segunda-feira, 31 de março de 2014

Escureceu


E foi assim que por volta da meia noite, já começando o Dia da Mentira, 1º de abril, a redação do "Jornal do Dia", na Rua de Santana, em São Luis, Maranhão, não levando a sério o que o rádio dizia sobre uma insurgência militar em Juiz de Fora, Minas Gerais, fechou a primeira página com a manchete de uma só palavra em letras enormes – GORILAS.

Num canto, em cercadura, um "Manifesto ao Povo Maranhense", em defesa do mandato constitucional do Presidente da República, João Goulart. Assinavam-no  – Bandeira Tribuzi, pela Frente de Mobilização Popular; Manoel Vera Cruz Marques, pelo Pacto de Unidade e Ação Sindical e Edson Carvalho Vidigal, pela União Maranhense de Estudantes Secundários.

Sim, eu mesmo numa das minhas várias militâncias. Jornalista de Oposição, trabalhava num jornal de Oposição. Estudante secundarista, era Vice-Presidente da UMES. Político de Oposição, já era àquela altura Vereador em Caxias, à época o segundo maior colégio eleitoral do Estado. E na Câmara, era o Líder da Oposição. Uma bancada de três contra nove governistas.

Tudo aparentava normalidade, tanto que nos primeiros dias após o golpe ainda ensaiamos passeatas. Lembro que saímos num fusca com um megafone e parando à frente de uma unidade militar gritamos palavras de ordem, em sucessivas atitudes de muita provocação. 

Eu acreditava tanto na força da ordem constitucional democrática que andava com um exemplar de bolso da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, como se aquele livrinho tivesse o condão de mandar para o inferno os demônios do autoritarismo que se arreganhava. Nem percebi que alguns mais atuantes naquela resistência já estavam saindo fora. Minha mãe me ensinou que "quem não deve não teme" e então fiquei na ilha sem me esconder em canto nenhum.

No Liceu Maranhense, onde cursava o ginásio, turno da manhã, meu nome foi riscado da lista de presenças. Mais uma vez, provocativamente, esperei antes de cada aula que todos os nomes fossem chamados até que, ao final, omitido o meu, eu fosse reclamar com o professor. Ele mostrava o risco firme, em cor vermelha. Já estava expulso do colégio e não sabia.

Na Praça João Lisboa, não percebendo que os agitadores de sempre – hoje seriam chamados de formadores de opinião – desapareciam. Não me incomodei. Segui aparecendo. Eu que era apenas o que sempre fui e continuo sendo  - um democrata, um legalista.

Até que surgiu um jipe verde-oliva sem capota na porta do colégio e me levaram ao Quartel do 24/BC. Isso foi no dia 14 de abril de 1964. Foi engraçado no inicio. Depois não teve graça nenhuma. Os caras mandaram me recolher num cubículo, espaço só para um, que ficava ao lado do Corpo da Guarda.

Fiquei ali dez dias e depois, sem mais nem menos, me soltaram. Foi quando fiquei sabendo que os mandatos, o de Vereador e o de Vice da UMES, haviam sido cassados. Outra vez, sem perceber que estava provocando os vencedores, cutucando vara com onça curta, saí atrás de medidas legais para reaver a cadeira na Câmara.

Num outro dia, que não me lembro, mais um jipe, talvez o mesmo, parou pela manhã na porta do "Jornal do Dia", na Rua de Santana, novamente me levaram para o Quartel do 24/BC. Deixaram-me num corredor aguardando. Passou um Capitão, conhecido do meu bairro, encarregado do IPM dos estudantes (Inquérito Policial Militar). Olhou o relógio, disse que ia almoçar e que depois falaria comigo. 

Daí a pouco passaram dois soldados levando uma cama de solteiro, depois outros dois levando um colchão e roupa de cama. Nem desconfiei. E aí me levaram para um alojamento onde já estavam presos com cadeado e tudo outros líderes do movimento estudantil.

Em grupo, a raça humana se dá melhor. Soubemos superar o tédio, não cair na depressão. Das visitas familiares ficava açúcar, limão e na garrafa térmica não café, mas algum destilado. Desses contrabandos fazíamos caipirinhas deliciosas. Sem gelo, mas deliciosas.

Instituímos a República dos Presos Políticos e na Constituição havia um artigo, no Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, que o Cidadão poderia perder todos os direitos se fosse declarado solto, mandado de volta à liberdade. Isso tudo escrito.

Tinha ainda a estória com que nos ameaçavam sobre um navio que estaria a caminho da ilha para levar a nós todos para a prisão de Fernando de Noronha, onde já estavam Miguel Arrais e outros. 

Nos banhos de sol reencontrávamos os presos de outras celas – Tribuzi, José Bento, José Mário, Sálvio Dino. Não podíamos conversar muito e vi algumas vezes dois militares no telhado do quartel nos filmando ou fazendo de conta que nos filmavam.

Um dia chegou um General de Fortaleza, da 10ª Região Militar, e o Capitão do IPM levou-o ao alojamento onde estavam os comuno-subversivos do movimento estudantil no Maranhão. Éramos quase vinte, se bem me lembro. 

Imaginem a cena. Os dois oficiais fardados, no que eles acreditavam estarem prestando o melhor serviço ao País e nós jovens idealistas, legalistas, detrás das grades, sendo mostrados ali como troféus da revolução deles. 

O Capitão do IPM fumava "Minister" com filtro e arrisquei filar um. Aí o sua excelência se deu conta de mim, ali entre os demais. E me perguntou como se estivesse, de há muito, à minha procura – o que eu estava fazendo ali. Respondi – esperando o senhor acabar de almoçar. Dia seguinte fui excluído do banho de sol.

Cinquenta e três dias depois fui solto por uma ordem de "habeas corpus" do Superior Tribunal Militar. Estava preso além do prazo legal, sem culpa formada. Assim determinava a Lei de Segurança Nacional, em vigor à época. Hoje, no atual Estado de Direito, você pode ficar preso sem culpa formada até por mais de um ano e ainda que alegue excesso de prazo pode surgir um Parecer do Ministério Público e quase sempre um Juiz e até Ministro concordando - se há excesso de prazo a culpa é da defesa que provocou o atraso com os recursos que apresentou. Cínico, não? Sei de muitos acórdãos com esses desarrazoados fundamentos.

Depois, bem. Bem depois, concluído o IPM, decretaram minha prisão preventiva. E passei a viver um novo capítulo de perseguições, exclusões profissionais e políticas e para nunca mais ter que entregar meu lombo à taca dos poderosos tive que me ir embora do Maranhão algumas vezes. Como volta e meia sou obrigado a fazer ainda hoje. Algumas vezes.

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