domingo, 25 de agosto de 2013

Tempo, Tempo

A cela não tinha nada. Uma cama, um banheiro, baratas. Eu ficava esperando o tempo passar. E ele era infinito. Ninguém para conversar. Estava em isolamento. A porta era compacta, não era de grade que deixasse entrever algo ou alguém. E não havia nada para ler.

Eu tinha 19 anos e até então o que eu mais tinha feito na vida era ler. Na infância e adolescência eu tinha trocado qualquer brincadeira, namoro, festa, viagem por um bom livro. De repente eu estava lá. Sem um livro. O tempo era intoleravelmente longo. Cada minuto durava uma hora.

Eu era prisioneira também do tempo.

Carreguei a vida inteira essa sensação intolerável da ausência do livro numa cela fechada. Implorei por qualquer coisa para ler. Ninguém me atendeu. A aflição dessa espera vazia era interrompida quando me buscavam para o interrogatório. Então o tempo também era longo, só que era pior.

Aprendi sobre o valor e a natureza do tempo na prisão.

Se eu ao menos tivesse um livro! Acho que essa foi a frase que eu mais pensei nos intermináveis silêncios daquela cela que dividi com as baratas, o colchão sujo de sangue e o banheiro infecto.

Era para falar do uso do tempo — da vida cotidiana, da divisão entre trabalho, prazer, família, amigos — e eu derivei por um caminho inesperado. Áspero. Me perdoe leitor; são as trapaças da mente. Eu pensei em escrever sobre como organizar o tempo para que ele fique elástico e nele caiba tudo o que queremos e amamos, mas foi pôr o dedo no teclado e essa lembrança, que jamais me deixou, atravessou a mente: um lugar fechado, uma longa espera e nenhum livro. Carrego esse medo. Quando vou viajar, começo as malas pelos livros.

Em tempo de tablets, levo livros de papel também. Nunca se sabe. Outro dia, tive um minuto de pânico, quando me vi num hotel à noite sem óculos e pensei que ficaria 12 horas sem ler. Dei um jeito; resolvi o problema.

O tempo é relativo. Isso aprendi numa hora limite. Ele é o tudo e o nada.

Maravilhosa dádiva é poder saborear cada minuto e ser dono do seu tempo. Bom tempo para todo mundo. 

O que você acabou de ler acima remete a um momento vivido no cárcere para onde a Miriam foi levada, na floração dos ideais adolescentes, sob o jugo da ultima ditadura militar do Brasil.

Ditadura para mim é tudo igual. Não interessa se é civil ou militar, se o ditador é socialista ou comunista, nazista ou fascista, pseudamente republicano ou falsamente democrata.

Como bem lembrou a Eurídice hoje numa discussão a propósito das novas formas de trabalho escravo no Brasil e alhures, nenhum regime tem o direito de dispor sobre o livre arbítrio da pessoa humana, a sua liberdade, o seu direito de ir e vir, de exercer livremente uma profissão, de morar onde quiser.

O doutor Tancredo Neves, com quem tive a sorte de conviver no Congresso Nacional, ele Senador e eu Deputado, irmanados na mesma trincheira de luta pela democracia no Brasil, ao se despedir do Senado para assumir o Governo de Minas, disse:

- O processo ditatorial, o processo autoritário, traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão.

Grande, Doutor Tancredo!

(Em tempo: a Míriam destas memórias é a Míriam Leitão, uma das mais ativas e vigilantes jornalistas de economia do Brasil. O texto foi publicado originalmente em sua coluna, em O Globo, RJ, edição de 25.08.13.)


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