sábado, 4 de outubro de 2014

Cortinas

É preciso estar muito atento para se perceber que o galo está cantando fora de hora.

Quando não havia essas poluições ambientais, sonoras e mais que trais atormentando até mesmo o interior do mato, o despertador pontual era o galo em todo raiar do dia. 

Encolhido na rede, o corpo pedia mais um tempinho para a preguiça, mas o galo entoando seu canto a pulmões fortes era que nem um cabo corneteiro a irradiar seu anuncio e obrigação. 

Alguém se lembra de algum galo cantando no mais cedo das manhãs chuvosas? 

Ora, se a chuva da noite se encomprida até o mais cedinho enquanto o sol não dilui a penumbra quieta do amanhecer, qual galo se arrogará ao direito de suplantar com o seu canto poderoso a sinfonia tirada de instrumento invisível pelos pingos da chuva? 

Quintal de respeito não pode deixar de ter caju, manga, cidreira, carambola, cajá, abacate, banana, pitomba, guabiroba, pimenteiras, umas moitas de ervas, pião roxo e espada de São Jorge contra maus olhados e, também, um jumento. 

No mínimo, um jumento. O ideal mesmo é que o jumento viva ao lado da sua jumenta. Nisso a minha mulher é inflexível. Todo bicho feito por macho e fêmea um dia tem que se acasalar. Às vezes me comovo ante a insatisfação dela quando vê um bicho sem o seu par. Cadê a ovelha desse carneiro, seu Zé? 

Não deu certo quando ela resolveu que os frangotes seguissem na promiscuidade com as galinhas. Aos poucos foram engrossando a voz até se assumirem galos. Lá se foi embora a paz do galinheiro. 

Até cantei pra ela aqueles versos do Caetano – “e não há segredo / a vida é assim mesmo / e pior a emenda do que soneto / está sempre a esquerda a porta do banheiro /e há só um galo em cada galinheiro / e certa gente se conhece no cheiro...” 

Redistribuídos, reassentados, ficou só um galo em cada galinheiro. Os que estavam quase virando galos foram, um por um, a cada dia, doados à panela.  

Eurídice odeia que ao menos se fale em castração de qualquer bicho. A Miúcha, minha pug infalível nas horas mais terríveis da depressão, morre de ciúmes do Kindle, o pug do Rodolpho, só porque a Camila o apresentou a uma certa Ilminha, uma pug de pelo escuro que nos fins de semana aparece no parque. 

Quando comer bicho do mato não era nada condenável, eis que havia até um restaurante com um criadouro de veados e pacas chamado Selva do Brás, Eurídice recusou um jabuti que um amigo caçador quis lhe dar de presente. Como iria viver o jabuti sem a sua jabota? 

Quando não havia essas poluições sonoras não precisava tanta atenção ao relinchar dos jumentos. Eles tinham hora certa. Relinchavam pontualmente de hora em hora. O Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, até registrou isso proclamando que o relógio dos pobres é o jumento. 

Mas hoje, colega, galo nem se liga mais no amanhecer para com o seu canto poderoso e sem igual lembrar que o sol sempre vem anunciando um bom dia.
Jumento também parece ter se revoltado quebrando, que nem os galos, suas conexões com os graus centígrados e as horas.  

Do mesmo modo, exceções à regra, os candidatos às eleições de domingo. Tudo já parece tão desmantelado que daqui a pouco será a lua a se acumpliciar com as trevas para um ato nefasto num apagão total. Ai de ti, Brasil.

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