agora se evidencia inviável.

Essa reviravolta e suas consequências - a greve de Salvador e a tentativa de levá-la a outros estados como o Rio de Janeiro, às vésperas do carnaval -, além de exibir a maneira irresponsável e populista com que certos assuntos prioritários são tratados no Congresso, mostram que o tema é uma questão de segurança nacional, e o governo federal deveria assumir a coordenação de uma política salarial para os policiais a ser adotada pelos estados.

A ideia original da PEC-300, que definia plano salarial nacional, não era factível, já que não é razoável que se queira pagar o mesmo salário a policiais do Acre e de São Paulo, que têm orçamentos tão diferentes. Também o Distrito Federal não pode ser o parâmetro, nem mesmo para decretar um piso nacional, já que os salários são pagos com base no Orçamento da União.

Estamos nessa situação no momento, com os governadores fazendo pressão sobre suas bancadas e sobre o governo federal para que não seja colocada em votação a PEC-300 em segundo turno. É preciso haver uma discussão mais séria sobre o assunto, a comissão que está encarregada da PEC-300 diz que somente oito dos 27 estados enviaram respostas às perguntas feitas, como, por exemplo, qual seria o piso aceitável para cada um deles.

Já os governadores, através de seus secretários de Fazenda reunidos no Confaz, dizem que o Congresso está querendo legislar sobre um tema que é estadual, no que têm razão. Aliás, o governo federal sempre tratou a questão da segurança pública como sendo da alçada dos governos estaduais, como se pudesse se eximir de responsabilidades com argumentos burocráticos.

Essa é uma discussão em que não chegaremos a uma solução se o governo federal não assumir de vez que tem de ser o coordenador de um amplo debate nacional. A questão permanecerá aberta, pendente como uma espada sobre a democracia brasileira. Volta e meia temos greves de PMs que criam problemas institucionais graves, seja em que estado for.

Essa é uma tarefa que deve ser prioritária para o governo federal e os estados tratarem conjuntamente, pois, quando estoura uma greve de PMs, é o governo federal que tem de enviar tropas para a repressão ao movimento ilegal. Logo, não há mais como transferir as responsabilidades unicamente para os estados.

O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), mesmo diante das gravações em que a deputada estadual de seu partido Janira Rocha aparece aconselhando os grevistas a não fazer acordo em Salvador para não esvaziar uma eventual greve dos policiais e dos bombeiros no Rio, garante que os parlamentares do PSOL "buscam mediar a urgente e necessária negociação entre os representantes dos servidores e o governo, nem substituindo aqueles nem coonestando postura intransigente destes, autoproclamados monopolizadores da lei e ordem".

A mobilização da segurança pública por melhores condições de trabalho e salário não é "um raio em céu azul", lembra Alencar, nem "orquestração" de "dirigentes interessados na agitação social". Ele diz que, liminarmente, cabe separar vandalismo e promoção da sensação de insegurança generalizada de mobilização reivindicatória com pauta e negociação com as autoridades.

"Quem delinque, aproveitando-se da situação, é inimigo não só da população como do próprio movimento", afirma Alencar, para quem estão postas em debate "a desmilitarização e a unificação das polícias, para dar conta das novas realidades, entre as quais, os mecanismos de exercício de poder". Ele considera "naturalíssimo" que os profissionais da área se aproveitem dos megaeventos que ocorrerão no Rio - refere-se à Copa e, sobretudo, às Olimpíadas - para fazer suas reivindicações salariais.

A necessidade da imagem exemplar a ser mostrada ao mundo tem como pilar importante, por óbvio, a segurança, como se reitera à exaustão, ressalta Alencar, para quem essa conjuntura ajuda a que os PMs se indaguem: se somos tão importantes para a segurança dos eventos, por que continuamos a receber salários tão baixos? Ele não concorda que piso nacional para essas categorias seja inviável e "quebraria o país". Argumenta que o salário mínimo é um piso nacional, e os profissionais da educação também já o têm, ainda que em implementação. Chico Alencar acha que a PEC-300, que define um piso, sem fixar valor, e um fundo contábil para provê-lo, tem condições de ser aprovada, pois todas as definições sobre os custos serão tomadas em iniciativa posterior do Executivo, a ser enviada ao Congresso Nacional seis meses depois de promulgada a emenda constitucional.

Já o deputado federal Alfredo Sirkis, do Partido Verde, acha que o governo tem culpa no cartório, pois o PT, "por razões eleitoreiras", votou a PEC-300 em 2010 e, em 2011, "descobriu" que não tinha como pagá-la. Para ele, deveria haver um horizonte para sua aplicação gradual, mediante um fundo nacional, como o da educação, que complementasse os salários nos estados.

Seria implementada de forma escalonada, junto com a instituição da dedicação exclusiva dos policiais à segurança pública, com o fim do duplo emprego institucionalizado que temos hoje, "o mal chamado de 'bico'".

"Não basta aumentar o salário ruim dos policiais", diz Sirkis. É preciso fazê-lo num contexto de melhoria da qualidade dos policiais, e, isso, ele considera incompatível com a atual rotina de trabalho descontínua, "o policial servindo à polícia duas vezes por semana e quase sempre ganhando mais na sua outra ocupação remunerada, nos dias de suposta folga".

Merval Pereira é Jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 14.02.12.

Brizola, o Reformador

Por Juremir Machado da Silva

Se vivo fosse, Leonel "Itagiba" de Moura Brizola teria completado ontem 90 anos de idade. Pode-se dizer, sem exagero, Brizola Vive! Ele, Jango e Getúlio formam a trinca de políticos gaúchos mais importantes dos últimos 80 anos. Brizola ainda deslumbra seus admiradores pela coragem, pela ousadia, pelas grandes reformas - encampou duas empresas multinacionais incompetentes e parasitas - e pelo papel que desempenhou em relação à reforma agrária e à educação.

Digo, depois de muito estudar, que Leonel Brizola foi o melhor governador da história do Rio Grande do Sul. Hoje também é o dia dos 50 anos do começo da luta por reforma agrária no Banhado do Colégio, em Camaquã, onde o agricultor Epaminondas Silveira e o padre Léo Schneider lideraram comboio de 2 mil pessoas, de carroça, charretes, a cavalo e a pé, por 10 quilômetros. Exigiam que o governo retomasse terras do Estado griladas por fazendeiros. Brizola entrou na parada e mudou o jogo.

É emocionante ler as manchetes dos jornais da época. Capa da Última Hora: "Camaquã imita Sarandi - Mais de 2 mil camponeses pedem terra". Outra da intrépida UH: "Colonos de Camaquã - Só a morte nos expulsa daqui".

Os fazendeiros queriam que o III Exército fizesse o serviço sujo e expulsasse os sem-terra. Brizola preferiu um caminho inusitado como destaca Elio Copes: "Decretou a área do Banhado do Colégio (cerca de 20 mil hectares) de utilidade pública para fins de reforma agrária, deu apoio ao acampamento, tais como, alimentação, atendimento de saúde e iniciou um trabalho de inscrição dos acampados, levantamento da condição social de cada família, que serviria para a seleção para, mais tarde, receberem os lotes.

Após cinco meses do acampamento, tempo que levou para providenciar na documentação dos lotes, o então governador Leonel Brizola esteve no Banhado do Colégio, onde fez a entrega dos primeiros 134 lotes, marcando, assim, um novo marco de desenvolvimento para o local". Algo nunca visto antes.

Elio Copes organiza, em Camaquã, as comemorações desse cinquentenário da primeira reforma agrária realmente bem-sucedida do Brasil. Brizola era de faca na bota. Fez uma que cala todos os maledicentes. Promoveu reforma agrária na fazenda Pangaré, de sua propriedade, em Palmares.

Distribuiu 1.080 de 2.300 hectares para pequenos agricultores plantarem arroz. Cada um recebeu um lote de 35 hectares, casa e três vacas holandesas. De fato, esse Brizola era muito perigoso, subversivo, assustador.

Não cumpriu o papel tradicional de repressor de movimentos sociais, criou milhares de escolas, não se mixou para os americanos, enfrentou os interesses dos estancieiros donos do Rio Grande do Sul, suportou com galhardia o pau que levava diariamente dos setores conservadores da Assembleia Legislativa e, findo seu mandado de governador, elegeu-se deputado pelo Rio de Janeiro com um voto em cada quatro eleitores, como se diz, de cola em pé. Esse era de meter medo. Só podia virar inimigo público de todos os reacionários e dos golpistas de 1964.

Juremir Machado da Silva é historiador e romancista. |

Big, o que?

Por Luis Fernando Verissimo

Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço. A nova edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. Chega a ser difícil encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência.

Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB é a pura e suprema banalização do sexo.

Impossível assistir ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, heteros... todos na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterossexuais. O BBB é a realidade em busca do IBOPE.

Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB . Ele prometeu um “zoológico humano divertido” . Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas.

Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo. Eu gostaria de perguntar se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade.

Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. Caminho árduo? Heróis? São esses nossos exemplos de heróis? Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros, profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores) , carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor e quase sempre são mal remunerados.

Heróis são milhares de brasileiros que sequer tem um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir, e conseguem sobreviver a isso todo dia.

Heróis são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna. Heróis são inúmeras pessoas, entidades sociais e beneficentes, Ongs, voluntários, igrejas e hospitais que se dedicam ao cuidado de carentes, doentes e necessitados (vamos lembrar de nossa eterna heroína Zilda Arns).

Heróis são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada meses atrás pela própria Rede Globo.

O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral. São apenas pessoas que se prestam a comer, beber, tomar sol, fofocar, dormir e agir estupidamente para que, ao final do programa, o “escolhido” receba um milhão e meio de reais. E ai vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a "entender o comportamento humano". Ah, tenha dó!!!

Veja o que está por de tra$$$$$$$$$ $$$$$$$ do BBB: José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão.

Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social, moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros? (Poderia ser feito mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores)

Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores. Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa..., ir ao cinema...., estudar... , ouvir boa música..., cuidar das flores e jardins... , telefonar para um amigo... , •visitar os avós... , pescar..., brincar com as crianças... , namorar... ou simplesmente dormir. Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída a nossa sociedade.

Luis Fernando Verissimo é escritor.

A Vez da Esperança

Por Igor Lago

Desde o dia 01 de dezembro de 2011, o nosso Partido vive uma situação inédita: a de não existir formalmente! Nunca havia acontecido isto desde a sua fundação em 1980.

O PDT maranhense foi um dos primeiros nove que se organizaram em nosso país, numa luta árdua para superar as barreiras impostas pelas leis da Ditadura. Ainda garoto, aos 11 anos, ajudava meu pai a organizar as fichas de filiação.

Sob as lideranças de Neiva Moreira e Jackson Lago, o PDT cresceu, conquistou mandatos legislativos e executivos, chegando à prefeitura de nossa capital, de várias cidades de nosso estado e, finalmente, ao Palácio dos Leões, impondo uma derrota única à Oligarquia maranhense.

Após o falecimento de seu insubstituível líder, o PDT maranhense reorganizou-se em 211 dos 217 municípios. E caminhávamos rumo à Convenção Estadual para, conquistarmos assim, toda a autonomia de um Diretório.

Daí a minha posição de estimular os companheiros a realizarem suas Convenções Municipais, termos o número necessário de Diretórios para convocar a Convenção que deve ser marcada pela Executiva Nacional, conforme o nosso Estatuto.

Também estávamos programando a realização de um Encontro Estadual em dezembro, o que acabou não acontecendo devido à não prorrogação da Comissão Estadual.

Além desses prejuízos, estamos na insólita condição de não poder discutir, ainda, os rumos que o nosso Partido deve tomar em São Luis e em muitos de nossos municípios.

Acredito que um partido democrático prima pelas boas práticas partidárias, dentre elas, a de que as instâncias tenham respeito entre si. Nada mais salutar para um partido que a sua instância municipal seja respeitada pela sua instância superior, isto é, a estadual, assim como o partido estadual pela sua instância superior, a nacional.

Qualquer decisão de uma instância superior, sobre os destinos de sua instância inferior, deve ser feita baseada no que o consenso ou a maioria desta determinou. Isto chama-se Democracia!

Jango, Brizola, Darci Ribeiro, Doutel de Andrade, Francisco Julião, Abdias Nascimento, Getúlio Dias, Jackson Lago e tantos outros deram suas vidas por essa instituição. Não podemos desconhecer a nossa história, esquecer os nossos ideais e princípios. Estes, pelo que significam, são eternos.

Escrevo com indignação e com a firmeza que todos devemos ter ao encarar certas situações partidárias. É preciso que todos compreendam que o nosso partido tem que ser e deve ser diferente, que deve respeitar a sua história e o seu legado.

Igualmente devemos nos preparar para os embates do presente e futuro, com os pés no chão e de cabeça erguida, sabendo dos desafios políticos, eleitorais e administrativos.

É o que temos tentado fazer aqui no Maranhão, ao honrar o legado de seu fundador Jackson Lago, assim como a história de vida de todos os seus fundadores, fazendo a política com P maiúsculo, fortalecendo o Partido para apresentar candidaturas próprias e, quando não possível, fazer alianças baseadas nos valores republicanos e éticos.

Acredito que, depois de uma grande e profunda discussão, encontraremos as melhores decisões.

E não posso deixar de lembrar que, “quando se tem indignação e coragem, damos lugar à Esperança”.

Igor Lago, médico, é membro do Diretório Nacional do PDT.

Além dos Números

Por Merval Pereira

Mais importante que definir que ter o sexto Produto Interno Bruto (PIB) do mundo não significa ter um país melhor — estamos em 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); em 88º no Índice de Desenvolvimento Educacional; ainda somos um dos mais desiguais na distribuição de renda do mundo, apesar dos avanços recentes — é entender que, para deixarmos de ser o 73º país no ranking de renda per capita, temos que encarar as reformas estruturais de que o país necessita para crescer sustentavelmente, principalmente na educação.

Mesmo porque a previsão de que passamos o Reino Unidos se baseia em expectativas de crescimento e câmbio que estão sujeitas a alterações que podem mudar novamente o ranking, embora a crise financeira internacional torne quase inexorável a ascensão dos países emergentes.
A Goldman Sachs, que “inventou” o acrônimo Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para tornar palpável o crescimento dos emergentes, considera que é possível que dentro de 18 anos a economia da China venha a ser tão grande quanto a dos Estados Unidos.

Desde o início da crise financeira internacional, em 2007, os Brics respondem por cerca de 45% do crescimento global.
A soma do PIB dos Brics pode alcançar a dos países que compõem hoje o G-7 por volta de 2032, sete anos antes do previsto inicialmente.
Com relação ao Brasil, um estudo do empresário Paulo Cunha mostra que, se a renda per capita brasileira tivesse crescido até hoje à mesma taxa do período de 1900 a 1980, estaríamos com 35% da renda dos americanos — próximos do Chile e melhores que o México.

E se tivéssemos crescido mais aceleradamente, ao ritmo registrado entre 1950 e 1980, quando crescemos a uma média anual de 7%, (nosso PIB registrou médias asiáticas: 7,15% de 1950 a 1959; 6,12% de 1960 a 1969; e 8,78% de 1970 a 1979), estaríamos hoje com 48% da renda americana, semelhante à de Portugal.
Ao contrário, se de 1900 a 2004 a renda per capita tivesse crescido no ritmo dos últimos 25 anos, nossa renda seria equivalente a 18% da renda atual, o que corresponderia às rendas do Quênia e da Nigéria — estaríamos entre os 15 países mais pobres do mundo.

O PIB per capita do Brasil em 1980 equivalia a 30,5% do dos Estados Unidos; em 2009, essa relação caiu para 22,7%.
Ao contrário, no mesmo período, o PIB per capita da Coreia do Sul em Paridade de Poder de Compra (PPC) equivalia a 18,8% do norte-americano, quase a nossa situação hoje, e era 60% menor do que o PIB per capita brasileiro naquela ocasião.

Mas nesses 30 anos a Coreia do Sul conseguiu aumentar o percentual em relação aos Estados Unidos para 60,3%. Esse avanço tem a ver principalmente com o salto de qualidade no ensino que o país deu nos últimos anos.
Até 1980, o Brasil cresceu mais que a média mundial: de 1900 a 1980, a renda per capita brasileira cresceu em média 3,04%, enquanto a renda mundial cresceu 1,92%.

O período de maior crescimento foi o de 1950 a 1980, que alguns classificam como os “anos dourados”, quando o país cresceu em média 4,39% sua renda per capita, para um crescimento médio mundial de 2,83%. Nesse período, o Brasil figurou entre os dez países mais dinâmicos do mundo.

A partir daí, assistimos a uma redução de 90% do ritmo de crescimento per capita — de 4,39% para 0,43% de 1980 a 2004.
No trabalho “Redução da desigualdade da renda no governo Lula — Análise comparativa”, o professor Reinaldo Gonçalves, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que no período de 2001-10 o Brasil teve uma taxa média anual de crescimento do PIB real per capita de 2,2%, inferior à média de um painel composto por 12 países da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

O crescimento médio anual do país no período de 1995 a 2009 foi de 2,9%, fazendo com que a elevação da renda tenha sido de apenas 22%, contra 100% na Índia e 226% na China no mesmo período.
Mesmo crescendo a apenas 3% ao ano (previsão que já está sendo reduzida pelos especialistas), o PIB brasileiro aumentará mais que o dos países europeus e o dos Estados Unidos nos próximos anos, o que coloca o país no G-6 da economia mundial.

Mas crescerá menos que emergentes como China e Índia. Devido ao baixo índice educacional e à falta de infraestrutura, Brasil e Índia crescerão em velocidade menor que Rússia e China nos próximos 20 anos, segundo estudo da Goldman Sachs, criadora dos Brics.

Mas, mesmo a lista das dez maiores economias do mundo devendo ser bastante diferente da de hoje nos próximos anos, há um detalhe fundamental: as maiores economias, medidas pelo Produto Interno Bruto (PIB), provavelmente continuarão não sendo as mais ricas em termos de renda per capita.

Pelas projeções, os cidadãos dos Brics continuarão sendo mais pobres na média que os cidadãos dos países do G-6 de hoje, com exceção talvez da Rússia.
O Brasil, se conseguir manter uma média de crescimento do PIB de 3,5% ao ano, chegará a 2050 com uma renda per capita de US$26.500, próximo à de Portugal hoje, muito longe do que já têm hoje França e Alemanha (cerca de US$44 mil), menos do que o Japão (cerca de US$45 mil) e os Estados Unidos hoje (cerca de US$48 mil).

Para piorar a perspectiva, mesmo com a crise financeira internacional, o PIB per capita dos maiores países continuou crescendo, mesmo o do Japão, que está em recessão há quase 20 anos.

Portanto, mesmo que chegue a ser a 5ª economia de um mundo conturbado, o país continuará tendo desvantagens competitivas sérias.

Os países que fazem parte da OCDE, os mais avançados do mundo, aplicam cerca de 7% do PIB em pesquisa e desenvolvimento. O Brasil não passa de 1%, sendo suplantado largamente por Coreia do Sul e China, países que estavam atrás de nós nesse setor nos anos 1980.

A participação brasileira na produção mundial caiu de 3,1%, em 1995, para 2,9%, em 2009, o que denota falta de competitividade. No mesmo período, a China saltou de 5,7% para 12,5%, e a Índia foi de 3,2% para 5,1%.
Em 1960, a Coreia já tinha escolaridade média superior à do Brasil em 1,4 ano de estudo, e essa diferença só fez aumentar de lá para cá, estando atualmente em mais de seis anos.

Merval Pereira, Jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras, é articulista de politica de O Globo, RJ. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 03.01.2012.

O Crime Organizado e a Globalização

Por Roberto Veloso

Nas sociedades pós-industriais e na era da globalização, o incremento tecnológico do sistema de produção e consumo transformaram a realidade social, fazendo surgir novos bens jurídicos a serem protegidos e novas condutas a serem analisadas e estudadas no âmbito do Direito Penal.

Há até uma tendência de se dizer que o progresso tecnológico e o aumento das facilidades de transporte e comunicação indicam o desenvolvimento econômico de uma determinada sociedade, sendo uma das suas conseqüências a sofisticação da criminalidade. Nesse contexto, surge a macrocriminalidade, realizada por uma organização criminosa ou por uma empresa constituída para a prática de atos ilícitos.

Isso não é, porém, privilégio das sociedades desenvolvidas, uma vez que, apesar da evidência de que o desenvolvimento econômico propicie as condições ideais para a eclosão da macrocriminalidade, não se pode esquecer que as mais graves violações às normas penais de proteção à atividade econômica financeira são conhecidas das sociedades subdesenvolvidas ou em desenvolvimento, como é o caso dos países da América Latina.

É importante deixar de logo registrado que o crime organizado possui caráter transnacional, ultrapassando o espectro de aplicação das leis penais nacionais. Dessa forma, os crimes de lavagem de dinheiro e os seus crimes-meio – financeiros, tributários, fraudes bancárias – ganham maior grau de sofisticação e eficiência e se tornam difíceis de apuração e repressão pelas autoridades nacionais.

Outro fator importante na análise da macrocriminalidade é o uso e o abuso do poder político, econômico ou intelectual. Para Maurício Adeodato, o poder não seria um elemento concentrado como atributo de uma pessoa ou grupo, mas uma relação divisível, que pressupõe a existência de uma sociedade altamente complexa.

A esses fatores deve-se somar, na análise da macrocriminalidade, a especificidade profissional. O acréscimo dessa especialização profissional tem como maior manifestação o domínio funcional operativo dos meios tecnológicos, de modo que tal circunstância pode incidir de forma autônoma e determinante para que muitas condutas nocivas não sejam alcançadas pelo sistema penal.

A atividade da macrodelinqüência é realizada, na maioria das vezes, sob o manto de uma legalidade aparente. As organizações criminosas avançadas atuam de uma maneira que parece lícita, com uma fachada que esconde a verdadeira faceta, sendo imperioso reconhecer que, para sobreviverem e se viabilizarem sob aparente legalidade, estabelecem contatos e apoios no legislativo, no executivo e no judiciário, além, é claro, de no ramo empresarial.

A macrodelinqüência, demonstrando seu alto poderio financeiro, na sua atividade criminosa movimenta grandes somas de dinheiro, como se pode, por exemplo, constatar no comércio ilegal de entorpecentes. Quatrocentos bilhões seriam provenientes do tráfico de drogas empregando perto de 20 milhões de pessoas, dispondo de 70 a 100 milhões de consumidores.

Isso acontece nos tempos atuais de uma sociedade de risco, a qual apresenta três características. A primeira seria a mudança dos perigos atuais em relação aos de outras épocas, como desastres naturais ou pragas, para a exploração e manejo de energia nuclear, produtos químicos, recursos alimentícios, problemas ecológicos e tecnologia genética, entre outros.

Essas ameaças da modernização e da globalização são conseqüências do progresso tecnológico, na maioria das vezes não previstos e inicialmente dirigidos a finalidades positivas.

A segunda característica é a complexidade organizativa das relações de responsabilidade, o que dificulta a investigação e o desvendamento das condutas lesivas em razão da constante substituição dos contextos de ação individual por outras, de caráter coletivo, de sorte que a responsabilidade pelos fatos se ramifica cada vez mais por meio de processos para os quais contribuem várias pessoas, físicas ou jurídicas.

A terceira é a sensação de insegurança subjetiva, que provoca uma demanda crescente por mais legislação penal, na busca de uma proteção objetiva, fazendo o binômio risco-insegurança com que os indivíduos reclamem ao Estado a prevenção ao risco e a otimização dos recursos de segurança.

Dentro dessa perspectiva é preciso se criar novos mecanismos para a apuração e combate à essa atividade criminosa, com a modernização da legislação, a aquisição de equipamentos para os órgãos investigadores e a formação de pessoal adequada para o enfrentamento da atividade delinqüente internacional.

Roberto Veloso é Juiz Federal e Presidente da AJUFER - 1ª Região.

Dilma e o Caminho de San Tiago

Por Pedro Simon

O Congresso Nacional realizou uma sessão envergonhada na manhã de 12 de dezembro passado, uma reunião quase sigilosa, virtualmente secreta, sem direito sequer às imagens da TV Senado.

Integrado por 594 representantes, o Parlamento brasileiro estava ali com apenas três senadores e um deputado em plenário, além de dois convidados na mesa.

Parecia uma homenagem a um subversivo em plena ditadura militar, mas era o reconhecimento, cem anos após o seu nascimento, a um dos grandes democratas de nossa história: Francisco Clementino de San Tiago Dantas, chanceler do fugaz gabinete parlamentarista de Tancredo Neves no Governo João Goulart.

À beira de seu túmulo, morto cinco meses após o golpe de 1964 que derrotou a ele e a todos nós, o economista Roberto Campos, um dos cérebros do novo regime, reconheceu: "San Tiago Dantas é a figura mais extraordinária, mais genial de toda a nossa geração".

Foi o "Homem de Visão de 1963" em tempos aguçados pelos visionários de todas as tendências. San Tiago marcou época e posição, como chanceler, implantando o conceito da Política Externa Independente numa era que dividia o mundo entre o lado de lá e o lado de cá, União Soviética ou Estados Unidos.

San Tiago era a síntese de suas contradições: advogado de grandes empresas, defendia a justiça social como membro do PTB de centro-esquerda; não-marxista, reatou relações de Brasília com o regime de Moscou; admirador do sistema político dos Estados Unidos, defendeu o direito de Cuba à autodeterminação e votou contra sua expulsão da OEA em 1961.

Neste mesmo Congresso, ainda jovem, eu testemunhei em 1962 uma das cenas mais memoráveis: San Tiago aplaudido de pé, durante vários minutos, após apresentar o seu plano de governo para o gabinete que sucederia Tancredo Neves.

Era uma peça fantástica, no plano político e econômico. E vi também, nesse dia, um dos fenômenos mais constrangedores da história dessa Casa: aclamado de pé, ovacionado, o orador não foi aprovado como novo chefe do governo parlamentarista.

Meses depois, cessada a experiência parlamentar, João Goulart retomou seus plenos poderes com um ministério que emocionava pela biografia de seus integrantes. Alguns nomes dessa constelação: Darcy Ribeiro, Eliezer Batista, Evandro Lins e Silva, Hélio Bicudo, Hermes Lima, João Mangabeira, José Ermírio de Moraes, Miguel Calmon, Ulysses Guimarães, Walter Moreira Salles, Waldir Pires, Anísio Teixeira, Paulo Freire, além do próprio San Tiago.

Pois veio o golpe, derrubaram e cassaram João Goulart — com o apoio da Igreja e com os editoriais da grande imprensa, que fantasiava e caluniava o governo deposto.

Apesar disso tudo, nenhum daqueles nomes apareceu envolvido em malfeitos ou desvios do dinheiro público. Nenhum ministro foi cassado por corrupção — e foram cassados muitos, perseguidos tantos, humilhados todos. Nenhum deles teve uma vírgula de contestação à dignidade, à honorabilidade de biografias que orgulhavam a República e a Nação.

Essa é uma observação importante para a presidente Dilma Rousseff no momento em que completa seu primeiro e exitoso ano de governo, já pensando na saudável reformulação de seu ministério para 2012.

Cada vez mais segura e determinada em sua missão, com a cara limpa de seu estilo de governo, sem as heranças e compromissos políticos que restringiram o seu início de mandato, a presidente Dilma poderá, enfim, imprimir a marca pessoal que o Brasil aprendeu a admirar, expressa na aprovação recorde de 72% da população, superando o primeiro ano do governo de seus antecessores, FHC e Lula.

Presidente Dilma: siga o caminho de San Tiago. Faça a sua escolha, exclusivamente sua, tendo como regra os padrões de independência, seriedade, competência e integridade que resumem a biografia deste grande, digno, correto, decente, coerente brasileiro.

Trilhando o caminho de San Tiago, presidente Dilma, a senhora poderá dar ao seu Governo e ao País o ministério que os brasileiros esperam e merecem.

Um feliz 2012 para a senhora e para o Brasil.

Pedro Simon (PMDB-RS) é senador da República

O Crime da Moda

Por Fábio Tofic Simantob

Volta e meia a sociedade brasileira vive um modismo penal. Já foi moda falar em penas mais duras para falsificação de remédios, redundando num crime que prevê uma das penas mais altas do Código Penal; houve épocas em que se popularizaram propostas de endurecimento de penas para melhor punir o sequestro relâmpago.

O crime da moda agora é a embriaguez ao volante. Não que referida conduta não precise ser combatida e ter a atenção do Direito Penal, mas é como se, com uma mudança milagrosa da lei penal fosse possível extirpar dos trópicos este mal que ameaça a sociedade brasileira. Ledo engano.

As trágicas mortes recentes no trânsito das grandes cidades não são moda; moda é falar destes acontecimentos como se fossem crimes hediondos.

Paremos para pensar um pouco sobre a sociedade que construímos nos últimos anos, sobretudo nas grandes cidades brasileiras.

A vida nesses grandes centros resume-se à conjugação de alguns fatores, como expansão demográfica, boom imobiliário selvagem sem qualquer tipo de planejamento urbanístico, distanciando cada vez mais as residências dos centros de serviço, como bares e restaurantes, varridos do mapa em segundos para darem lugar a novos empreendimentos; um tráfego extremamente agressivo, suficiente para matar de enfarte ou adoecer por estresse qualquer motorista contumaz; incentivo total à indústria automobilística em detrimento dos investimentos necessários nos meios de transporte público; espaço dedicado ao pedestre cada vez mais precário.

Por fim, uma cultura do alcoolismo, incentivada todos os dias pela grande mídia.

O atropelamento ou a colisão é a gota d’água, o desfecho natural determinado por fatores sociológicos e não apenas individuais, embora crucificar este ou aquele motorista específico ajude a esconder debaixo do tapete questões muito mais sérias e intrincadas, impossíveis de se resolver do dia para a noite como exige o apelo popular.

Disto se depreende uma característica muito marcante do sistema neoliberal brasileiro, que gosta de se ufanar de conseguir desenvolvimento econômico à custa de uma mínima intervenção estatal, mas que não hesita em pedir socorro à forma mais invasiva de intervenção do Estado na vida do indivíduo — a prisão — quando a sociedade por si só dá mostras de não ter conseguido organizar-se de modo a garantir uma qualidade de vida digna para os seus cidadãos.

Podemos aumentar a pena da embriaguez ao volante, mas dificilmente os jovens deixarão de beber antes de pegar o carro. O pior é que a maioria, jovens ou não, fará isto sem colocar em risco a vida dos outros, mas provavelmente será penalizada pelos erros dos que realmente expõem a perigo a integridade física de terceiros.

Quanto aos problemas crônicos que afligem nossa cidade todo dia, com ou sem o álcool, tudo permanecerá como está, seguindo a máxima lampedusiana de que as coisas precisam mudar para que tudo permaneça do mesmo jeito.

Fábio Tofic Simantob é advogado no Rio de Janeiro, RJ.

Blá, Blá, Blá Mineiro

Por Rogério Gentile

Já está virando regra. É só o fim de ano se aproximar que o senador mineiro Aécio Neves repete o mantra de que é necessário "refundar o PSDB".

A primeira vez foi em 2010, logo após a eleição da presidente Dilma Rousseff. Ansioso para herdar a posição de José Serra no partido, Aécio disse que o PSDB deveria refazer e atualizar seu programa para "recuperar sua identidade".

Como isso não ocorreu e, aparentemente, não surgiu outra ideia para tirar a sigla da letargia pós-FHC, Aécio voltou à carga às vésperas deste Natal, acrescentando apenas que o PSDB precisa "andar de cabeça erguida, discutindo as grandes questões nacionais e propondo uma nova agenda para o Brasil".

Blá-blá-blá à parte, Aécio encerra 2011 sem ter conseguido se firmar como a principal referência da oposição no país. Teve dificuldades para se movimentar em um Senado dominado amplamente pelos aliados do governo, não apresentou nenhuma proposta de repercussão, tampouco soube se desemaranhar da briguinha partidária com Serra.

Sem conseguir se impor politicamente, precisou dar declarações à imprensa lembrando que está à disposição do partido para disputar a próxima eleição presidencial.

Faltando tanto tempo assim e, sobretudo por se tratar de um político mineiro, neto de Tancredo Neves, soou muito mais como se ele tivesse algum receio de ser esquecido.

Aécio tem demonstrado confiar em um futuro racha na base do governo para viabilizar-se para 2014. Cultiva boas relações com o PSB do governador Eduardo Campos (PE) e o PSD do prefeito Gilberto Kassab (SP) por entender que, se Dilma perder parte de sua popularidade até a eleição, os partidos poderão apoiá-lo.

Mas política não se faz apenas na base da calculadora. Se o senador não conseguir se mexer no Congresso e no PSDB, corre o risco de chegar sem fôlego à sucessão presidencial.

Rogério Gentile é Secretário de Redação da Folha de S. Paulo. Entre outras funções, foi editor da coluna Painel e do caderno "Cotidiano". Escreve a coluna São Paulo, na página 2, às quintas. Este artigo foi publicado na edição de 29.12.11.

Melhorar o Mundo Pela Educação

Por Ethevaldo Siqueira

Não é só a educação formal das escolas que naufragou, no Brasil e no mundo, leitor. Mas, principalmente, a educação ministrada no lar, pela família. Por isso, o conselho que mais tenho dado a meus amigos é bem simples: deem mais atenção a seus filhos.

Desculpe-me, leitor, se você pertence à minoria que realmente participa da vida de seus filhos, que dá todo apoio que eles precisam na infância e na adolescência. Parabéns, se já faz tudo isso. Mesmo assim, convido-o a juntar-se aos que sonham em mudar o mundo pela educação.

Seu filho talvez passe muitas horas, sozinho no quarto, todos os dias, diante do computador, jogando todos os tipos de videogames, surfando na web e visitando sites cujo conteúdo você simplesmente ignora. É possível até que, em sua ingenuidade, ele tenha feito novas amizades – com outros garotos inteligentes ou com adultos pedófilos.

Um amigo, pai desligado da vida de seu filho, me disse outro dia, com orgulho, que dá ao garoto “plena liberdade para escolher tudo que um dia deverá ser ou fazer na vida”. Será isso liberdade ou abandono?

Sei que esse amigo é um exemplo de trabalho, de honestidade e de dedicação à família. Disse-lhe que tudo isso é importante, mas insuficiente. Ao final, aconselhei-o a dar mais atenção ao filho. Ele reagiu mal.

Geração Digital

A questão básica é esta: a Geração Digital, também chamada Geração Y, é muito diferente da nossa. A vida urbana e o confinamento em apartamentos moldaram nos últimos anos meninos muito diferentes daqueles que fomos, na metade do século passado. A questão, entretanto, não é ter pena deles. Mas ajudá-los a resgatar as coisas belas da vida.

Comparo a vida deles com a minha, nos anos 1940 ou 1950. A maioria dos adolescentes de hoje nunca viu uma vaca de perto nem tomou leite no curral às cinco horas da manhã. Nunca jogou bola na rua. Nunca subiu numa jabuticabeira carregada de frutos maduros. Nunca pescou lambaris. Nunca nadou em rios de águas limpas. Nunca montou em bezerro ou em burro xucro. Talvez ignore até os nomes de pássaros brasileiros, como sabiá, rolinha, fogo-apagou, anu, sanhaço, tiziu, maritacas, inhambu ou codorna.

Os meninos da Geração Y não têm método para nada. Fazem tudo, atabalhoadamente. Usam todos os dispositivos eletrônicos ao mesmo tempo: a TV, o computador, o tablet, o smartphone, o videogame, o celular. Leem uma montanha de fragmentos, sem reflexão. Maltratam e torturam a língua portuguesa. Escrevem de forma estropiada. É claro que, eventualmente, eles são capazes de se concentrar numa tarefa mais apaixonante, de interesse imediato. Mas são, por definição, dispersivos.

Nascidos quando a internet decolava, por volta de 1990, os garotos da Geração Y têm toda a facilidade para lidar com a parafernália digital e com os dispositivos móveis da tecnologia pessoal. Mas precisam de nosso apoio, de nossos cuidados e de nova educação.

Que fazer

Aproveite as férias para aproximar-se mais de seu filho, para construir uma nova relação com ele, meu amgio. Se notar que o garoto está exposto a riscos e perigos, não se escandalize nem reaja de forma autoritária ou radical. Nada de repressão policialesca, de gritos, de sermões infindáveis nem de ameaças. Dialogue com serenidade, ensine-lhe tudo que ele precisa saber sobre tecnologias digitais. Se você não sabe, estude, aprenda, junto com ele. Atualize-se nessa área.

Mostre-lhe o que a internet tem de melhor e como encontrar seus tesouros escondidos. Convença-o de que a web também pode transformar nossa vida em verdadeiro inferno, com seu lixo e suas armadilhas. Ensine seu filho a evitar tudo isso. Dê-lhe senso crítico e não o transforme num incauto deslumbrado pela tecnologia.

Ensine-o a pesquisar, a concentrar-se em uma única tarefa, a refletir, a descobrir a beleza da leitura, da poesia, da música, das artes em geral, do esporte, do contato com a natureza. Se não cuidar dele, há muitos delinquentes à espreita, que cuidarão. E aí nada adiantará exclamar, cheio de mágoa: “Onde foi que eu errei?”

Os analógicos

Se você nasceu há mais 50 anos, lembre-se que seu mundo era totalmente analógico, povoado de telefones fixos, pretos e eletromecânicos. De rádios e TVs a válvulas. De filmes fotográficos de rolo, de discos de vinil e de vitrolões.
Se você tem entre 30 e 50 anos, talvez tenha vivido com grande interesse a transição entre o mundo analógico e o digital, quando surgiam os primeiros PCs, CDs e videocassetes, no começo dos anos 1980 até a metade dos 1990. Conheço bem meus contemporâneos e percebo a dificuldade que a maioria deles tem em lidar com desktops, smartphones, iPods e tablets. Outros, já avós, tentam com humildade aprender com os filhos ou netos.

Felizmente, sou uma exceção. Se não tivesse acompanhado de perto as transformações da tecnologia, eu também tremeria diante de um teclado. Para mim, o mais importante foi adquirir experiência e acompanhar tantas mudanças tecnológicas ao longo da vida.

Cabe-me, agora, estimular pais e educadores a desarmar a bomba-relógio que poderá, sim, explodir em sua casa, mais adiante, se não ensinarmos todos os dias os garotos e adolescentes a administrar os desafios crescentes do mundo em que vivemos.

Ethevaldo Siqueira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 23.12.11.

Já Foi Tarde

Por Élio Gáspari

Se Deus é comunista, entrega a Coreia do Norte a um condomínio da ditadura de Pequim com dinheiro de Seul

Poucas vezes na história viu-se de forma tão direta e fotográfica o legado de um governante. É o buraco negro registrado pelos satélites que passam sobre o apagão da Coreia do Norte deixada por Kim Jong-il, o "Sol do Futuro Comunista", o "Comandante Invencível". Um apagão elétrico, social, político e econômico.

É com esse apagão que a jornalista americana Barbara Demick começa seu livro "Nothing to Envy" ("Nada a Invejar - Vidas Comuns na Coreia do Norte"). Ela foi correspondente do "Los Angeles Times" em Seul e, durante sete anos, entrevistou coreanos que fugiram da tirania de Kim Jong-il, que foi-se embora no domingo. Quando o "Querido Líder" nasceu, uma estrela brilhou no céu e dois arco-íris enfeitaram o dia. Sucedeu ao pai, o "Grande Marechal", e passou o poder ao filho.

Como sucedeu em 1994, quando o coração matou Kim Il-sung, o "Divino Guardião do Planeta", torce-se pela desagregação do regime que aprisiona 23 milhões de pessoas, dando-lhes fome, miséria e brutalidade.

Barbara Demick escreveu sobre uma tirania depois de um século varrido pelo Holocausto e pelo Gulag, quando seria possível pensar que já se viu de tudo. O que há de terrível no retrato da Coreia do Norte é que ele surpreende o leitor. Quando se acha que a vida de um povo não pode piorar, ela piora, envergonhando a época em que se vive.

Em 1945, a península coreana foi dividida entre duas ditaduras. A do Norte, comunista e rica. A do Sul, capitalista e pobre. Nos anos 60, quando se falava em "Milagre Coreano", o tema era a supremacia socialista. Em 1970, todos os vilarejos do país tinham eletricidade.

Passou-se uma geração, o Sul tem uma democracia e o Norte tem uma tirania enlouquecida, que mais se parece com a Spectre do romance de Ian Fleming do que com um Estado. Em apenas quatro anos, entre 1991 e 1995, a renda per capita da população caiu de US$ 2.460 para US$ 719. O regime vive do socorro cúmplice da China.

Falta eletricidade, mas as 34 mil estátuas do "Pai da Pátria Socialista" são iluminadas mesmo de dia.

A professora Mi-Ran conta que via alunos de cinco ou seis anos morrerem de fome nas salas de aula. Sua turma de jardim de infância de 50 alunos caiu para 15.

Nas casas desse paraíso, uma parede da sala deve ser reservada para o retrato do Líder, que é distribuído com um pano. Fiscais zelam para que nenhuma família deixe de limpá-lo.

A fome dos anos 90 matou entre 600 mil e 2 milhões de coreanos do norte. Em algumas cidades morreram dois em cada dez habitantes. Um médico conta que ensinou mães a ferver demoradamente a sopa de capim. A certa altura, as famílias preferiam que as crianças morressem de fome em casa, porque nos hospitais, onde não havia remédio, faltava também comida.

Nessa época o governo informou que racionara alimentos porque o povo da Coreia do Sul estava passando fome e precisava ser ajudado.

Ninguém comemora aniversário na Coreia do Norte. Festeja-se apenas um dia: o do nascimento do Líder.

Kim Jong-Il, com seus sapatos-plataforma, já foi tarde. Se Deus é comunista, o filho do Líder entrega o campo de concentração a um condomínio da China com a Coreia do Sul.

Élio Gáspari, 67 anos, jornalista e historiador, foi comunista na juventude, redator do jornal Novos Rumos. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 20.12.11.

Podres Poderes

Por Merval Pereira

Assim como expectativa de direito é direito, em política, expectativa de poder é poder. Enquadra-se nesse caso a consultoria do (ainda) ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, que após sair da prefeitura, em 2009, até dezembro de 2010 atuou privadamente, arrecadando milhões de reais, enquanto era candidato ao Senado pelo PT e um dos principais coordenadores da campanha da então candidata petista, Dilma Rousseff.

Note-se que Pimentel saiu formalmente da consultoria apenas em dezembro, depois que Dilma já havia sido eleita Presidente da República, o que demonstra que ele fazia negócios privados quando já estava claro que ele seria parte importante de um futuro governo petista. Da mesma maneira que Palocci, que só fechou sua consultoria depois de Dilma eleita.
Já na campanha, ao enfrentar a primeira crise séria, a candidata Dilma indicou o grau de sua relação pessoal e política com Pimentel: envolvido em denúncias de formação de um dossiê contra o candidato tucano José Serra, e em meio a uma briga interna petista onde até grampos telefônicos foram feitos e computadores roubados, Pimentel manteve sua influência intacta junto à candidata.

O fato de ser o político mais ligado pessoalmente a Dilma fazia dele, aos olhos de todos, um potencial ministro importante de um futuro governo, o que deveria impedi-lo de fazer trabalhos para grupos privados e instituições que tivessem interesses seja na prefeitura de Belo Horizonte, onde deixara subordinados e associados, seja no governo federal.

Essa mesma proximidade com a presidente, de quem foi “companheiro de armas” na fase de guerrilha a que se dedicaram, é o que faz com que, nos meios políticos, seja considerada quase uma impossibilidade a demissão de Pimentel, dando a dimensão de sua “expectativa de poder”.

Em vez de melhorar, só piora a situação o pedido de demissão de Otílio Prado, ex-sócio do ministro na P21 Consultoria e Projetos, que continuava como assessor especial do prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda, cargo que ocupava desde o início do governo.

Se, como alega, não havia incompatibilidade entre suas funções no governo e a assessoria que deu para empresas que tinham contratos com a prefeitura, por que então pediu demissão?

Além disso, o caso do (ainda) ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, vai se complicando a cada dia, porque agora há uma empresa de refrigerante do Nordeste que diz que não pagou uma consultoria que ele insiste em relacionar como tendo sido feita.

O que acrescenta às denúncias, além do conflito de interesses e suspeita de tráfico de influência, outro grau de gravidade, com indícios de lavagem de dinheiro. Ontem, porém, a ETA negou o que dissera na véspera.

Outro caso nebuloso é a venda subfaturada de um terreno em Belo Horizonte, registrada em um cartório de outra cidade “por questões de comodidade”.

Não estão claras as relações do ex-prefeito com o empresário que vendeu o terreno, que tinha interesses em obras na prefeitura de Belo Horizonte e está respondendo a processo.

A defesa que fez dele o presidente do PT, Rui Falcão, seu adversário na disputa de poder dentro do comitê da campanha presidencial em 2010, dá a dimensão da visão autoritária do partido.

Pela sua história de vida, Pimentel está “acima de qualquer suspeita”, disse Falcão. Quando seus grupos brigaram pelo controle do comitê de campanha, Rui Falcão não tinha essa opinião sobre Pimentel, tanto que o acusou de estar por trás de um suposto esquema de grampos telefônicos dentro do próprio comitê.

Ora, numa democracia não há ninguém que não tenha que se explicar por seus atos, mesmo que tenha um passado virtuoso.

Por esses azares da política, Palocci e Pimentel, que se enfrentaram na disputa pelo controle da campanha, depois de instalados no ministério do novo governo viram-se às voltas com as mesmas acusações.

Palocci caiu devido a explicações inconvincentes sobre sua consultoria, cuja relação de clientes jamais apareceu. Por sua vez, o (ainda) ministro Fernando Pimentel teve reveladas algumas das empresas que o contrataram, e isso só fez piorar sua situação.

Já o (ainda) ministro das Cidades, Mário Negromonte, entrou com seu depoimento no Senado para o rol dos patéticos, que tinha até o momento no ex-ministro Carlos Lupi sua melhor expressão ao afirmar que só sairia à bala do ministério.

Negromonte, por sua vez, disse que comeu muita “carne de bode” e que já passou da idade de mentir, como se para isso houvesse limitação etária.

Na sua fala, negou irregularidades em obras de transportes ligadas à pasta em Cuiabá, cidade-sede da Copa de 2014. Ao querer transferir para seus assessores diretos a culpa por eventuais malversações do dinheiro público, ele, em termos locais, pareceu tão desconectado da realidade quanto o presidente da Siria, Bashar al-Assad, que declarou a um canal de televisão dos Estados Unidos que não era responsável pela repressão aos opositores, atribuindo a brutalidade às suas forças de segurança.

Os dois, na prática, abrem mão de suas prerrogativas para tentar se afastar das responsabilidades dos cargos que ocupam e dos atos que praticaram ou foram praticados em seus nomes.

Negromonte é uma espécie de zumbi no ministério, pois não tem prestígio nem dentro do seu partido, o PP, nem no governo. Mantém-se no cargo mais pela inércia política, à espera da presumida reforma ministerial, e seu partido já negocia outros nomes, sob a indicação do senador Francisco Dornelles, para substituí-lo quando chegar a hora.

Fica no cargo pela sua irrelevância política.

Merval Pereira, membro da Academia Brasileira de Letras, é comentarista de politica de O Globo, RJ. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 09.12.11.

De Peito Aberto

Por Nelson Motta

Que Praça Tahir que nada, Ocuppy Wall Street é passado, que indignados conseguem chamar mais atenção para suas causas? Entre as novas formas de manifestações e protestos na era digital, a mais sensacional é o coletivo ucraniano Femen. Mulheres lindas, louras e nuas, ou quase, protestando em via pública pelas mais variadas causas, não necessariamente feministas.

De peito aberto, elas gritam contra a corrupção, as fraudes eleitorais, a violência contra mulheres, a prostituição, e ganham espaços espetaculares na mídia planetária. Os policiais encarregados de reprimi-las ficam nervosos e cheios de dedos, elas esperneiam e gritam enquanto eles tentam cobrir a nudez ultrajante com a manta da hipocrisia. Epa! Nudez ultrajante? Manta da hipocrisia? Menos, colunista, menos.

As manifestações começaram em Kiev, mas as garotas do Femen ficaram tão famosas que até já atuaram como protestantes-convidadas na Rússia. Se continuarem tão requisitadas para manifestações na Europa, em breve poderão programar uma turnê internacional de protestos.

Hoje elas são cerca de 300 militantes na Ucrânia, mas a tropa de choque que vai para as ruas tem 40 ativistas, não por acaso as mais bonitas e com melhores atributos para a missão. Logo se abriu outra discussão entre as feministas, sobre a ausência de barangas no núcleo duro, ou macio, das manifestações.

Elas negam e dizem que já houve até uma sexagenária topless. Mas é exceção, a tática é mesmo escalar as mais gatas para chamar a atenção. É um bom uso para a beleza.

Feministas americanas históricas como Betty Friedan e Germaine Greer ficariam histéricas diante das lourinhas e louraças do Femen e seus corpos avassaladores. Não se discutem os méritos das suas causas, mas a eficiência dos seus métodos e práticas, as reações que provocam.

Elas invertem o jogo de mulheres nuas como objetos sexuais dos homens, e exercem seu poder exibindo o corpo, não como oferta ou sedução, mas como um veículo de suas vontades. São elas que estão em controle, aos homens resta ficar olhando e desejando - mas terão delas apenas as suas palavras de ordem e seus slogans.

Nelson Motta é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 16.12.11

Minha História

Retrato em

Preto e Branco


EDSON CARVALHO VIDIGAL é do Beco do Urubu, em Caxias, onde a vida nem lhe deu tempo para infância porque nascido na pobreza e na exclusão social teve que trabalhar menino ainda para ajudar no sustento da casa.

Nas ruas, vendeu pão, picolé, água do rio em ancoreta em lombo de jumento, foi balconista de mercearia e cantou em programa de calouros para ganhar os prêmios, vendê-los e levar o dinheiro pra casa.

Em São Luis onde chegou rapazola querendo ganhar um futuro trabalhou como jornaleiro e garçom de botequim. Nunca largou os livros e aos 15 anos ganhou emprego de repórter policial mirim do Jornal Pequeno.

Líder estudantil, Presidente do Grêmio do Ateneu, Vice - Presidente da UMES, Vereador de Oposição em Caxias, eleito aos 18 anos, foi cassado e preso no golpe militar, em abril de 1964.

Respondeu a dois processos por suas opiniões políticas, mas um “habeas corpus” do Superior Tribunal Militar revogou-lhe a prisão preventiva, o que não impediu a perseguição que sofreu por muitos anos.

Como Jornalista trabalhou no Diário da Manhã, sob a direção de Bernardo Almeida; no Jornal do Povo, de Neiva Moreira, no Jornal do Dia, de Alberto Aboud e direção de Walbert Pinheiro e no Estado do Maranhão, que ajudou a montar na fundação com Bandeira Tribuzi.

Trabalhou ainda em grandes redações nacionais como VEJA, O GLOBO e JORNAL DO BRASIL. Criou o primeiro curso de formação de jovens jornalistas no Maranhão. O atual curso de Comunicação da UFMA teve como embrião o Curso da USP, que Edson Vidigal ajudou a trazer, em campus avançado, para São Luis.

Foi instrutor de cursos sobre organização sindical e diretor fundador da primeira Cooperativa Habitacional dos Operários do Maranhão, a COHAMA – hoje um dos bairros mais populosos de classe media na Capital do Estado.

Iniciou os estudos de Direito na Universidade Federal do Maranhão concluindo o curso na Universidade de Brasília, onde foi Professor por mais de 20 anos.

Deputado Federal (1979/83) trabalhou em defesa dos direitos autorais, do inventor nacional, da anistia aos perseguidos politicos, da volta dos exilados ao País, das eleições diretas, da aposentadoria para o trabalhador rural, a favor de melhores salários e menor tempo para aposentadoria dos professores.

Sob a sua presidência na Comissão de Ciência e Tecnologia surgiu o embrião da atual urna eletrônica, idéia que ele apoiou obsessivamente. Trabalhou ainda contra reserva de mercado na informática, que isolava o Brasil sobre o que se fazia em computadores no resto do mundo.

Fissurado em educação, viabilizou dezenas de milhares de bolsas para estudantes de nível médio que não podiam pagar seus estudos.

Fundou com Tancredo Neves o Partido Popular tendo sido seu primeiro Presidente no Maranhão. Na incorporação do PP ao PMDB foi Vice - Presidente de Renato Archer na direção regional do Maranhão e Delegado nacional no TSE com Paulo Brossard e Josaphá Marinho.

Como advogado atuou no Supremo Tribunal Federal e Tribunais superiores até ser indicado pelo Presidente da Republica à sabatina e aprovação do Senado para Ministro do Tribunal Federal de Recursos, o qual foi extinto pela Assembléia Nacional Constituinte.

Com a criação do STJ – Superior Tribunal de Justiça pela Constituinte, passou a integrar por ordem constitucional a composição originária.

Foi Presidente do STJ e do Conselho da Justiça Federal, quando iniciou o programa de interiorização da Justiça Federal, do Ministério Publico Federal e da Policia Federal, inclusive no Maranhão. Sua presidência foi a que mais instalou Varas da Justiça Federal.

Esteve em dezenas de países das Américas e da Europa, sempre como convidado, fazendo palestras sobre a justiça no Brasil ou discutindo temas da economia global no interesse do judiciário.

Publicou cinco livros e milhares de artigos na imprensa nacional sobre temas diversos do conhecimento humano. Membro da Academia Maranhense de Letras, da Academia de Letras de Brasília e da Academia Caxiense de Letras. Cidadão Honorário dos Estados do Piauí e da Paraíba e de dezenas de Cidades maranhenses. Possui dezenas de condecorações oficiais.

Jornalista independente, Advogado em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, Professor de Direito na Universidade Federal do Maranhão, VIDIGAL foi candidato nas eleições de 2010 a Senador da República pela coligação "O Povo é Maior" (PSDB-PDT-PTC) com Jackson Lago para Governador e José Serra para Presidente, tendo obtido mais de meio de milhão de votos, dos quais mais de 120 mil em São Luis, a capítal do Estado.

É casado com Eurídice Nóbrega Vidigal.

(e-mail: vidigal.edson@gmail.com)


Luta suja em solo devastado

Quatro dias depois de o relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, tê-lo acusado de “tentar embaraçar” as investigações a seu respeito a cargo da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, sob o comando do juiz Sergio Moro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi à sede do Poder Judiciário. Convidado para a posse da ministra Cármen Lúcia, que substituiu Ricardo Lewandowski na presidência da Suprema Corte, ele assistiu, impassível, à solenidade em que os oradores trataram principalmente do tema da corrupção, delito pelo qual é investigado em Brasília, São Paulo e Curitiba. Amigos tentaram dissuadi-lo de comparecer à solenidade para evitar constrangimentos. Mas ele foi convencido por assessores de que a recusa poderia azedar suas relações com os ministros, principalmente depois da cobrança dura que o dono da última palavra sobre seus inquéritos usou para repelir o último pedido de seus defensores. Tê-lo-ia ajudado a tomar a decisão a lembrança de que a ministra Cármen Lúcia lhe garantira sua “gratidão eterna” ao ser indicada ao cargo por ele, em 2006.

Os amigos e assessores que se opunham a seu comparecimento argumentaram que sua presença no auditório fragilizaria a versão petista de que o impeachment de Dilma Rousseff teria sido um golpe, sustentada em discursos e palavras de ordem gritados nas ruas por ele, pelo PT, pelos militantes dos movimentos sociais e pela própria presidente deposta. Ao contrário, naquele lugar impróprio, o ex-presidente deu nova demonstração de que, como seus companheiros, ele não precisa lançar mão de fatos para insistir no discurso de que “impeachment sem crime é golpe”. E não titubeou em dizer a quem dele se aproximou que a deposição de sua afilhada e sucessora teria sido, mais do que um golpe, um “crime”. Destarte, Lula disparou uma acusação grave para confrontar a Justiça, que legitimou todos os passos e ritos do processo, até porque o presidente do julgamento final, ocorrido sob a luz dos holofotes da cobertura extensiva e diária dos canais de televisão, foi Ricardo Lewandowski, que transmitia a chefia da Suprema Corte a Cármen Lúcia.

Lula disputou cinco eleições presidenciais, tendo perdido três e vencido duas, e apostou as fichas de sua até então inegável e insuperável popularidade para eleger Dilma duas vezes. Mas relegou a um plano inferior o Estado Democrático de Direito, sob cuja égide jurou duas vezes fidelidade à Constituição da República. De volta a 1988, quando o PT votou contra o texto constitucional e só o assinou, contra a vontade da maioria dos companheiros, por vigorosa insistência do deputado Ulysses Guimarães, fez pouco das instituições republicanas. “Falta muito para consolidar o nosso processo democrático”, vaticinou.

No auditório do STF, deixou claro, também, que a decomposição política e o desprestígio eleitoral de sua grei, provocados por incompetência na gestão e pela roubalheira desregrada de estatais, bancos públicos e outros patrimônios federais, e causa das dificuldades do PT nas eleições municipais deste ano, não o farão ceder. Ao contrário, ele previu que o partido “vai ter que fazer oposição, vai ter que brigar”. Age como se a tarefa de reconstruir a economia destroçada nos 13 anos, 4 meses e 12 dias dos dois governos petistas fosse apenas de Temer, a quem fingiu não reconhecer, no que, aliás, foi correspondido com idêntico descaso. Segundo Lula, “Temer vai ter que fazer com que esse país saia da crise econômica; a crise política vai durar muito tempo”.

A falta de compromisso do líder, que se orgulha de ter sido o mais popular presidente da História, com as inconsequências do próprio desgoverno comprova que, por mais que o impeachment de Dilma e a cassação do mandato de Eduardo Cunha revelem que as instituições democráticas estão funcionando, de fato ainda falta algo para a democracia se consolidar: uma oposição capaz de reconhecer os próprios erros e disposta ao diálogo para reconstruir sobre as ruínas que causou.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 15.09.16.

Promessas Não Cumpridas na Segurança

Recomenda-se aguardar um tempo para medir o alcance das medidas anunciadas anteontem pelo ministro da Justiça no âmbito do sistema penitenciário. Vistas apenas pela abrangência das ações a serem adotadas e pelo montante de recursos a ser destinado aos estados para a recuperação da rede de presídios, ou construção de novas unidades, as medidas do programa parecem consistentes.

No mínimo, são bem-vindas, cruciais mesmo, para fazer frente ao desafio de desarmar a bomba-relógio que ameaça fazer explodir superlotadas penitenciárias de todo o país, na forma de tragédias que, não raro, se manifestam em dramáticos picos de eclosão.

A dúvida quanto à eficácia do plano de ação reside menos no potencial do que no seu gerenciamento. Ao anunciar as medidas, o ministro José Eduardo Cardozo assegurou que, desta vez, elas são “para valer”. Programas de governo, quando anunciados, tornam-se pacto público — logo, por definição, todos têm a obrigação de sair do papel. Mas justifica-se a ênfase de Cardozo, que soa como ressalva, pelo histórico de promessas não cumpridas pelo lulopetismo desde 2003.

Particularmente na questão da segurança pública, de que o sistema penitenciário é um dos mais importantes vieses, há um rol extenso de compromissos que, o tempo mostrou, não foram “para valer”.

Caso das 42,5 mil vagas que o ministério pretende abrir em presídios até 2013, como anunciado anteontem. Metade delas já deveria ter sido criada até o ano passado. Propaladas reformas em unidades prisionais dos estados não foram “para valer”, e igualmente não saiu do papel a criação de 3.800 vagas para o aprisionamento especializado de jovens.

Ficaram também no terreno de promessas não cumpridas pelos dois governos Lula obras físicas para melhoria de estabelecimentos penais e, no âmbito específico da União, o funcionamento, até 2006, de cinco presídios federais para presos de alta periculosidade (quatro estão em operação, e atrasaram).

O agravamento linear da crise do sistema penitenciário é manifestação de um problema mais amplo, além da educação — a inexistência no país de uma efetiva política de Estado para a segurança, que lastreie ações estratégicas em nível nacional, mas integradas com organismos estaduais. Programas pontuais têm logrado melhorar os indicadores da criminalidade em alguns estados (Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente), mas ainda é inaceitável o perfil da violência no Brasil fruto do banditismo.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que, em pelo menos 13 estados, os índices de homicídios cresceram em 2009 e 2010. Com uma média que beira 22 assassinatos por cem mil habitantes, o país tem mais do dobro da taxa aceitável pela ONU, evidência de que o Brasil — que está na lista das nações com os piores indicadores de mortes decorrentes da violência — vive, neste particular, uma situação endêmica.

E não é o caso de atribuir ao problema causas orçamentárias: os gastos do poder público com a segurança são superiores aos de alguns países desenvolvidos, onde os índices de violência estão abaixo do patamar da ONU. O nó está essencialmente no gerenciamento — ou seja, gasta-se mal nessa rubrica.

Espera-se, por isso, que o programa penitenciário anunciado por Cardozo saia de fato do papel, e que o Executivo federal se envolva numa política nacional de segurança.

Editorial de O Globo, RJ, edição de 25.11.1.

A Reivindicação da Magistratura Federal

Por Roberto Veloso

O dia de 30 de novembro de 2011 foi marcado pela primeira paralisação conjunta dos juízes federais e dos juízes do trabalho. As duas entidades representativas das categorias, respectivamente Ajufe e Anamatra, comandaram o movimento, envolvendo cerca de 5.600 magistrados.

Em várias capitais brasileiras foram realizadas manifestações para chamar a atenção da população e do governo sobre a situação institucional da magistratura brasileira. Somente na Justiça do Trabalho foram desmarcadas 20 mil audiências, enquanto os juízes federais, além de paralisarem suas atividades, concentraram as intimações da União.

A paralisação teve por objetivo reavivar a negociação, que se encontra estancada entre as chefias do poder executivo e do poder judiciário. A ausência de interlocução do STF com o Congresso Nacional e o executivo atinge toda a magistratura brasileira, tanto que, ao lado dos federais, os trabalhistas também paralisaram.

Entre as associações, o único dissenso era da AMB, que inicialmente havia se manifestado contrariamente à paralisação, mas em razão da pressão de sua base, principalmente dos juízes estaduais de primeiro grau, que sofrem as mesmas vicissitudes dos federais e trabalhistas, terminou por emitir nota de apoio ao movimento. A greve é o ponto mais alto de uma tentativa de se garantir direitos.

Segundo o sociólogo português Elísio Estanque, sendo a greve um ato de rebeldia, procura, na verdade, uma nova harmonia. A parte mais fraca, aquela que não detém o poder de resolver a reivindicação em última instância, paradoxalmente, a magistratura, paralisa suas atividades para que a negociação se dê por outros meios.

A magistratura deseja, em primeiro lugar, uma política institucional que garanta a segurança dos agentes políticos dotados do dever-poder de promover e de realizar a justiça. Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei tratando do assunto, mas estranhamente não querem dar porte de arma aos agentes de segurança, nos mesmos moldes da polícia legislativa.

Os magistrados sofrem constantes ameaças e são submetidos à tensão de cumprir seu dever constitucional mediante o sacrifício de sua segurança e de sua família, adquirindo com seus próprios recursos veículos blindados usados, para a sua proteção.

O Conselho Nacional de Justiça instituiu uma comissão de trabalho para averiguar as condições de estresses físicos e mentais a que são submetidos os juízes, porque apresentam um grau de adoecimento maior do que a média do conjunto da sociedade. O programa a ser implantado visa à prevenção de males à saúde dos magistrados.

A magistratura luta também por uma política remuneratória de respeito à Constituição Federal, que se acha violada anualmente pelo desrespeito ao seu art. 37, inc. X. Entre janeiro de 2006, quando houve a fixação do subsídio pela Lei nº 11.143/2005, até o presente momento, o índice de inflação oficial acumula mais de 32%.

Descontada a reposição concedida em 2009, 9,07%, as perdas inflacionárias acumuladas no período chegam à casa dos 22%, o que representa a perda de quase um quarto do poder aquisitivo da magistratura, por isso, não é à toa que a carreira se encontre cada vez menos atrativa.

A magistratura deseja que lhe seja dispensado o mesmo tratamento dado às outras carreiras, que obtiveram recomposição salarial assegurada por meio de medidas provisórias, enquanto se tem notícia diária, pelos meios de comunicação, da ausência de vontade do governo em incluir no orçamento a reposição inflacionária do período.


Em relação ao teto constitucional, os magistrados foram os que mais lutaram por sua criação, pois havia servidores dos três poderes percebendo mais de cinquenta mil reais, porém, com o não cumprimento da Constituição em relação ao reajuste, hoje são os mais prejudicados, em razão de não receberem outra remuneração que não os subsídios, enquanto outras carreiras percebem várias verbas que permitem a ultrapassagem do limite.


A magistratura da União não possui incentivo ao estudo, com a concessão de adicional pela conclusão dos cursos de especialização, mestrado e doutorado. Não possui adicional por tempo de serviço e nem adicional de periculosidade. Não lhe é assegurada a aposentadoria especial por tempo de serviço, apesar da condição de risco pessoal pelo desempenho da profissão. A função de Diretor do Foro e a substituição em vara diversa da lotação não são remuneradas.


A luta, portanto, é pela independência da magistratura, pois nenhum juiz poderá atuar se estiver com medo, intranquilo em relação à sua segurança e a de seus familiares e não tiver a certeza de que não sofrerá retaliações em seus vencimentos.

Roberto Veloso é presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região.

Bunga - Lenga

Por José Roberto de Toledo

Não foram as festas bunga-bunga que derrubaram o libidinoso premiê italiano, Silvio Berlusconi. Foi a debacle econômica da Itália. Não foi (apenas) amor à camisa que segurou Neymar no Santos, mas a decadência dos mercados europeus e o crescimento financeiro do futebol brasileiro. Não é o terrorismo nem são os republicanos que mais ameaçam a reeleição do presidente Barack Obama, e sim o risco de duas recessões sucessivas nos EUA.

Cada vez mais, é o bolso do eleitor que determina o sucesso dos políticos mundo afora. O Brasil, apesar de suas jabuticabeiras, não é exceção. As principais forças da oposição, entretanto, têm dificuldades de aceitar isso. Faz uma década que não acertam nem sequer o discurso. Não é de estranhar: sem um diagnóstico correto, é quase impossível estabelecer uma estratégia vitoriosa nas urnas.

O primeiro passo é entender no que os adversários acertaram. Creditar tudo à sorte do outro é condenar a sua própria. Nos seminários, artigos e entrevistas com líderes do PSDB nunca se admite que houve algo positivamente diferente na gestão dos rivais petistas. Foi apenas a continuidade do modelo tucano em uma circunstância internacional mais favorável. Em suma, o sucesso alheio é mero acaso. Enquanto persistir nessa lenga-lenga, a oposição dificilmente sairá de onde está.

Quando se comparam os gráficos de indicadores econômicos do período FHC com os da era Lula, o que mais chama a atenção não é o crescimento da renda nem a diminuição da desigualdade, como a máquina de propaganda petista gosta de matraquear. É o de crédito. Do crédito das pessoas físicas. Para adquirir carros, eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos ou fazer compras no cartão.

Quando Fernando Henrique Cardoso deixou a Presidência, as operações de crédito para a pessoa física eram 5% do PIB (Produto Interno Bruto). Desde então, cresceram mais de três vezes em proporção a tudo o que o Brasil produz de bens e serviços ao longo de um ano. O Brasil entrou no maravilhoso mundo do gastar por conta, e a oposição não percebeu -ou pelo menos não admitiu.

Tudo indica que -no cenário de economia estabilizada e baixa inflação deixado pelo PSDB- as transferências de renda para as populações semi-indigentes misturadas às políticas de micro-crédito e aumento real do salário mínimo do governo petista criaram um círculo econômico virtuoso: com uma renda mínima garantida e crescente, dezenas de milhões se tornaram neoconsumidores. Não necessariamente porque têm dinheiro no bolso, mas porque têm crédito.

Essa história de gastar por conta não dura indiscriminadamente, mas dura. Enquanto a conta vem a prazo, a satisfação é imediata. Por isso é tão difícil encontrar um discurso para convencer o eleitor de que é melhor mudar do que deixar tudo como está.

É por causa do crédito fácil e dos gastos exagerados que o Primeiro Mundo está enfrentando uma das maiores crises financeiras de sua história. A pirâmide financeira que levou Bernard Madoff à cadeia é brincadeira de criança quando comparada aos trilhões de euros em empréstimos sem lastro a governos europeus, ou ao megacassino do mercado de derivativos de Wall Street.

O problema, para a oposição, é que o Brasil estava tão atrasado nesse jogo que parece haver muito chão até a economia do País bater nos limites que levaram Grécia, Irlanda e Portugal à bancarrota. Ou seja, não dá para a oposição esperar sentada até que a sorte internacional do governo Dilma mude.

No fim do governo FHC, o endividamento das famílias era menos de 20% da renda acumulada pelos seus integrantes nos últimos 12 meses. Agora, é de mais de 40%. O gráfico da evolução desse porcentual parece uma rampa íngreme: cresce em linha reta, sem solavancos nos últimos seis anos. Apesar disso, ainda há espaço para crescer mais. Entre outros motivos, porque a situação demográfica brasileira é muito mais favorável do que a europeia.

A base economicamente ativa da população ainda é muito mais larga do que a soma de aposentados e estudantes. Por isso, a pirâmide brasileira permanece de pé. Ao contrário da oposição, o governo parece entender isso. A qualquer sinal de desaceleração da economia, o Banco Central solta os mecanismos de crédito, como fez novamente na sexta-feira passada. A confiança do consumidor reage e, por tabela, a popularidade do governante de plantão.

A continuar essa tendência, o cenário da próxima eleição municipal tende a ser mais parecido com o do pleito de 2008 do que com o de 2004: melhor para os candidatos governistas do que para os de oposição.

José Roberto de Toledo é comentarista de política de O Estado de S. Paulo.

A Última Vitória de um Ditador

Por Daniel Aarão Reis

Depois de meses de guerra civil, Muamar Kadafi foi apanhado vivo e morreu linchado. Ferido, dizendo palavras desconexas, teve os cabelos puxados, arrastado, levou socos e pontapés, bateram-lhe no rosto e no corpo e, afinal, estouraram sua cabeça com uma bala de chumbo, o chamado tiro de misericórdia, embora fosse mais próprio chamá-lo de tiro da vingança.

Morreu isolado, insultado e escrachado: vaidoso, cruel, arbitrário, megalomaníaco, corrupto. O corpo do tirano, exposto na geladeira de um necrotério, foi visitado por milhares de pessoas que se compraziam em fotografá-lo. E saquearam palácios e instituições oficiais, rasgando retratos, derrubando estátuas, queimando símbolos. Difícil encontrar alguém que fosse, ou tivesse sido, em algum momento, favorável a Kadafi. Submeteram-se porque reprimidos, amedrontados. Ou enganados, mistificados pelo mistério de uma Ordem incompreendida. Ou então não sabiam o que, de fato, acontecia, inocentes.

E, no entanto, há alguns meses, Kadafi ainda se dizia confiante no amor do povo. Errou na avaliação pois, naquele momento, aliados íntimos debandavam para o lado da rebelião que grassava no país.

O povo agora o odiava.

Mas sempre fora assim?

Recuemos no tempo.

Em 1º de setembro de 1969, oficiais do exército tomam o poder na Líbia, depondo o rei Said Muhammed al-Idris, um pau-mandado dos ingleses, e proclamam um novo regime, revolucionário. O líder do movimento é um jovem de apenas 27 anos, esbelto e elegante, orgulhoso e destemido. As agências de notícias fazem seu nome correr o mundo: Muamar Kadafi.

Ao longo dos anos 1970, a revolução faz vibrar a corda nacionalista, sensível num povo que resistira ao domínio italiano durante vinte anos, entre 1911 e 1931. Numa guerra terrível, a civilizada Itália matou cerca de um terço da população. Depois da II Guerra Mundial, vieram os ingleses, que reconheceram a independência do país em 1951, mas as pessoas suportavam mal a hegemonia britânica. Assim, quando Kadafi exige, com êxito, o fechamento das bases militares estrangeiras no país, o aplauso é geral. Em seguida, renegocia-se a presença das empresas estrangeiras, nacionalizando-se seus bens. Outro sucesso. Fazendo uso da riqueza nacional — o petróleo —, os revolucionários reformam a sociedade, construindo sistemas de saúde e de educação públicos e gratuitos. Em 1978, eliminam a propriedade pessoal e a gestão das fábricas é entregue aos trabalhadores. O setor público emprega cerca de 75% da população. Em dez anos, a renda per capita multiplica-se por cinco e é decretada a igualdade civil das mulheres. Sucessivas reformas administrativas promovem ascensão de novos grupos sociais. As gentes apoiam o regime ditatorial.

É verdade que há também fracassos, como a tentativa — frustrada — de construção de uma grande nação árabe. No entanto, os revezes são compensados pelo prestígio que advém do apoio a movimentos revolucionários em todo o mundo, mesmo que suscitando críticas ferozes das grandes potências que regem a ordem internacional.

Kadafi, porém, persevera, desafiando gregos e troianos. Proclama a Jamahiriya — Estado das Massas, uma alternativa ao capitalismo e ao comunismo. E lança um Livro Verde, uma espécie de catecismo, onde já se torna visível a megalomania. O poder absoluto começara a corromper a inteligência e a sensibilidade do ditador.

Ele mesmo e a família, violando juramentos de austeridade, atribuem-se riquezas impensáveis. Prendem e massacram os que se opõem, ignorando pressões e denúncias.

Em represália a suas ações de apoio ao terrorismo internacional, em 1986, Trípoli é bombardeada pelos EUA. O ditador não se intimida, vai em frente, e se implica no atentado a um avião de passageiros da Pan Am, matando mais de 250 pessoas. Um escândalo internacional. Apesar dos pesares, continua suscitando apoios e admiração, de intelectuais e de líderes politicos. Como a do inatacável Nelson Mandela, agraciado em 1989 com o Prêmio Internacional Kadafi dos Direitos Humanos.

Mais tarde, depois da invasão do Iraque, talvez intimidado, Kadafi operou uma reviravolta de 180 graus, comprometendo-se a renunciar a programas de pesquisa de armas químicas e de apoio ao terrorismo e a respeitar as normas do Direito Internacional. Tornou-se então amigo de Berlusconi, que lhe beijou as mãos em público, em 2004. E interlocutor de líderes os mais diversos, de Hillary Clinton a Sarkozi e a Lula, o que não o impediu de ainda fazer um discurso na ONU, em 2009, no qual se permitiu denunciar o “imperialismo americano”. Passou a ser tratado como um “excêntrico”.

A recuperação da credibilidade internacional, porém, não foi suficiente para compensar o desgaste de mais de quatro décadas de poder arbitrário. Contudo, quando explodiu a insurreição que o levou à morte, ainda lhe restava força bastante e a parada pareceu indecisa durante longos meses, tendo sido decisiva a intervenção armada externa para virar a correlação de forças em seu desfavor.

Mas ainda lhe restou uma vitória — a última. A maneira como foi linchado evidenciou o quanto os métodos e as concepções da ditadura foram interiorizados pelos matadores. Comportaram-se com ele da mesma forma como ele se comportaria nas mesmas circunstâncias. Foi morto como um cão vadio. Era como ele chamava os inimigos.

Vai ser longo o caminho da Líbia no sentido da democracia.

DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. E-mail: aaraoreis.daniel@gmail.com. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 22.11.11.

Aviação Ruim e Cara

Por Romildo Guerrante

Quem mora em Aracaju e precisa ir a João Pessoa não tem um só voo para cobrir os 600km que separam as duas capitais do Nordeste. Tem de descer para Salvador, escalar em Brasília e de lá voltar ao Nordeste. Mais de 4 mil quilômetros, quase o dia inteiro voando. O passageiro sai às 6h20m de Aracaju e chega às 15h em João Pessoa, depois de fazer um tour pelo país.

Quem vive em São Luís e precisa ir a Teresina tem dois voos por semana, um deles de madrugada. Se precisar voar em qualquer outro dia, tem de ir a Brasília e de lá voltar para o Nordeste. O cenário é semelhante em todas as capitais do Nordeste desde que alguém no poder estabeleceu que Brasília seria hub da aviação, e que os voos do litoral teriam de mudar de rota no caminho para o Sul. Entupiram a rota via Brasília e, mesmo com o acidente envolvendo o Legacy e o 737 da Gol, não se convenceram da sobrecarga no aeroporto da capital, inclusive e especialmente no controle de voo.

Seria muito cansativo registrar todas as impossibilidades que vive o Nordeste com o serviço de transporte aéreo. As rotas voadas por todas as companhias, que apregoem ou não a inteligência de voar, são resultado de um exercício danoso de desperdício em que o passageiro é o único prejudicado. As rotas alternativas, que cortam caminho, como as da falecida Noar, morrem na praia por inexperiência ou uso de equipamento de má qualidade.

Fazer escalas virou rotina num serviço de aviação que não prefere a linha reta, optou por fazer meandros por este imenso país que depende do avião para funcionar. Optou pelo voo aparentemente errático, mas botou os custos desse serviço nas alturas para atender preferencialmente o governo e as empresas, que têm necessidade de voar e ocupam 70% dos assentos, menosprezando os 30% que voam por urgências pessoais ou familiares.

O país parece que não tem uma agência reguladora de aviação. Concorrência nunca houve. Quando afunda uma companhia, surge logo outra para escalar novos voos em horários bem próximos da suposta concorrente. Na verdade, está ali com dois papéis: pegar as sobras da coirmã e cobrir a retaguarda quando é preciso cancelar um voo por demanda que considerem insuficiente. Insuficiente para eles é taxa de ocupação inferior a 80%. Tarifa baixa? Só com meses de compra antecipada e desde que não seja para períodos de alta demanda. Quem precisa viajar de repente paga tarifas altíssimas.

Os aviões estão sempre lotados, mas porque a oferta de assentos é baixa, a fim de aumentar a lucratividade. Não se fala do desconforto do passageiro, aferido na Europa quando a ocupação supera 70% (os modernos turbofans dão lucro com 50% de ocupação).

As empresas planificaram suas rotas e compraram aviões com a mesma capacidade. As frotas não têm qualquer flexibilidade, os aviões são iguais e o planejamento de vôos, que têm vários parâmetros em jogo — inclusive abastecimento onde o ICMS é mais baixo — considera a utilização máxima do equipamento.

Quem perde somos nós.

Romildo Guerrante é jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 26.10.11.

Sensação de Perda

Por Alon Feuerwerker

Antes as pessoas tinham mais pudor, vergonha do que lhes ia na alma. Cuidavam de manter a boçalidade algo recolhida, para não passar vexame. Não era bonito exibir publicamente a própria estupidez

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está com câncer, e é compreensível que as reações projetem os cenários políticos, a depender dos desdobramentos clínicos. Compreensível e questionável.

Afinal, Lula está bem vivo e em tratamento.

Outro detalhe espantoso é o ambiente de Fla-Flu nas chamadas redes sociais sobre a doença do ex-presidente. Ambiente que apenas reflete fenômenos mais amplos e mais profundos na sociedade.

Pensando bem, não é tão espantoso assim.

A política brasileira vem perdendo certo traço característico dos tempos em que se lutava contra a ditadura. Foi quando comecei a prestar atenção nas coisas. Procuro seguir nessa linha. Não sei como era antes.

Confesso que sinto alguma saudade daquele tempo. Talvez seja passadismo, é humano guardar só as coisas boas e limar as ruins, mas não importa.

As pessoas tinham mais pudor, vergonha do que lhes ia na alma. Cuidavam de manter a boçalidade algo recolhida, para não passar vexame. Não era bonito exibir publicamente a própria estupidez.

Mesmo na guerra, é preciso respeitar a dignidade do inimigo. Se a ancestralidade antopofágica brasileira serve para algo, deveria ser para recolher a sabedoria daqueles índios: alimente-se do inimigo morto, para incorporar a coragem dele.

Onde estão as raízes dessa perda de limites?

Um vetor é a internet, ao dar voz a quem não tem vida pública. Políticos e jornalistas são seres sujeitos ao policiamento ostensivo do público, agora em tempo real. Então precisam andar na linha, ou pelo menos tentar. Diferente do sujeito que só desopila o fígado.

Uma pseudomilitância primitiva e selvagem. Com todas as características de uma multidão de anônimos. Inimputáveis, livres para odiar até a última gota.

Mas é a democracia, e não adianta reclamar, pois ela veio para ficar. E é bom mesmo que fique. Inclusive para termos como medir a temperatura do que vai pela cabeça das pessoas. Achou feio, repugnante? Paciência.

Mas essa é a superfície. Há outro vetor em ação.

Dirão que a cordialidade é um traço elitista da política brasileira, um comportamento possível apenas quando os atores eram socialmente da mesma turma. E que a incoporação de novos personagens fará, obrigatoriamente, desandar a maionese. Será?

Prefiro acreditar que o problema está mais na esfera subjetiva do que na objetiva. A degenerescência não é inevitável.

O segundo vetor é conceitual. A política entendida como arte de eliminar o adversário, e não apenas de sobrepujá-lo garantindo-lhe a legitimidade necessária à sobrevivência.

E aí, quando aparece a oportunidade de uma eliminação real, física, o vulcão entra em erupção. Os menos burros simulam, os menos espertos escancaram.

Agora é com Lula. Como aconteceria com sinal trocado se fosse FHC, ou outro tucano de alta plumagem.

Uma pena que tenhamos chegado a isso. Pode parecer meio bobo, meio incompatível com a frieza e a objetividade que deveriam orientar um colunista político. Mas minha sensação é esta, de perda.

Sinto que perdemos alguma coisa em algum ponto da caminhada.

Ignorância

Entre as irracionalidades que desfilam na rede sobre a doença do ex-presidente, uma desafia-o a tratar-se no SUS.

Em qualquer lugar do mundo os chefes políticos tratam a saúde nos melhores centros médicos. Quando precisam se internar, vão para os melhores hospitais.

O Brasil tem excelentes hospitais privados, e também excelentes hospitais públicos. Um deles é o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, inaugurado recentemente. É uma boa herança dos governos do PSDB.

Lula preferiu ir ao Sírio-Libanês, onde já está habituado a tratar-se, e ao qual também recorreram o então vice-presidente José Alencar e a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, quando diagnosticados com a doença.

Até porque Lula não sabia que estava com câncer.

Se preferir tratar-se no Icesp receberá atendimento de primeiríssima. Quem o utiliza sabe.

Falar mal do SUS, genericamente, para atacar governos ou governantes pode parecer esperto. Mas é apenas exibição de ignorância.

Alan Feuerwerker é Jornalista e editor do Blog do Blog do Alon (www.blogdoalon.com)

Eternos Macunaimas

Por Glaucia Dunley

Este é um momento crítico e rico das relações entre a Justiça e a crescente democratização da sociedade brasileira, desencadeado pela resistência da Associação Brasileira de Magistrados às atribuições do Conselho Nacional de Justiça. A ABM, em favor de preservar sua toga olímpica acima do bem e do mal, e talvez movida pelo desejo de manter seus membros e servidores imunes às sanções e punições em caso de incorreição, falha ao fazer tardar a aplicação da lei aos juízes, criando uma polêmica com o CNJ, cuja autoridade e eficiência são incontestáveis.

A leitura do livro “Força de lei — o fundamento místico da autoridade”, de Jacques Derrida, pode nos fazer refletir sobre o momento, como também sobre a estrutura e funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. Trata-se de um livro político, no sentido de dar valor à polis, à aplicação das leis a partir de um “direito justo”, procurando tornar possível a vida social, onde a convivência sempre problemática entre seres humanos é exacerbada pelas não menos problemáticas relações entre o Direito e a Justiça.

É também livro ético, pois nos mostra, que a Justiça é devida ao outro antes de qualquer contrato, não privilegiando o conceito de homem, mas o de outrem, sempre desconhecido, o que nos coloca numa busca infinita de justiça. Desta busca faz parte barrar as posições de onipotência, privilégios e prerrogativas que o Direito, construído para e pelo Poder, e indevidamente sobreposto à ideia de Justiça, teima em não abdicar, e nem ao menos negociar, mantendo viva e ativa a violência do Direito que não se transforma. “Há algo de podre no âmago do Direito”, nos diz Walter Benjamim em “Sobre a crítica da violência”, onde torna explícita a necessidade de se examinar a violência em si, para se poder falar de violência a partir do Estado de Direito, de seus efeitos na sociedade, de suas relações com a Justiça...

O livro introduz-nos, portanto, a uma estética da relação entre Direito e Justiça, remetendo-nos à estranheza e ao mal-estar de perceber a Justiça como uma experiência impossível, incalculável, mas diante da qual não podemos recuar.

Dois ensaios compõem este livro precioso: o primeiro, “Do Direito à Justiça”; e, o segundo, “Prenome de Benjamin”. No primeiro, um deslocamento essencial: transformar o Direito em “direito justo”, no qual exista força de lei para a lei. E não para decretos, atos institucionais, emendas, ações da polícia, e dos Poderes que acabam ocupando e usurpando o lugar da lei ao legislarem e agirem em proveito próprio, sem maiores consequências.

Esta força de lei é uma força autorizada, legítima, que busca sua autoridade no “fundamento místico da autoridade” (Montaigne), que por sua vez se baseia em “ficções legítimas”, capazes de trazer alguma verdade para a construção sempre inacabada do Direito, permitindo assim que ele se aproxime da Justiça. Estas ficções, carregadas de intensidades, insuflam força simbólica às leis, o que granjeia crédito social e condição de aplicabilidade.

Cabe levantar aqui, diante da atual crise dentro do Judiciário, as razões pelas quais não existe força de lei para a lei no Brasil, as razões pelas quais nossas leis não possuem essa força autorizada, e se isto se relaciona a desprezarmos nossas “ficções legítimas”, históricas, que lhes dariam autoridade, preferindo que ficções ilegítimas nos transformem em eternos macunaímas, heróis sem nenhum caráter.

Continuamos a transmitir por atos e palavras a lei desse fantasma ou espectro de esperteza corrupta que assombra nossa linguagem, nossa vida, nossa democracia, fazendo-as decaírem para uma dimensão puramente técnica, ou tão somente cínica.

GLAUCIA DUNLEY é psicanalista. Este artigo foi publicado em O Globo, RJ, edição de 24.10.11.

Tema Velho, Alvo Novo

Por Valdo Cruz

Vamos lá, mais uma vez, as ONGs voltam a infernizar a vida de um ministro. Tem sido assim desde o início do governo Dilma. O tema é velho, o alvo é novo, desta feita o ministro Carlos Lupi (Trabalho), do PDT.

Com certeza você já leu e ouviu por aí que há, sim, ONGs sérias no país fazendo convênios com o governo. Realmente elas existem. A maioria, senão a totalidade, é de entidades badaladas, conhecidas do grande público, com padrinhos fortes no meio empresarial, artístico ou esportivo.

Fora desse grupo, com mais certeza ainda, o terreno é fértil para falcatruas. Só conseguem fechar convênios para ter acesso a dinheiro público ONGs indicadas por grupos políticos, aquelas que aceitam se transformar em plataforma eleitoral de deputados, senadores e prefeitos país afora.

A grana é liberada, mas a entidade tem de fazer campanha política para seu padrinho, responsável pela obtenção dos recursos. Franquear o acesso a seus trabalhos daqueles que "batalharam" pelo dinheiro público. Fora os casos, não diria que são a maioria, dos que conseguem o dinheiro, mas cobram um pedágio, comissão mesmo, do total liberado. Grana que muitas das vezes é direcionada para financiamento de campanha. Outras para enriquecimento ilícito.

Falo deste tema já velho, mas que está fazendo um processo de purificação em Brasília, para falar de experiências de amigos que montaram ONGs destinadas a trabalhos sociais. Conheço vários, à frente de entidades sérias. Nenhuma delas, nenhuma, tem acesso a dinheiro público. Vivem de contribuições dos associados e de amigos, com a ajuda de um ou outro empresário de pequeno ou médio porte.

Não trabalham com dinheiro público por dois motivos. Primeiro, simplesmente não são procuradas pelos donos dos esquemas de liberação de verbas por meio de convênios. Segundo, quando elas tentam acessar esses canais, desistem diante das abordagens nada republicanas. Gente querendo transformar trabalhos sérios em palanques políticos ou tentando desviar recursos.

Sinceramente, será que não há uma forma de o Poder Público estabelecer alguma regra totalmente transparente para que todas entidades, todas, tenham condições de obter esses recursos, sem intermediários? Afinal são eles a origem de todos os escândalos.

O governo Dilma está diante de uma excelente oportunidade para mudar essa realidade vergonhosa. Deveria aproveitar a medida correta adotada pela presidente, que mandou suspender temporariamente todo tipo de convênio com ONGs no governo federal, até que seja feito um verdadeiro pente fino em todos os contratos. Pode ser o primeiro passo para dar transparência total nesta área, acabando com as boquinhas destinadas a promover feudos políticos.

Voltando ao caso de Carlos Lupi, como nos demais episódios, o governo avalia que, por enquanto, não há nada que possa comprometer o ministro. O Palácio do Planalto acredita, inclusive, que hoje o principal inimigo de Lupi está dentro do seu próprio partido, grupos que querem aproveitar o bombardeio contra o ministro para tirá-lo do cargo.

Talvez realmente não encontrem nada contra o ministro. A conferir. Mas apenas o fato de descobrirem contratos irregulares com ONGs em seu ministério, sinceramente, já deve ser motivo para seu afastamento. Afinal, como nos casos anteriores, seria uma prova de conivência ou total omissão com o "malfeito", como costuma dizer a presidente Dilma.

Enfim, o tema é velho, o alvo é novo, basta saber se o destino será o mesmo dos anteriores. Se for, a fila vai andar até Dilma promover sua reforma ministerial. Que talvez perca até sua importância diante de tantas trocas fora dos planos originais.

Valdo Cruz, filho do Nonato Cruz, é repórter especial da Folha.

Corrupção e Conflitos no Vácuo do Legislativo

Por Paulo Guedes

A classe política brasileira está perdendo não apenas sua credibilidade, mas também uma oportunidade histórica. O mundo parou para conserto. Seríamos a nova fronteira de crescimento global com importantes reformas, mas quem devia estar pensando nisso parece ocupado com outras coisas.

“PC do Bolso: como operam os comunistas que se instalaram no centro do poder e se tornaram um foco de escândalos no governo Dilma”, estampa a revista “Época” em sua matéria de capa desta semana. “Dez motivos para se indignar com a corrupção: alternativas possíveis para o uso de 85 bilhões de reais surrupiados pelos corruptos brasileiros apenas no último ano” e “gravações mostram assessores do ministro Orlando Silva ajudando a fraudar o ministério” são as manchetes anunciadas na capa da revista “Veja”.

Para confirmar a tese de Marx de que “enormes somas passando pelas mãos do Estado davam oportunidade para fraudulentos contratos de fornecimento, corrupção, subornos, malversações e ladroeiras de todo gênero”, a pirâmide da roubalheira ocorre 50% na base federal, 30% nos meios estaduais e 20% no topo municipal.

Os desafios da crise contemporânea são mais que disputas entre blocos econômicos; são também o confronto entre a qualidade das políticas públicas. Em meio à guerra mundial por empregos, faltam ao Brasil as reformas de modernização: a correção da hipertrofia da União (reforma do Estado), a descentralização de recursos e atribuições para Estados e municípios (reforma fiscal), a simplificação de impostos e redução de alíquotas (reforma tributária), a revisão de obsoleta legislação salarial (reforma trabalhista com eliminação de encargos sobre custo do trabalho) e a universalização da poupança (reforma previdenciária).

As novas prioridades de uma democracia emergente (saúde, educação, saneamento) exigem ação social descentralizada. Para tanto, a reforma fiscal deflagrada na Constituição de 1988 iniciava a transferência de recursos para Estados e municípios. Mas o poder central, reacionário e conservador, resiste à descentralização. Cria contribuições não compartilhadas para manter seu inchaço e financiar a cooptação de apoios políticos. A corrupção sistêmica é filha dessa escalada dos gastos públicos. E a guerra federativa deflagrada pelos royalties do petróleo é apenas outra face dessa omissão do Congresso: o vácuo legislativo quanto à reforma fiscal.

Publicado em O Globo, RJ, 24.10.11.

Fé e Esperança

Por Roberto Veloso

A fé e a esperança são molas propulsoras da humanidade. A esperança, habitante solitária do mundo dos sonhos, que nos impulsiona para frente e para o alto, na busca incansável por dias melhores. Essa esperança que faz os indivíduos lutarem em busca de objetivos, para que, saindo dos sonhos, se torne realidade.

Ter esperança é acreditar, emocionalmente, na possibilidade de resultados positivos relacionados com situações e atitudes da vida pessoal. Ter esperança significa perserverar, acreditando que é possível, mesmo quando há indicações do contrário. Enquanto há vida há esperança, daí a aproximação do seu significado se aproximar do de fé.

Portanto, é preciso manter a esperança. Tantos podem ser os objetivos trilhados e traçados. Há tantas esperanças., como a de ser aprovado em um concurso público, de montar uma empresa, de se formar, de se curar. Por isso a esperança está ligada ao sonho. Ter a esperança de realizar um sonho.

Ao lado da esperança é preciso, também manter a fé. A fé na vida, a fé na Justiça e a fé nas pessoas.

A fé na vida, por acreditar, como disse Hannah Arendt, que “a Terra é a própria quintessência da condição humana e, no que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo - artifício humano - separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.”

Quando se fala em vida, não podemos deixar de pensar no meio ambiente ecologicamente sustentável. E falando em meio ambiente não podemos deixar de referenciar os nossos rios que nos fornecem a água potável.

Ter fé nas pessoas é acreditar no bem. É acreditar que as pessoas agem sem maldade até que se prove o contrário. É a presunção da boa-fé, já consagrada pela legislação civil. É acreditar que, todos tendo oportunidade, a vida melhorará e nossos índices de desenvolvimento humano darão o salto de qualidade almejado.

A fé na Justiça. Conforme o Novo Dicionário Aurélio, a Justiça pode ser definida como virtude que consiste em dar a cada um, em conformidade com o direito, o que por direito lhe pertence. Porém, há aqueles que pensam diferente, argumentando que dar a cada um o que é seu, seria dar a miséria aos miseráveis, a riqueza aos ricos, a desgraça aos desgraçados.

Por isso, o melhor é acreditar no sentimento de Justiça como intrínseco à consciência humana, isto é, no homem médio dotado de discernimento do bem e do mal, do certo e do errado, do que é justo e injusto. Para Hans Kelsen, a ideia de Justiça estava ligada à ideia de felicidade. Assim, a busca do ser humano por Justiça é a busca por felicidade.

Aristóteles acreditava que a ideia de Justiça estava vinculada à da igualdade. A partir desse entendimento dividiu a Justiça em duas espécies: a distributiva e a corretiva, dividindo a última em comutativa e judicial. Para o filósofo a justiça judicial era aquela que agia contra a vontade de uma das partes.

Ao lado do conceito de Justiça, Aristóteles tinha também o de injustiça. Para ele seria injusto o que viola a lei, o que toma mais do que lhe é devido, bem como o que viola a igualdade.

Independente do conceito que se tenha, a Justiça não pode ser confundida com a lei. Há muitas leis injustas, porque estão contra a lei maior que é a Constituição. Há muitas leis más. Por isso, muitas vezes é preciso a sua retirada do mundo jurídico ou a sua não aplicação. Esse, talvez, o maior fundamento da jurisdição constitucional, declarar inconstitucionais, não aplicáveis, as leis más ou injustas.

Daí os sentimentos da esperança e da fé continuarem sendo essa força motriz da vida humana. Enfrentar os desafios da vida, como descreveu H. Dobal, em seu poema “os cavalos da noite”: Um menino sem forças contra a noite/ sonhava os seus cavalos assustados/ e se inventava cavaleiro andante/ dono dos seus caminhos pela vida.

Roberto Veloso é Juiz Federal e Presidente da Associação dos Juizes Federais - 1ª Região.

Gisele Bündchen Incomoda Tutores Estatais

Desde 2003, com a vitória eleitoral da aliança lulopetista, a sociedade tem sido surpreendida, de tempos em tempos, por atitudes de autoridades federais dentro do figurino de regimes não democráticos, em alguns casos sem nada a dever ao pensamento de grupos fundamentalistas conservadores. Numa visão superficial da colcha de retalhos político-ideológica existente no país, seria algo incoerente, pois grupos que desembarcaram em Brasília em 2003 na caravana vitoriosa lulopetista sempre procuraram ser vistos como progressistas, autênticos democratas.

Engano. Na verdade, sempre fizeram parte das alianças de esquerda frações autoritárias, defensoras de um Estado forte a pairar sobre uma sociedade incapaz de decidir o que é bom para ela. Serão estes agentes da clarividência, donos de verdades inabaláveis, que irão "proteger" a população contra maus hábitos e más influências. Neste mesmo coquetel ideológico há, misturado, o ingrediente do "politicamente correto", de cujo jargão, por exemplo, fazem parte termos como "afrobrasileiro". É uma espécie de cultura refratária à leveza de espírito e ao bom humor que um dia já foram considerados aspectos da alma brasileira.

O mais recente exemplo de ação desses grupos infiltrados no poder é a reação da titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Iriny Lopes, a uma campanha publicitária de roupas íntimas femininas, estrelada pela modelo Gisele Bündchen. Em três comerciais para TV bem humorados - grave delito -, a agência de publicidade usou o clichê da mulher que usa a beleza para conseguir o que quer dos homens para expor alguns produtos do anunciante. Foi demais, e a secretária formalizou ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) pedido de suspensão da campanha, por "falta de respeito à condição feminina", tendo considerado as peças "preconceituosas e discriminatórias". O Conar instalou processo, a ser julgado em breve. Cumpre seu papel.

Menos mal que a SPM recorreu ao órgão de autorregulamentação. Não fez como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, contumaz infratora da Constituição ao tentar censurar propagandas quando as considera daninhas ao brasileiro. Na Anvisa existe outro bunker de tutores estatais do brasileiro, um povo sem condições de comprar os alimentos mais saudáveis, de se medicar, e assim por diante.

Não é um problema haver reações negativas a campanhas publicitárias ou ao que seja. Tratam-se de fatos normais numa democracia. Anormal é quando grupos militantes de pressão, por contingências político-partidárias, passam a controlar instrumentos públicos para impor seu projeto ideológico.

Este aparelho feminista instalado no governo convive lado a lado com outra secretaria cuja missão é executar no Brasil um projeto racialista. Devido a este aparelhamento é que foi tentado contrabandear para o programa de Defesa de Direitos Humanos a censura à imprensa para o caso de divulgação de supostas ideias racistas. O ataque da SPM à propaganda com Gisele Bündchen não é cômico. Poderia, mas se trata de algo mais sério, por ser nova tentativa de comissários de intervir na liberdade da produção audiovisual brasileira.

Editorial de O Globo, do Rio de Janeiro, edição de 04.10.11

É Preciso Ouvir o Público

Por Andrea Pachá

Quem exerce cargo público deve se preocupar com a opinião pública. Afinal, é a sociedade a destinatária dos seus serviços. Daí porque não se pode minimizar o impacto das sucessivas críticas da opinião pública ao Judiciário.

Mesmo lento, caro e inacessível, o Judiciário é um Poder que, nas últimas décadas, experimentou um fortalecimento gradual. Composto por uma maioria absoluta de juízes que se submeteu a concurso público e que é comprometida com a efetividade da Justiça, precisa ainda de mudanças na sua estrutura - vertical, hierárquica e pouco democrática.

É natural que, nesse contexto, tensões permanentes coexistam. Esse quadro levou o professor e ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Joaquim Falcão ao diagnóstico de que são muitos os judiciários que integram o Judiciário brasileiro. Para que a Emenda Constitucional 45 fosse aprovada, emenda que resultou na criação do CNJ, muitos consensos tiveram de ser construídos. A participação da AMB nesse processo foi fundamental.

Se até a sua instalação sofreu o CNJ resistências de grande parte da magistratura, com o início de seu funcionamento mostrou-se um órgão vital para a democratização do Poder. Ao proibir o nepotismo, estabelecer critérios para remoções e promoções, uniformizar rotinas e procedimentos, reunir números do Judiciário e efetivamente trabalhar na implementação de políticas públicas - mutirão carcerário, implantação das varas de violência doméstica, conciliação, entre outras -, o CNJ tem cumprido papel relevante, ocupando um espaço institucional antes inexistente.

Mas também tem mostrado ocupar papel relevante ao fiscalizar e punir magistrados cuja atuação transborde os limites legais. Com a sua atuação, o CNJ revelou o que já se intuía: havia e há uma grande dificuldade dos Tribunais em gerir a administração da justiça sem um órgão sistêmico e externo a eles. Como órgão novo, no entanto, o CNJ passa por ajustes e controles cotidianos, exercidos pelo STF, com acerto e eficiência.

Nesse ambiente de divergências naturais, a AMB resolveu patrocinar a pretensão de se excluir do Conselho a possibilidade de punir magistrados antes da atuação das Corregedorias locais. É esse o contexto em que a Corregedora do CNJ, ministra Eliana Calmon, de forma generalizada, apontou a existência de "bandidos escondidos sob as togas", suscitando, de um lado, reação corporativa sem precedentes, e, do outro, manifestações públicas em apoio às suas declarações.

Na névoa formada por essa falsa dicotomia, a questão central corre o risco de perder o foco. O que se discute é a redução dos poderes do CNJ para fiscalizar e disciplinar a ação de magistrados. Esta pauta, trazida pela AMB, a mesma AMB que há cinco anos ajuizou uma ação direta de constitucionalidade para proibir o nepotismo no Judiciário, é uma pauta que não traduz o sentimento da sociedade.

Grande parte dos avanços e da visibilidade da Justiça vieram de projetos que se alinhavam com o sentimento dos cidadãos. Eleições limpas, simplificação da linguagem jurídica, adoção, são campanhas que, entre tantas, transformaram o Poder numa instituição mais próxima da população, mais pedestre e mais compreensível.

Ao abraçar um projeto exclusivo de parte da magistratura, por meio do questionamento dos limites de atuação do CNJ, esquece a AMB que foi pela atuação do Conselho que não só punições foram aplicadas sem o viés natural do corporativismo local, mas também juízes puderam se contrapor aos tribunais, para afirmar suas garantias.

A legitimidade do Judiciário só ocorre quando a sociedade reconhece no Poder um aliado para a efetivação dos seus direitos. A resistência corporativa é um processo que deve ser vencido com a atuação firme dos juízes que enxergam no seu serviço um instrumento de fortalecimento da cidadania.

ANDRÉA PACHÁ é juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, foi vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e e conselheira do Conselho Nacional de Justiça (2007/2009).

Vital Para a Justiça

Por características próprias, o Judiciário é o mais recluso dos três Poderes. Se, num regime presidencialista, o Executivo está sempre visível para a sociedade, o mesmo acontecendo com o Legislativo, a Justiça, no papel fundamental de mediadora de conflitos, independente dos dois outros poderes, tende a um certo isolamento e distância.

Não é mal. Porém, quando começa a haver confusão de conceitos, em que independência garantida pela Constituição passa a justificar falta de transparência, cria-se campo fértil para outras mazelas. Não demora muito para a impunidade ser impulsionada pelo corporativismo, característica de castas impenetráveis. Em certa medida, há esta tendência entre jornalistas, médicos e outros grupos profissionais.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado pela emenda constitucional nº 45, em fins de 2004, passou a ser instrumento-chave na reforma do Judiciário, iniciada pelo dispositivo depois de ter ficado engavetada por mais de uma década no Congresso. A própria demora na tramitação da reforma no Legislativo dá a medida das dificuldades na implementação de qualquer mudança na Justiça. Também não é mal o conservadorismo dos tribunais. A questão é quando uma cultura arraigada contra mudanças ameaça fazer recuar avanços.

É o que pode acontecer se o Supremo Tribunal Federal acolher a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra prerrogativas de corregedoria do CNJ. Antes sem uma supervisão externa capaz de enxergar deficiências que escapam a quem está envolvido diretamente no trabalho nos tribunais, a Justiça passou a ter um órgão, o CNJ, com poderes de definir rotinas administrativas, estabelecer metas, fazer cobranças e, tão importante quanto tudo, agir na defesa da ética. O “externo”, no caso, não designa algum controle por estranhos à atividade, pois, dos 15 componentes do CNJ, nove são oriundos do próprio Judiciário (os restantes, do Ministério Público, advocacia, e dois cidadãos).

No campo essencial da ética, um destaque na atuação do conselho é a regulamentação para conter o nepotismo nos tribunais, uma característica negativa do Judiciário. Foram grandes as resistências. Mas seria no trabalho de correição que ocorreria um choque grave entre a velha cultura corporativista dos tribunais e o Conselho.

O balanço da atuação da corregedoria do Conselho é sugestivo: 49 juízes punidos — a maior pena administrativa é a aposentadoria compulsória sem perda dos proventos —, e 65 magistrados em investigação, dos quais 35 desembargadores. As acusações são variadas e incluem venda de sentenças. A AMB deseja impedir que o CNJ aja por sobre as corregedorias dos tribunais. Como isto será suprimir espaço vital da corregedoria do Conselho, houve grande clamor contra a Adin, mais ainda ao se informar que o Supremo tendia a aceitá-la.

Como há inúmeros exemplos de que, movidas também por corporativismo, corregedorias de tribunais tendem a inocentar seus pares, criou-se uma situação em que está em risco parte essencial da reforma do Judiciário. O STF agiu bem ao adiar o julgamento, para dar tempo ao desenho de uma fórmula alternativa. Assim, o ministro Luiz Fux teve condições de começar a redigir um voto que seja de consenso. Para isso, deve dar algum tempo aos corregedores locais para atuar antes de o CNJ agir. Mas também precisará prever a atuação do Conselho quando houver arquivamentos decididos a favor da impunidade.

Editorial de O GLOBO, RJ, de 10.10.11.

Que Vá de Jumento

Por Ricardo Melo

Mesmo num país com costumes políticos tão degradados,
certos comportamentos ainda espantam.

A atitude da família Sarney no Maranhão, ao usar um helicóptero público em convescotes privados, é um escárnio não apenas pelo fato em si mas também pela reação que se seguiu.

Não basta que o passeio tenha sido feito em prejuízo do socorro a doentes. Tampouco que o companheiro de patuscada da família do presidente do Senado e de sua filha tenha sido um empresário de ficha duvidosa. É preciso mais, como que para convencer o povo de que as coisas são assim, e pronto.

"Queria que o presidente [do Senado] fosse andar em jumento? Queria o quê? Enfrentar um engarrafamento? Esse helicóptero, é claro, tem que servir os doentes, mas tem que servir as autoridades, esta é a realidade."

Foi assim, com essa naturalidade e desfaçatez, que o vice-líder da governadora Roseana na Assembleia do Maranhão defendeu a família Sarney. Magno Bacelar, do Partido Verde, também reverberou as infames palavras do então presidente Lula sobre o senador: "Ele não é uma pessoa qualquer".

Ao colocar em plano semelhante "doentes e autoridades", Bacelar fez duas coisas. Primeiro, refrescou na memória de todos por que o Maranhão está na lanterna de qualquer ranking de bem-estar, conforme destacou, com o talento habitual, Fernando de Barros e Silva neste mesmo espaço. Segundo, não falou toda a verdade.

O povo local já estaria satisfeito caso tivesse direitos ao menos parecidos aos dos coronéis do sarneysismo, num Estado onde a "realidade" é ostentar certos sobrenomes.

O parlamentar que nos desculpe, mas o Maranhão precisa de tratamento de choque. Para tomar emprestada sua própria imagem, só vai dar certo no dia em que os enfermos tiverem preferência e os políticos, montados em jumentos,enfrentarem engarrafamentos quando quiserem se refestelar na praia.

Ricado Melo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 25.08.11.

A Falta Que Faz a Cláusula de Barreira

A ressurreição do PSD (Partido Social Democrático) cumpre a sina desta sigla histórica de servir para a acomodação de forças políticas. Nada a ver com uma legenda surgida de bases com projeto próprio, insatisfeitas com os rumos da política e que, por isso, decidem lançar uma nova proposta ao eleitorado.

Se, em 1945, o partido saiu do varguismo apenas para, ao lado do PTB, aumentar a artilharia contra a UDN, ele reemerge em São Paulo por iniciativa do demista Gilberto Kassab, só para o prefeito escapar do emparedamento entre tucanos e petistas, e poder estabelecer alianças com liberdade, não importa com quem, tudo a depender das condições oferecidas. Nas palavras do seu reinventor, o PSD não é de direita, nem de esquerda, nem de centro. Por suposto.

A definição é perfeita para o próprio quadro partidário brasileiro, muito pulverizado. Com notórias exceções, são legendas sem ideologia clara, tampouco têm projeto de governo e poder. Aliás, como o fisiologismo passou a guiar as negociações de alianças desde a ascensão do lulopetismo, em 2003, mesmo partidos com história de luta político-ideológica perderam o rumo programático e também entraram no pregão do toma lá da cá em Brasília.

O PSD nada acrescenta ao quadro partidário do ponto de vista do interesse do eleitor preocupado em dar um destino responsável a seu voto. Apenas põe mais uma carta neste confuso baralho. Mas ao menos serve para serem recolocadas em circulação propostas de cláusulas de barreira, ou desempenho, necessárias para limpar este quadro partidário poluído de legendas nanicas, de aluguel. Várias são, literalmente, guichês de negociatas, em que são vendidos horário na programação política dita gratuita, apoios etc. E enquanto isso seus "dirigentes" faturam o dinheiro fácil do contribuinte transferido para o fundo partidário e obrigatoriamente distribuído entre todos os partidos, inclusive os de aluguel, é claro.

No final de 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) revogou lei aprovada em 1995 que instituíra cláusulas de barreira para entrarem em vigor uma década depois: o partido teria de atrair pelo menos 5% dos votos nacionais e 2% ou mais em no mínimo nove estados. Caiu sob o argumento de que contrariava o preceito constitucional do pluralismo. Mas também pesou o fato de o assunto ter sido regulado por lei ordinária. Há quem, no próprio STF, considere ser viável tratar do tema por meio de emenda constitucional, em que precisaria existir algum dispositivo para manter as legendas chamadas programáticas e históricas. A opinião foi dada pelo ministro Ricardo Lewandoswski, em entrevista publicada em junho pelo "Consultor Jurídico". Ele parte do princípio, correto, de que um número excessivo de partidos não faz bem à democracia. Regimes democráticos sólidos têm filtros para impedir o espalhamento partidário. A Alemanha é o caso sempre citado, e sem ter impedido a criação e fortalecimento do Partido Verde. Mesmo o Brasil, no Código Eleitoral de 1950, depois da ditadura do Estado Novo varguista, previa barreiras a serem ultrapassadas pelas legendas.

Costuma-se reclamar do "presidencialismo de coalizão". Mas o problema está no número das legendas que se apresentam para as alianças. Com a dificuldade de serem alcançadas maiorias pelas urnas, é grande a tentação de instituir-se o "presidencialismo de transação".

Editorial de O GLOBO, do Rio de Janeiro, edição de 29.09.11

A Crise na Justiça

Diante da forte reação da opinião pública e das críticas ao corporativismo do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) agiu com sensatez ao adiar o julgamento da ação de inconstitucionalidade impetrada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) questionando as prerrogativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para investigar e punir juízes acusados de desvios de conduta.

Até terça-feira, a tendência da Corte era acolher o recurso da AMB, abrindo caminho para que o órgão responsável pelo controle externo do Judiciário só examinasse denúncias já julgadas pelas corregedorias dos tribunais. Mas, diante das reações da opinião pública e, principalmente, do Senado ao bate boca entre o presidente do STF e a corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, os ministros concluíram que não havia clima para tomar qualquer decisão.

Dias antes, Eliana Calmon havia afirmado que é preciso combater a impunidade dos "bandidos que se escondem atrás da toga". Ela também disse que o presidente da AMB, Nelson Calandra, estaria agindo de comum acordo com Peluso. E classificou o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no qual ambos foram colegas, como o maior foco da resistência corporativa à punição de juízes. "Sabe quando vou inspecionar o TJSP? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro", disse ela.

Em nota de repúdio às declarações da corregedora, Peluso cobrou uma retratação. A ministra não só se recusou a se retratar, como aumentou o tom de suas críticas, acusando as corregedorias dos tribunais de "camuflarem suspeitos" e de serem lentas nas investigações para permitir a prescrição dos processos. Calmon disse ainda que tramitam na Corregedoria Nacional de Justiça 115 processos contra juízes de primeira instância e 35 contra desembargadores. Lembrou que há dias pediu a abertura de uma investigação para apurar denúncias de envolvimento da presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins, desembargadora Willamara de Almeida, num esquema de venda de sentenças. E afirmou que, se o STF acolhesse o recurso da AMB, as investigações sobre as denúncias de irregularidades cometidas por esses magistrados seriam suspensas.

No embate com os presidentes do STF e da AMB, a ministra Eliana Calmon recebeu dois importantes apoios. O primeiro foi da Associação Juízes para a Democracia. Em nota, a entidade denunciou a "longa e nefasta tradição de impunidade (...) de desembargadores dos tribunais estaduais e federais e ministros dos tribunais superiores", e afirmou que a campanha contra o CNJ é "animada por interesses particulares e manifestações das cúpulas dos tribunais" que, a pretexto de defender as corregedorias, "objetivam garantir poderes arbitrários".

O segundo e mais decisivo apoio foi o do Senado, onde parlamentares do governo e da oposição assinaram Proposta de Emenda Constitucional (PEC) mantendo os poderes do CNJ, de iniciativa do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) - que, ao apresentá-la, ponderou que, se acolher o recurso da AMB, o STF passará para a sociedade o recado de que a Lei da Ficha Limpa só vale para o Poder Legislativo.

A rigor, a PEC não seria necessária, pois o artigo 103-B da Constituição é claro quando autoriza o CNJ a tomar as providências pertinentes - inclusive avocando processos em tramitação nas corregedorias dos tribunais - para zelar pelo princípio da moralidade na instituição. Esse artigo foi introduzido pela Emenda Constitucional 45, graças a um acordo firmado em 2004 pelos chefes do Executivo, Legislativo e Judiciário. A PEC agora proposta elimina qualquer dúvida que possa existir sobre essas atribuições e prerrogativas.

Em seu recurso, a AMB invocou argumentos técnicos para questionar os poderes do CNJ. Mas a discussão vai além das implicações jurídicas, envolvendo valores éticos e morais. Em seis anos de existência, o CNJ e sua corregedoria puniram 49 juízes por desvio de conduta, combateram o nepotismo, extinguiram adicionais salariais e estabeleceram metas de desempenho. Foi essa folha de serviços que levou o CNJ a ser apoiado pela opinião pública, partidos políticos e entidades da sociedade civil. Esse apoio é que levou o STF a pensar duas vezes na decisão que tem de dar ao recurso da AMB.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 30.09.11

O Clã Acudido

Quatro anos de trabalho policial acabam de ir para o ralo com a decisão da 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de invalidar as provas colhidas pela Polícia Federal (PF) na investigação sobre os negócios do clã do presidente do Senado, José Sarney. Com base em interceptações telefônicas e no acesso a movimentações financeiras da família, autorizados pela Justiça do Maranhão, a PF abriu cinco inquéritos que resultaram no indiciamento do filho do oligarca, Fernando Sarney, por desvio e lavagem de dinheiro, tráfico de influência e formação de quadrilha. O ponto de partida da inicialmente denominada Operação Boi Barrica e, depois, Faktor, foi a descoberta de um saque de R$ 2 milhões em dinheiro da conta do casal Fernando e Teresa Sarney, às vésperas da eleição de 2006, quando a irmã do empresário, Roseana Sarney concorria (pela terceira vez) ao governo maranhense.

As conversas captadas pelos federais registraram, além de fortes indícios de transações escusas, a desenvoltura com que os Sarneys exerciam a política de patronagem no governo Lula, reproduzindo na esfera federal, com a maior naturalidade, os padrões de controle oligárquico sobre o seu Estado de origem reduzido a capitania hereditária. Em 2009, a pedido de Fernando Sarney, o desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal - e amigo do patriarca Sarney -, proibiu este jornal de continuar divulgando as evidências levantadas pela PF. A aberração da censura prévia imposta ao Estado completa hoje 781 dias. Enquanto essa ilicitude se perpetua, o STJ resolveu considerar que a decisão judicial que permitiu conhecer de perto as traficâncias sarneysistas, mediante quebras de sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos, carecia de fundamentação.

Formalmente, isso não significa o fim da investigação, muito menos equivale a um atestado de inocência dos investigados. Mas a volta à estaca zero, no caso, "abre a porta para a impunidade", como diz o presidente do Sindicato dos Delegados Federais em São Paulo, Amaury Portugal. "A PF respeita as decisões judiciais, mas o trancamento da Boi Barrica é temerário", alerta. O órgão policial sente-se diretamente atingido no cumprimento das suas atribuições, na medida em que a anulação das provas possa sugerir que a PF "forçou a barra" junto ao Judiciário maranhense para obter a prorrogação das interceptações por 18 vezes. "A PF não inventa, ela investiga nos termos da lei e sob severa fiscalização", retruca o diretor de Assuntos Parlamentares da Associação Nacional dos Delegados da PF, Marcos Leôncio Sousa Ribeiro. Ele se refere ao controle do Ministério Público Federal, "fiscal da lei", e do Judiciário, "garantidor de direitos".

Pode-se concordar ou discordar da sua opinião sobre a falta de "interesse em deixar investigar" quando os investigados não são pessoas comuns - como, numa tirada reveladora do quanto mudou o combatente social de outrora, o presidente Lula se referiu ao bom amigo José Sarney. Pode-se também concordar ou discordar da tese de que o Judiciário está "a serviço das elites", o que seria, segundo o delegado, o pano de fundo do ato do STJ. Mas é difícil refutar a sua narrativa do episódio, a partir da referência aos controles que incidem sobre a atuação da PF: "Aí uma Corte superior anula todo um processo público com base em quê? Com base no 'ah, não concordo, a fundamentação do meu colega que decidiu em primeiro grau não é suficiente'. Nessa hora não importa que os fatos sejam públicos e notórios e que nem sequer há necessidade de se ficar buscando uma prova maior".

Não é a primeira vez que o STJ invalida ações da Polícia Federal. Os precedentes mais notórios foram a Operação Satiagraha, que focalizou o banqueiro Daniel Dantas, e a Castelo de Areia, envolvendo diretores da empreiteira Camargo Corrêa. Num caso, o motivo foi a participação, julgada ilegal, de membros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) nas investigações. No outro, o tribunal entendeu que denúncias anônimas não justificam autorizações para escutas telefônicas. São objeções respeitáveis. Agora, está-se diante de uma interpretação equivocada - ou pior.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 20.09.11

As Vozes que Não se Calam

Por Fernando Gabeira


Dados na mesa: a corrupção desviou R$ 40 bilhões em sete anos, R$ 6 82 milhões no Ministério dos Transportes; o Brasil caiu 20 posições no ranking da infraestrutura, segundo pesquisa do Fórum Econômico Mundial - deixou o 84.º lugar para ocupar o 104.º. Mesmo sem precisar o seu peso, é inegável que a corrupção desempenhou um papel nessa queda. Apenas isso seria suficiente para justificar a presença da luta contra o desvio de verbas públicas no topo da agenda nacional.

O argumento da coalizão para conviver com esses fatos é o da governabilidade. É o discurso dos dirigentes mais politizados. No espaço virtual, onde as emoções estão mais à flor da tela, não são raras as tentativas de desqualificar a aspiração de grande parte da sociedade brasileira, revelada, parcialmente, nas demonstrações do 7 de Setembro. A mais banal dessas tentativas é aprisionar o movimento dentro dos códigos do século passado, dominado pela guerra fria. Esquerda e direita, naquele contexto, eram os polos da principal clivagem. O movimento é de direita, dizem, logo, representa um atraso.

As pessoas que saíram às ruas talvez não se sintam nem de direita nem de esquerda, apenas defendem seus direitos e sonhos frustrados pela corrupção. Num outro plano, há os que até entendem a disposição para a luta. Lamentam apenas ver a energia dispersa num tema secundário. Chegam até a sugerir um outro foco: a sonegação de impostos, dizem, mobiliza bilhões de reais. Outra forma clássica de argumentar, que atravessou o século 20: a contradição principal é entre burguesia e proletariado; outras lutas, ainda que bem-intencionadas, podem levar à dispersão.

A presidente Dilma Rousseff, quando indagada sobre corrupção, sempre enfatiza a luta contra a miséria, deixando bem claro seu objetivo principal. O que falta na sua resposta é uma articulação entre corrupção e miséria, a aceitação da evidência avassaladora de que a corrupção contribui para agravar a miséria no País.

Uma vez aceita essa evidência, seria possível passar para outra etapa da discussão. Isto é, discutir o argumento de que a governabilidade permite ganhar um espaço na luta contra a pobreza muito superior ao espaço que se perde com a corrupção. É o famoso "preço a pagar". Em nome da própria luta contra a miséria, é legítimo perguntar: será que o Brasil precisa mesmo pagar esse preço? Numa democracia transparente, além do custeio da máquina, é necessário um pedágio para que ela seja possa funcionar?

Tudo indica que o modelo de presidencialismo de coalizão, com o rateio de cargos entre os partidos, está esgotado. O amadurecimento da democracia vai impor novos rumos. No momento é difícil convencer disso os vencedores, que projetam novas vitórias eleitorais, seguindo a máxima esportiva de que em time que está ganhando não se mexe. Os argumentos contra a corrupção não se limitam ao dinheiro perdido. No plano simbólico, a devastação é maior ainda. Milhares de pessoas se afastaram da política e a imagem internacional do Brasil sofre.

Recentemente, o WikiLeaks revelou uma correspondência do embaixador dos EUA, Thomas Shannon, afirmando que a corrupção no governo passado era generalizada. É razoável perguntar: será que isso foi só a percepção do embaixador americano ou é a de todo o corpo diplomático?

As perspectivas tornaram-se mais interessantes agora, com a aparição de um movimento espontâneo e apartidário. As demonstrações de jovens buscando mais democracia, no período eleitoral, representou uma combinação singular na Espanha: a contestação ofuscou o discurso dos políticos. Os que gastam energia para reduzir a importância da luta contra a corrupção devem lembrar que, mesmo se fosse varrida dessa conjuntura, ela apareceria, com força, pouco mais adiante.

A preparação da Copa de 2014, necessariamente, recoloca o tema. Faltam dados sobre os gastos e algumas estimativas os elevam a R$ 120 bilhões. A reforma do Maracanã, por exemplo, tem hoje previsão de gastos de mais de R$ 900 milhões, apesar dos cortes do TCU. Ela é sintomática. A previsão inicial era de R$ 600 milhões. A empresa responsável é a Delta, cujo dono é amigo do governador Sérgio Cabral. Uma obra da Delta no aeroporto de Guarulhos chegou a ser interditada esta semana pela Justiça Federal.

Mesmo esquecendo momentaneamente a Copa, cujo processo ainda se vai desenrolar, é inegável que a corrupção influiu na resistência contra a recriação da CPMF. Segundo o TCU, é na saúde que se registra um terço do desvio de verbas no País. Ninguém tinha esses dados, mas quase todos desconfiavam.

Por mais que a corrupção seja jogada para a margem, como um problema corriqueiro, ela reaparece na agenda nacional, confirmando a frase de Guimarães Rosa: quem muito evita, acaba convivendo. Talvez fosse mais fácil se os partidos políticos, com uma visão de futuro, dessem uma resposta a uma agenda que não desaparece da cena. Os fatos no Congresso, principalmente a absolvição, por voto secreto, da deputada Jaqueline Roriz, indicam que a maioria dos políticos continuará com a cabeça enterrada na areia.

Nesse cenário, não pode ouvir o movimento perguntando: há alguém aí? O nível de desemprego é menor aqui do que o registrado na juventude espanhola. Em compensação, lá os políticos não viram as costas à sociedade tão audaciosamente como no Brasil.

Algo começou com as manifestações de 7 de Setembro. Como em todos os pontos do globo, elas lançaram mão da internet, instrumento sobre o qual não há controle numa democracia. Por outro lado, as tentativas de controle político dos meios de comunicação tradicionais tendem ao isolamento. É preciso acreditar muito nos aliados para supor que possam erguer a bandeira da censura num ano eleitoral.

Dificilmente o Brasil aceitará pagar pedágio para que o governo faça a máquina funcionar. Ela já é pouco racional. Com os danos da corrupção, torna-se um obstáculo para um salto maior. O Brasil cresceu, os horizontes políticos encolheram. O sopro das ruas pode trazer a inspiração que faltava.

Fernando Gabeira, ex Deputado Federal, é repórter do jornal O ESTADO DE S.PAULO. Este artigofoi publicado originalmente na edi;'ao de 16.09.11.

Caminante, no hay camino?

Por Fábio Bonini

“O Brasil é o país do futuro”, “ninguém segura este país” foram mantras repetidos à exaustão por décadas, principalmente durante os governos militares. Realmente, sobretudo para quem via de fora, parecíamos uma nação fadada ao sucesso: a vocação para ser o “celeiro do mundo” (outro mantra, ou sub-mantra corolário dos primeiros) parecia inevitável.

Cunhou-se o neologismo “supersafra” para nomear os seguidos sucessos no aumento da produção de grãos visando à exportação (“exportar é o que importa!” – haja mantra!). Entre idas e vindas, contribuímos para que nosso país se tornasse referência obrigatória no cenário internacional e uma peça indispensável no xadrez geopolítico mundial.

Que se trata de um gigante, ninguém duvida; mas, depois de levantar do berço esplêndido, para onde nosso “Adamastor” caminhará? Será o país das commodities, cujo crescimento baseia-se na exportação de produtos brutos como cereais, minério e petróleo? Uma plataforma avançada das indústrias de ponta com a abertura da economia às multinacionais? Terá desenvolvido uma intelectualidade própria, autônoma, apta a competir em igualdade de condições com as economias mais avançadas? Aproveitará o enorme mercado interno para implementar serviços de alta competitividade? Criará uma infraestrutura sustentável para desenvolver seu potencial turístico?

Ao que parece, abraçamos todas as opções acima; e, talvez, nenhuma delas completamente. Uma das premissas fundamentais para desenhar qualquer projeto, seja ele pessoal ou coletivo, é dizer aonde se quer chegar. Em síntese, trata-se de saber para onde ir – os objetivos do projeto- e como fazer para chegar “lá”, seja onde for. Daí, estabelecemos estratégias (como ir), metas claras, ações definidas e prazos de realização, que funcionam como indicadores para sabermos se estamos realmente caminhando no rumo desejado, de forma a validar o planejamento proposto ou alterá-lo face às intercorrências do trajeto percorrido. Em síntese, um projeto nada mais é que um mapa a ser seguido, um roteiro detalhado a partir do qual se desenvolvem as ações necessárias para alcançar os objetivos.

Com um país acontece exatamente a mesma coisa – ou, deveria. Para uma nação cumprir seu destino é preciso planejamento responsável, acompanhamento efetivo, transparência nas ações e determinação para alcançar resultados. Não há como fugir desse desafio, por mais difícil que seja estabelecer um projeto de país que contemple todas as necessidades, desejos e anseios de uma sociedade tão plural e desigual como a nossa. Mas sem projeto, qualquer ação, qualquer estratégia, qualquer sacrifício e qualquer vitória tendem a perder o sentido já que não se sabe ao certo para onde caminhamos.

Erradicar a pobreza, oferecer moradia decente, multiplicar as vagas nas creches, aumentar a oferta de emprego e garantir saúde de qualidade não são projetos de país. São metas fundamentais para a construção de uma sociedade digna, sem dúvida, mas não substituem a definição clara dos rumos e dos objetivos maiores de uma nação. Em se tratando do futuro da nação, não vale a lição poética do sevilhano Antonio Machado:

“Caminhante, são tuas pegadas/o caminho, e nada mais;

Caminhante, não há caminho,/se faz o caminho ao andar.

Ao andar se faz o caminho.”

Fábio Bonini é advogado em São Paulo.

Reforma Política Contra a Degradação

Por Tarso Genro

O ambiente democrático no país está se degradando num crescente assustador. O que segura o prestígio da democracia atualmente é, no plano da subjetividade política, a solidez que ela adquiriu em meio às elites e a boa parte do povo durante os governos FHC e o potencial de amplo apreço popular por ela nos governos Lula, face às grandes mudanças de rumo na economia e na distribuição de renda.

Os governos Lula proporcionaram extraordinária mudança na estrutura de classes da sociedade, criando novos sujeitos sociais e econômicos, não somente na burguesia mas também em extensas camadas populares, que "ganharam" e cresceram com a democracia e com ao processo de expansão da economia.

A questão da corrupção, que nunca foi tão atacada como nos últimos anos e continuará sendo porque já temos instituições sólidas para isso, não é responsável pela degradação do ambiente democrático.

Tampouco o são a mediocridade de certa parte das elites, a crise mundial ou a manipulação da informação por uma parte poderosa da mídia.

Tudo isso pode colaborar um pouco, mas o centro da degradação é o sistema político no seu sentido mais largo -envolvendo o processo eleitoral, que também está esgotado. O sistema atual é um reprodutor de lideranças artificiais, de vocações para a corrupção, de regionalismos alienados e de corporativismos geográficos, que se opõem à ideia de nação.

O Brasil precisa de um choque político contra essa degradação que vai, paulatinamente, corroendo a dignidade da política aqui praticada: pelas alianças incoerentes, pela desvinculação dos líderes de partidos dos seus programas originários, pelos compromissos assumidos com os financiadores de campanhas (nem sempre lícitos) e, finalmente, pelo ativismo agressivo do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Esses, no vácuo de uma legalidade superada e por conta da apatia do Congresso, atuam com seus termos de ajustamento ou suas súmulas sem precedentes, usurpando prerrogativas dos Executivos e Legislativos, talvez abrigados numa "inexigibilidade de outra conduta", para que a situação não piore.

Defendo que três mísseis contidos na proposta do deputado Henrique Fontana, relator da reforma política, podem alterar para melhor essa letargia da decadência.

A saber: o financiamento público das campanhas, acompanhado de controles eficazes e duras sanções para partidos e pessoas que violem as normas de financiamento; a votação em lista preordenada (mesmo com a atenuação do voto duplo); e a criação de controles legais para a elaboração da lista, no âmbito interno dos partidos.

Os ecos de indignação ouvidos na Argentina (que se "vayan todos") e a intermitência de "rebeldia" nos países da Europa ocidental -que buscam seus lugares "dentro do sistema" através das redes- são meras comprovações do profundo mal-estar com a democracia e também sintomas de um "novo" sem projeto e sem propostas para superar crises.

Só o risco calculado de uma reforma no sistema político, para oxigenar a República e organizar as disputas na democracia de alta intensidade, pode ressignificar a esfera da política e da militância nos partidos. O niilismo esquerdista ou direitista -ou meramente oportunista dos udenistas de ocasião- pode comprometer o futuro do essencial que nos une: a preservação e o avanço da democracia e da República.

Tarso Genro, Advogado e Professor de Direito, é o atual Governador do Estado do Rio Grande do Sul.

A Ação Mais Antiga

O processo mais antigo à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) já completou 52 anos de tramitação, há cerca de dois meses. Quando foi protocolado, em junho de 1959, o endereço da Corte não era a Praça dos Três Poderes, em Brasília, mas a Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. O atual presidente do Supremo e relator da ação, ministro Cezar Peluso, tinha 16 anos de idade. O ministro mais moço, José Antonio Dias Toffoli, nem sequer havia nascido. Até o nome do País era outro: República dos Estados Unidos do Brasil.

Com 12 volumes e 3 apensos, o processo tem 2.449 páginas - todas amareladas e muitas em processo de desintegração. Várias estão improvisadamente protegidas por sacos plásticos, para não virarem pó. Pelas estimativas dos servidores da Casa, essa é, seguramente, a ação em tramitação no Supremo Tribunal Federal com maior número de ácaros por página.

A ação foi proposta pelo então procurador-geral da República, Carlos Medeiros da Silva, contra o governo do Estado de Mato Grosso, que, naquele tempo, ainda não havia sido dividido. Para colonizar a região, o governo estadual havia doado a seis empresas lotes de terras públicas - hoje localizados em Mato Grosso do Sul -, com áreas superiores a dez mil hectares. O problema é que, pela Constituição de 1946, então em vigor, a doação não poderia ser feita sem prévia autorização do Senado. Como isso não ocorreu, o procurador-geral pediu a nulidade dos contratos. Em sua defesa, o governo mato-grossense alegou que não houve cessão das terras e que as seis empresas, em troca do benefício recebido, se comprometeram a promover assentamentos de famílias de agricultores e pecuaristas e construir estradas, escolas, hospitais, olarias, serrarias e campos de aviação.

Como mostra a excelente reportagem do jornal O Globo que inspirou este editorial, desde sua proposição, o processo já teve nove relatores. O primeiro foi o ministro Cândido Motta Filho, que se aposentou em 1967. O atual relator, ministro Cezar Peluso, assumiu o caso em junho de 2003 e, finalmente, concluiu seu voto e pretende incluí-lo numa das pautas de julgamento deste mês.

A arrastada tramitação do processo se deve aos pedidos de diligências feitos pelos relatores que antecederam Peluso, para que fossem colhidos depoimentos de todas as pessoas que tinham comprado terras na região depois da doação. "Como achar esse povo?", indaga Peluso.

Qualquer que seja a decisão que o Supremo vier a dar a este processo, ela não deverá ter maiores efeitos práticos - e esse é o aspecto mais surrealista do caso. Desde que as seis empresas beneficiadas pelo governo mato-grossense promoveram os primeiros assentamentos de pecuaristas e agricultores na região, há mais de cinco décadas, já foram registradas várias revendas de terrenos por ocupantes de boa-fé - e, mais importante ainda, foram erguidas cidades nas glebas doadas.

Por isso, o resultado do julgamento será inócuo, uma vez que não se pode erradicar do mapa municípios de pequeno e médio portes nascidos de assentamentos irregulares. Como não podem tomar decisões contrárias ao que a Constituição de 46 determinava, os 11 ministros do Supremo serão formalmente obrigados a considerar inconstitucional a doação dos terrenos, feita em meados do século passado. Mas eles sabem que, objetivamente, não há como obrigar a União a despejar os ocupantes daqueles terrenos ocupados indevidamente e indenizar os atuais moradores das áreas que se encontram sub judice.

Além dessa ação, o Supremo terá de julgar várias outras que também tramitam há décadas. Na lista dos processos mais antigos, que foram protocolados entre 1969 e 1981, quatro estavam sob responsabilidade da ministra Ellen Gracie. Como ela se aposentou sem apresentar seu parecer, essas ações serão enviadas a um novo relator. Dependendo do ritmo e da carga de trabalho do STF, esses processos podem bater o recorde de longevidade hoje detido pela ação proposta pelo procurador-geral da República há 52 anos. Esse é um retrato - que não se pode chamar de instantâneo - da Justiça brasileira.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 11.09.11

A Faxina da Veja


Por Leonardo Attuch

Talvez tenha sido um haraquiri. Com o chefe Eurípedes Alcântara em férias, o número dois de Veja, Mario Sabino, conhecido pela mão pesada e pela habitual postura malvadinha, toma uma decisão.

Pauta uma reportagem para que se descubra o que faz José Dirceu em Brasília. Veja então hospeda um repórter num quarto do hotel Naoum, em Brasília, que, aparentemente, instala uma câmera no mesmo andar onde se hospeda José Dirceu.

E descobre que, pelo corredor, passam figuras da República, como os senadores Lindbergh Farias, Eduardo Braga, Delcídio Amaral, e presidentes de estatais, como José Sergio Gabrielli, além de ministros, como Fernando Pimentel.

Portanto, a revelação é mesmo bombástica: José Dirceu, fundador do PT e uma das lideranças relevantes do partido… (tchan, tchan, tchan, tchan)… faz política. E, por isso, ele desponta na capa da revista como o Poderoso Chefão – o Don Corleone de Francis Ford Coppola.

Para descobrir que José Dirceu faz política, não seria preciso instalar câmeras secretas nem tentar invadir um quarto de hotel. É algo, como diria Nelson Rodrigues, óbvio e ululante. Figura pública no Brasil desde a década de 60, ele respira e transpira política.

E divide seu tempo entre a defesa no processo do Mensalão, no qual é réu, e as articulações para as eleições de 2012 e 2014. Gabrielli esteve com Dirceu? Sim, e daí?

Gabrielli é pré-candidato do PT ao governo da Bahia e a costura política passa por José Dirceu. Lindbergh falou com Zé Dirceu? O senador também pretende se candidatar ao governo do Rio de Janeiro em 2014 e, portanto, conversa com lideranças do partido ao qual pertence. Pimentel passou por ali. So what?

A reportagem deste fim de semana é um exemplo típico de exacerbação do efeito – muita espuma, para pouco chope. Uma capa com ar bombástico, o recurso a hipérboles e, no fim, tentativas de vitimização.

Sobre a invasão de um quarto de hotel, que gerou um boletim de ocorrência (leia mais), Veja conclui sua reportagem dizendo que “a máfia não perdoa”. Dá até pena do repórter.

Mas, que máfia, Roberto Civita?

Com a Abril em boa situação financeira, Civita nomeou seu primeiro CEO que terá poderes também editoriais. No passado, a Abril teve outros presidentes, como Maurizio Mauro, que se ocupavam da área financeira, mas sem nenhuma interferência sobre o conteúdo das publicações.

Fabio Barbosa, ao contrário, chega para emprestar credibilidade à Abril.

E ganhou um presente antes mesmo da sua chegada.

Uma capa que lhe dá totais condições de iniciar sua faxina interna.

Leonardo Attuch é Jornalista da Redação da ISTOÉ.

O Reino do Faz de Conta

Por Nelson Motta

Não chamar as coisas pelos seus nomes - principalmente quando são desagradáveis, ilegais ou imorais -, mas por doces eufemismos, é uma das características mais marcantes do estilo brasileiro. Já começa no nosso célebre jeitinho - o nome que damos a transgressões da lei e das normas para levar vantagem em tudo.

De gratuito, o horário eleitoral não tem nada: as emissoras recebem créditos fiscais por suas perdas de receita comercial e são os contribuintes que pagam pela boca livre dos partidos, num milionário financiamento público das campanhas. Contribuinte já é um eufemismo que sugere ser facultativo e voluntário o pagamento obrigatório de impostos. Em inglês, os que pagam a conta são chamados literalmente de "pagadores de impostos".

"Prestar contas do mandato" significa que o parlamentar gastou verba oficial para se promover com seu eleitorado. As chantagens, achaques e acertos dos políticos com o governo são sempre em nome da "governabilidade". É claro que ninguém fala de suborno ou propina, ou mesmo da antiga comissão, nossa inventividade criou a "taxa de sucesso".

O companheiro Delúbio Soares deu inestimável contribuição ao nosso acervo eufemístico criando o imortal "recursos não contabilizados" em substituição ao antigo, mas sempre atual, "caixa 2", eufemismo histórico para sonegação de impostos e dinheiro sujo.

No Brasil, quase todas as organizações não governamentais só vivem com o dinheiro governamental: o meu, o seu, o nosso. Assim como "notória capacidade técnica" é o álibi linguístico para ganhar licitações sem disputá-las, "mudança de escopo" é o superfaturamento legalizado.

O clássico "o técnico continua prestigiado" significando iminente demissão migrou do futebol para a política com sucesso. Diante de acusações da imprensa, o ministro jura que não fez nada de errado e o governo diz que ele está prestigiado. A novidade é que agora, justamente porque é inocente e está prestigiado, ele pede para sair antes de ser demitido.

No país do faz de conta, quando se ouve falar em "rigorosa investigação, doa a quem doer", todos entendem que não vai dar em nada.

Nelson Motta é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de Sao Paulo, edição de 26.08.11.

Juiz Tem de Estudar

Por José Roberto Nalini

Nunca se duvidou de que para ser juiz é preciso estar disposto a sacrifícios. O concurso de ingresso na magistratura converteu-se num complexo de exigências que poucos superam. Espera-se que o julgador seja uma enciclopédia de conhecimentos que inclua a integralidade do prolífico cipoal normativo, totalidade da doutrina e jurisprudência dominante, sem descurar de conhecer as divergências.

Por esse motivo, a conclusão do bacharelado em ciências jurídicas é mero pressuposto a se habilitar ao certame seletivo. A alternativa é imergir no estudo contínuo ou seguir os passos postos à disposição pelos bem-sucedidos cursinhos de preparação.

Os concursos vinham sendo os mesmos, previsíveis e sem inovação, até à edição da Resolução n.º 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Este novo órgão do Poder Judiciário, situado na topografia constitucional logo abaixo do Supremo Tribunal Federal (STF) e acima do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assumiu suas atribuições e se pôs a disciplinar uma Justiça que até então formava um enorme arquipélago de autonomias.

Escusado questionar a competência do CNJ para normatizar os processos de seleção, pois o colegiado está no pacto federativo e ninguém oferece argumentos capazes de reduzir a sua legitimidade. Nem se invoque o assimétrico federalismo brasileiro, mal copiado quando da instauração da República e que, sendo às avessas do modelo americano, não conseguiu disfarçar a vocação centralizadora do Estado.

A Resolução n.º 75/2009 alterou, de maneira substancial, a forma de recrutamento dos juízes. O aspecto mais relevante é a exigência de outros saberes, que não exclusivamente a técnica jurídica. Para se tornar magistrado o candidato precisa se interessar por ética, filosofia, sociologia, psicologia, teoria geral do direito, gestão das unidades judiciais. Não se exclui, por óbvio, o domínio das ciências do direito. Mas se introduz no sistema a constatação de que o ser humano chamado a julgar seu semelhante precisa exatamente deste atributo imprescindível: humanismo.

A erudição traduzida por um acervo de informações que mais comprovam a capacidade mnemônica do que um chamado a exercer uma carreira já não se mostra suficiente. Foi um passo enorme em direção ao aperfeiçoamento na escolha de quem se tornará vitalício e servirá a seu povo - presumivelmente - durante algumas décadas.

Ainda é preciso avançar na aferição da capacidade de trabalho. O Judiciário é serviço público, remunerado pelo erário, posto à disposição dos destinatários que o sustentam. Não é emprego para quem gosta de filosofar, para quem superestima a sua autoridade ou não se preocupa com a otimização dos parcos esquemas postos à sua disposição, com vista a outorgar o melhor justo concreto.

Produtividade requer consciência e talento. O desmotivado é incapaz de superar dificuldades e enfrentar o desafio de um volume crescente de processos. Muitos dos quais, reconheça-se, não ostentam complexidade. Queira ou não, o juiz torna-se um especialista. Acredita-se que o trato contínuo com as questões postas à sua apreciação o convertam num experto capaz de acelerar a prestação jurisdicional. O Judiciário está submetido ao princípio da eficiência, colocado no texto constitucional dez anos depois da promulgação da Carta cidadã, exatamente porque a Justiça não conseguia adequar-se aos anseios contemporâneos.

Para completar a mudança na seleção dos novos quadros o CNJ também editou o Código de Ética da Magistratura, que em 2011 completa três anos. Nele se inseriu o comando ético do conhecimento e capacitação permanente do magistrado. É o contraponto ao direito dos jurisdicionados e da sociedade em geral à obtenção de um serviço de qualidade na administração de justiça.

Não significa o crescimento intelectual exclusivamente nas disciplinas jurídicas, embora ele continue exigível e não se consiga decidir sem apreender o direito. Mas o Código da Magistratura insiste nas capacidades técnicas e nas atitudes éticas adequadas a uma correta aplicação do direito.

Enfatiza a codificação destinada ao juiz brasileiro que a obrigação de formação contínua se estende tanto às matérias especificamente jurídicas quanto no que se refere aos conhecimentos e técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento das funções judiciais.

Inegável o plus qualitativo de quem estudar psicologia, para melhor lidar com o sofrimento humano. Todo processo tem uma carga de angústias que a pasteurização da forma e da excessiva tecnicalidade não consegue ocultar. Mas é preciso penetrar na seara sociológica, antropológica, econômica, histórica e política, sem o que o magistrado será um profissional incompleto. Deslocado do contexto social, insuficientemente preparado, produtor de potenciais injustiças, em lugar de assumir o papel de décideur, pacificador e conciliador das partes que controvertem.

Os novos tempos impõem a quem queira bem cumprir o seu dever de solucionar conflitos a obrigação do estudo permanente. A formação continuada servirá não apenas para o desempenho adequado do ofício, mas também para o melhor desenvolvimento do direito e administração da justiça. O direito não é senão ferramenta de tornar os homens menos infelizes. Não é ciência neutral, de que podem servir-se os desprovidos de freios inibitórios, aqueles que fazem da ética um deboche e instrumentalizam a Justiça para melhor se safar das responsabilidades.

O compromisso do estudo incessante é pessoal, de cada integrante do Judiciário. Mas constitui dever de cada magistrado atuar no sentido de que a instituição a que serve também ofereça os meios para que sua formação tenha prosseguimento. Sem isso não se oferecerá ao povo brasileiro a justiça oportuna e de melhor qualidade que há muito ele está a exigir.

José Roberto Nalini é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e membro da Academia Paulista de Letras.

Uma Noite em 67

Por Chico Maranhão

Quando estiveram recentemente aqui em São Luís, os Jornalistas Maria do Rosário Caetano e Luís Zanin me falaram sobre o filme Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, perguntando o que eu achei e registrando a falta de um depoimento meu em algum dos momentos nos quais as personagens principais do festival, e eu era uma delas, apareceram falando.

A apresentação pelo MPB-4 da minha musica Gabriela, uma das vencedoras, foi incluída no filme. As cenas tiradas do meio do público refletem bem a alegria que contagiou as pessoas melhorando o clima.

Eu tivera noticia desse filme, mas só agora pude assisti-lo. Gostei e emocionei-me. Quando vi o Roberto Carlos cantando a música do Luís Carlos Paraná, que conheci tanto, não contive as lágrimas.

Ao abrir a cena, senti algo perto do ciúme. Foi difícil conter-me... Afinal, participei daquilo tudo tão intensamente como todos os outros. Naquela noite de 67 resolvi não estar lá. E explico: além de assustado como bicho do mato, muito mais do que o próprio Gil (já sabia da paúra dele), decidi estrategicamente, que seria melhor não ir ao teatro. Havia uma segurança enorme na minha música, mas uma grande insegurança no meu ser.

Confesso, porém, que nunca receei sobre meu trabalho musical, sobre minha canção. Tenho total confiança nela. Sabia que ia ser classificado. Achava, porém, que minha presença influenciaria a relação entre o intérprete e a platéia e podia afetar o resultado. Por isso não fui. Escondi-me em algum lugar da cidade, por ali. Não lembro mais onde. Deixei o acontecimento se desenrolar, deu certo. Senti a classificação antes dela acontecer. Quando consumada, apenas confirmei.

Apesar de retraído, eu tinha uma noção superficial do que, na época, era mais aceitável. Eram as vibrações das circunstâncias. Não tinha a devida noção da responsabilidade. Não tinha aquela coisa de concorrer. Sempre me achei incluso, por princípio, ao conjunto. Curioso, isso! É um pouco ingênuo, mas sou assim.

Enfim, gostei do projeto dvd, mas faço uma ressalva que entendo ser pertinente não porque diga respeito a uma música minha mas porque diz respeito a uma música que teve grande repercussão e foi escolhida para os Extras. Refiro-me à “Gabriela”.

Há de se respeitar os dirigentes e produtores do DVD quanto à seleção que fizeram das músicas para o filme e para os Extras. Contudo, ao incluírem “Gabriela”, com o destaque que mereceu, por que não mencionar seu autor na dimensão da repercussão que a música teve? É verdade que na contra capa está indicado o nome de Francisco Fuzetti, mas quem é do meio artístico, especialmente quem pesquisa e escreve sobre o assunto sabe que meu nome artístico sempre foi Maranhão, nome ao qual foi acrescentado Chico, quando voltei para São Luís, resultando Chico Maranhão.

Prefiro ver, que a não referência ao autor, constitui uma falha, para não alimentar suspeita da velha discriminação contra os que não se encontram nas áreas privilegiadas da cultura. Então, se “Gabriela”, como disse Zuza Homem de Melo, em seu livro “A era dos festivais – uma parábola”, permitiu ao MPB-4, ao cantá-la, “em instantes reverter a disposição belicosa da platéia”, sendo, portanto, o ponto de equilíbrio entre forças daquele tumulto ideológico tão temido, por que não mencionar seu autor? Registre-se que Zuza Homem de Mello foi consultor do DVD.

Essa omissão inusitada tem levado pessoas a me perguntarem o que houve e a mim causado embaraço e constrangimento, por não entender o que de fato está por trás dessa omissão, que faz soar como uso indevido a referência à música. Por isso entendo que, do ponto de vista histórico, é lamentável. Não é um bom exemplo. Afinal, o DVD está interpretando uma época. Quem pretende fazer História ou mesmo retratar um momento passado, há de ter compromisso com a informação correta.

O próprio MPB-4 informa no filme que “Gabriela” contribuiu para que o grupo assinasse um polpudo contrato com a Record. A mim, por exemplo, causou um tremendo “puxão de orelha” do “Cabrão”, então diretor da Escola de Arquitetura - FAU, onde estudava: “– O senhor está fazendo o quê?” - perguntou zangadão.

“- Tocando violão, fazendo música, e não vem fazer a prova de Hidráulica...” E outras “mumunhas” mais que não cabem neste texto. Lamento que se tenha confirmado mais uma sensação antecipada que tive. Não como aquela, de alegria, antes do êxito de “Gabriela”, mas de tristeza, ao pressentir, quando tive notícia do projeto, que algo parecido aconteceria. Ao assistir, enfim, apenas confirmei o que havia sentido daqui de longe neste tipo de “exílio” em que são vistos os artistas que estão fora do circuito privilegiado. Então, como opinião é falha, como História é dúbia.

Chico Maranhão mora na ilha de São Luís, onde ganha a vida como professor de arquitetura na Universidade Federal do Maranhão e sustenta a alma e as esperanças do seu tempo como Compositor Popular. / e-mail: cm@chicomaranhão.com

Pra Chamar de Seu

Por Pedro Malan

A presidente Dilma Rousseff tentará formar um Ministério que possa chamar de seu em 2012. O que não era o caso daquele com o qual começou a governar: quase 40 ministros, muitos herdados das composições de Lula; milhares de cargos de confiança já devidamente ocupados; 15 partidos na base aliada, todos com expectativas de "direitos" a serem conquistados ao assegurarem uma grande maioria no Congresso Nacional.

A presidente sabe, de sua experiência na Casa Civil de Lula e de seus primeiros dez meses na Presidência da República, quão difícil é o desafio que tem pela frente, à luz de compromissos assumidos em seu discurso de posse: "Estamos construindo um governo onde capacidade profissional, liderança e disposição de servir ao País serão os critérios fundamentais. (...) Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para atuarem com firmeza e autonomia".

Norberto Bobbio distingue, além do governo do poder visível, que em democracias como a nossa é exercido publicamente, à luz do sol e sob controle da opinião pública, de duas outras faixas de poder: o poder semissubmerso, esse vasto espaço ocupado pelos órgãos e entidades públicas por meio dos quais se exerce o dia a dia operacional das políticas governamentais; e a faixa de poder invisível, que pode ser dirigido a lutar contra o Estado - organizações criminosas e associações de delinquência de todo tipo -, e um poder invisível formado e organizado não para combater o poder público, mas para extrair benefícios ilícitos e buscar vantagens que uma ação feita à luz do sol não conseguiria.

O problema, com frequência, são as relações espúrias entre os poderes invisível e semissubmerso, aos quais se refere Bobbio, quando o poder visível não dá sinais muito claros sobre o que constituem comportamentos inaceitáveis na gestão da coisa pública.

A presidente Dilma, a esse respeito, tem dado sinais e tomado decisões que pelo menos a diferenciam da complacência talvez excessiva de seu antecessor. Embora sem nunca perder de vista as limitações que lhe impõe a necessidade de manter unida a sua vasta e heterogênea base aliada.

O tempo dirá como a presidente conseguirá estabelecer um delicado equilíbrio entre essa necessidade e o peso - que sabe potencialmente importante - da opinião pública que se expressa por intermédio da mídia livre e independente. A política tem seus próprios tempos, que podem ser longos, permitindo que certas práticas e determinados comportamentos deitem raízes - para o bem ou para o mal.

Permita-me o eventual leitor uma breve digressão sobre a crise europeia antes de voltar ao Brasil e aos ritmos da economia e da política.

Não é por acaso que os países que enfrentam hoje as maiores dificuldades sejam exatamente os que já tinham, antes da crise que se iniciou em 2007, déficits fiscais e de balanço de pagamento mais expressivos e/ou estoques da dívida pública mais elevados e/ou problemas de competitividade internacional e baixo crescimento.

O euro eliminou a possibilidade de políticas monetária e cambial independentes. Há apenas política fiscal e reformas estruturais. Que agora terão de ser feitas em condições muito mais difíceis. Os tempos da economia e da política convergiram. A lição para eles - e para nós - é que nos momentos de bonança é que se deve procurar diagnosticar e encaminhar soluções para problemas de longo prazo, por mais "irrealista" que isso pareça do ponto de vista político.

Em artigo recente neste Espaço Aberto, comentando a decisão do Banco Central de dar início no final de agosto à trajetória de redução das taxas de juros, mencionei as quatro razões do banco:

Agravamento maior que o esperado da crise internacional; redução maior que a esperada da taxa de crescimento da economia brasileira; confiança na convergência da inflação para mais próximo do centro da meta ao final de 2012; e confiança no "programa fiscal do governo". Notei à época que esse era o "calcanhar de Aquiles" da estratégia de redução sustentada dos juros reais. Continuo achando. E tomo a liberdade de relembrar uma experiência.

No dia 9 de setembro de 1998, exatas três semanas após a decretação da moratória russa e com a eclosão das graves preocupações com risco sistêmico associadas a problemas com alguns grandes fundos de hedge norte-americanos, o Diário Oficial da União publicou um decreto e uma medida provisória. O decreto criou uma Comissão de Controle Fiscal com amplos poderes para tomar decisões de contenção de gastos ainda nos últimos três meses e três semanas de 1998. A medida provisória, num de seus artigos, diz: "O Poder Executivo apresentará, até 15 de novembro de 1998, Programa de Ajuste Fiscal para o triênio 1999-2001".

Por que menciono isso?

Primeiro, porque foi esse programa - executado rigorosamente no triênio seguinte - que permitiu que o regime de flutuação cambial e o regime de metas de inflação se consolidassem no Brasil, a partir de 1999, o que beneficiou enormemente o governo Lula.

Segundo, porque creio que algo semelhante, e talvez mais ambicioso, é necessário agora. Um programa fiscal para pelo menos o triênio 2012-2014 que seja crível e executado de forma a prover as bases necessárias para uma estratégia sustentada de redução de taxas de juros nominais e reais, com inflação convergindo para a meta de forma crível. Um programa fiscal para o triênio que falta à atual presidente e que seja a operacionalização do compromisso que assumiu em seu discurso de posse: fazer mais, e melhor, com os recursos existentes, controlar a velocidade de crescimento dos gastos governamentais, mudando sua composição em favor do investimento público.

Pedro Malan foi negociador da quase impagávell dívida externa brasileira, Presidente do Banco Central e Ministro da Fazenda que concluiu a implantação do Plano Real acabando com a inflação no País.

Olha a Faxina!

Por Xico Graziano

Para combater a corrupção, nada melhor do que a sociedade transparente. Nisso ajuda a internet. Vejam o e-mail que recebi denunciando a prática da propina dentro do Incra. Guardo, obviamente, o sigilo da fonte.

"Foi enviado o Memorial Descritivo Georreferenciado solicitando o novo registro de área por intermédio de um escritório de engenharia e topografia. De cara ele nos alertou que, ao protocolar o processo no Incra, existem dois caminhos a percorrer. Primeiro, o da burocracia. Este vai levar em torno de 2 anos e meio, ou mais, para ser percorrido, às vezes eles até perdem a documentação lá dentro. Segundo, o do jeitinho. Este outro passa pelo nosso amigo lá, no máximo com uma semana ele devolve assinado, não falha, mas tem que depositar tudo certinho pra ele, e à vista, antes de receber o documento".

Continua: "Pois bem, optamos pelo o caminho rápido: depósito em dinheiro de R$ 3.000,00 (três mil reais) na conta do escritório, que em seguida faria o mesmo depósito em dinheiro para o contato dentro do Incra. Em uma semana recebemos o Sedex com o documento assinado, certificado, auditado e aprovado. Seguem os dados do carimbo do documento".

Incrédulo com a leitura da mensagem que recebera, terminei por verificar, ao final dela, a cópia da ordem de serviço, devidamente numerada, emitida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/Superintendência Regional de São Paulo/Comitê Regional de Certificação. O jeitinho, realmente, havia funcionado.

O caso, ocorrido na região de São João da Boa Vista (SP), infelizmente, parece não ser único. Por todo lugar se escuta que o Incra tem demorado exageradamente no andamento desses processos de regularização fundiária. Os agricultores confessam ter medo de perseguição se delatarem a malandragem. Preferem se calar.

Mas a faxina contra a corrupção que a presidente Dilma Rousseff está sendo obrigada a realizar no alto escalão da República abre portas para a honradez vencer o medo. Denúncias começam a pipocar, indicando uma podridão que precisa ser desmantelada.

Georreferenciamento parece palavrão. Mas se trata de um artifício técnico fundamental para aprimorar o cadastro rural do Incra, acabando com o histórico mal da grilagem de terras. Sua obrigatoriedade chegou com a Lei n.º 10.267/2001, trazendo maior transparência aos registros cartoriais. Herança bendita de Fernando Henrique Cardoso.

Em qualquer transação, os imóveis rurais, a começar das áreas maiores, foram compelidos a confirmar seu perímetro utilizando-se de métodos precisos, e uniformes, de mensuração topográfica. O memorial descritivo das propriedades rurais passou obrigatoriamente a estar conectado ao Sistema Geodésico Brasileiro. Uma pequena revolução na cartografia agrária.

Tradicionalmente, desde a época das sesmarias, os registros de terras definiam-se em função de discutíveis, e curiosos, marcos. Cordas e trenas traçavam das fazendas e dos sítios os polígonos, delimitados por um acidente geográfico, uma frondosa árvore, um mourão velho. Agrimensura rudimentar.

Sucessores do astrolábio, os teodolitos somente passaram a melhor precisar a medição geométrica a partir de 1920. Progressivamente aperfeiçoados, os modernos aparelhos ganharam leitura eletrônica há 40 anos. Novo passo da topografia mais recentemente se obteve com a utilização de satélites. Hoje os mapas descritivos das propriedades rurais em nada se parecem com os alegóricos rascunhos de antanho.

O olhômetro era uma moleza para os grileiros de terras, que se apossavam de áreas fincando limites ilusórios, escondidos nas matas. Terrível problema agrário do País, a grilagem começou efetivamente a ser combatida a partir de 1995, quando o Incra iniciou uma varredura dos imóveis rurais com área superior a 10 mil hectares. Operação pente-fino.

Sucessivas diligências e instrumentos legais, incluindo uma CPI no Congresso Nacional, resultaram, em 2000, no cancelamento de 48 milhões de hectares e na interdição de outros 44 milhões, do cadastro de terras do Incra. Para comparação, a safra de grãos do País cultiva-se em 47 milhões de hectares.

Excluindo esses latifúndios fantasmas, o índice de Gini, um indicador utilizado para medir o grau de concentração da estrutura agrária, caiu de 0,847 para 0,802. Incrível. A simples limpeza do cadastro rural derrubou o velho chavão de que o Brasil era o campeão mundial de concentração fundiária. Liderava, isso sim, a grilagem de terras.

Agora, não apenas mais facilmente se descobrem as fraudes, como se evita o problema futuro no mercado de terras. Para a nova legislação funcionar, todavia, carece do carimbo oficial do Incra. Aí é que a coisa, segundo dizem, anda empacando.

Eu sugiro que a presidente Dilma mande realizar uma faxina agrária no Incra. E não apenas para investigar essa delonga nos processos de georreferenciamento dos imóveis rurais. Poderia aproveitar a onda moralizadora e seguir mais além, promovendo uma ação saneadora nos assentamentos rurais e acabando com a maracutaia, sabida há tempos, da venda irregular de lotes da reforma agrária.

Daria para levantar, também, os dados sobre a compra superfaturada de terras, prática adorada por conluiados fazendeiros picaretas. Fora a investigação, pra valer, dos convênios suspeitos - apontados pelo Tribunal de Conta da União e pelo Congresso Nacional -, que repassam recursos públicos às organizações de sem-terra.

O Incra ganhou respeito pela sua história, ligada à causa da democratização da terra. Não pode ser posto em suspeição, nem aparelhada pela política vil. Devolver-lhe a decência faria bem enorme ao Brasil vislumbrado neste recente namoro da moralidade com a República.

Xico Graziano é agrônnomo. Foi Secretário do Meio Ambiente do Estado de S. Paulo.

Vantagens e Desvantagens

Por Merval Pereira

A possibilidade de um mesmo grupo partidário nomear a maioria ou, no limite, até mesmo a totalidade dos membros do Supremo Tribunal Federal faz com que o caso brasileiro se diferencie de seu modelo, que é a Suprema Corte dos Estados Unidos.

Nos EUA, os presidentes nomeiam os ministros também, mas lá o Congresso, sempre equilibrado pelos partidos Republicano e Democrata, é mais severo ao aprovar as indicações: o ex-presidente George W. Bush não conseguiu emplacar sua advogada, que renunciou antes de se submeter à sabatina, diante da reação negativa que sua indicação suscitou.

Mas o mais importante é que, lá, o cargo de ministro é vitalício, o que faz abrir pouquíssimas vagas nos oito anos de mandato de um presidente que se reelege. Aqui, a idade limite de 70 anos e o sistema de aposentadoria pública estimulam a aposentadoria precoce, casos da ministra Ellen Gracie e de Nelson Jobim, entre outros.

Outra diferença fundamental é que na Corte Suprema a presidência é vitalícia, e seu ocupante é escolhido pelo presidente da República. O jurista Joaquim Falcão, diretor da Faculdade de Direito da FGV do Rio, considera que a excessiva rotatividade da presidência do STF “gera descontinuidade, quase insegurança jurídica e administrativa”.

Aqui, o presidente tem “o poder de pauta, que é muito grande. Lá, ele é um paciente formulador de consensos, a médio prazo”, diz Falcão. “O presidente, em qualquer dos casos, conduz as prioridades do Supremo, mas, aqui, a pauta do ministro Jobim era uma; a da ministra Ellen Gracie, outra; a do ministro Gilmar Mendes, outra”. Mais ainda, ressalta Joaquim Falcão. “O presidente do STF, sendo presidente do Conselho Nacional de Justiça, também faz com que a rotatividade estimule uma descontinuidade de políticas administrativas”.

Gilmar Mendes, por exemplo, era a favor de que os julgamentos dos juízes fossem públicos. Já o ministro Cezar Peluso, atual presidente, quer que sejam todos sob segredo de Justiça. Jobim priorizou o combate ao nepotismo e o teto salarial, que não foram prioridades dos sucessores. “Sem continuidade, essas políticas perdem eficiência e se diluem no tempo diante da oposição dos magistrados contrários”, diz Falcão.

Por essas razões, ele advoga que uma reforma do STF e da gestão dos tribunais deveria contemplar um mandato de pelo menos cinco anos para o presidente. Quanto à vitaliciedade, princípio para assegurar a independência do juiz, Falcão acha que ela estaria plenamente assegurada também por mandato fixo mais longo, combinado com uma aposentadoria razoável.

“Embora a legitimidade do Supremo não venha da representação eleitoral, ela vem da sintonia com os cidadãos para construir um difícil equilíbrio entre manter os princípios do pacto constitucional e ao mesmo tempo atualizá-los pelas permanentes mudanças sociais, políticas, econômicas e tecnológicas.

Mandatos mais curtos permitem a renovação de maior sintonia com a evolução social a que estamos todos condenados”, defende Joaquim Falcão. O também jurista Luís Roberto Barroso, professor de Direito da Uerj, lembra que há dois grandes modelos de cortes supremas, ou de cortes constitucionais no mundo: um, representado pela Suprema Corte americana, na qual nos inspiramos; outro, pela Corte Constitucional alemã, que é o modelo que prevalece na Europa e foi seguido por democracias novas, como a da África do Sul.

Na Alemanha, os juízes constitucionais são nomeados pelo Legislativo, com exigência de maioria absoluta, e servem por um mandato de 12 anos, sem possibilidade de recondução. Os partidos, diz Barroso, veem-se na contingência de convergirem para um nome de consenso, que normalmente será um professor ou acadêmico respeitável.

Nos EUA, a importância do papel do Senado se manifesta, sobretudo, no cuidado com que o presidente escolhe o nome que vai indicar, para não correr o risco de rejeição, embora os casos de rejeição efetiva sejam muito poucos. O fato de não existir aposentadoria compulsória, analisa Barroso, traz vantagens e desvantagens em cada modelo. “No caso da Suprema Corte americana, os ministros servem por 20, 30 e até 40 anos. Isso descola o tribunal, mais intensamente, do processo político majoritário, isto é, da política eleitoral”.

Um ministro que atravessa diversos períodos presidenciais torna mais fácil que a Corte, em certas conjunturas, desempenhe o que se chama de papel “contra-majoritário”', o que pode ser bom, mas às vezes é ruim, ressalta, citando exemplos de casos em que, como no governo Roosevelt, o Supremo, mais conservador, interferiu na execução do “New Deal”.

Na Alemanha, a politização e o ativismo são bem menores. Mas a Corte Constitucional tem influência política igual ou maior do que a Suprema Corte americana. “Pessoalmente, não vejo problema -— e até acho bom que alguns ministros não fiquem além de 10 anos e outros fiquem por 20 ou 25. Isso faz com que uns tenham mais sintonia política com o momento contemporâneo, outros menos”, diz Barroso.

No Brasil, houve um caso de permanência longa (cerca de 25 anos) que teve influência histórica, recorda Barroso, o do ministro Moreira Alves. “Homem de formação jurídica sólida, seriedade e argumentação combativa”, Moreira Alves foi nomeado no regime militar e nutria pouca simpatia pela Constituição de 88. “Enquanto ele esteve na Corte, sua liderança manteve a interpretação constitucional, sob a Constituição de 88, quase idêntica à que vigorava no período militar”.

A partir da aposentadoria de Moreira Alves, conta Barroso, ministros como Sepúlveda Pertence, Celso de Mello e, mais à frente, Gilmar Mendes, começaram a desenhar uma Suprema Corte com participação política mais relevante. Esse processo se aprofundou na era Lula. “Embora haja riscos democráticos envolvidos em uma expansão excessiva de qualquer corte de Justiça”, até aqui Barroso considera que o STF “serviu muito bem à democracia brasileira”.

Merval Pereira é Jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, RJ, edição de 11.08.11.

Mistura Perigosa

Por Merval Pereira

Necessidade de conter gastos públicos, por um lado, e a reivindicação generalizada por liberação de verbas e aumentos salariais no serviço público, um paradoxo que desafia o governo e o coloca à mercê de seus próprios aliados.

Diante do quadro preocupante da crise econômica internacional, o governo trabalha para não aprovar medidas como a PEC 300, que estabelece um piso salarial nacional para policiais militares e bombeiros, mas políticos da base aliada apoiam a reivindicação. Da mesma forma, uma aliança informal entre vários partidos da base aliada decidiu boicotar as votações de interesse do governo até que sejam liberadas verbas já aprovadas.

E, culminando esse clima de insubordinação reinante em Brasília, a Polícia Federal, irritada com as restrições que a própria presidente fez à sua atuação na operação que prendeu 36 pessoas no Ministério do Turismo, um feudo que era do PT e foi transferido para o PMDB, ameaça entrar em greve contra o contingenciamento das verbas que, segundo uma nota divulgada por sua associação nacional de delegados, está impedindo a eficácia de suas ações.

“A Polícia Federal já está sofrendo com a agenda econômica do governo, não pode ser pautada também pela sua agenda política”, disse o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Bolivar Steinmetz. Esse ambiente já classificado de “clima de boicote”, está propiciando à oposição uma situação favorável ao recolhimento de assinaturas para uma CPI da Corrupção, que analisaria todos os escândalos acontecidos nesse começo de governo.

Houve um momento do governo Lula em que parecia que o governo havia perdido o controle sobre a Polícia Federal, que estaria agindo autonomamente e a serviço de interesses de grupos políticos variados. Custou muito ao então Ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos controlar a Polícia Federal, e especificamente quanto ao uso das algemas, que hoje está sendo novamente criticado por setores do governo, a muito custo Thomaz Bastos soltou uma norma para evitar esse tipo de exposição de pessoas presas que não ofereçam resistência ou perigo de fuga.

O uso de algemas, avaliado como exorbitante por alguns, é uma característica da polícia dos Estados Unidos, e temos por aqui setores da Polícia Federal que consideram pedagógico o seu uso em crimes do colarinho branco. Mas o problema do governo Dilma é que não existe ninguém com a experiência, o conhecimento e a capacidade de influência de Marcio Thomaz Bastos para controlar a Polícia Federal, se ela eventualmente voltar a ficar dividia em grupos e a atuar de acordo com interesses políticos.

O atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, não tem essa experiência toda, e não foi por acaso que ele, depois de receber críticas pela atuação da Polícia Federal por parte da própria presidente Dilma, do vice-presidente Michel Temer e de políticos importantes do PT e do PMDB, saiu em defesa dos métodos adotados, para acalmar o quadro de crise na Polícia Federal. Se o governo perder o controle da Polícia Federal, pode voltar aquela época em que todo mundo grampeava todo mundo, em que todo político ou empresário utilizava a Polícia Federal para seus próprios interesses.

A presidente Dilma não tem razão para se preocupar com os índices de popularidade registrados na mais recente pesquisa do Ibope, pois aparentemente não houve uma queda, mas uma volta a níveis médios que vêm sendo registrados desde que tomou posse. A comparação com março, quando ela atingiu um índice maior de apoio, não é válida tecnicamente, aquele parece que foi um ponto fora da curva. Sua situação, portanto, está estável, não é preocupante desse ponto de vista.

É claro que se ela atingiu um ponto mais alto em março, e agora voltou para média, é sinal de que não conseguiu sustentar uma avaliação positiva mais alta, mas nada grave em termos de aceitação popular. Ela tem que ficar preocupada é com o governo, que está muito desestruturado. Principalmente, tem que se preocupar com os aliados no Congresso, que estão muito inquietos diante dos últimos acontecimentos, inconformados com a ação saneadora do governo e, sobretudo, com as últimas ações da Polícia Federal num ministério controlado pelo PMDB que anteriormente era do PT.

O noticiário sobre corrupção no governo, especialmente se é sustentado por fatos concretos, é claro que influencia a percepção da opinião pública sobre o governo, assim como essa percepção negativa pode ser contrabalançada com as medidas que o governo venha a tomar. No caso atual, até o momento o saldo tem sido positivo para a presidente Dilma, embora as coisas estejam ficando meio nubladas por atitudes ambíguas quando as denúncias atingiram ao mesmo tempo o PMDB e o PT.

A sensação de que a situação está descontrolada pode afetar o governo. Se todo o dia aparecem acusações novas, denúncias em vários ministérios, o que passa para a opinião pública é que o governo é uma bagunça, está dominado por ladrões. Que não sabe escolher as pessoas que trabalham nele. Mesmo a ação direta contra a corrupção pode ficar neutralizada pela percepção de que o governo perdeu o controle da situação. E o “fogo amigo” atinge vários partidos da base aliada, revelando a verdadeira natureza do que aparenta ser uma coalizão governamental ampla: um saco de gatos onde ninguém se entende.

Merval Pereira é Jornalista. Membro da Academia Brasileira de Letras. Articulista de politica de O GLOBO, RJ. Este artigo foi publicado originalmente em 12.08.11.


A Violencia Contra os Juizes

Por Roberto Veloso

Quando se comemorava o dia dos cursos jurídicos e dos advogados, no último dia 11 de agosto, às 23 horas, Patrícia Lourival Acioli, 47 anos, juíza de Direito da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo foi barbaramente assassinada de forma vil e covarde a tiros na localidade de Timbau, em Piratininga, Niterói-RJ.

Patrícia era juíza de uma vara criminal e, nessa condição, condenou traficantes de drogas e policiais participantes de grupo de extermínio e milícias.

Segundo dados publicados, recentemente a magistrada condenou 60 policiais ligados às milícias. Por essas razões recebia constantemente ameaças de morte e há suposição de que o crime tenha sido motivado por vingança.


O assassinato da magistrada ofende toda a magistratura nacional, que se encontra vilipendiada e atacada naquilo que lhe é mais sublime, o exercício da atividade jurisdicional.

A juíza Patrícia Lourival Acioli foi morta porque cumpria a lei em toda a sua plenitude, não se intimidando diante das ameaças de morte que lhe haviam sido enviadas por aqueles a quem julgava e merecidamente condenava.

O Estado brasileiro não pode admitir que fatos dessa natureza aconteçam e se repitam sem a tomada de posição imediata e contundente contra os autores e mandantes de tão bárbaro crime.

Esse fato não é isolado e nem pode ser tratado como episódico, pois dezenas de juízes espalhados por nosso país convivem diariamente com ameaças de morte e de agressão física.

Efetivamente, o Estado falhou, mas ainda pode se recuperar com a punição dos autores e dos mandantes. Segundo o STF, os crimes contra as pessoas de magistrados constituem atentados à independência do Judiciário, ao Estado de direito e à democracia brasileira.

Contudo, essa afirmação não pode ser apenas retórica, pois a força moral não foi suficiente para impedir o assassinato da juíza Patrícia Acioli.

Nesse caso é imprescindível a participação da Polícia Federal como quer o ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, porque os principais suspeitos estão nas fileiras da Polícia Militar fluminense e seus tentáculos e ligações podem atrapalhar a apuração do crime.

Tanto isso é evidente que começam a circular versões para o motivo do assassinato, lançando uma nuvem de fumaça nas investigações.

A Corregedora Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, afirmou que 87 juízes brasileiros vivem sob ameaça de morte.

Na verdade falta vontade política para a aprovação de um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional para a segurança dos juízes.

As associações de magistrados cumprem seu papel de visitar os gabinetes das lideranças, mas, não recebem o apoio devido da cúpula dos poderes.

No último dia 27 de abril, os juízes federais fizeram um dia de paralisação e entre as reivindicações estava o estabelecimento de uma política de segurança aos magistrados. É fato que os atentados e ameaças a juízes e familiares têm aumentado.

No Distrito Federal, ainda este ano, um veículo oficial da Justiça Federal foi tomado de assalto. A sorte é que o magistrado não estava no momento da violência.

Não é admissível que o Brasil se transforme em uma Colômbia dos anos 80 e em uma Itália dos anos 90.

Na Colômbia, a sua Corte Suprema perdeu, seguidamente, 10 magistrados mortos pelo tráfico de drogas. Fato semelhante ocorreu na Itália nos anos 90, quando foram assassinados os magistrados do Ministério Público Giovane Falcone e Paolo Boserlino, em 1992.


Entre nós
, a morte da juíza de São Gonçalo não é a única, pois em 2003, na cidade de Presidente Venceslau, em São Paulo, Antonio José Machado Dias, então titular da Vara de Execuções Criminais, foi assassinado a mando do Primeiro Comando da Capital.

É hora de refletirmos sobre o papel do Judiciário na democracia e na luta contra o crime. Deixar os juízes à mercê da ação do crime organizado é que é um atentado ao regime democrático de Direito.

Para se ter uma ideia do descaso, basta se ver que os policiais e os oficiais de justiça possuem adicional de periculosidade pelo exercício de suas profissões e os juízes nada recebem.

É importante, também, aproveitar o pacto republicano para instituir medidas de proteção aos julgadores, como a adoção dos juízes sem rosto e o julgamento colegiado nos processos que envolvam o crime organizado, além da criação de uma polícia judiciária.

Roberto Veloso é Juiz Federal e Presidente da AJUFE/Associação dos Juizes Federais, 1ªRegião.


Alinhamentos

Por Merval Pereira

A próxima indicação da presidente Dilma para o Supremo Tribunal Federal, na vaga da ministra Ellen Gracie, que se aposenta, fará com que os governos petistas ampliem a maioria de membros do STF nomeados nos dois governos Lula e no de sua sucessora. Dos 11 ministros atuais, apenas três remanescentes foram indicados por outros presidentes: Marco Aurélio Mello, pelo ex-presidente Fernando Collor; Celso de Mello, pelo ex-presidente José Sarney; e Gilmar Mendes, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Em nove anos de governo petista, portanto, uma coincidência de fatores permitiu que Lula indicasse nada menos que oito ministros (Carlos Alberto Direito morreu no exercício da função, e Eros Grau se aposentou), e a presidente Dilma, dois.

Há uma forte tendência entre os estudiosos em afirmar que há um alto grau de personalismo nos julgamentos do Supremo, de maneira que o tribunal funcionaria mais como um somatório de posições individuais do que como um colegiado, o que retiraria dessa série de nomeações de governos ideologicamente alinhados a formação de um tribunal à sua imagem e semelhança.

As próprias nomeações feitas por Lula indicam que ele, como define o jurista Diego Werneck, pautou-se, em algumas ocasiões, por razões externas que não o interesse específico de seu partido. Na tese de Werneck, o uso da indicação para barganhar, consolidar ou retribuir apoio político de membros da coalizão se torna mais atraente e frequente quando a coalizão está “precisando de manutenção”.

Ele considera que a composição relativamente plural do conjunto de ministros indicados por governantes do PT reforça essa hipótese. “Se o único objetivo fosse fazer prevalecer no STF uma determinada concepção da Constituição, por exemplo, não teríamos um STF com perfis tão variados como é o caso hoje”, argumenta Werneck. Ele cita o caso do ministro Carlos Alberto Direito, que “dificilmente poderia ser considerado como alguém que compartilha da visão político- constitucional do PT. Sua indicação se explica muito mais por fins políticos externos do que pelo fim político interno de alinhar o tribunal ao projeto do presidente”.

Mas Fabiana Luci de Oliveira, também professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, em seu trabalho de pós-doutorado “Processo decisório no Supremo Tribunal Federal — Coalizões e ‘panelinhas’”, afirma que as decisões do Supremo resultam “não do somatório de votos individuais, mas da composição de coalizões temporárias e grupos exclusivos constantes (“panelinhas”), constituídos de acordo com a nomeação presidencial”.

No seu trabalho, ela focou um período de oito anos, compreendido entre o início do segundo governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e o fim do primeiro governo Lula (2003-2006), analisando um tipo específico de processo — a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). A conclusão é que, em geral, o STF atua a partir da formação de blocos e redes de votação. Os agrupamentos se dão conforme a nomeação presidencial, ou seja, “ministros nomeados por um mesmo presidente são mais propensos a votar em conjunto do que a dividir seus votos”.

Nesse intervalo de oito anos, o Supremo teve sete composições diferentes. Foi um dos períodos de maior renovação do tribunal. Apesar da elevada proporção de decisões unânimes e monocráticas encontradas no STF no período analisado, “há a formação de coalizões temporárias e panelinhas no tribunal”, garante Fabiana. Ela admite que o grau de coesão do Supremo “é maior de acordo com a proporção de juízes de carreira presentes na composição, mas diminui quando se trata de decidir questões de relevo nacional (políticas públicas oriundas do governo federal)”.

Foram duas as panelinhas identificadas no período: a primeira composta por alguns dos ministros nomeados durante o regime militar, associados aos ministros nomeados pelo presidente Fernando Henrique: Moreira Alves, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Maurício Corrêa, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes (os quatro últimos nomeados por FH). E a segunda formada por três dos ministros nomeados por Lula: Eros Grau, Lewandowski e Cármen Lúcia.

Apesar de os ministros nomeados por Sarney não configurarem uma panelinha, assim como nem todos os ministros nomeados por Lula participarem de uma mesma panelinha, o trabalho de Fabiana mostra “fortes indícios de que os ministros nomeados por um mesmo presidente tendem a se comportar como um grupo coeso”.

A exceção é o ministro Marco Aurélio de Mello, que apresentou comportamento de voto dissonante do tribunal como um todo: ficou vencido em 73% das vezes em que participou de decisões não unânimes, sendo que se comportou de forma isolada em 55% das vezes em que se opôs à maioria do STF.

O jurista Diego Werneck não acredita que haja um Supremo “petista” no sentido de um tribunal alinhado com o partido. “Temos um Supremo indicado em grande parte pelo mesmo presidente e mais ou menos pela mesma coalizão, o que é significativo”, define.

Embora signifique que “todas as indicações foram feitas por um conjunto semelhante de atores institucionais, inseridos — em linhas bem gerais — em um mesmo projeto político”, cada indicação reflete, segundo Werneck, uma combinação de objetivos políticos que variam de acordo com o contexto, que muitas vezes obriga o presidente a fazer concessões para certos grupos políticos e indicar alguém que não está totalmente alinhado com suas preferências.

“Ou seja, querer alinhar não é poder alinhar.” Mais ainda, salienta Werneck: “O funcionamento do STF é complexo, a agenda do tribunal está sempre se transformando, e os ministros, uma vez indicados, têm garantias de independência”. Ou seja, tentar alinhar não é conseguir alinhar.

Merval Pereira é Jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 10.08.11.


Um Supremo Petista?

Por Merval Pereira

Com a anunciada aposentadoria da ministra Ellen Gracie, teremos uma nova indicação para o Supremo Tribunal Federal, a décima de governos petistas. Ainda em 2012 mais dois ministros se aposentam, e estará sendo julgado o processo do mensalão. Pelo menos a (o) substituta (o) da ministra Ellen Gracie atuará no julgamento e pode ser fundamental na decisão.

A sucessão da ministra já era discutida em Brasília antes mesmo que sua aposentadoria saísse oficialmente no Diário Oficial, o que ocorreu ontem, e praticamente apenas mulheres são cogitadas, seguindo a lógica de que a presidente Dilma Rousseff tem pretendido reforçar a representação feminina em suas escolhas.

Mais: entre as indicações possíveis, pelo menos quatro têm ligações com o PT. Maria Elizabeth Guimarães Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar (STM) indicada por Lula, trabalhou na subchefia de assuntos jurídicos da Casa Civil entre 2003 e 2007, os dois primeiros anos sob as ordens de José Dirceu, o principal réu do mensalão. Coube a ela, durante a campanha eleitoral, interromper o julgamento da divulgação do processo sobre a prisão de Dilma durante a ditadura militar, embora tivesse votado a favor da liberação do documento.

A procuradora do estado de São Paulo Flávia Piovesan, especialista em direitos humanos, é a preferida do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, de quem foi colega na procuradoria. A desembargadora federal Neuza Maria Alves da Silva, do Tribunal Regional Federal da 1 ª Região, tem o apoio do governador baiano, Jaques Wagner. E Maria Tereza Rocha Moura, ministra do Superior Tribunal de Justiça, foi indicada para o cargo pelo então ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos.

A juíza do Tribunal Penal Internacional em Haia Sylvia Steiner também está na lista e atenderia ao desejo de Ellen Gracie de assumir um cargo em um tribunal internacional. O jurista da Fundação Getulio Vargas do Rio Diego Werneck, um estudioso tanto do Supremo brasileiro quanto da Suprema Corte dos Estados Unidos, não acredita que temos um Supremo petista, “pelo menos não no sentido de um tribunal alinhado com o partido”, mas admite que o poder presidencial de indicar ministros “é certamente empregado para fins políticos no Brasil de hoje”.

Contudo, como ele indica em um trabalho em conjunto com Leandro Molhano Ribeiro, os fins políticos em jogo são muitos, e aumentar a chance de decisões judiciais alinhadas com o projeto político-constitucional do presidente é apenas um dentre esses múltiplos objetivos possíveis. Nesse trabalho, os autores dizem que, no mínimo, há três fins políticos identificáveis nas nomeações para o Supremo, um fim político interno ao Supremo e dois fins políticos externos.

O interno seria alinhar decisões do STF e preferências do presidente. Os externos seriam barganha para angariar/manter apoio de membros da coalizão e indicar para certos grupos ou para a opinião pública em geral que está atento a uma determinada questão racial, de gênero etc. “Não há nada de necessariamente ruim na indicação de pessoas alinhadas, em linhas gerais, à visão político-constitucional do presidente”, avalia Werneck.

Como argumentam no texto, a opção constituinte por um mecanismo político de indicação “reflete um compromisso com uma relativa aproximação entre os ciclos da política e os ciclos da jurisprudência constitucional”. Se um determinado partido fica muito tempo no poder, o esperado é que isso tenha reflexos na jurisprudência do STF. “Da forma como está desenhado, isso é um resultado esperado do sistema”, argumenta o jurista da FGV, embora a velocidade e a intensidade dessa influência da esfera política sobre a esfera judicial dependam de muitas variáveis, ligadas, sobretudo, ao contexto político em que as indicações são feitas.

“Mesmo um presidente que queira somente indicar ministros que compartilham de sua visão sobre determinadas questões constitucionais, nem sempre pode fazer isso”, adverte Diego Werneck. No entanto, uma pesquisa de pós-doutorado de outra professora da FGV, Fabiana Luci de Oliveira, chega a conclusões interessantes sobre o comportamento dos ministros de 1988 até 2006. O próprio título do estudo — “Processo decisório no Supremo Tribunal Federal — Coalizões e ‘panelinhas’” — já indica que a professora tende a defender tese oposta à de Werneck.

Seu trabalho mostra que, no período analisado, os ministros indicados pelo regime militar, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e pelo governo Lula apresentaram um alto índice de coesão nas decisões de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), com índices respectivamente de 93%, 96% e 84%. A coesão dos ministros indicados no primeiro governo Lula é menor do que as dos ministros do período FH e dos militares, mas, ainda assim, é bastante significativa e estável, além de ser transversal a diferentes temas e áreas do Direito — daí a opção da professora Fabiana Luci de Oliveira pelo termo "panelinhas".

Seu trabalho é citado no estudo de Diego Werneck e Leandro, e Werneck admite que, embora tenha reservas à ideia de um Supremo “petista”, “parece haver de fato uma tendência, entre 1988 e 2006, à formação de três ‘blocos’ de votação que podem ser em grande parte explicados pela variável da indicação presidencial”. Evidentemente, argumenta o jurista da FGV, “o estudo não é o fim da história, trata apenas de Adins”.

Além disso, alega Diego Werneck, o fato de ministros indicados pelo mesmo presidente tenderem a votar juntos não significa que esses votos serão sempre favoráveis a esse presidente. “Mesmo assim, é um passo importante: o estudo mostra que ministros indicados pelos três governos mencionados acima apresentaram uma grande tendência a formar blocos de votação estáveis no período indicado”. (Continua amanhã).

Merval Pereira é Jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras. Articulista de politica de O GLOBO. Este artigo foi publicado na edição de 09.08.11.

Elas, Eles e Nós

Por Nelson Mota

Elas prestam serviços relevantes na construção do País, têm prestigio internacional, criam empregos e geram divisas. Mas por que nas grandes falcatruas, propinas e licitações viciadas em ministérios e estatais elas estão sempre envolvidas? Muitas vezes a Polícia Federal e o Ministério Público conseguem provas robustas de corrupção contra políticos, funcionários e empresários, às vezes alguns são demitidos, outros até são presos e obrigados a devolver os roubos. Mas nunca se viu uma grande empreiteira condenada por suborno. No Brasil, além dos recursos não contabilizados, criou-se a figura do corrupto sem corruptor, como uma moeda podre de uma só face.

Os advogados das empreiteiras, entre os mais caros e competentes da praça, usam seus conhecimentos legais e pessoais para anular processos, arquivar denúncias e desqualificar provas e testemunhas contra seus clientes. Na outra ponta, os corruptos pegam carona. Já vimos até deputados algemados, mas nunca um diretor de empreiteira na cadeia ou pagando uma multa milionária por ceder a extorsões ou oferecer propinas.

Não por acaso, são elas as maiores patrocinadoras das campanhas eleitorais, doaram 2,5 bilhões, 77% do total, democraticamente ( rs ), para todos os grandes partidos e até para alguns pequenos, pavimentando suas futuras relações de trabalho. Como e onde vão recuperar esse investimento? Diz a lenda que empresas que não pagam propinas e agem dentro da lei perdem mercado para concorrentes desonestas, que molham as mãos que assinam os cheques. Um problema insolúvel, elas se lamentam, mas sempre foi assim, o que se há de fazer? É a tese do jabá defensivo, tão cínica e deslavada como chamar o roubo para o partido de caixa 2.

Mas empresa vota? Se não vota não deveria participar de eleições. Para mudar radicalmente esse quadro não se precisa de financiamento público, basta não permitir contribuições de pessoas jurídicas, afinal são os cidadãos, como indivíduos, que escolhem seus candidatos e trabalham por eles. Com doações individuais e limitadas as eleições seriam bem mais limpas e democráticas, mas quem quer isso?

Nelson Mota é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, e em O Estado de S.Paulo, SP, em 05.08.11.

A Censura se Eterniza

Uma questão de princípio e uma anomalia institucional aparentemente insanável mantêm este jornal (O Estado de S. Paulo) sob censura há dois anos. Em 31 de julho de 2009, o Estado foi proibido de publicar notícias baseadas nas investigações da Polícia Federal sobre denúncias de ilícitos praticados pelo empresário maranhense Fernando Sarney, o filho do ex-presidente da República José Sarney, que toca os negócios do clã. As apurações da operação chamada Boi Barrica levaram ao indiciamento do empresário por lavagem de dinheiro, tráfico de influência, formação de quadrilha e falsidade ideológica. A decisão de amordaçar o jornal foi tomada, a pedido do investigado, pelo desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF). Ex-consultor do Senado, ele é amigo do presidente da Casa, José Sarney.

Em 18 de dezembro de 2009, o primogênito do senador desistiu da ação. Se o Estado concordasse, ela seria arquivada. Mas isso não impediria o empresário de voltar à carga, com outro pedido idêntico de censura, se o jornal publicasse novas reportagens sobre o inquérito, o que fatalmente faria, quanto mais não fosse, com o material de que já dispunha. Havia ainda outro fator, mais importante, para a recusa: a questão de princípio mencionada na abertura deste editorial. Tratava-se - e continua a se tratar - do imperativo de obter da Justiça um pronunciamento definitivo sobre a aberração da censura prévia, que viola a Constituição, ao atentar contra a liberdade de imprensa e o direito à informação no País.

No seu artigo 220 a Carta sustenta que "a manifestação do pensamento (consagrada no artigo 5.º), a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição" e proíbe "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". A evidente intenção dos constituintes, passados apenas três anos do fim da ditadura militar de 1964, era erguer as mais sólidas barreiras possíveis contra iniciativas liberticidas da parte dos poderosos de turno. Aos redatores da Carta decerto não ocorreu que servidores públicos togados da ordem democrática brasileira poderiam, eles próprios, travar o livre curso da informação de interesse público.

Era clamoroso o interesse público, no caso de uma gravação da Polícia Federal, autorizada pela Justiça e reproduzida por este jornal, em que o senador e Fernando Sarney acertam a nomeação do namorado da filha dele para um cargo no Senado. À época, por sinal, o Estado revelou a nomeação de apaniguados na Casa mediante mais de 300 atos secretos. O escândalo derrubou o seu diretor-geral Agaciel Maia, apadrinhado de Sarney e, como ele, pessoa das relações do desembargador Dácio Vieira - cuja imparcialidade não viria a ser reconhecida por seus próprios pares. O juiz entendeu, como pleiteava Fernando, que a divulgação de elementos de um processo protegido pelo segredo de justiça violava a privacidade e manchava a reputação do acusado, protegidas pela Constituição. Mas não é assim.

Em primeiro lugar, o direito à informação prevalece sobre o direito à privacidade. Este preserva a vida particular dos cidadãos, mas não os atos eventualmente praticados em prejuízo dos cofres públicos. Esses, a sociedade tem o inviolável direito de conhecer. A imprensa, de mais a mais, não pode ser responsabilizada por quebra de sigilos de justiça. Se os "donos" dos segredos os repassam a jornalistas, eles podem - ou melhor, devem - compartilhá-los com o público. Se a informação se revelar falsa, o órgão de comunicação responderá por isso. O que é inadmissível é o amordaçamento. "Não há no Brasil", diz o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, "norma ou lei que chancele poder de censura à magistratura".

E há a lentidão da Justiça - a mencionada anomalia institucional. Há 14 meses, para se ter ideia, se espera que um ministro do Superior Tribunal de Justiça decida qual o foro adequado para o processo contra o Estado: a Justiça do Maranhão ou instância equivalente no Distrito Federal. E a Constituição é aviltada a cada edição deste jornal sem notícias sobre o que levou o filho do presidente do Senado a se tornar um caso de polícia.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 31.07.11

Um Juiz no Olho do Furacão

Por Roberto Veloso

A polícia federal tem sido pródiga em nominar suas operações. Quando o Tribunal Regional Federal 3º Região foi invadido, a operação foi batizada de Themis. Sugestivo nome, pois se trata da deusa da Justiça. Se o templo da Justiça estava sendo violado, nada melhor do que chamar a diligência pelo nome mais representativo da mitologia grega.

Conta-se que foi uma operação de guerra, enquanto juízes e servidores se debruçavam sobre volumes de folhas de papel, a polícia cercava a sede do tribunal com homens armados de metralhadoras e veículos com sirenes ligadas.

As pessoas ficaram apavoradas imaginando que se tratava de um combate a assalto de grande proporção, que se desenvolvia em plena avenida paulista, praticado por bandidos armados, quem sabe, de fuzis AK 47, o mais cobiçado entre os traficantes de drogas. Que nada, os alvos eram papéis e discos de computadores e as armas canetas.

No Rio de Janeiro, quando se buscava combater as famosas máquinas caça-níqueis, a polícia federal nominou a operação: Hurricane. Pelo nome se presumia que vinha chumbo grosso, dando a entender que o furacão não deixaria pedra sobre pedra, destruiria tudo.

No meio daquele furação havia um juiz, o desembargador federal Carreira Alvim. O professor, como é tratado por aqueles que foram seus alunos, notabilizou-se por suas obras jurídicas, principalmente as de processo civil. Escreveu, entre outras, Teoria Geral do Processo e Código de Processo Civil reformado.

Na atualidade, o seu livro mais famoso não trata de Direito, mas do que lhe fizeram na referida operação. O título do livro: Operação Hurricane - Um juiz no olho do furacão, publicado pela Geração Editorial, já é um indicativo do que escreveu.

Nele, o autor, faz uma radiografia, a partir da sua visão dos fatos, da sua vida de magistrado e dos motivos de sua prisão. Pela sua leitura, vê-se que o autor questiona a divulgação pelos meios de comunicação de um processo que tramitava em segredo de justiça e a decretação de sua prisão sem antes ser feita uma análise das provas produzidas pela Polícia Federal e apresentadas pelo Ministério Público Federal.

O livro inicia com o relato da sua trajetória, segundo ele repleta de tragédias, pois perdeu o pai quando cursava o quarto ano da Faculdade de Direito e a mãe e uma irmã em 1994, vítimas de um acidente de trânsito. A morte do pai lhe trouxe sérias consequências materiais, pois teve de trabalhar das 7 da manhã à meia noite para se manter e ajudar a família.

Depois narra a sua vida de concursos. Primeiro foi advogado de ofício da Justiça Militar, depois magistrado do Estado de Minas, procurador da república, juiz do trabalho e, por último, juiz federal. No último cargo, foi titular da 19ª Vara Federal do Rio até ser promovido, por merecimento, ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Independente dos motivos que alega terem levado à sua prisão, o que chama a atenção no livro é a forma como esta foi efetivada.

Conta ele que às 5h e 30min da manhã do dia 13 de abril de 2007, teve a casa ocupada pela Polícia Federal, com os agentes armados “até os dentes”, para a efetivação de um mandado de busca e apreensão expedido pelo Supremo Tribunal Federal.

Enquanto a diligência era efetivada, a televisão noticiava que havia sido deflagrada uma operação denominada “Furacão”, desmantelando uma quadrilha ligada à “máfia de caça-níqueis”, e que tinham sido presas vinte e cinco pessoas, dentre elas o autor do livro, Carreira Alvim.

Ao chegar à carceragem da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro o desembargador teve de ser submetido a um exame de corpo de delito, assim descrito por ele mesmo: “confesso que a minha indignação foi ter de tirar a cueca, porque me ficou a impressão de que, no fundo, o que os policiais queriam era ver um desembargador pelado;”.

Depois há a descrição de sua viagem do Rio de Janeiro a Brasília, onde ficou em uma cela de trinta e poucos metros quadrados ocupada por seis custodiados, todos utilizando um sanitário entupido e se expondo nus enquanto tomavam banho. Essas condições fizeram o desembargador se questionar a respeito das condições das carceragens espalhadas pelo interior do país, considerando o caráter “especial” da sua.

Na época da prisão, o então presidente da Ajufe, Walter Nunes, visitou o desembargador na carceragem e fez uma petição ao ministro relator do processo requerendo a revogação da prisão por entendê-la desnecessária, mas não foi atendido.

Como conseqüência da operação o desembargador federal Carreira Alvim foi aposentado compulsoriamente pelo CNJ, juntamente com outros magistrados. Um seu companheiro de cela, também desembargador federal do TRF da 2ª Região, faleceu vítima de pneumonia, antes do julgamento.

Roberto Veloso é presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região e professor adjunto da UFMA.

A Doença da Saúde

Por Ieda Maria Silva Araujo

Na efervescência do escândalo das fraudes em plantões médicos no Conjunto Hospitalar de Sorocaba, divulgado pelo programa Fantástico, da TV Globo, no dia 19 de junho de 2011, o então Coordenador de Serviços de Saúde do Estado de São Paulo, o senhor Ricardo Tardelli, em gravação autorizada pela justiça, fez uma declaração, no mínimo,preocupante:

“Não é uma exclusividade do Conjunto Hospitalar de Sorocaba. Isso tem em todo lugar. Se fizer um pente fino vai encontrar problema”.

As palavras parecem querer justificar a irregularidade da conduta dos profissionais da saúde que atuam em São Paulo, podendo ser compreendida como “assim procedem por que é assim que procedem todos os profissionais da saúde, quando prestam seus serviços em hospitais públicos em qualquer canto de nosso Brasil” como se a prática reiterada de atos irregulares tivesse o condão de torná-los aceitáveis diante dos usuários dos serviços de saúde.

Se essa situação é realidade, surgem aí inúmeras relevantes questões que precisam ser discutidas, prioritariamente, como emergênciasmédicas que são e, obrigatoriamente, respostas deverão ser apresentadas a sociedade.

Essa reflexão suscita, de plano, as seguintes indagações: Por que razão somos tão tolerantes com os atrasos e as faltas dos profissionais da saúde, mais especificamente dos profissionais médicos, nos ambulatórios e nos plantões hospitalares? Quais as consequências de uma prestação de serviços tão defeituosa? Onde está a solução para um problema tão grave?

A explicação para o “estado de tolerância” dos usuários dos serviços de saúde tem raízes de sustentação históricas, sociais e culturais. A medicina, prática mágico-sacerdotal desenvolvida nos templos, por muitos séculos, elevou o saber médico a condição de divino. Aliado a isso, até a metade do século passado o número absoluto de médicos era insuficiente para atender às necessidades da população, fato que contribuiu para uma multiplicidade de contratos de trabalho em nome de um só profissional e na flexibilização dos horários de atendimento fato que acabou por “legalizar” atrasos, faltas, saídas antecipadas e, até mesmo, o abandono de plantões. Este foi o berço natural da convicção de que “médico não assina ponto”.

O tempo passou, o exercício profissional da medicina foi perdendo a aura mágica e se consolidou como uma prestação de serviços essencial e especializada. O número de profissionais médicos se multiplicou ehoje, segundo a pesquisa “Escassez de Médicos”, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), não faltam médicos no Brasil, o que existe é uma má distribuição geográfica desses profissionais, fato que compromete o atendimento especialmente nas zonas rurais.

Se a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda um médico para atendimento a uma população de mil habitantes e, segundo a pesquisa supramencionada, o Brasil tem uma média de 595 habitantes para cada profissional e ocupa a 84ª posição num ranking de 174 nações, a situação nacional não é tão grave sob esse aspecto. Se o Maranhão foi o estado que apresentou o pior quadro, com 786 habitantes por médico, compreende-se que, ainda assim, estão sendo atendidos os critério quantitativos para uma prestação de serviços de qualidade. Em tese, não há mais justificativas para contratos de serviços médicos com obrigações unilaterais, que condene os usuários do Sistema Único de Saúde a esperas intermináveis nas desconfortáveis antessalas dos ambulatórios médicos, a cronificação de seus males ou a penas de morte nas longas filas dos hospitais públicos.

Não existem poções miraculosas para o tratamento definitivo de um problema dessa natureza e com essa dimensão. O tratamento definitivo para a doença que assola a saúde pública implica numa cadeia de ações a serem promovidas pelo Poder Público com a finalidade de efetivar um sistema de saúde, verdadeiramente universal. Implica em melhorias na estrutura física dos postos de atenção básica e dos hospitais; na disponibilização de materiais e equipamentos adequados e necessários para a execução dos serviços. Implica ainda em estabelecimento de remunerações dignas não somente para o médico, mas para todos os profissionais da saúde e em políticas de qualificação, distribuição e incentivos de forma que os profissionais possam se fixar no interior do país.

Mas não é possível falar em tratamento para a doença que consome a saúde sem incluir uma ação sobre os profissionais que nela atuam. Não basta ao médico o conhecimento sobre doença, medicamentos, métodos e instrumentos de intervenção. Para tratar gente, adequadamente, visando o seu bem-estar integral, é necessário considerar não só o valor e a dignidade de seu assistido, enquanto pessoa, mas também as suas exigências e os seus direitos. Isso só é possível com compromisso social e esse processo envolve o estar presente no ambiente de trabalho, em respeitar os horários da jornada de trabalho e na disponibilização de tempo. Tempo para ouvir e compreender a doença, tecnicamente; tempo para perceber as reações emocionais que a doença pode despertar no paciente e as suas consequências sobre a sua vida pessoal e na coletividade.

Há remédio para este mal? Sim. O tratamento é simples, basta deixar fluir na consciência profissional de cada um, doses substanciais de ética profissional, substância endógena (produzida pelo próprio organismo) cuja síntese está relacionada com a reflexão permanente sobre a prática dos cuidados de saúde a partir de valores morais que devem guiar qualquer agir do Homem.

*Médica e advogada

Cerco aos Precatórios

Milhares de brasileiros que há anos esperam receber o que o poder público lhes deve, mas não paga - descumprindo sentença judicial da qual não cabe mais recurso -, começam a vislumbrar uma nova possibilidade de, afinal, dispor do dinheiro a que legitimamente têm direito. Criado há pouco mais de um ano por resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), já está em operação o Cadastro de Entidades Devedoras Inadimplentes (Cedin), no qual ficarão registrados os governos estaduais e as prefeituras que deixarem de pagar os precatórios parcelados de acordo com a Emenda Constitucional n.º 62.

O Cedin funciona como uma espécie de Serviço de Proteção ao Crédito destinado a fiscalizar o comportamento de entidades públicas. A inscrição nesse cadastro implica a suspensão do direito do governo ou da prefeitura de contratar empréstimos e de receber transferências voluntárias de recursos da União. Além disso, o registro resulta na retenção, em valor igual ao pagamento que deixou de ser feito, das parcelas do Fundo de Participação do Estado (FPE) ou dos Municípios (FPM) a que o devedor inadimplente teria direito.

Até agora, têm sido lentos, e muitas vezes insuficientes, os passos legais e administrativos para assegurar aos credores do governo o recebimento daquilo a que têm direito. Esses credores são detentores de créditos alimentícios - diferenças salariais, aposentadorias e pensões atrasadas - ou obtiveram na Justiça o direito de receber indenizações maiores por desapropriações de imóveis. Mesmo depois de publicada a sentença judicial da qual não podem mais recorrer, os três níveis de governo protelam o quanto podem o pagamento devido, prejudicando famílias e empresas. Há atrasos de pagamentos de mais de 25 anos. O CNJ estima que os precatórios dos Estados e municípios totalizam R$ 84 bilhões.

A Emenda Constitucional n.º 62, de 2009, estabeleceu regras mais objetivas - embora excessivamente favoráveis ao poder público, razão pela qual foi chamada de "emenda do calote" - para esse pagamento, entre as quais o estabelecimento de valor mínimo a ser reservado em cada exercício para essa finalidade e a transferência para o Poder Judiciário da responsabilidade de controlar a quitação dos precatórios.

Mas, sob a alegação de que a emenda não estava regulamentada, diversos Estados e prefeituras a vinham descumprindo. A resolução baixada em junho do ano passado pelo CNJ regulamentou a emenda e criou o Cedin, cujo funcionamento começa a dar um sentido prático às medidas legais já aprovadas.

"Basta que o presidente de um Tribunal de Justiça informe ao CNJ que um município ou Estado está inadimplente com o parcelamento dos precatórios para determinarmos a retenção de quantia equivalente do FPE ou do FPM", disse ao jornal Valor o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Ives Gandra Martins Filho, que coordenou os estudos para a elaboração da resolução do CNJ.

Cabe aos tribunais fornecer as informações essenciais - como valor, data da sentença e o montante não pago em cada exercício - que constituirão o Sistema de Gestão de Precatórios, por meio do qual o Judiciário acompanhará com precisão a quitação dos valores devidos pelo poder público. O Cedin faz parte desse sistema. Isso significa que, em algum momento, o governo ou prefeitura inadimplente será inscrito no sistema.

É claro que os inadimplentes continuarão fazendo o que for possível para retardar ao máximo seu registro no cadastro da Justiça, que lhes resultará em sanções financeiras. Muitos nem declaram os precatórios no valor de sua dívida consolidada líquida, importante indicador utilizado pela Secretaria do Tesouro para analisar as finanças de Estados e municípios e para a fixação do limite de endividamento estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Se os precatórios fossem incluídos, a dívida dos Estados e municípios seria 20% maior e alcançaria hoje R$ 493,2 bilhões, como mostrou o jornal Valor. É mais uma artimanha de que os governantes se valem para adiar o pagamento de precatórios.

Editorial de O Estado de São Paulo, edição de 30.07.11

Turismo de Mosca é No Lixo

Por Nelson Motta

Se a Espanha encarasse o turismo com a mesma seriedade que o Brasil, não teria faturado 60 bilhões de dólares com visitantes em 2010.

O orçamento mirrado e a irrelevância de uma pasta periférica, usada como moeda de troco político, e o desempenho pífio dos seus ministros e gestores, ajudam a explicar por que o Brasil só faturou 6 bilhões.

A lambança no Ministério do Turismo, a patética figura do ministro octogenário que paga contas de motel com dinheiro público, a infinidade de ONGs de fachada, de “turismólogos” e “cursos de capacitação” fantasmas são o resultado da importância que o governo dá ao turismo — uma indústria limpa e sustentável, que não tira nada do país, só traz divisas, gera empregos e divulga nossa cultura.

Com orçamento indigente, o ministério vive de emendas de deputados e senadores. No ano passado, 460 parlamentares destinaram 2,7 bilhões para o turismo, que fizeram a festa dos promotores de festas com dinheiro público. Com o clamor na imprensa e os cofres arrombados, o governo proibiu a mamata. A nova festa é o “curso de capacitação”: só mudam as moscas, o lixo continua o mesmo.

Ladroagens em ministérios são normais no Brasil, frutos podres do aparelhamento político e dos consórcios cleptopartidários. Anormal é o desperdício de um país com o nosso potencial turístico ter um ministério como o que estamos vendo nas páginas policiais.

Em Brasília se acredita que o turismo não exige qualificações técnicas, como engenharia ou urbanismo, basta ser da turma. Lembra o não saudoso Milton Zuanazzi, que foi presidir a Anac, com resultados desastrosos, porque tinha uma agência de viagens em Porto Alegre e era petista.

A Espanha tem uma estrutura turística eficiente, tem história, diversão e arte, mas é no verão que mais fatura, com as suas praias e ilhas ensolaradas. Neste quesito ganhamos de goleada. A oferta de lazer e de atrações artísticas no Rio de Janeiro e em São Paulo também não fica devendo nada a Madri e Barcelona. Somos 16 vezes maiores, mas fazemos só 10% do que eles ganham com turismo. A culpa deve ser da mídia golpista que difama o país lá fora.

Nelson Motta é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O GLOBO, edição de 19.08.11.

A Ética do Vale Tudo

Por José Serra

Os escândalos no âmbito do Ministério dos Transportes, em licitações da Petrobras, na área elétrica (Furnas), na prefeitura de Campinas e até nas obras de recuperação de regiões devastadas pelos temporais no Rio têm despertado indignação na imprensa e na opinião pública. O andamento do processo do "mensalão", no STF, sem dúvida, reforçará a atenção a esses malfeitos recentes.

Não pretendo aqui voltar aos eventos em si, bem relatados por revistas, jornais e noticiários de rádio, TV e internet. Restrinjo-me a comentários sobre mitos subjacentes nas análises dos fatos.

O primeiro mito é o de que, no tocante às questões federais, trata-se "de herança do governo Lula, que a administração Dilma começa a combater". É uma meia-verdade: a herança maldita é do governo Lula-Dilma para o governo Dilma; de um governo do PT e seus aliados para outro governo do PT e seus aliados. "Começa a combater"? Os escândalos na esfera federal, como no caso dos Transportes, não foram apontados pelo próprio governo ou pela oposição, mas pela imprensa. E seus eventuais desdobramentos parecem ser alimentados hoje pelas ameaças e contra-ameaças dos próprios protagonistas dos malfeitos.

Outro mito tem a premissa de que "todos os governos sofrem esse drama do fatiamento dos cargos, que leva à corrupção". Nem tanto! Isso depende das atitudes dos que nomeiam, dos que mandam, e do comportamento do próprio partido-eixo do governo, começando pelo presidente. Uma coisa é a composição política, inevitável num presidencialismo de coalizão, como o denominou Sérgio Abranches. Outra é transformar a política num verdadeiro mercado, formal ou paralelo, de negócios.

Por que é assim? Não estamos diante de um tema fácil, de caracterização totalmente objetiva. Há um fator aparentemente intangível, que tem grande importância explicativa. Desde a sua fundação até chegar ao poder, o PT aparecia como o verdadeiro depositário da ética na vida pública, embora seu desempenho à frente de algumas prefeituras sugerisse que o título não era tão merecido.

O comportamento do PT no poder federal - o oposto do discurso de quando estava na oposição - criou um clima na base de "Deus está morto" na vida pública. E, se isso aconteceu, então não haveria mais pecado. Eu acompanhei de perto a metamorfose petista, em toda sua envergadura, e estou plenamente convicto do seu impacto devastador sobre os padrões da política brasileira.

Depois de um ano da primeira eleição de Lula, analisando o que já se delineava como estilo de governo, qualifiquei o esquema partidário petista como uma espécie de bolchevismo sem utopia, em que a ética do indivíduo é substituída pela ética do partido. Em nome desse partido, tudo vale, tudo é permitido, tudo é justificável. Essa é a lógica que embasou a proclamada "mudança" do petismo. Uma mudança, obviamente, para pior no que concerne à vida pública.

Na administração pública, quando o mau exemplo vem de cima, não há moralidade que resista. Isso se expressa de forma perfeita nos gestos de Lula e de seu partido, que passaram a mão na cabeça dos líderes do mensalão e dos aloprados, reabilitando-os, e até de malfeitores de partidos aliados. Por que não ser compreensivos e carinhosos com aqueles que foram "vítimas" de excessos ou inabilidades "perdoáveis"? Criminosos foram tratados como vítimas da imprensa e de supostas conspirações intra ou interpartidárias, como se, na origem dos desmandos, não estivesse o desvio de recursos públicos.

O desenfreado mercado de trocas entre dinheiro público e apoio político, que lesa os contribuintes, não decorre do sistema político brasileiro, como gostam de asseverar alguns analistas, ainda que o aperfeiçoamento dos controles possa contribuir para alguma melhora na situação. É consequência da ação de partidos e de pessoas, capazes de degradar a política em qualquer sistema. Essa degeneração de valores não conduz a uma forma eficiente e estável de governar, até porque o fatiamento de cargos e as chantagens tornam-se sem limites, contemplando mais e mais facções e subfacções, alastrando-se de forma descontrolada por todas as esferas da administração pública, acentuando a falta de planejamento e de rumos do governo.

JOSÉ SERRA foi deputado federal, senador, prefeito e governador do Estado de São Paulo (PSDB). Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, do Rio de Janeiro, edição de 12.07.11

Tecnicismo Impossível

Por Alon Feuerwerker

Quem ajuda a sustentar governos na democracia ou na ditadura quer retribuição em nacos de poder. Para abrigar os amigos e alavancar os negócios dos amigos

A crise no Ministério dos Transportes e a remoção do ministro desencadearam nova rodada de debates a respeito do chamado fisiologismo. É mesmo inevitável a discussão. Há entre nós a ideia consolidada sobre a vantagem de governos ditos técnicos.

Vacinados contra a política.

Eles só existem na imaginação. Combater a corrupção é vital. Imaginar que o sucesso nessa empreitada passa pela recusa à política é devaneio.

Governos técnicos são impossíveis na democracia, mas toda crise provocada pela revelação de malfeitos, ou por simples acusações, acaba retornando ao tema. Uma ficção conveniente.

A única certeza sobre governos técnicos é serem formados por políticos suficientemente espertos para vender o peixe. Até que o primeiro grande escândalo desmonta o teatro.

Aliás, são impossíveis também nas ditaduras. Principalmente. Quem ajuda a sustentar governos na democracia ou na ditadura quer retribuição em nacos de poder. Para abrigar os amigos e alavancar os negócios dos amigos.

Até que um dia a sociedade se cansa do monopólio do mando pelo mesmo grupo e resolve dar um basta. Pode ser com eleição ou, na falta dela, com revolução.

É o que se passa no mundo árabe. Países com muitas riquezas em que panelinhas se aboletam no poder para fazer negócios embalados numa suposta missão histórico-ideológica.

Há muito tempo as formações evoluídas encontraram o mecanismo mais eficaz para combater a tendência de o poder escorregar rumo à ilegalidade sistemática e orgânica.

É a alternância. Revezar os grupos, as panelinhas. Não deixar a rapaziada na zona de conforto.

A melhor maneira de impedir que o Estado passe a ter donos é cultivar as condições para que alguém diferente mantenha a possibilidade real de chegar lá.

Há as ferramentas de controle e punição do próprio Estado. Que devem ser usadas. A polícia, os promotores e os juízes estão aí para isso.

Infelizmente, toda autonomia tem um limite. É inevitável que as partes do Estado se deixem influenciar pela política.

O sistema perfeito de freios e contrapesos não existe. É utopia.

De vez em quando alguém pomposamente recorre à expressão “políticas de Estado, instituições de Estado e não de governo”, mas o discurso costuma vir para dar legitimidade adicional aos intentos de um governo qualquer.

E a regra vale em todos os patamares. Um sistema político é tão mais saudável quanto menos penoso e arriscado é fazer oposição. Nacional, regional ou local.

Vai mal

Por esse ângulo, a coisa no Brasil merece cuidados. Nota-se nos vários níveis o quase desaparecimento da oposição. Não a formal, mas a real. A fórmula corriqueira no Brasil destes dias é o governo sem contraponto.

O fenômeno tem mais visibilidade na União e nos principais estados, mas espalha-se por todo o território nacional. Uma gentileza aqui, uma emenda ali, uma canetinha acolá. E a coisa está resolvida.

A tendência não discrimina partido ou viés político-ideológico.

É raríssimo encontrar quem esteja disposto a ficar fora do jogo para construir seu próprio caminho à margem do poder.

Para começar, o sujeito precisa de uma legenda. Como as atuais têm dono, precisa de uma só para ele. Fica um pouco mais fácil se o objetivo é aderir. Mas se é construir uma alternativa, o risco é chegar à situação atual de Marina Silva.

Tendo que começar do zero. Não é para qualquer um.

E só uma sigla não basta, pois o sistema bloqueia a possibilidade de outsiders adquirirem massa crítica. Um bloqueio eficaz são as regras para a propaganda no rádio e na televisão e para os debates. Outro é a fidelidade partidária.

Alon Feuwerker é Jornalista e editor do BlogdoAlon.Com.br

Não Era Para Estar Assim

Por Alon Feuerweker

Governar sem precisar dar satisfação é — ou deve ser — uma delícia. Assinar leis sem ter que gastar fosfato sobre como aprová-las no Congresso, também. Substituir o debate na sociedade pelas disputas intramuros no governo, ou entre os fiéis, então, nem se fala.

Aparentemente, a presidente Dilma Rousseff acreditou que a base amplíssima a protegeria das disputas políticas no parlamento. Circunstância que apenas acentuou certo traço beligerante da personalidade política do governo de sua excelência.

Com vantagem maciça no Legislativo, tratar-se-ia apenas de governar com os dela, e de esperar pelo cumprimento das ordens palacianas. Nascidas, naturalmente, da convicção de estar fazendo o certo pelo povo e pelo país.

A oposição estaria constrangida pela massacrante aritmética e pela dependência dos governadores tucanos e democratas ao dinheiro federal. Já a base iria contentar-se com o tratamento orçamentário diferenciado. Farinha pouca ou muita, meu pirão primeiro.

E a implementação desse projeto, na prática? Vai mais ou menos. Já tratei aqui de como a oposição social acaba se manifestando no Congresso, nem que precise nascer da própria base governista. O Código Florestal ficará como exemplo didático.

Mas há outra variável. As dificuldades políticas do governo não nascem apenas da inevitabilidade de as divisões penetrarem as Casas, especialmente a do povo. Surgem também da falta de mecanismos de digestão dos problemas.

O processo democrático tem esta vantagem. Quando uma ideia é colocada para moer na sociedade, e no Parlamento, as enzimas ajudam a preparar o material para a necessária absorção. Separam, por exemplo, os nutrientes dos dejetos.

O truncamento do processo legislativo priva o governo da boa digestão das ideias. Por geniais que sejam os circundantes do poder, eles não serão jamais capazes de expressar a complexidade social.

Inclusive pela tendência natural de concordar com o poderoso, já que manda quem pode e obedece quem tem juízo. Os yes men e as yes women proliferam nos palácios como praga.

Apesar de, pasmem!, o poder estar sujeito a erros.

O governo diz que as resistências ao mecanismo diferenciado das licitações na obras da Copa surgiram porque as pessoas não entenderam direito as óbvias vantagens das alterações.

Se o governo tivesse colocado a coisa para debate com tempo suficiente, e num ambiente de normalidade política, o processo de sedimentação se encarregaria dos devidos esclarecimentos e das naturais correções.

Com uma vantagem adicional. Cada negociação no mérito embute a possibilidade de economizar recursos orçamentários necessários para garantir a efetividade do rolo compressor.

Mas não é da natureza desta administração. Já se ensaia o próximo conflito, na reforma tributária. Os governadores desconfiam que serão servidos como prato principal do jantar para o qual são convidados pela presidente.

A federação, tadinha, balança perigosamente à beira do beleléu.

Aqui ameaça reproduzir-se o impasse dos royalties do pré-sal. Onde o governo se acertou com os estados produtores e achou que bastava acionar a ignição da máquina.

O resultado é Dilma estar sob ameaça de derrubada do veto, o último recurso do antecessor diante da derrota.

Dilma está pendurada no favor que lhe faz o presidente do Senado de não incluir o assunto na pauta. Não era para estar assim.

Alon Feuerweker é Jornalista. Edita o Blog do Alon. (www.BlogdoAlon.com.br)

Na Mesma Teia

Por Gaudêncio Torquato

Vamos ao teste: trata-se de um país que, em poucos dias, registrou nos anais de sua História o seguinte pacote de ilícitos: extorsão contra empresas, fraudes em contratos públicos, falsidade ideológica, abuso sexual de crianças e adolescentes, ocultação de bens, formação de quadrilha, superfaturamento de licitações, enriquecimento ilícito e tráfico de drogas. Uma pista: os indiciados não são pessoas comuns, mas figuras que cumprem a missão de bem servir à comunidade; são autoridades públicas que fizeram o juramento de cumprir a lei, defender valores éticos e morais e dar bom exemplo. Adivinharam onde essa turma se abriga? Não é a Somália, país africano considerado o mais corrupto do mundo. O buraco da corrupção é aqui mesmo, nestas plagas que a ONG Transparência Internacional joga na 69.ª posição entre os países menos corruptos do planeta. Nota do pé do parágrafo: o ranking da criminalidade envolve prefeitos, vice-prefeitos, vereadores e outras autoridades de diversos Estados brasileiros.

Nunca se viu fila tão extensa de representantes do poder público receber voz de prisão em um único mês, este em curso. Um rápido olhar na galeria flagra, por exemplo, os prefeitos de Abre Campo (MG), de Novas Russas (CE) e de Senador Pompeu (CE), o ex-prefeito de Mirassol (SP), o vice-prefeito de Embu-Guaçu (SP), o prefeito e alguns vereadores de Dom Aquino (MT), o prefeito de Taubaté (SP) e a esposa, o vice-prefeito de Campinas (SP) e a primeira-dama. O desfile de alcaides por corredores do xilindró desperta animação, pela aparente inferência no campo da moral, eis que a máxima de Anacaris, um dos sete sábios da Grécia, começa a ser reescrita por aqui: "As leis são como as teias de aranha, os pequenos insetos prendem-se nelas e os grandes rasgam-nas sem custo". Os nossos grandes agora enfrentam um alto custo. De fato, a moralização de costumes na condução da coisa pública ganha faróis acesos dos órgãos de fiscalização, entre os quais o Ministério Público (MP), o Tribunal de Contas da União e os Tribunais de Contas dos Estados. A questão suscita a dúvida: se o sistema de controles é apurado, por que ocorrem tantas ilicitudes na administração pública?

É oportuno lembrar que a administração abriga uma teia gigantesca de programas e serviços que começam na base do edifício público, constituída por 5.564 municípios, entra pelo segundo andar, onde estão os 27 entes estaduais, chegando ao piso mais alto, dominado pela maior das estruturas, a federal. E esta se espraia por todos os espaços, imbricando-se com outras malhas, formando interesses múltiplos e incorporando parcerias da esfera privada. Identifica-se, aqui, o que Roger-Gérard Schwartzenberg cognomina de o novo triângulo do poder nas democracias, que junta o poder político, a administração (os gestores públicos) e os círculos de negócios. Essas três hierarquias, agindo de forma circular, cruzando-se, recortando-se, interpenetrando-se, passam a tomar decisões que se afastam das expectativas do eleitor. A cobiça dos parceiros - gestores, empreendedores privados e núcleos políticos das três instâncias federativas - dita nova ordem no campo da administração.

Não é fácil separar o joio do trigo e perceber as tênues linhas que distinguem o bem comum do bem privado. A percepção é nítida diante de exageros como casos de superfaturamento, vícios de licitações, apropriação escancarada da coisa pública e flagrantes de ilícitos, por meio de gravações autorizadas pela Justiça. Pode-se aduzir, portanto, que a lupa dos órgãos de controle ajusta mais o foco nessa planilha. Há a considerar, ademais, que os descaminhos na estrada pública têm sido alargados pela evolução das técnicas. A ladroagem, hoje, é embalada por um celofane tecnológico de alta sofisticação, diferente dos costumes da Primeira República, quando a eleição do Executivo municipal assumiu relevo prático. Naquele tempo, o lema da prefeitada era: "Aos amigos pão, aos inimigos pau". O Brasil da atualidade sobe degraus na escada asséptica, apesar das camadas de sujeira que ainda entopem canais da administração pública. O MP acendeu luzes sobre os esconderijos e parece movido por entusiasmo cívico, haja vista a disposição com que se aferra à missão de proteger o patrimônio público e social.

A tarefa de impedir que a teia de aranha seja rasgada pelos grandes exige mais transparência de todas as estruturas públicas. Programas, ações, prazos e recursos devem ser amplamente divulgados. Seria útil que as comunidades acompanhassem de perto o fluxo das obras municipais, a partir de sua descrição em painéis afixados em praças públicas. Entidades do terceiro setor, muitas representando visões e demandas de grupos, poderão colaborar exigindo maior rigor. O fechamento das comportas da ilicitude seria completado por decisões mais ágeis da Justiça. Eis aí um dos impasses. Por ausência de punição ou por saberem que seus processos se esfumarão na névoa do tempo, indiciados continuarão a romper os limites do império normativo. Urge iluminar a escuridão dos porões do poder.

Aos prefeitos do interiorzão, um conselho: façam mais que calçamento e aterro, fontes de corrupção, como explicava, nos anos de chumbo, Drayton Nejaim, que foi deputado pela Arena e prefeito de Caruaru (PE), ao presidente de seu partido, Francelino Pereira: "Fui prefeito da UDN, me acusaram de roubo e eu saí pobre. Foi um sofrimento me eleger deputado e, depois, a minha mulher. Política se faz com muito dinheiro. Vou ser prefeito e sair rico da prefeitura".

Francelino quis saber o truque. Resposta: "Roubando muito". Ante a confissão escandalosa, o interlocutor reagiu, afirmando que o partido jamais iria admitir o crime. Nejaim não deixou por menos: "Não vai haver escândalo, presidente. Farei uma receita perfeita. Calçamento e aterro. Ninguém conta nem fiscaliza calçamento e aterro".

Reelegeu-se. Para fazer o que prometeu.

Gaudêncio Torquato é Cientista Politico e Professor.

O Sociológo Que Virou Tése

Por José Nêumanne

Fernando Henrique Cardoso era um militante celebrado e respeitado cientista social quando entrou na vida pública como assessor direto do representante máximo da resistência civil à ditadura militar, Ulysses Guimarães, presidente nacional do MDB e, depois, do PMDB. Candidatou-se ao Senado por uma sublegenda, apoiado pelos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, liderados por Luiz Inácio da Silva, o Lula. Aproveitou-se da renúncia de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo, para ocupar a vaga deste no Senado. Consta que só não foi ministro de Fernando Collor de Mello porque o ranzinza Mário Covas, líder da dissidência que se tornou PSDB, não o permitiu. Um observador realista duvidaria de sua eleição até para a Câmara dos Deputados quando Collor caiu. Mas, tendo sido o principal artífice da tentativa de impedimento que deu em renúncia, e passado pela Chancelaria e pelo Ministério da Fazenda no mandato-tampão de Itamar Franco, do qual foi um dos articuladores mais notórios e importantes, venceu a eleição presidencial.

A alavanca de Arquimedes que o levou de uma cadeira incerta no Congresso ao principal gabinete do Palácio do Planalto foi o Plano Real. Na chefia de Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Gustavo Franco, ele desistiu de pôr o ovo de Colombo de pé e, em vez disso, fritou uma suculenta omelete. Hoje tudo isso parece óbvio. Mas, à época, não o era. O confronto entre desenvolvimentistas e heterodoxos (mais tarde satanizados como "neoliberais") atiçava o fogo que tecia a cortina de fumaça que impedia a visão do óbvio: a redenção do assalariado passava forçosamente pelo fim da febre inflacionária, causa da doença econômica que enriquecia os ricos e empobrecia os pobres com a perda do valor de compra da moeda. A familiaridade do professor Aloizio Mercadante Oliva com a teoria econômica não evitou que ele cometesse uma das mais célebres batatadas da política econômica no Brasil: garantiu a seu líder e candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva que a moeda forte era um estelionato eleitoral. E, no Ministério da Fazenda de Itamar, seu colega professor promoveu a maior revolução social da História do Brasil. Com isso, tornou-se o caso raro de sociólogo que virou tese e político que saiu do zero para o infinito num átimo.

Da mesma forma, contudo, que disparou do anonimato para a glória, mergulhou no ostracismo em idêntica velocidade com que escalou até o topo. Patrono da reeleição, instituto incomum e renegado na política brasileira, aposentou-se como o alvo preferencial dos adversários e a companhia mais indesejável dos companheiros de jornada. De posse do sucesso da estabilidade monetária, que antes rejeitavam, os petistas apedrejaram sua herança, dada como maldita, e com esse refrão Luiz Inácio Lula da Silva se elegeu duas vezes consecutivas e fez sucessora uma candidata improvável, tirada da cartola de mágico, Dilma Rousseff, provando, na prática, que na política, ao contrário do que reza o bom senso comum, nem sempre fatos se impõem a argumentos enganosos.

Se os fados são caprichosos com qualquer um, mostraram sê-lo mais no que se refere ao filho de general que se tornou figadal inimigo do regime militar e ao mero assessor que chegou ao posto que caciques como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes e Leonel Brizola almejaram, mas nunca alcançaram. Agora, ao atingir, serelepe, o oitavo decênio de existência, viu-se subitamente reconhecido pela adversária da qual menos podia esperar um gesto amistoso. E esse inesperado reconhecimento foi lavrado em documento em papel timbrado da Presidência na elogiosa carta que Dilma Rousseff lhe enviou cumprimentando-o pela efeméride. No texto, reproduzido no site do ex-presidente e nos jornais, Dilma elogiou o "acadêmico inovador", "político habilidoso" e "presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica", jogando no lixo o discurso da "herança maldita", repetido ad nauseam nos próprios palanques.

Dilma constatou que o antecessor apostou no "diálogo como força motriz da política" e "foi essencial para a consolidação da democracia brasileira". E acrescentou: "Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas justamente por isso maior é a minha admiração por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias". Os correligionários do elogiado comemoraram o fato como se fosse um triunfo eleitoral, esquecendo-se de que nunca nenhum deles teve humildade e tirocínio para reconhecer os feitos de Fernando Henrique como a adversária o fez.

O oportuno reconhecimento, antecipando o registro histórico desapaixonado que resgatará o papel do acadêmico no exercício da Presidência, está obviamente acima das querelas do cotidiano do poder e da política. Embora tenha sido divulgado dias depois da ida de Lula a Brasília, onde ele foi buscar lã e saiu tosquiado no episódio que terminou com a defenestração de dois protegidos do ex-presidente, Antônio Palocci e Luiz Sérgio, o documento não deve ser reduzido a um movimento do minueto da relação entre padrinho e afilhada. Demonstrando que até pode ter perdido o pelo, mas nunca a manha, o lobo de Garanhuns arreganhou os dentes, exigindo da companheirada fidelidade à sucessora que elegeu, dando a entender que não saiu da sintonia da presidente.

De qualquer maneira, Dilma saiu bem na foto ao perceber que o poder, mesmo quando conquistado com as notórias falsificações do marketing político, permite a quem o conquista tornar-se maior ao reconhecer o mérito alheio. Com isso, mesmo que essa não tenha sido sua intenção, ministrou uma lição a seu professor, que perdeu uma oportunidade de se mostrar à altura da veneração popular que conquistou, e a seus opositores, incapazes de perceber o óbvio até quando este vem se manifestar ao alcance do nariz.

José Nêumanne é Jornalista e Escritor.

Limites Para as Mentiras Politicas

Por Umberto Eco

Se quisermos ler sobre a legitimidade, ou a falta dela, da mentira na política, temos literatura sobre o assunto datada desde Platão em diante. Digamos que os principais lados que se opõem são os moderados, para quem mentir na vida política é indispensável – pense em como a diplomacia serve como um parachoque na administração de conflitos internacionais – e os rigoristas absolutos (como Santo Agostinho ou Immanuel Kant), que achavam que a ausência de um compromisso universal com a verdade levaria à dissolução de todos os pactos sociais. Os rigoristas acreditam que uma pessoa nunca deve mentir – nem mesmo se você estiver escondendo um homem inocente e um assassino pedir que você revele o seu paradeiro.

Mas até os moderados reconhecem que há limites para a quantidade de mentira política que uma sociedade pode tolerar. A teórica política Hannah Arendt, nascida na Alemanha, a quem podemos confiantemente considerar moderada, comentou o assunto em 1971. Em “A Mentira na Política: Considerações Sobre os Documentos do Pentágono”, um ensaio publicado no “The New York Review of Books”, ela documentou como o governo norte-americano havia mentido notoriamente sobre vários elementos da Guerra do Vietnã, e argumentou que esse calibre de mentira sistemática é um insulto à factualidade que, quando se torna tão alastrado, leva a um estilo patológico de política.

Então o que acontece quando um político mente sistematicamente, sem nenhum medo de que suas mentiras possam finalmente contradizer umas às outras? Comentando a política em sua época, Jonathan Swift publicou um panfleto em 1712 intitulado “A Arte da Mentira Política”. (Ou melhor, muitos acreditam que Swift o tenha escrito; a autoria ainda é amplamente debatida.) Independente da verdadeira autoria do panfleto, ainda hoje ele oferece alguns pontos úteis para pensar.

“Há um ponto essencial no qual um mentiroso político difere de outros do gênero”, argumenta o escritor. E continua, dizendo que um mentiroso político “precisa ter uma memória curta” para que não se lembre como se contradisse e, dependendo de seu público em um dado momento, jurar a lealdade a ambos os lados de uma questão muito disputada.

O escritor evoca “um certo grande homem”, que ficou famoso por sua habilidade de mentir, com um “fundo inexaurível de mentiras políticas, que ele distribui abastadamente a cada minuto que fala, e por uma generosidade sem paralelos ele esquece, e consequentemente contradiz, a próxima meia hora. Ele nunca considera se qualquer proposição é verdadeira ou falsa, mas se é conveniente afirmar ou negar dependendo do minuto presente ou da companhia.” Assim, o escritor acrescenta, não há sentido na tentativa do público de decifrar a posição real de um político assim: “você se descobrirá igualmente enganado, quer acredite nele ou não.”

O escritor continua: “alguns podem pensar que uma habilidade assim não seja muito útil para o político, ou para seu partido, depois que ela é praticada e se torna notória, mas eles estão profundamente equivocados”. É necessário muito pouco, diz ele, para uma mentira se espalhar amplamente -- mesmo que tenha sido originada de um mentiroso reconhecido. Além disso, ele acrescenta: “costuma acontecer que, se uma mentira é endossada por uma hora que seja, ela já fez o seu papel... A falsidade voa, e a verdade vem mancando atrás dela, então quando os homens descobrem a verdade, já é tarde demais.”

Esse tipo de político faz lembrar do vendedor de carros que diz para você que um certo modelo pode acelerar tão rápido que você estará andando a 160 quilômetros por hora sem perceber. Mas então ele vê que sua mulher, sogra e filhos estão esperando por você, e imediatamente diz que, por outro lado, é um carro dócil que pode andar a 100 por hora durante o dia todo sem nenhum problema.

Finalmente, ele acrescenta: “e se você comprá-lo hoje, eu darei os tapetes.”

Umberto Eco é filósofo e escritor.

Processo Penal Mais Eficiente e Humano

Por Mácio Thomaz Bastos e
Pier Paolo Cruz Bottini

Recentemente, foi sancionada -após dez anos de tramitação- a lei nº 12.403/11, que trata da prisão preventiva e de outras cautelares penais, merecedora de atenção.

A legislação processual penal brasileira é antiquada. Além de contribuir para a morosidade das discussões, guarda resquícios de modelo autoritário, ultrapassado e pouco afeito a garantias individuais. A racionalidade e a eficiência na aplicação do direito penal exigem um novo marco legal, que evite a eternização dos debates e a impunidade pela prescrição, mas que, ao mesmo tempo, assegure direitos fundamentais e a dignidade daqueles que são acusados mas ainda não foram condenados.

A nova lei segue essa lógica ao regulamentar as medidas cautelares pessoais no processo penal.

Cautelares pessoais são aquelas decisões do juiz, tomadas durante o processo, para impedir que o réu destrua provas, intimide testemunhas ou impeça a execução da pena, sempre que existam veementes indícios desses elementos.

Até agora, para assegurar a ordem no processo, o juiz dispunha de uma única cautelar: a prisão preventiva. O sistema processual vivia uma medíocre dualidade: ou o juiz decretava a prisão do acusado ou não determinava medida alguma.

Muitas vezes, a simples apreensão de um passaporte seria suficiente para impedir a fuga do réu, mas o juiz não dispunha dessa alternativa -ou prendia o acusado ou não agia. Agora, o Código de Processo Penal possibilita o uso de várias outras medidas menos agressivas que a prisão para controlar a ordem processual.

Permite-se, dentre outras, a suspensão do exercício de função pública, a decretação de prisão domiciliar, a proibição de acesso a determinados lugares ou de manter contato com pessoas específicas e o monitoramento eletrônico, usado para controlar o cumprimento das medidas fixadas pelo juiz.

A prisão preventiva continua prevista, mas deixa de ser a cautelar única. Seu uso será limitado aos casos mais sérios, sempre que o juiz constate grave tumulto à ordem processual causado pelo réu ou quando as outras medidas tenham sido descumpridas.

Além de assegurar a proporcionalidade, a nova regra contribui para diminuir o impressionante número de presos provisórios no Brasil -32% dos 470 mil presos são provisórios, sendo que tal número cresceu 247% nos últimos dez anos.

Outra novidade que merece destaque e atenção é a salutar proibição da decretação de prisão preventiva nos crimes punidos com pena igual ou inferior a quatro anos.

A inovação faz todo o sentido. Os condenados por esse tempo de prisão não vão presos ao final do processo. Sua pena, pela lei, é substituída por restrição de direitos. Ora, se mesmo com a condenação o réu não será preso, não é lógico restringir sua liberdade durante o processo, antes da decisão final do juiz.

Em síntese, as novas regras não apenas concretizam direitos fundamentais como conferem racionalidade ao sistema processual. Evitam-se longas discussões sobre a qualidade das medidas cautelares, e, ao mesmo tempo, não se banaliza a prisão, reservada a casos mais graves, aos réus mais perigosos.

O processo judicial brasileiro ainda precisa de transformações, mas a nova lei é bem-vinda: ela é mais um passo em direção a um sistema penal mais célere, razoável e civilizado.

Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista, foi Ministro da Justiça. e Pier Paolo Cruz Bottini, advogado e professor de Direito, foi Secretário da Reforma do Judiciário.

O Jogo do PMDB

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Com o enfraquecimento do ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, em consequência da revelação de que, no ofício de consultor, depois que deixou a Fazenda e assumiu o mandato de deputado federal, ele multiplicou exponencialmente o seu patrimônio em apenas 4 anos, o PMDB está se articulando para rever com o governo do qual é o principal aliado a coordenação política com a sua base parlamentar, para preservar a administração Dilma Rousseff do contágio da crise instaurada.

É nisso que a caciquia peemedebista quer que a opinião pública acredite. Trata-se de um engodo. A origem das tensões entre o Planalto e a legenda do vice-presidente Michel Temer não está no enfraquecimento de Palocci. O enfraquecimento do ministro-chefe da Casa Civil é apenas uma oportunidade com a qual os seus maiorais não contavam para transformar frustrações acumuladas nestes cinco meses de novo governo em pontiagudos instrumentos de pressão sobre a presidente. Simples assim.

O partido e o governo até que se esforçaram para jogar areia nos olhos do público. Foi um fiasco. Desde logo, a ideia já ofendia a inteligência alheia. Consistia em fazer de uma trivialidade na rotina oficial um espetáculo de congraçamento. Na Base Aérea de Brasília, antes de embarcar para um bate e volta a Montevidéu, na manhã de segunda-feira, Dilma Rousseff posaria para uma photo op - como dizem os americanos para designar a encenação conveniente aos fotografados - com o vice que assumiria a interinidade por poucas horas. Faltou combinar com o temperamento da dupla.

Em lugar do registro de um caloroso abraço, que é o que aconteceria fossem os atores, digamos, o exuberante ex-presidente Lula e o afável senador Aécio Neves, o que o aparato de comunicação do Palácio acabou oferecendo foi a imagem patética de duas figuras constrangidas que mal se tocavam, sem um vestígio de sorriso, numa expressão corporal perfeitamente adequada, afinal, à verdade que desejavam escamotear. Nesse embate ninguém decerto é inocente.

Mas é fato que motivo para amargura quem tem é o PMDB, tratado a pão, água e desdém pelo governo do qual o partido se considera condômino e não visitante eventual. Começou com a montagem da equipe. Dilma subtraiu da sigla pastas importantes, como a da Saúde, dando-lhe de troco a raquítica Secretaria de Assuntos Estratégicos. Seguiu-se a gafe inaugural da exclusão de Temer da primeira reunião do conselho político do governo com a presidente. Ele teve de passar pelo constrangimento de fazer chegar ao Planalto o seu amuo.

A louvável decisão de Dilma de segurar verbas e cargos ficou azedada pela miopia política que a impedia de enxergar a obrigação de dialogar com o PMDB, por ter o partido uma bancada na Câmara incomumente coesa, como se veria na votação do salário mínimo, quando fechou com o governo, e na do Código Florestal, quando fechou contra.

E neste segundo episódio, combinando impertinência com incompetência, Dilma mandou, e Palocci topou, ameaçar o vice, pelo telefone, com a demissão dos 5 ministros da legenda. Justo pelo telefone, que o ministro se recusava a atender quando do outro lado da linha estavam políticos da base.

Ainda assim, os líderes peemedebistas no Congresso, que bloquearam as tentativas da oposição de convocá-lo a se explicar, prometem continuar a poupá-lo, pelo menos enquanto esperam o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, se manifestar sobre as explicações do ministro a respeito de sua rendosa incursão pela esfera privada. O PMDB, por saber que ele não é uma unanimidade no PT, ainda mais agora que pode ser criticado como um grão-burguês, não quer lançá-lo aos lobos. Mas quer que ajoelhe no milho, para aprender bons modos.

Com Palocci - ou, principalmente, sem, na hipótese de sobrevir o pior -, Dilma terá, por sua vez, de trocar sua louvável ojeriza pelos picaretas da política pelo abominável cinismo com que seu criador, Lula da Silva, se cercou deles para garantir-se no poder.

Sob pena de ter de institucionalizar a tutela do ex-presidente.

Editorial de O Estado de S. Paulo, edição de 01.06.11

Dilma e Palocci, Um Enigma

Por Eliane Cantanhede

O ato de despedida de Antonio Palocci no governo deixou uma dúvida: por que a presidente Dilma Rousseff passou três semanas sem defender com garra o ministro e ontem, abatida e emocionada, o elogiou calorosamente?

"Eu estaria mentindo se dissesse que não estou triste. Tenho muitos motivos para lamentar a saída de Palocci. Motivos de ordem política, pelo papel que desempenhou na minha campanha; administrativa, pelo papel que tinha e teria no meu governo, e motivo de ordem pessoal, pela amizade que construímos", disse, com voz embargada.

De duas, uma:

1 - Palocci ganhou R$ 20 milhões no ano eleitoral com sua empresa de uma funcionária só, metade deles já como coordenador da transição, mas Dilma acha que isso não tem nada demais. Iniciativa privada é iniciativa privada...

2 - Ou Palocci não ganhou para si, mas sim para o partido, a campanha, a causa, um esquema de poder. Neste caso, Dilma não o condena e é até grata a ele.

É possível que a opinião pública nunca saiba a solução desse enigma de ordem ética. Dilma e Palocci trataram de debitar a crise a "embates políticos" e à oposição, enquanto a nova chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, estendia a mão ao Legislativo. "Não sou trator."

Gleisi é uma mulher muito bonita, mas isso é só um detalhe. Ela é também inteligente, preparada, com experiência em gestão e gosto pela política. Pode ser de grande serventia num governo em busca de personalidade, organicidade e interlocução política -até, ou especialmente, com os próprios aliados.

Mais do que assumir o principal cargo da República depois da Presidência, ela tem o desafio de ser uma boa conselheira e um marco do recomeço do governo Dilma.

Um porém: Gleisi é uma peça importante, mas só uma peça. Quem mexe o tabuleiro é Dilma, o que exige jeito, tática, estratégia e liderança. Ela precisa treinar mais.

Eliane Cantanhede é comentarista de política da Folha de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 09.06.11.

Sócios na Crise

Por Ricardo Noblat

Dizer que o problema é só dele, que Dilma desconhecia os seus negócios e que nenhuma crise abala o governo, foi sem dúvida a fórmula esperta encontrada pelo ministro Antonio Palocci para nos próximos dias sair de cena alegando ter prestado um último e relevante serviço à sua chefa e ao PT. Mas a fórmula não resiste a um exame superficial.

O problema de estar sob suspeita de ter enriquecido fazendo tráfico de influência seria só de Palocci se ele não fosse quem é – ex-arrecadador de recursos da primeira campanha presidencial de Lula, ex-ministro da Fazenda, ex-deputado federal, ex-coordenador da campanha de Dilma e chefe da Casa Civil da presidência da República.

A velhinha de Ribeirão Preto pode até acreditar que Palocci não cometeu nenhum deslize. Mas como homem público deve satisfações à sociedade.

Ao invés de fazê-lo para preservar a própria reputação, preferiu preservar a identidade dos ex-clientes de sua empresa de consultoria, a natureza dos serviços que lhes prestou e o quanto ganhou.

Fez sua escolha. Por sinal compreensível, levando-se em conta a certeza de que deixará o governo a qualquer momento.

Uma vez que caia pela segunda vez (a primeira foi quando mandou quebrar o sigilo bancário do caseiro que o viu numa mansão de Brasília onde se fazia negócios e amor), Palocci voltará à procura dos antigos clientes. É justo...

Ao contrário do que possa ter imaginado, Palocci deixou Dilma em situação desconfortável ao dizer que ela ignorava os seus negócios. Primeiro porque é difícil acreditar que ele tenha dito a verdade. Segundo porque se disse, tem-se que Dilma nomeia ministros sem ao menos reunir informações sobre sua vida pregressa.

Gente indicada pelo PMDB para postos do governo gostaria de ter merecido o mesmo tratamento conferido a Palocci. Por que não?

Se Dilma não soube antes e não procurou saber depois como Palocci enriqueceu de maneira tão súbita, foi duplamente relapsa, sinto muito. Faltou com o dever de cercar-se de cuidados na escolha dos seus auxiliares. É o mínimo que se espera de uma pessoa investida de tamanha responsabilidade.

Por omissão, acabou se tornando sócia de Palocci na primeira grave crise que abala seu governo.

Sem essa, faça o favor, de que o governo funciona normalmente.

O “fator Palocci” paralisa o governo há mais de 15 dias. Um governo, por sinal, que anda devagar, quase parando, e ainda repleto de cargos a serem preenchidos.

Diante do enfraquecimento do mais poderoso ministro do governo, é natural que tenha recrudescido o apetite dos partidos por mais espaços.

No momento, com uma das mãos o Congresso oferece a Dilma o que ela lhe pede – o veto a qualquer convocação de Palocci para ir ali depor. Com a outra, nega a aprovação de Medidas Provisórias e aprova projetos que a contrariam.

A crise protagonizada por Palocci serviu para iluminar alguns pontos frágeis da administração Dilma até aqui tolerados com base no entendimento universal de que todo começo de governo é difícil.

O principal ponto: o estilo Dilma de governar. Outro: sua inaptidão para a política. Outro ainda: o perfil baixo, quase rasteiro, da equipe que montou.

Dilma continua sendo a centralizadora de sempre. Nada se faz no governo sem seu conhecimento prévio e concordância.

Por temperamento ou falta de experiência, ou pela soma das duas coisas, não gosta e não sabe tocar o jogo rotineiro da política, indispensável para quem deseja manter os apoios conquistados. Não descobriu que compartilhar o poder não significa obrigatoriamente abrir a porta para a corrupção.

Lula sabia fazer política, mas ao lado dele havia um time de ministros que também sabia.

O governo de Dilma carece de ministros hábeis na articulação política.

Quase todos os ministros morrem de medo de ser destratados por ela. São menos ministros, capazes de formular políticas e de defendê-las com desassombro, e mais serviçais temerosos e obedientes.

A Dilma serena é uma invenção da mídia. Outro dia, mandou que Palocci telefonasse para Michel Temer, o vice-presidente, anunciando que ela romperia com o PMDB se a bancada do partido na Câmara votasse a favor de uma emenda ao novo projeto do Código Florestal.

Como achou que Palocci conversara com Temer num tom ameno, ordenou que telefonasse novamente e que dessa vez fosse mais duro. Ouviu a conversa no viva-voz.

Ninguém anuncia que vai demitir ninguém - muito menos um presidente da República. Demite.

Ninguém anuncia o que não pode fazer. O governo não sobreviveria sem o apoio do PMDB - e Dilma sabe disso.

Coitado do substituto de Palocci!

É por isso que aos poucos se dissemina nos meios políticos de Brasília a opinião, por ora apenas sussurrada, de que a crise de fato atende pelo nome de Dilma.

Talvez seja um exagero. Talvez ainda seja muito cedo para se concluir isso.

Ricardo Noblat edita o Blog do Noblat, um dos mais acessados do País.

Em Torno da Indignação

Por Fernando Gabeira

Muitas pessoas afirmam que a corrupção chegou a níveis intoleráveis. E algumas, como Juan Arias, editor do El País, perguntam por que os brasileiros não se indignam. Em vez de buscar as causas sociológicas e econômicas, tão debatidas nos artigos sobre o tema, procuro utilizar também a memória.

Os governos Juscelino Kubitschek e João Goulart eram acusados de corrupção. É possível até dizer que os oficiais da Aeronáutica que promoveram a Revolta de Aragarças achavam a corrupção intolerável e não entendiam por que os brasileiros não se indignavam. No período Goulart havia uma forte ligação entre sindicatos e governos. Movimentos independentes no setor só surgiram no fim da década de 1960, com as greves de Osasco e Contagem. Na época anterior à ditadura, como agora, as denúncias de corrupção parecem ser apenas um contraponto oposicionista e figuram como um episódio lateral ao impulso desenvolvimentista de JK ou ao projeto de reformas de base de Goulart.

O pensamento da esquerda no poder é semelhante. Para ela, a floresta é o desenvolvimento com distribuição de renda. A corrupção é apenas uma árvore torta que insistimos em denunciar. Nesse quadro, a História do Brasil contemporâneo seria circular, com as realizações se desdobrando e algumas forças, à margem, gritando contra a corrupção.

Muita coisa mudou. O projeto de desenvolvimento recheado de corrupção não é sustentável. Novos e poderosos instrumentos estão à disposição de brasileiros muito mais bem informados que no passado. Nem sempre é preciso ir às ruas: 50 pessoas em Nova Friburgo conseguiram se organizar para pressionar a Câmara por uma CPI independente. O governo tinha maioria, mas elas venceram. Minúscula exceção, numa cidade atingida pela tragédia.

Mas a verdade é que em outros campos há também resistência. É o caso da resistência contra o mais importante ator econômico do momento: a associação do governo com alguns empresários, fundos de pensão e o BNDES. Esse grande ator é percebido de forma fragmentária. Ora se esforçando para tornar viável a usina de Belo Monte, ora no varejo tentando fundir Pão de Açúcar e Carrefour, ora sendo rejeitado no seu progressismo ingênuo, como no projeto do trem-bala. Sua ação articulada nem sempre é percebida como a de um novo ator. Exceto pelos vizinhos latino-americanos, que o consideram - a julgar pelo seminário internacional realizado no iFHC - um elemento singular do capitalismo brasileiro. Apoiadas no BNDES, as empresas brasileiras tornam-se mais competitivas no exterior. Mas trazem a desconfiança como um efeito colateral.

Cheguei, num certo momento, a comparar Lula-Dilma com Putin-Medvedev. E o capitalismo dirigido pelo Estado como fator que aproximava as experiências de Brasil e Rússia. Mas o desenrolar da crise de 2008 foi diferente para os dois. A Rússia sofreu mais que o Brasil e a interpretou como sinal para modernizar algumas áreas, privatizando-as. O Brasil, como uma oportunidade para ampliar o papel do Estado.

Pode-se compreender a demanda de indignação. Mas o sistema político está dominado, há um ator econômico poderoso e o governo emergiu vitorioso das eleições. Não há desemprego de 40% entre os jovens, como na Espanha. Ainda assim, houve indignação em Teresópolis, revelada em inúmeras manifestações. O movimento esbarrou no próprio processo político, pois conseguiu uma CPI e ela foi controlada pelo governo. O que as pessoas decidiram? Continuar manifestando indignação ou voltar à carga no momento eleitoral, quando o sistema fica mais vulnerável? Optaram pela última alternativa. Na Espanha foi a proximidade das eleições que permitiu o avanço dos indignados, mesmo sem a pretensão de disputar cargos.

Parte dos brasileiros acha que a corrupção é um preço que se paga ao desenvolvimento. Um setor da esquerda não somente acha isso, como confere uma qualidade especial ao desvio de dinheiro para causas políticas: os fins justificando os meios. Não se pode esquecer que 45 milhões votaram na oposição depois de oito anos do mesmo governo. Não eram da UNE nem da CUT.

A corrupção no Ministério dos Transportes é bastante antiga. Às vezes ele muda de mãos, passa de um partido a outro. Para os que conhecem o processo político brasileiro, a notícia não foi surpresa. As denúncias de corrupção sucedem-se diariamente e não se resolvem dentro dos canais parlamentares. Se os eleitores se indignarem, ostensivamente, podem se transformar numa indignação ambulante. As próprias pessoas que pedem hoje que se indignem vão achá-las monótonas e repetitivas. Para que os que têm o potencial de se indignar, coloca-se a questão da oportunidade exata, do preciso emprego da energia. Navega-se num sistema político cada vez mais distante, tripulado por um gigantesco ator econômico e um crescimento com viés inclusivo. Quando o adversário é ao mesmo tempo indiferente, opaco e poderoso, a indignação social tem hora.

É um problema deixar de se indignar com uma corrupção que mata, como na saúde e nos transportes, e aniquila sonhos, como na educação. Mas também é um problema indignar-se e voltar para casa de mãos vazias.

A indignação na Espanha ocorreu num momento em que poderia crescer. Ainda assim, como não se voltou para a ocupação de espaço institucional na política, seus resultados estão em aberto. O caso de Teresópolis mostrou que sem uma contrapartida institucional as melhores aspirações se afogam no pântano do próprio sistema político. O que torna a questão mais complicada do que pura e simplesmente se indignar às vésperas das eleições. É necessário vencê-las ou, no mínimo, eleger uma oposição de verdade.

A pergunta de Juan Arias é legítima. Mas seria ilusório pensar numa resposta simples, como se houvesse no enigma uma espécie de bala de prata, uma descoberta que pusesse a indignação em movimento. Em processos complicados, uma das respostas mais sábias é a do comercial de televisão: Keep walking.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, ediçção de 22.07.11.

Exemplo de Superação

Por Dora Kramer

José Sarney recuou da eliminação do impeachment de Fernando Collor da galeria de painéis sobre fatos importantes ocorridos na história do Senado porque não quis abrir espaço às críticas que, percebeu pelas primeiras reações, viriam fortes.

Dada a sua convicção externada no dia anterior sobre a inconveniência de expor tal "acidente" - como definiu o impedimento - continua valendo a crítica. Portanto, vamos a ela.

O mensalão não existiu e o impeachment de Collor não aconteceu. Se porventura há registro dessas ocorrências, senhoras e senhores, esse é um detalhe que não deve ser levado em conta porque não engrandece a História do Brasil.

Quando a gente pensa que o presidente do Senado já esgotou todas as possibilidades de dilapidação da própria biografia, eis que ele se apresenta na plenitude de sua capacidade de superação e desce mais um degrau.

Escritor, bom no ofício de manejar as palavras, resolveu se aventurar no terreno da censura. Uma contradição em termos, não fosse ele na política uma contrafação da persona lhana que construiu para se relacionar com o mundo das ideias.

O caso o leitor e a leitora já conhecem: o impeachment de Collor foi retirado da galeria de painéis, denominada "túnel de tempo", que retratam fatos importantes da história do Senado.

Ato assim justificado pelo presidente da Casa: "Não posso censurar os historiadores encarregados de fazer a história. Agora, eu acho que talvez esse episódio seja apenas um acidente e não deveria ter acontecido na História do Brasil".

Se pudesse, como se vê, censuraria os historiadores. Estando essa hipótese fora de seu alcance, faz o que pode e subtrai do Senado uma parte de sua própria história.

Em nome do quê? De uma cláusula pétrea no regimento do atraso: aos amigos tudo, aos inimigos a lei.

Collor, que fez campanha anarquizando com a figura de Sarney chamando-o de "batedor de carteira da história", agora senador juntou-se à tropa de Sarney como já havia feito Renan Calheiros, seu parceiro da época em que enxovalhar o então presidente era uma via de acesso fácil ao êxito eleitoral.

De onde José Sarney achou por bem se escorar no exemplo de Lula e simplesmente reescrever a História do Brasil a seu modo.

O impeachment de Collor não é, na visão de Sarney, o fato inédito de um presidente interditado dentro da legalidade sem a ocorrência de crise institucional, referido mundialmente como um exemplo de maturidade na recém-reconquistada democracia brasileira.

Passa a ser mero "acidente" a respeito do qual a incorporação de Collor à turma de Sarney impõe o esquecimento.

Aconteceu? Mas não deveria e por isso, de acordo com delírios absolutistas muito em voga, não merece registro.

Sarney já foi merecedor do reconhecimento de seu papel fundamental na transição democrática, mas por suas repetidas iniciativas acaba dando margem a que se considere sua passagem pela Presidência da República como um mero acidente que talvez não devesse ter acontecido.

‘Pratasmente’. A Controladoria-Geral da União alega, para não abrir investigação a respeito do enriquecimento de Antonio Palocci, que a acumulação de patrimônio ocorreu quando o ministro era deputado e não "agente público" conforme definição legal.

É a adoção da jurisprudência estabelecida pela Câmara para livrar mensaleiros de punição: ocorrências anteriores não devem ser levadas em conta na avaliação de mandatos em curso.

Assim como a vida pregressa é parte inalienável da biografia do parlamentar o enriquecimento não se dissocia do ministro. Por um dado indiscutível: não tendo se desfeito do patrimônio, o fato pertence ao presente.

Dora Kramer, uma das mais conceituadas analistas de política do jornalismo brasileiro, escreve para O Estado de S. Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 01.06.11.

A Choldra e a Banca

Por Élio Gáspari

O MINISTRO CESAR Peluso anunciou que o Supremo Tribunal Federal deverá decidir nas próximas semanas o destino das causas em que a patuleia tungada em 1987, 1989 e 1990 nos Planos Bresser, Verão e Collor pede de volta a correção monetária de uma parte de suas aplicações. Uma pessoa que tivesse uma poupança de 1.000 cruzados novos (a moeda da época) teria direito hoje a um ressarcimento equivalente, na média a R$ 610.

Esse é o maior litígio em tramitação no Judiciário nacional. De um lado estão os banqueiros públicos e privados, bem como o Banco Central. Do outro, entidades de defesa do consumidor. A banca luta há 23 anos para não pagar coisa alguma e tem dois argumentos.

O primeiro é lógico: não foi ela quem tungou o rendimento da poupança, foi o governo quem impôs um novo índice, obrigando-a a respeitá-lo. O segundo é apocalíptico: um estudo de 2009 do Banco Central informa que a fatura custaria R$ 105,9 bilhões, ervanário equivalente a 65% dos patrimônio líquido dos bancos, 3,6% do PIB.

As vítimas argumentam que os bancos ganharam dinheiro com o truque imposto pelo governo. Ademais, segundo um estudo de Roberto Luís Troster, ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos, a Febraban, a pancada é bem menor, ficando em R$ 29 bilhões, que não seriam sacados simultaneamente.

Os depositantes ganharam centenas de causas e, em agosto passado, o Superior Tribunal de Justiça mandou pagar milhares de pleitos. No dia seguinte, o ministro José Antonio Dias Toffoli, do STF, suspendeu os pagamentos, à espera de um pronunciamento da corte.

Noves fora dois golpes de joão sem braço da banca, que tentou obter liminares no escurinho do recesso (ambas prontamente negadas pelo ministro Gilmar Mendes), o plenário do Supremo acabará com a pendenga. O ministro Toffoli relatará dois processos e seus pares fecharão o caso.

Em decisões avulsas, diversas entre si, e sem entrar no mérito da repercussão geral do caso, pelo menos sete ministros já deram razão aos depositantes que bateram à porta do STF, mais o ministro Luiz Fux, quando estava no STJ, onde a banca foi derrotada. Pela aritmética, o desfecho do litígio poderia ser previsível.

Toffoli chegou ao Supremo em 2009 e nunca julgou essa matéria. Como advogado-geral da União, contudo, pronunciou-se a favor dos bancos, em declaração à imprensa: "Os correntistas alegam que tinham direito adquirido, mas as novas regras dos planos valiam para toda a sociedade. (...) É aquela discussão referente à possibilidade de o Estado interferir nos contratos". Até onde sua decisão seguirá esse raciocínio nos seus votos, não se sabe.

No caso de Cesare Battisti, tendo defendido, no exercício de sua função, a concessão do refúgio ao cidadão condenado pela Justiça italiana, Toffoli declarou sua "suspeição, por motivo de foro íntimo".

Para que prevaleça a linha de raciocínio segundo a qual o Estado tem o direito de interferir nos contratos, a despeito dos votos avulsos já conhecidos, será necessária uma nova construção. Nela, a defesa do patrimônio é um direito individual do cidadão, mas, quando do outro lado estão o governo e a banca, o direito coletivo não existe. Cada um tem direito a tudo. Todos não têm direito nenhum.

Élio Gáspari é Jornalista e Historiador. Este artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 01.06.11.

Caem a Foto e a Máscara

Por Eliane Cantanhede

Sarney mandou tirar as fotos do impeachment de Collor do "túnel do tempo", corredor do Senado que resume a história brasileira em textos e imagens. Já não era sem tempo. Collor, que já foi o inimigo número um, agora é só mais um na paisagem.

Como disse Lula, com uma risada marota, o vale-tudo contra Collor é coisa do passado e foi jogo político. A garotada que foi às ruas? Cresceu, endureceu e há os que defendem piamente que não tem nada demais petista palaciano multiplicar patrimônio por 20 em quatro anos e comprar apartamento de R$ 6,6 milhões. Sem dizer como...

O Brasil reescreve a história, apaga vestígios de moralismo, recria pessoas e maquia ou apaga fotos ao velho jeitão stalinista. Os que acham tudo isso bacana dirão que o país está "amadurecendo". Outros, que se trata de um deslavado cinismo. Impera o que mais se temia desde a redemocratização: a sensação de que são todos iguais.

Além dos políticos, até seus governos parecem iguais. Vejamos agora. Com Dilma, como foi com Collor, a(o) presidente não tem traquejo político e parece engolida(o) pelos aliados, antes que pelos adversários. Com Dilma, como foi com Sarney, tudo corre solto e a(o) presidente parece à sombra de quem de fato manda. Com todo o respeito ao dr. Ulysses, Palocci é o Ulysses de Dilma. Enquanto isso, ministros e líderes fazem o que bem entendem -e batem cabeça.

Ao excluir Collor do "túnel do tempo", Sarney vai receber uma crítica daqui, outra dali, mas finalmente fez justiça. O impeachment não foi por um país melhor e mais ético, mas por pura falha técnica: a falta de sustentação política.

Collor era um autoritário autossuficiente; PC Farias não passava de um jeca deslumbrado; o Fiat Elba foi pretexto; nós, os jornalistas, caímos no conto da ética; os caras-pintadas eram só massa de manobra. Nada disso se repetirá. Os novos Collor podem ficar sossegados.

Eliane Cantanhede é comentarista de política da Folha de S. Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 31.05.11.

Crise é Para Profissionais

Por Ruy Fabiano

Não há nada de estranho na tutela explícita que Lula exerceu esta semana sobre a presidente Dilma Roussef.

Afinal, trata-se de uma invenção sua, imposta ao partido e ao país, levando ao mais alto cargo da República alguém que jamais exerceu qualquer função eletiva. Lula agiu em defesa de sua obra.

É natural também que Dilma, diante de um quadro de crise política – as denúncias contra seu principal ministro, Antonio Palocci, e a derrota parlamentar na votação do Código Florestal -, não soubesse como agir. Não é do ramo.

Sua formação não a adestrou para o corpo a corpo da política, em que a hierarquia não tem a verticalidade linear vigente na tecnocracia. Um parlamentar não é um funcionário, que obedece a ordens do superior. Tem votos e autonomia.

Se o próprio partido não o comanda, já que não há no país fidelidade partidária, muito menos alguém de fora, do Executivo.

Essa deficiência de Dilma já era conhecida de Lula. Por isso, insistiu na presença de Palocci na Casa Civil, como braço político do governo. Ocorre que, ao se tornar ele próprio o pivô da crise, deixou o governo maneta.

A arrogância com que, na sequência, Dilma agiu aprofundou o abismo entre ela e o Congresso. Queixou-se da “exploração política” do caso. Espantoso seria se não tivesse havido.

A política se nutre sobretudo dos desvios de seus agentes, e o PT, quanto a isso, fez escola. Não perdia um só lance. Não havendo, tratava de fabricá-lo – que o diga o ex-chefe da Casa Civil de FHC, Eduardo Jorge, crucificado por ter deixado o governo e aberto um escritório de consultoria, mesmo sem ter mandato parlamentar, sem ocultar os seus clientes e sem ganhar tanto em tão pouco tempo.

No caso do Código Florestal, Dilma não percebeu que o tema estava sendo tratado de forma suprapartidária. Sem os votos do PMDB e do PT, jamais haveria um placar tão acachapante como aquele (410 a 63). E estava claro que o resultado seria aquele.

Bastava ter acompanhado o noticiário dos jornais ou os discursos de gente de sua própria base parlamentar.

A senadora petista Gleisi Hoffmann, do Paraná, fez, por exemplo, dias antes da votação do Código, um duro discurso de defesa do relatório do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), por sinal integrante da base governista, denunciando as ONGs ambientalistas como instrumentos de interesses econômicos internacionais.

A senadora Kátia Abreu, presidente da CNA, certamente subscreveria aquelas palavras. Dilma, no entanto, deu mais ouvidos às ONGs e a Marina Silva, ex-rival nas eleições presidenciais, emitindo ordens à Câmara para que adiasse mais uma vez a votação.

Como não foi obedecida, mandou recados ameaçadores por intermédio do líder petista Cândido Vaccarezza, que, depois de dizer que não era seguro para a Câmara indispor-se com o Executivo, informou que a presidente considerava aquela votação “uma vergonha”. Nada menos.

O pior veio depois, quando ameaçou o vice-presidente Michel Temer de demitir todos os ministros do PMDB se não contivesse a rebelião da bancada. Lula, um animal político, sentiu cheiro de CPI no ar e sinais de deterioração na bancada governista.

Não teve dúvidas: desembarcou em Brasília e agiu como chefe político que é: de Dilma e do PT.

Os efeitos de sua intervenção não se conhecem ainda. Afinal, não é mais chefe de Estado. A caneta e o Diário Oficial estão nas mãos de Dilma: é ela quem nomeia e demite – e até agora não equacionou as nomeações do segundo escalão.

A ameaça que fez de demitir os ministros do PMDB, além de ofensivas ao vice-presidente, que não é seu funcionário, não passa de bravata.

Se não tem condições de demitir seu chefe da Casa Civil sem enfrentar uma crise política de grandes proporções, que dirá a demissão coletiva de todos os representantes do partido a que seu governo está coligado.

A presidente vive seu batismo de fogo na política, do qual sai chamuscada, na expectativa de que não se transforme num incêndio e que tenha que recorrer, mais uma vez, ao bombeiro Lula.

Sua sorte é o momento de autismo da oposição, mais preocupada com a sucessão de 2014 que com a realidade presente.

Ruy Fabiano é jornalista.

Visão Perversa

Por Merval Pereira

Há um aspecto perverso nessa crise do livro didático de português, que o MEC insiste em manter em circulação, que ultrapassa qualquer medida do bom-senso de um governo, qualquer governo.

A pretexto de defender a fala popular como alternativa válida à norma culta do português, o Ministério da Educação está estimulando os alunos brasileiros a cultivarem seus erros, que terão efeito direto na sua vida na sociedade e nos resultados de exames, nacionais e internacionais, que avaliam a situação de aprendizado dos alunos, debilitando mais ainda a competitividade do país.

O ministro Fernando Haddad, que já protagonizou diversas confusões administrativas, agora se cala diante dessa "pedagogia da ignorância" que apresenta aos alunos da rede pública a defesa de erros de português, como se fossem corretas ou aceitáveis expressões populares como "nós pega o peixe" ou "dois real".

(Aliás, cada vez que escrevo essas frases, o corretor de texto teima em sublinhá-las em verde, como se estivessem erradas. Esse computador ainda não passou pelo crivo do MEC).

Mas é o próprio MEC que veicula anúncios exaltando supostos avanços dos alunos brasileiros no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos).

O país registrou crescimento em todas as notas, embora continue muito abaixo da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e mesmo de alguns da América Latina.

Ora, se o próprio governo baliza sua atuação pela régua do Pisa, como justificar que a defesa de uma alternativa da fala correta seja uma política oficial do Estado brasileiro?

A professora Heloísa Ramos, autora do livro "Por uma vida melhor", da Coleção Viver, Aprender (Editora Global) acredita ser "importante que o falante de português domine as duas variantes e escolha a que julgar adequada à sua situação de fala".

Seria preciso então que as escolas e faculdades ensinassem o português popular para os que foram alfabetizados pela norma culta, numa radicalização esdrúxula que esse raciocínio estimula.

O caráter ideológico de certos livros didáticos utilizados pelo MEC, especialmente de história contemporânea, ganha assim uma nova vertente, mais danosa que a primeira, ou melhor, mais prejudicial para a vida do cidadão-aluno.

Enquanto distorções políticas que afetem posições pessoais do aluno podem ser revertidas no decorrer de sua vida, por outros conhecimentos e vivências, distorções didáticas afetam a perspectiva desse aluno, que permanecerá analfabeto, sem condições de melhorar de vida.

Fosse o livro uma obra de linguística da professora Heloísa Ramos, nada a opor quanto à sua existência, embora seus métodos e conclusões rasteiras do que seja preconceito contra a fala popular possam, sim, ser refutados como uma mera mistificação política.

Se fosse um romance, não haveria problema algum em reproduzir a maneira de falar de uma região, ou os erros de português de um personagem.

Mas o livro didático não pode aceitar como certo o erro de português. Didática, pelo dicionário (?) é "a arte de transmitir conhecimento, técnica de ensinar" ou "que proporciona instrução e informação".

O fato de falarem de certa maneira em algumas regiões não quer dizer que este ou aquele linguajar represente o português correto.

A visão deturpada do que seja ensinar aparece na declaração de um assessor anônimo do MEC no GLOBO de ontem, alegando que não cabe ao ministério dizer "o que é certo e o que errado", e nem mesmo fazer a análise do conteúdo dos livros didáticos.

Se não exerce esses deveres básicos, o que faz o MEC em relação ao ensino do país?

Seria um equívoco lamentável e perigoso se o MEC, com essa postura, estivesse pretendendo fazer uma política a favor dos analfabetos, dos ignorantes, como se ela fosse a defesa dos que não tiveram condições de estudar.
Na verdade, está é agravando as condições precárias do cidadão-aluno que busca na escola melhorar de vida, limitando, se não impossibilitando, que atinjam esse objetivo.

Se, porém, a base da teoria for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância.

Querer transformar um defeito, uma falha da educação formal do presidente-operário, em uma coisa meritória é um desserviço à população.

Os erros de português de Lula não têm mérito nenhum, ele os explora para fazer política, é um clássico do populismo, cuja consequência é deseducar a população.

Mas ele nunca teve a coragem de defender a fala errada, embora goste de ironizar palavras ou expressões que considera rebuscadas.

Ele desvaloriza o estudo, com frases como "não sei por que estudou tanto, e eu fiz mais do que ele", ou quando se mostra como exemplo de que é possível subir na vida sem estudar.

Mas em outras ocasiões, estimula que a universidade seja acessível a todos, numa atitude que parece paradoxal, mas que ganha coerência quando se analisam os objetivos políticos de cada uma das atitudes.

Se, no entanto, o desdém pela norma culta do português transformou-se em política de Estado, aí teremos a certeza de termos chegado ao fundo do poço.

Merval Pereira é comentarista de política de O Globo. Este texto foi originalmente publicado na edição de 17.05.11.

O Discreto Charme da Corrupção

Por Arnaldo Jabor

"Vivemos sob uma chuva de escândalos e denúncias de corrupção. Mas, não se enganem, esses shows permanentes nos jornais e TV, servem apenas para dar ao povo a impressão de transparência e para desviar seus olhos das reformas essenciais que mantêm nossas oligarquias intactas. Aos poucos o povo vai se acostumar à zorra geral e achar que tanta gente tem culpa que ninguém tem culpa. Me chamam de canalha, mas eu sou essencial. Tenho orgulho de minha cara de pau, de minha capacidade de sobrevivência, contra todas as intempéries. Enquanto houver 25 mil cargos de confiança no País, eu estarei vivo, enquanto houver autarquias dando empréstimos a fundo perdido, eu estarei firme e forte. Não adiantam CPI"s querendo me punir. Eu me saio sempre bem. Enquanto houver esse bendito Código de Processo Penal, eu sempre renascerei como um rabo de lagartixa, como um retrovírus fugindo dos antibióticos. Eu sei chorar diante de uma investigação, ostentando arrependimento, usando meus filhos, pais, pátria, tudo para me livrar. Eu declaro com voz serena: "Tudo isso é uma infâmia de meus inimigos políticos".

Eu explico o Brasil de hoje. Tenho 400 anos: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. Eu tenho raízes, tradição. Durante quatro séculos, homens como eu criaram capitanias, igrejas, congressos, labirintos. Nunca serão exterminados; ao contrário - estão crescendo. Não adianta prender nem matar; sacripantas, velhacos, biltres, vendilhões e salafrários renascerão com outros nomes, inventando novas formas de roubar o País.

E sou também "pós-moderno": eu encarno a "real-politik" do crime, a frieza do Eu, a impávida lógica do egoísmo.

No imaginário brasileiro, tenho algo de heroico. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. Só eu sei do delicioso arrepio de me saber olhado nos restaurantes e bordeis; homens e mulheres veem-me com gula: "Olha, lá vai o ladrão..." - sussurram fascinados por meu cinismo sorridente, os maîtres se arremessando nas churrascarias de Brasília e eu flutuando entre picanhas e chuletas.

Amo a adrenalina que me acende o sangue quando a mala preta voa em minha direção, cheia de dólares, vibro quando vejo os olhos covardes dos juízes me dando ganho de causa, ostentando honestidade, fingindo não perceber minha piscadela maligna e cúmplice na hora da emissão da liminar... Adoro a sensação de me sentir superior aos otários que me compram, aos empreiteiros que me corrompem, eles, sim, humilhados em vez de mim.

Sou muito mais complexo que o bom sujeito. O bom é reto, com princípio e fim; eu sou um caleidoscópio, uma constelação.

Sou mais educativo. O homem de bem é um mistério solene, oculto sob sua gravidade, com cenho franzido, testa pura. O honesto é triste, anda de cabeça baixa, tem úlcera. Eu sou uma aula pública de perversidade. Eu não sou um malandro - não confundir. O malandro é romântico, boa-praça; eu sou minimalista, seco, mais para poesia concreta do que para o samba-canção. Eu faço mais sucesso com as mulheres - elas ficam hipnotizadas por meu mistério; e me amam, em vez do bondoso, que é chato e previsível. A mulher só ama o inconquistável. Eu fascino também os executivos de bem, porque, por mais que eles se esforcem, competentes, dedicados, sempre se sentirão injustiçados por algum patrão ingrato ou por salários insuficientes. Eu, não; não espero recompensas, eu me premio e tenho o infinito prazer do plano de ataque, o orgasmo na falcatrua, a adrenalina na apropriação indébita. Eu tenho o orgulho de suportar a culpa, anestesiá-la - suprema inveja dos meros neuróticos e sempre arranjo uma razão que me explica para mim mesmo. Eu sempre estou certo; ou sou vítima de algum mal antigo: uma vingança pela humilhação infantil, pela mãe lavadeira ou prostituta que trabalhou duro para comprar meu diploma falso de advogado. Pois é, eu comprei meu título de advogado; paguei um filho de uma égua para me substituir no exame e ele acertou tudo por mim. Eu me clonei.

Subi até a magistratura. Como juiz e com meu belo diploma falso na parede, vendi muitas sentenças para fazendeiros, queimadores de florestas, enchi o rabo de dinheiro. Passei a ostentar uma dignidade grave, uma cordialidade de discretos sorrisos, vivendo o doce frisson de me sentir superior aos medíocres honestos que se sentem "dignos"; digno era eu, impávido, mentindo, pois a mentira é um dom dos seres superiores. A mentira é necessária para manter as instituições em funcionamento. O Brasil precisa da mentira para viver. E vi que é inebriante ser cruel, insensível, ignorar essas bobagens como a razão, a ética, que não passam de luxos inventados pelos franceses, como os escargots.

Aí, com muito dinheiro encafuado, bufunfas e granolinas entesouradas, eu me permiti as doçuras da vida e me apaixonei por aquela santa que virou mãe de meus filhos. Hoje, com a passagem do tempo, ela vai se consumindo em plásticas e murchando sob pilhas de botox, mas continuo fiel a ela como o marido público, pois nunca a abandonarei, apesar das amantes nas lanchas, dos filhos bastardos.

E, aí, fui criando a minha rede de parentes e amigos; como é doce uma quadrilha, como é bela a confiança de fio de bigode, o trânsito cordial entre a lei e o crime... Assim, eu fechei o ciclo que começou na mãe lavadeira e no diploma falso até a minha toga negra, da melhor seda pura que minha esposa comprou em Miami, e não fui feito desembargador nas coxas não; eu já sabia que bastavam padrinhos e meia dúzia de frases em latim: "Actore non probante, reus absolvitur!" (frase que muito me beneficiou vida a fora.) Depois, claro, fui deputado, senador e sou um homem realizado. Eu sou mais que a verdade; eu sou a realidade. Eu e meus amigos criamos este emaranhado de instituições que regem o atraso do País. Este País foi criado na vala entre o público e o privado. A bosta não produz flores magníficas? Pois é. O que vocês chamam de corrupção, eu chamo de progresso. O Brasil precisa de mim."

Arnaldo Jabor, cineasta e jornalista, escreve para O Globo, do Rio de Janeiro, e O Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado nos dois jornais, edição de 24.05.11.

Armas de Destruição em Massa

Por José Serra

Armas e drogas continuam entrando em grande quantidade pelas fronteiras do Brasil. A cocaína transformada em crack e no oxi, um novo produto, torna-se, na verdade, mais destrutiva que armas de fogo. São centenas de milhares de vítimas, ou milhões, se pensarmos nas famílias afetadas. Uma catástrofe humanitária pior do que muitas guerras. O Estado brasileiro está despreparado para enfrentar essa ameaça e socorrer suas vítimas. Não faz o que deveria fazer: combater duramente a entrada das drogas no Brasil, enfrentar o tráfico, promover campanhas educacionais e recuperar os dependentes químicos.

Um médico amigo me explicou o que torna o crack mais perigoso do que a cocaína. Uma pedra é barata, cerca de R$ 5. Assim, é fácil começar a usá-la. Mas muito difícil parar. Inalada como fumaça, ela é absorvida por milhares de alvéolos nos pulmões e entra na corrente sanguínea numa quantidade e numa velocidade muito maiores do que a droga cheirada ou injetada. O prazer devastador que proporciona é imediato e dura pouco. Em menos de 30 minutos o usuário precisa de outra dose, e mais outra... Torna-se incapaz de qualquer atividade desligada do consumo da droga. Perde emprego, renda, bens, laços familiares, freios morais, numa espiral que muitas vezes só acaba na sua morte.

O oxi é outro derivado da cocaína, parecido com o crack na apresentação e na forma de consumo, mas ainda mais barato e mais letal. Reportagens do jornal O Globo mostraram seus efeitos devastadores sobre os usuários pelas ruas de Rio Branco, capital do Acre: perda de sono e apetite, tremores e agitação constantes, violência, crises de vômito e diarreia, emagrecimento, perda de dentes, lesões nos rins, nos pulmões e no fígado. As vítimas são jovens na maioria, até crianças. Morre-se em menos de dois anos.

Os profissionais de saúde que atendem os usuários de drogas trabalham em condições precárias. A recuperação, penosa em qualquer circunstância, fica ainda mais difícil no quadro de deficiências de gestão da saúde pública brasileira. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem cerca de 250 Centros de Atenção Psicossocial voltados para dependentes de álcool e drogas. São poucos e sem estrutura adequada para as necessidades específicas dos usuários de crack e oxi. Eles poderiam ser mais bem atendidos em pequenas clínicas terapêuticas e unidades de desintoxicação. Mas estas, na concepção dominante no Ministério da Saúde, padecem de um defeito: não são estatais. Nem sequer iniciativas inovadoras dos governos do Rio Grande do Sul e de São Paulo, por exemplo, tiveram apoio do SUS.

Travado pela ideologia e incapaz de usar melhor os recursos insuficientes que destinou à saúde, o governo Lula apelou para a pirotecnia. Depois de anos ignorando o agravamento do problema, lançou dois planos contra o crack, em 2009 e 2010, às vésperas da eleição e no estilo de sempre: colagens de ações desarticuladas, sem instrumentos novos nem recursos adicionais, pouco ou nada implantado efetivamente.

O atendimento da rede pública de saúde é precário e tende a piorar com a disseminação do oxi. A nova droga chegou primeiro ao Acre, próximo dos maiores produtores de cocaína - Bolívia, Peru e Colômbia -, mas, a exemplo do crack, está se espalhando rapidamente pelo Brasil.

As fronteiras brasileiras são das mais desguarnecidas do mundo. Para cuidar dos 15,7 mil km das fronteiras terrestres - 8 mil somente com aqueles três países - temos apenas 1.600 homens do Exército. Ações efetivas de controle diminuiriam a escala e os lucros do narcotráfico, ao aumentar o custo final da droga e, assim, conter a difusão do seu uso. Mas as notícias dessa área não são melhores que as da saúde.

O novo governo prometeu intensificar a repressão ao contrabando de armas e drogas, mas, em vez disso, cortou o orçamento da Polícia Federal, diminuindo sua presença nas fronteiras. Enquanto faltam efetivos e até combustível para as viaturas da polícia em terra, o projeto do avião não tripulado de monitoramento, que rendeu manchetes em 2010, também foi atingido pelo corte orçamentário em 2011.

A redução do contrabando de armas e drogas exige ações efetivas dos dois lados das fronteiras. Porta-vozes do governo e do PT reagiram duramente à cobrança de gestões diplomáticas enérgicas nesse sentido, como se fosse preconceito contra a Bolívia, cujo plantio de coca cresceu 112% na década passada. Imaginaram, talvez, que se estivesse criticando subliminarmente o presidente Lula, que, junto com Evo Morales, posou para fotos com um colar de folhas de coca. Mas o fato é que o governo brasileiro se deixou levar pelas alianças externas do PT e não usou seu poder de pressão diplomática para inibir o tráfico vindo de países vizinhos, apesar dos presentes vultosos aos seus governos: à Bolívia, de onde vem perto de 60% do contrabando de cocaína, financiamentos do BNDES e um pedaço do patrimônio da Petrobrás, além de preços mais altos do gás; ao Paraguai, principal foco de contrabando de armas, US$ 3 bilhões por conta de Itaipu. Não devia ter havido uma troca? "O Brasil ajuda vocês e vocês se ajudam e ao povo brasileiro, combatendo o crime dentro de seus países".

No começo deste ano, o Itamaraty assinou um acordo de cooperação com a Bolívia para o combate ao contrabando de cocaína, começando a reconhecer o problema. Ações efetivas? O ministro da Justiça anunciou que compartilhará com os bolivianos as informações obtidas pelo avião não tripulado, por enquanto uma fantasia!

Em suma, faltam ações maiúsculas na diplomacia, na segurança pública e na saúde. Falta uma Guarda Nacional ou pelo menos um ramo fardado da Política Federal para se ocupar de fronteiras, focalizado no combate ao contrabando de armas e de drogas. Enquanto o governo brasileiro continuar oscilando entre a inércia e a pirotecnia, o custo para o País será exorbitante em matéria de vidas de muitos e de insegurança para todos.

José Serra, economista, foi Governador de S.Paulo e candidato a Presidente da República em 2010. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 28.04.11.

Alternativas de Justiça

Cerca de 40% das pessoas presas hoje no Brasil estão aguardando julgamento, ou seja, estão presas sem ter sido condenadas.

Ainda mais grave é constatar que muitas delas, ao final do processo, serão condenadas a uma pena alternativa. Isso significa que, mesmo tendo cometido delitos para os quais não deveriam ser submetidas à prisão, terminam confinadas no sistema carcerário.

Tal situação cria ao menos dois efeitos indesejáveis: a possibilidade de o preso criar vínculos com o crime organizado, na prisão, e a posterior dificuldade de conseguir um emprego, uma vez libertado.

O Brasil avançou muito no tema das penas alternativas. Hoje, o número de indivíduos que cumprem esse tipo de pena é igual ao número de pessoas presas, uma situação que, no entanto, se aplica apenas a condenados.

Antes da condenação, o juiz tem só duas opções: soltar ou prender. Assim, surge o dilema entre respeitar a presunção de inocência ou impedir, por meio da prisão, que o réu cometa outros crimes, destrua provas ou fuja.

O projeto de lei 4.208/ 2001, aprovado há poucos dias na Câmara dos Deputados, pretende solucionar esse problema. Ele estabelece uma série de medidas intermediárias -entre a prisão e a falta total de controle- que podem ser determinadas pelo juiz.

Dessa forma, se o projeto terminar sancionado pela presidente Dilma Rousseff, o juiz poderá estabelecer a prisão domiciliar, a limitação de frequentar determinados lugares ou até o monitoramento eletrônico.

Com essas alternativas à disposição, o magistrado poderá avaliar, em cada caso, quais as medidas mais adequadas para proteger o andamento do processo sem ameaçar os direitos de pessoas que não foram julgadas.

O projeto também estabelece que fica proibida a prisão preventiva nos casos em que a pena passível de aplicação, caso o réu venha a ser condenado, possa ser substituída por uma pena alternativa. Não faz sentido manter encarcerada uma pessoa para receber depois uma sentença diferente da privação de liberdade.

Por fim, é importante salientar que, apesar dos avanços do projeto, mais uma vez o Congresso desperdiçou a oportunidade de acabar com um instituto arcaico e injustificável: a prisão especial. O texto aprovado no Senado acabava com esse privilégio e deixava a critério do juiz a segregação do réu que pudesse de fato correr algum perigo no cárcere.

Lamentavelmente, a Câmara dos Deputados rejeitou a ideia e preservou o preceito indefensável para autoridades -parlamentares, governadores, prefeitos, líderes religiosos e presidentes de sindicatos- e possuidores de diplomas universitários.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 12.04.11.

Não Existíamos e Não Sabíamos

Por Arnaldo Jabor

Na revista piauí deste mês, há um artigo seminal de Pérsio Arida, sobre sua participação juvenil na guerrilha urbana. Lá está a análise rara de um prisioneiro torturado sobre a onda revolucionária que pegou nossa geração; lá estão os humanos tremores, a dúvida, o medo, todo o irresistível delírio ideológico e psicológico que insuflou uma geração para sofrimentos e mortes depois de 68. A luta armada foi a consequência da fé que tínhamos antes de 64, influenciados pela guerra fria, Cuba liberada, Vietnã.

A importância que restou de tudo, como Pérsio aponta, foi justamente a "via-crúcis" que tivemos de viver e que, por vias tortas, acabou nos levando à democracia em 85. Historicamente, foi bom.

O golpe militar de 64 aconteceu porque nós não existíamos. Éramos uma ilusão. A esquerda era uma ilusão no Brasil. (Já imagino as "cerdas bravas do javali" se eriçando em alguns cangotes). Mas, existia o quê? Existia uma revolução verbal. A ideologia "revolucionária" era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio e sonho. Existia uma ideologia que nos dava a sensação de que o "povo do Brasil marchava conosco", um "wishful thinking" de que éramos o "sal da terra". Havia a crendice de que nossos inimigos estavam todos "fora" de nós, fora do País e das estruturas políticas arcaicas que nos corroem há 400 anos. Existia um "bacalhau português" em nosso discurso, um forte ranço ibérico em nosso aparente "rationale" franco-alemão: o amor ao abstrato, a literatura salvacionista, a busca de um "Uno" totalizante. A população nem sabia que existíamos. Não havia base material, econômica ou armada, "condições objetivas" para qualquer revolução. Por trás de nossas utopias, o Brasil escravista e patriarcal dormia a sono solto, intocado. Éramos uma esquerda imaginária, delegando ao Estado a tarefa de fazer uma revolução contra o Estado. Até nas revoluções precisamos do Governo.

Por baixo dos sonhos juvenis, havia apenas o sindicalismo de pelegos e dependentes do presidente, que deu a grande festa de 13 de março (o comício da Central, com tochas da Petrobrás e clima soviético). Eu estava lá, olhando para Thereza Goulart, linda de vestido azul e coque anos 60 e vendo, depois, com calafrio na espinha, as velas acesas em protesto contra nós em todas as janelas da classe média "reacionária", do Flamengo até Ipanema. Essa era a verdadeira "sociedade civil" que acordava. Hoje, acho que o único cara que sacava a zorra toda era o próprio Jango, mais brasileiro, mais sábio, entre os gritos de Darcy Ribeiro falando do "Brasil, nossa Roma tropical!". Havia uma espécie de "substituição de importações dentro da alma": a crença de que éramos "especiais" e de que podíamos prescindir do mundo real, fazendo uma mutação por vontade mágica. Só analisávamos a realidade "objetiva", quando tínhamos de estar incluídos nela, subjetivamente. Em seu artigo, Pérsio se inclui.

Mas existia o que, então?

Existiam os outros. Os "outros" surgiram do nada. O óbvio de nossa cultura pipocou do "nada" em 64. Fantasmas seculares reviveram. Apareceu uma classe média apavorada e burra, que sempre esteve ali. Surgiu um Exército autoritário e submisso às exigências externas. Ficamos conhecendo a ignorância do povo (que idealizávamos), descobrimos que a resistência reacionária de minhas tias era igual à dos usineiros e banqueiros. Descobrimos a violência repressiva de uma falsa "cordialidade". Descobrimos o óbvio do mundo.

Eu estava dentro da UNE pegando fogo no 1.º de abril e quase morri queimado; mas, senti nesse dia que a vida real começava. A sensação não foi de derrota; foi a de acordar de um sonho para um pesadelo. Um pesadelo feito de milicos grossos, burrice popular e pragmatismo de gringos do "mercado". (Foi inesquecível o surgimento de Castelo Branco, feio como um ET de boné verde, na capa do O Cruzeiro).

Em 64, começara o calvário que nos levou a uma possível maturidade. Despertamos para a bruta mão do "money market", que precisava nos emprestar dinheiro, para que o Estado pós-getulista-verde-oliva avalizasse a instalação das multinacionais aqui. Ou vocês acham que iam nos emprestar US$ 100 bilhões para o Jango fazer a reforma agrária com o Francisco Julião? Aprisionaram-nos para contrairmos a dívida como, 20 anos depois, nos libertaram para pagá-la. Depois de 64 e 68, vimos que a esquerda tinha "princípios" e "fins", mas não tinha "meios".

Nossos paranoicos achavam (e muitos continuam achando) que somos vítimas de uma trama de Washington.

Claro que a CIA armou coisas com direitistas daqui, mas foram apenas os parteiros do desejo material da Produção.

O tempo da ditadura foi um show de materialismo histórico. Mas ibérico não gosta de ver essas coisas. E, logo, tapamos os olhos e nos consideramos as "vítimas", lutando pela "liberdade" formal. E não víamos que a barra-pesada estava entranhada em nossas instituições políticas, assim como não havia ideal democrático nenhum em nossos guerrilheiros. Nessa época, poderíamos ter descoberto que um país sem sociedade organizada morre na praia. E deveríamos ter descoberto que não adianta nada analisar os "erros" de nossa esquerda "revolucionária" como se fossem erros episódicos, veniais. A esquerda no Brasil tem de ser repensada "ab ovo", pois é impossível trancar a complexidade de nossa formação nacional num "pensamento único". Por isso, é desesperante ver gente ainda querendo restaurar ilusões perdidas.

O tempo não para e as forças produtivas do mundo continuarão agindo sobre nossa resistência colonial.

A mutação modernizadora, digital, do mundo nos obriga à democracia. Quando entenderemos que a verdadeira revolução brasileira tem de ser endógena, democrática e que só um choque de capitalismo e de empreendedores livres pode arrasar o "bunker" corrupto, a casamata secular do Estado patrimonialista? Pérsio não morreu e, 20 anos depois, ajudou a acabar com a inflação. Valeu...

Arnaldo Jabor é cineasta e jornalista. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 26.04.11.

Justiça ou Injustiça

Por Eliane Cantanhede

Três governadores eleitos em 2006 foram cassados em 2009 por "abuso do poder econômico": Marcelo Miranda (PMDB), do Tocantins, Cássio Cunha Lima (PSDB), da Paraíba, e Jackson Lago (PDT), do Maranhão, que morreu ontem, melancolicamente.

Foram acusados de dispor da máquina pública para obter votos, nomeando afilhados e distribuindo benesses entre os eleitores. Dos três, dois, Cunha Lima e Lago, foram substituídos pelos candidatos que haviam derrotado nas urnas.

Será que eles fizeram algo muito diferente dos adversários? Será mesmo que Lago usou mais o poder econômico no Maranhão do que a derrotada Roseana Sarney?

Ele perdeu a eleição em 2002 para José Reinaldo, que, de amigo, virou inimigo dos Sarney numa guinada política e pessoal. Quatro anos depois, numa eleição que deixou os institutos de pesquisas rubros de vergonha, Roseana passou a campanha inteira como favorita, mas Lago ganhou no segundo turno. Ganhou nas urnas, perdeu na Justiça Eleitoral três anos depois.

Em 2010, a eleição no Maranhão foi um festival de barbaridades. Lula obrigou o PT a dar uma cambalhota e usar a bandeira e a estrela vermelha na campanha de Roseana, a oposição se dividiu entre Lago e Flávio Dino (PC do B), e o Estado teve quase um quarto de abstenções, o recorde nacional. Resultado: Roseana venceu no primeiro turno por 50,08%, por um triz.

Dúvida: Jackson Lago foi cassado para que o país se torne efetivamente melhor, ou porque não teve a mídia, o dinheiro, os advogados e as vantagens que a adversária Roseana teve a vida inteira?

E por que só os governadores de Maranhão, Paraíba e Tocantins? É improvável que só eles tenham usado a máquina, as verbas, os secretários e rádio, TV, internet, programas sociais e compra de votos em eleições para si ou para aliados.

Nos Estados ricos ninguém faz isso? Aliás, e Lula para eleger Dilma?

Eliane Cantanhede é comentarista de política do jornal FOLHA DE SAO PAULO. Este artigo foi publicado originalmente na edição de 05.04.11.

Uma Questão de Estilo

Por Nelson Mota

Os lulistas ficam eriçados como as cerdas bravas do javali quando, por falta de assunto ou de notícias do governo, a imprensa insiste em comparar e acentuar as diferenças entre Dilma e Lula. Logo dizem que a amizade dos dois é inabalável, que eles discutem a relação toda semana, que ninguém vai intrigá-los, muito menos a mídia golpista. Dilma sempre elogia Lula em público, chegou a dizer que eles tinham muitas afinidades, mas não eram a mesma pessoa, como se alguém pudesse sê-lo.

Nem o mais pérfido e melífluo dos conspiradores tem a pretensão de abalar a aliança de Lula e Dilma, porque os dois podem ser tudo, menos burros. Talvez sejam diferentes na tolerância com incompetências e malfeitorias de aliados, mas só o tempo dirá.

A evidência é que o estilo Lula de animador de auditório, de bravatas e grossuras, de palanqueiro em campanha permanente, pode até ser divertido e ter funcionado, mas foi tão intenso que cansou o público, como os comediantes de sucesso depois de um tempo. Isso não faz melhores ou piores os resultados de sua administração, é só uma questão de estilo. Desgostar do jeito de ser de alguém não impede de reconhecer o seu desempenho.

Com os aplausos que o seu governo merece e respeito pela sua história, muita gente acha esse estilo detestável. Sem preconceito contra líderes populares falastrões, ou nordestinos notáveis, ou quem não podia estudar mas aprendeu a ensinar, como Marina Silva. Muitos também detestam o estilo pavão de FHC. O que incomoda é a obsessão pelo protagonismo, a prepotência e estridência da fala rude e machista, o rancor e o ressentimento do discurso divisionista, o choro fácil. Ninguém aguenta tanto exibicionismo autocongratulatório durante muito tempo, nem os líderes mais populares.

Com a sobriedade e autoridade naturais de uma personagem que lhe é confortável, Dilma está aparecendo mais pelo que não faz como Lula do que pelo desempenho do seu governo. Mas foi ele que a descobriu, acreditou e apostou nela.

Quando a cobra fumar e a onça beber água no julgamento do mensalão é que se verá o quanto Dilma e Lula são diferentes. Ou não.

Nelson Mota é Jornalista. Este artigo ofoi publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 09.04.11.

Fundo de Pensão Para os Servidores

São conhecidas as resistências corporativas à instituição de um fundo de previdência complementar para os funcionários públicos. A ideia básica é que os servidores públicos, dos Três Poderes, tenham direitos iguais aos dos cidadãos comuns, que atualmente se aposentam pelo INSS, com os proventos máximos de R$ 3.699,66, e não com salários integrais, à custa do contribuinte.

Para corrigir o descompasso, o governo encaminhou ao Congresso, em 2007, um projeto de lei - até hoje paralisado - regulamentando a criação de um fundo de pensão dos servidores públicos. Agora, o governo da presidente Dilma Rousseff pretende transformá-lo em lei, como parte do esforço para colocar as contas públicas em ordem.

O problema da Previdência Social não pode ser equacionado sem medidas para reduzir, ao mais longo prazo, o peso das aposentadorias e pensões dos servidores federais dos Três Poderes. Dados já divulgados mostram que o déficit previdenciário dos funcionários públicos atingiu R$ 51,2 bilhões em 2010. Enquanto isso, o déficit causado pelos empregados do setor privado foi de R$ 42,8 bilhões. Ou seja, no ano passado, o déficit por funcionário aposentado foi de R$ 53.950, enquanto o déficit por trabalhador aposentado pelo INSS foi de R$ 1.787.

Se existe a perspectiva de que, com o crescimento das contratações de trabalhadores com carteira assinada e com um eventual aumento da idade para aposentadoria, o déficit previdenciário da área privada possa ser consideravelmente abatido, a expectativa é que o déficit do setor público continue aumentando desbragadamente. A não ser que se institua um fundo de pensão específico para a categoria. Naturalmente, os funcionários teriam de contribuir para um fundo de pensão, com uma contrapartida de dotações efetivas por parte do governo.

É aí que o carro pega. Os servidores interpretam a contribuição que deveriam fazer como uma redução de salário, não como uma poupança. Bem ao contrário, os fundos de pensão de estatais e de empresas privadas são vistos pelos seus associados como um benefício, embora também pesem sobre os vencimentos recebidos.

Particularmente no caso do Judiciário, os magistrados se aferram ao dispositivo constitucional pelo qual seus proventos são irredutíveis. É claro que isso se refere ao valor nominal da remuneração, que está sujeita a impostos e contribuições, tanto mais aquela parcela destinada à cobertura de aposentadorias e pensões. O projeto ressalva que a previdência complementar só teria plena validade para os que ingressarem no serviço público a partir da regulamentação da lei. É previsto também um prazo de carência, bem como um período de transição, com contribuições variáveis de acordo com os anos de serviço, de modo a não ocasionar perdas.

Apesar disso, mesmo dispondo de folgada maioria nas duas Casas do Congresso, o governo terá dificuldade para aprovar o projeto. O ministro da Previdência Social, Garibaldi Alves, com sua experiência parlamentar, não o ignora e cogitou da formação de um fundo de pensão para cada um dos Poderes da República, e não um fundo único como previsto. Isso, porém, atrasaria ainda mais a tramitação do projeto, que talvez não pudesse ser votado na atual legislatura.

Deve-se notar que, no início, o fundo de pensão dos servidores representaria uma despesa adicional para o governo, que terá de incluir na proposta orçamentária as verbas necessárias para cumprir a parte que lhe cabe. O gasto, porém, seria amenizado, uma vez que uma boa parcela dos recursos poderia ser aplicada em títulos do Tesouro ou destinada a obras de infraestrutura, tal como agora ocorre com os fundos de pensão de estatais.

Com o tempo, seria criada uma enorme reserva de poupança, lembrando-se que os fundos de pensão de servidores públicos de alguns países, como os EUA e o Japão, figuram entre os maiores investidores institucionais do mundo.

O proveito maior para o País, porém, seria estancar o déficit previdenciário do setor público no futuro.

Editorial de O ESTADO DE SAO PAULO, edição de 01.4.11.

NR. O Fundo de Pensão cujo projeto tramita no Congresso desde 2007 foi concebido originalmente apenas para o Poder Judiciário. O projeto resultou de reuniões e debates em todos os Estados, sendo afinal aprovado pelo Pleno do STJ, ainda sob a minha Presidência. Quem me soprou a ideia foi o Lula. Quando lhe dei a noticia de que já havia obtido o consenso no Judiciário, tendo o Projeto obtido aprovação do Conselho da Justiça Federal e do Pleno do STJ, ele pediu que eu me reunisse com a Dilma, então Chefe da Casa Civil. Conversamos por cerca de meia hora, ela compreendeu tudo e enviou o projeto para o Ministério da Previdência Social. E lá o Nelson Machado achou a ideia tão boa que resolveu estender o Fundo de Pensão para todos os servidores públicos. E aí complicou por falta de consenso. Mais cedo ou mais tarde os servidores se convencerão que o Fundo de Pensão será o melhor para eles e para o País.

Saúde de Presidente é Coisa Séria

Por Élio Gáspari

No dia 30 de abril, um sábado, Dilma Rousseff foi atendida no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, e seu médico particular, Roberto Kalil, informou que ela teve "uma leve pneumonia". A doença seria consequência de uma gripe contraída semanas antes, na volta de sua viagem à China. Logo retomaria sua rotina, mas deveria tomar antibióticos por dez dias.

Durante as três semanas seguintes, a presidente cancelou uma viagem ao Paraguai, duas ao Rio de Janeiro e passou quase todo o tempo no Palácio da Alvorada. O que era uma "pneumonia leve" mostrou-se coisa diversa.

Passadas duas semanas do diagnóstico de Kalil, soube-se que Dilma não aceitara uma recomendação para ficar internada no Sírio-Libanês.

Mais: a pneumonia, diagnosticada em Brasília dois dias antes, determinara sua viagem a São Paulo.

Na última sexta-feira, 20, a repórter Renata Lo Prete informou:

"As informações inicialmente divulgadas sobre a pneumonia de Dilma se revelaram improcedentes não apenas quanto ao fato de a infecção não ter sido ‘leve’. Agora, assessores da presidente admitem que foram atingidos os dois pulmões, e não somente um."

No mesmo dia, o repórter Ancelmo Gois avisava:

"Foi muito mais grave do que o governo divulgou a pneumonia de Dilma."

O que é que houve com Dilma Rousseff? Neste artigo não há uma única informação capaz de responder a essa pergunta. Com certeza, a presidente caiu (ou colocou-se) numa armadilha velha, perigosa e geralmente inútil.

Seja qual for o governo, seja qual for o regime, sempre haverá cortesãos prontos para informar que nada há de anormal com o doente.

O mascaramento começa com um movimento quase ingênuo, bem-intencionado. O problema é "leve" e passageiro, não havendo motivo para intranquilizar o público.

No lance seguinte, criam-se uma realidade virtual e um círculo protetor do sigilo. Sucedem-se agendas com "despachos internos" ou mesmo reuniões de trabalho que não aconteceram.

Quem protege o segredo persegue prestígio, mas desgasta a própria credibilidade e estimula inevitáveis indiscrições que alimentam boatos.

(Em 1969, quando a Junta Militar dizia que o marechal Costa e Silva, paralisado por uma isquemia, estava melhorando, corria na rua que ele estava embalsamado no Palácio Laranjeiras.)

Talvez a doutora Dilma acredite que o Planalto foi de transparência exemplar em 2009, ao contar que ela padecia de um câncer linfático. Não foi bem assim.

O quadro foi reconhecido no dia 25 de abril, horas depois de a repórter Mônica Bergamo ter revelado que ela recebera um cateter para administração de medicamentos quimioterápicos. Ela fora operada no dia 28 de março e já passara por uma primeira sessão de quimioterapia. Tudo em segredo. Deu certo, mas precisava?

Dois anos depois, a pneumonia "leve" não foi confirmada, a especulação sobre a saúde da presidente tornou-se um esporte e os exageros foram liberados.

Tudo ficaria melhor se um assunto desse tamanho fosse administrado publicamente, com médicos que só falam de medicina, em notas oficiais (responsabilizando-se profissionalmente), e por autoridades da Presidência da República que, de medicina, não falam.

Assim, protegem-se os médicos, o governo e, sobretudo, os pacientes.

Élio Gáspari é Jornalista e historiador. Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, RJ, edição de 25.05.11.

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O Jardim dos Finzi-Contini

A História mostra que o sonambulismo adesista das elites aos governos acaba em tragédia... Por Luiz Felipe D’Avila, O Estado de S.Paulo 28 de julho de 2021 | 03h00 Parte da elite empresarial brasileira navega entre o cinismo, o oportunismo e o egoísmo. O cinismo nas suas conversas de salão permeia os sussurros de que a eleição de 2022 já está definida: será o embate entre Lula e Bolsonaro. Um grupo já começa a fazer hedge com Lula, quer ajudá-lo a ressuscitar o presidente da era Palocci e Henrique Meirelles, que governava o País em sintonia com o mercado e com a agenda social. O outro grupo faz hedge com Bolsonaro. Entende que a volta do PT é inaceitável e não resta alternativa senão manter-se próximo do presidente e tentar domar o seu destempero com conselhos de mercado para fazer a economia voltar a crescer. Essa visão irresponsável de parcela da elite colabora para perpetuar o atraso do Brasil. O oportunismo do corporativismo empresarial retarda a abertura comercial, compromete a produtividade e a competitividade do País nos mercados globais, sabota a aprovação da agenda modernizadora do Estado e destrói a igualdade de oportunidades. Sempre disposta a cortejar o poder para garantir o êxito nos negócios, ela não se envergonha de abandonar o discurso liberal proferido na imprensa por conversas reservadas ao pé de ouvido dos políticos para manter benefícios tributários, subsídios setoriais e reserva de mercado. Assim, essa parcela oportunista da elite colabora para manter a Nação num estado permanente de pobreza, desigualdade e volatilidade política. A simbiose entre o populismo e o corporativismo é nociva para o Brasil. Não se cria igualdade de oportunidades numa nação em que o Estado é refém de feudos de privilégios. Não se prospera numa nação carcomida pela corrupção e pela atroz desigualdade social. Não se cultiva a fleuma da esperança num país onde o poder público nutre eterna desconfiança da competição de mercado e arquiteta inúmeras leis e regras para inibir o empreendedorismo, a inovação e a produção de conhecimento. A História mostra que esse sonambulismo adesista de parte da elite empresarial aos governos acaba em tragédia, principalmente quando a democracia está em risco. Aqueles que acham que há um certo exagero nessa afirmação deveriam rever o filme de Vittorio de Sica O Jardim dos Finzi-Contini. Trata-se do drama de uma família aristocrática judia na Itália fascista. Enclausurada nos muros de sua linda mansão, os Finzi-Contini continuavam a desfrutar a companhia de amigos, festas e torneios de tênis. Entendiam que Mussolini era a melhor alternativa ao caos e ao comunismo, apesar das evidências de que o governo fascista minava a democracia e edificava um Estado autoritário. Ao ignorarem as evidências, os Finzi-Contini perderam a noção do perigo para o país e a família. Apesar de a perseguição aos judeus aumentar, os Finzi- Contini entendiam que o governo de Mussolini seria breve e a situação política voltaria rapidamente ao velho normal. Mas, ao dobrar a aposta na esperança de dias melhores e ignorar os fatos, os Finzi Contini tiveram um fim trágico nos campos de concentração da Alemanha nazista. O totalitarismo acabou com a família, com os negócios e com o país. Como disse a filósofa Hannah Arendt, “aqueles que escolhem o mal menor esquecem rapidamente de que escolheram o mal”. Assim, esquecem rapidamente que Lula é a gênese do mensalão, do maior esquema de corrupção da História do País, da polarização política do “nós e eles”, da defesa das tiranias cubana e venezuelana e o principal cabo eleitoral de Dilma Rousseff, a presidente petista responsável pela estagnação econômica, por 13 milhões de desempregados e pelo descrédito da política, que semeou o caminho da vitória de Bolsonaro em 2018. Já os que apoiam Bolsonaro desconsideram o fato de que o presidente traiu os seus eleitores. A agenda liberal da economia não saiu do papel, o combate à corrupção não progrediu (como mostra a CPI da Covid) e a defesa dos valores cristãos revelou-se uma farsa quando o presidente é incapaz de mostrar a principal virtude cristã, a compaixão. Seu comportamento revelou um líder irresponsável e insensível ao sofrimento de milhares de pessoas que perderam familiares e amigos durante a pandemia. Para evitar o destino trágico dos Finzi-Contini, resta pouco tempo para a elite oportunista mudar de atitude e unir esforços com as lideranças empresariais, sociais, políticas e intelectuais que se estão mobilizando para criar uma candidatura presidencial de centro e salvar a democracia das garras do populismo. Esse grupo tem plena consciência de que a perpetuação do populismo representa uma grave ameaça à democracia e à retomada do crescimento sustentável. A missão desse grupo é clara: evitar a fragmentação das candidaturas do centro democrático e criar uma chapa presidenciável competitiva até o fim do ano. A eleição de 2022 oferece uma chance ímpar para unirmos o Brasil dos empreendedores e dos trabalhadores, dos liberais e conservadores em torno de uma candidatura capaz de vencer o regresso ao passado tenebroso e a preservação do presente desastroso. Luiz Felipe D'Avila, cientista político, é autor do livro "10 Mandamentos - Do Brasil que somos para o Brasil que queremos". Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 28.07.2021
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