domingo, 31 de março de 2013

De Leve

Há 55 anos no dia a dia da advocacia criminal, sendo hoje um dos profissionais mais admirados do País, Paulo Sérgio Leite Fernandes expõe nesta entrevista, de forma oportuna e bem ao seu estilo corajoso, algumas das mazelas do nosso Estado de Direito Democrático.

A entrevista foi originalmente publicada pela Revista da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo e transcrita pelo Consultor Jurídico, edição de 31.03.13. 

Pergunta - "Este país se encontra num regime de deduragem oficial. O Poder está ensinando o brasileiro a ser um delator. O Brasil de hoje é um bordel eletrônico, repleto de alcoviteiras”. O senhor poderia justificar essas afirmações, de sua autoria? 

Paulo Sérgio Leite Fernandes — Nós tivemos tempos atrás, na Itália, o estabelecimento dos chamados “juízes sem cara”. Numa luta contra a máfia morreram alguns juízes e o sistema penal se endureceu. Começou então, naquele país, uma investigação contra a criminalidade organizada (anos 1970-80) e nós partimos para a imitação, não só quanto à interceptação telefônica, mas também naquilo que dizia e diz respeito a um dos fenômenos mais sujos, mais imundos, mais aviltantes que há na história da humanidade, que é a delação. Nos Estados Unidos, que nós imitamos também, há a delação premiada.

No Palácio dos Doges, em Veneza, na Itália, há a figura da “boca da verdade”. Nos Século XIV e XV, enfiava-se na bocarra da criatura uma denúncia anônima contra alguém, o Conselho dos Sábios arrecadava aquela denúncia e torturava o sujeito denunciado. Hoje ainda funciona assim. Quase mil anos depois, temos uma relação muito grande com os Doges de Veneza, e com uma articulação que é muito mais satânica, porque nós premiamos o delinquente, nós premiamos o bandido, nós premiamos o mafioso desde que ele entregue seus comparsas. Isso é terrível, é o pecado maior que estamos cometendo, inclusive com o entusiasmo de muitos juízes e promotores públicos.

Isso vicia. Tenho a sensação de que esse pessoal que abiscoita o e-mail, o telefone, a comunicação privada do cidadão tem uma certa deformação biopsíquica  são os voyeurs, aqueles que olham pelo buraco da fechadura. 

Como os voyeurs se escondem? 

 — Eles não se escondem. Nós temos juízes fazendo isso em São Paulo, em Minas Gerais, em Brasília. Fazem isso o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal, além de, às vezes, as polícias estaduais. É um ato de três personagens: a polícia faz sozinha, mas faz com muito receio porque, se for descoberta, pode ser penalizada; o Ministério Público tem feito com muita vontade; e o Judiciário se engalana, há juízes entusiasmados com isso, mandando inclusive interceptar telefones de advogados. O meu e-mail foi interceptado por um juiz de Brasília. Isso é uma infâmia. O juiz que faz isso perde a condição de ser humano ligado às regras mínimas de moralidade. 

Não existe mais investigação sem grampo? 

 — Com grampo é mais fácil. Na ditadura, os militares não grampeavam nosso telefone. Eram capazes de sumir com nosso cliente, jogá-lo do helicóptero ao mar, mas não chegavam a esse ponto morfético de tentar descobrir por meio científico aquilo que você estava conversando com seu cliente. Hoje, advogado criminal que se preze não fala com cliente por telefone sobre coisas sérias, nem manda e-mails sobre assuntos sérios. O mesmo acontece com o Skype, que era mais difícil. Não se sabe se há um protocolo com a Microsoft, no sentido de que a Interpol e a polícia científica possam interceptar conversas no Skype. Paradoxalmente, hoje o Correio, a cartinha, passou a ser mais confiável. 

O fruto dessa bisbilhotagem tem caído com frequência nas mãos da mídia, e a mídia joga isso no ventilador sem nenhum cuidado. Como o senhor avalia essa situação? 

 — A mídia se “bordelizou”. Às vezes fico sabendo de algo sobre um cliente pelos jornais. Depois, com muito esforço, é que vou conseguir ver o processo. Isso é um problema psicológico de empuxão da sociedade contra o investigado, no sentido de tornar a defesa dele cada vez mais difícil. O investigado é condenado de antemão. 

E o advogado junto com ele. 

 — Sim, porque a mídia confunde os dois. Quanto a mim, nunca tive medo de jornal. O jornalista sabe que se alguma coisa escorregar no sentido de uma impostura psicológica a respeito da minha pessoa, ele toma um processo criminal imediatamente. Faço meu trabalho, tenho meus pecados, mas são pecadilhos. São aqueles pecados que todo homem honesto costuma cometer. Não tenho um grande pecado, não tomo dinheiro de viúva, não engano órfão, não meto dinheiro de cliente no bolso, não traio meu cliente. Isso me basta, o resto é resto. Esses são os pressupostos básicos da advocacia criminal correta.

Eu não tenho medo de jornal, portanto. Mas a mídia tem postulado — e obtido — que o povo se volte contra o investigado e o advogado dele. No Século XVIII a advocacia era uma coisa tão honrada que, quando o advogado aceitava uma causa, ele tinha uma bolsinha presa nas ilhargas. Ele se virava de costas e o cliente punha na bolsinha os honorários que entendia adequado. Daí a expressão “honorário”, que significa “em honra”. Hoje, querem saber quem pagou o advogado, quanto pagou, como pagou e por intermédio de quem o advogado foi pago. Enfraquecendo-se a defesa, se enfraquece o defendido, e alguns advogados se amedrontam e deixam de fazer o que é necessário.

Por tudo isso, digo que o Brasil está sob um sistema judiciário de investigação podre. Eu diria porco, que é a palavra mais adequada. O juiz que intercepta o segredo da advocacia está penetrando na mais profunda intimidade do ser humano. É mesma coisa que mandar auscultar o confessionário do padre velho - e eu sou um padre velho. 

Os Poderes da República, no Brasil de hoje, se relacionam da forma devida? Não há ingerências impróprias? 

— Eu sempre achei que o maior Poder da República é o Supremo Tribunal Federal. Essa afirmativa de que todos os Poderes são equalizados, cada qual na sua respectiva função, é balela. 

E isso é correto? 

— Na Constituição, não. Se você examinar constitucionalmente, todos os Poderes são iguais. Há uma harmonia entre os Poderes. Mas o Supremo é a maior força. Se o Supremo decide de determinada forma, normativamente, em Plenário, ele supera qualquer oposição. O Congresso não pode se opor a ele. E por quê? Se houver oposição, quebra-se o Estado de Direito, teríamos uma insurreição, ou uma revolução, ou um desequilíbrio terrível em que um ditador qualquer talvez dissolvesse o Congresso ou o próprio Supremo.

- Será por isso que alguns juízes se sentem com poderes sobre-humanos? 

— Quando você vê um juiz, ou um órgão colegiado, decidindo contra o que se chama “vontade do povo”, ou “vontade da mídia”, você parte para uma abjuração que leva à suspeita de menor dose de honestidade desse juiz ou desse órgão do Poder Judiciário.
O juiz, como ser humano, é uma criatura muito curiosa. Eu lhe dou um exemplo de juiz corajoso: Tourinho Neto, de Brasília (do Tribunal Regional Federal  da 1ª. Região, que concedeu Habeas Corpus a Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira). No caso Cachoeira, ele examinou o procedimento e verificou que o homem não podia ficar nove meses preso. Depois disso, começaram as insinuações de que ele seria um juiz pouco honesto. E ele é um homem honrado, um dos melhores juízes que a pátria tem, e que possui uma qualidade rara entre os juízes — a coragem. 

Parece que os juízes corajosos são menos vaidosos, não? 

— É que eles chegaram a um nirvana de conhecimento daquilo que eles podem fazer, e não têm muita conta mais a pagar. Estes têm a magistratura como algo sublime, e pagam um preço caro. Difícil um magistrado, um desembargador ou mesmo um ministro ter uma dose de coragem suficiente para fazer prevalecer a linguagem do Direito sobre a pressão externa. O maior defeito que um juiz tem hoje é o medo. 

O julgamento do mensalão foi fruto do medo dos juízes? 

— O julgamento do mensalão foi tragicômico. Pessoas saíram de lá com 20, 30, 40 anos de cadeia, o que é um absurdo. Você não pode, em função da satisfação da vontade popular ou da necessidade de reorganizar a honestidade no país, fazer ilações horrivelmente extravagantes. Alguém mata o outro com requintes de perversidade e é condenado a, no máximo, 30 anos de cadeia. 

O crime de colarinho branco pode ser tão grave quanto o crime de sangue em alguma situação? 

— O crime colarinho branco não é tão grave quanto um crime de sangue, não. A infração mais grave que existe é matar alguém. Ocorre que o Brasil é, no mundo todo, o país que mais escorcha o cidadão com a tributação, com os impostos. Nos idos de 1240, o senhor feudal vivia no castelo e tirava dinheiro do camponês lá embaixo, tomava suas galinhas.

Hoje, não é diferente, pois o Estado lhe toma o que pode tomar. Aqui, tem-se a maior carga de impostos do mundo inteiro, e hoje é uma tributação cruzada. Isso começou a existir com um sujeito chamado Fernando Henrique Cardoso. Quando Fernando Henrique era rei do Brasil iniciou-se o processo de cruzamento do CPF com o RG. Isso é o aperfeiçoamento de uma iniciativa que visa a fiscalizar o bolso do contribuinte.

O Fernando Henrique é um homem que desperta curiosidade. Ele foi meu vizinho em Ibiúna. Eu o chamava de “Fernando Henrique I e Único, rei do Brasil”, um homem que conseguiu atravessar tanta coisa e sair incólume, inclusive dos anões do Orçamento. Hoje, posa de moralista. Não gosto dele. Não gosto de quem prega a moralidade absoluta,  mas tem pecados de origem. Eu, pelo menos, confesso os meus.

De qualquer forma, a carga tributária é terrível no Brasil, e o cinturamento é apavorante — você não tem como se defender do fisco. Os juízes fazendários trabalham, mas trabalham a favor do rei. O que o brasileiro odeia de fato é a desigualdade entre ele, que é escorchado, e aquele que entesoura os seus baús tomando do Estado aquilo que o burguês não consegue tomar. A grande justificativa para o delito é a comparação. 

Vamos falar sobre alguns advogados que se tornaram ministros da Justiça. Em um artigo, o senhor escreveu que o ex-ministro Saulo Ramos mentiu em seu livro Código da Vida. Em que ponto ele teria mentido? 

— Eu conheci Saulo Ramos em Santos. Ele é mais velho que eu. Eu era adolescente e ele já era secretário de redação do jornal Tribuna de Santos. Ele sempre escreveu muito bem, usa a pena com muita competência. Saulo teve uma carreira muito curiosa: advogou muito pouco, ligou-se a Jânio Quadros, então governador de São Paulo, de quem foi um belo escudeiro.

Virou presidente da Companhia Brasileira de Alimentos, teve alguns problemas intrincados que todos temos quando nos metemos em política. Defendeu Sarney com sucesso certa ocasião, e deu a Sarney uma sala em seu escritório, a qual só foi usada para descanso. Em retribuição, quando presidente, Sarney deu-lhe os cargos de consultor-geral da República e, depois, de ministro da Justiça. 

Como o senhor avalia a atuação do advogado Márcio Thomaz Bastos como ministro da Justiça do governo Lula? 

— Um criminalista não pode perder certas qualificações, a primeira delas é o respeito pela defesa, o respeito pelo réu. Márcio implantou o primeiro RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) no país, em Catanduvas, no Paraná. Ele também permitiu a invasão de escritórios de advocacia.

Eu nunca achei Márcio Thomaz Bastos uma criatura absolutamente autêntica. Ele sempre teve uma personalidade meio cinzenta  o que pode não ser defeito. O fato de eu dizer que uma pessoa tem personalidade cinzenta no exercício de uma profissão não significa que ele seja defeituoso, às vezes pode ser uma qualidade. Há advogados criminais que são sinuosos e obtêm resultados bons para seus clientes. 

Mas o fato de Márcio Thomaz Bastos ter sido presidente da OAB não o comprometeria mais com a classe do que outro advogado no cargo de ministro da Justiça? 

— Ele não foi presidente da OAB por desejo meu. Eu não tive força para evitar que ele o fosse. Miguel Reale Júnior, que não é meu amigo, foi ministro da Justiça durante pouco tempo. José Carlos Dias foi ministro da Justiça também durante pouco tempo. Nenhum dos dois conseguiu proteger o nariz do cheiro daquilo e nenhum dos dois precisou dizer por que foi embora. 

Nesse sentido, o Márcio é um exemplo de sobrevivência, é um homem qualificado. No governo Lula, Márcio Thomaz Bastos foi Maquiavel. Ou Richelieu. Enfim, creio que Márcio é uma pessoa bem provida intelectual e culturalmente no sentido de comunhão social, de resultados bem pretendidos, e que tem o defeito de não brigar comigo. 

E como o senhor avalia a atuação do advogado José Eduardo Martins Cardozo no ministério da Justiça da presidente Dilma Rousseff? 

— Eu não vejo onde o José Eduardo, que é advogado na origem, tenha assumido uma posição favorável à preservação das prerrogativas da advocacia. Se você procurar entre os 730 mil advogados que o Brasil tem hoje, não há ninguém falando bem dele no sentido de auxiliar na resistência do cidadão contra o Estado. Ele está apenas ocupando um lugar. Só. Mesmo porque se ele se comportasse de forma diferente não estaria mais lá. Como ele se oporia à Polícia Federal em favor do direito de defesa? 

Até onde vai a força da Polícia Federal? 

— A Polícia Federal, hoje, é mandonista. Quem manda mais é aquele que conhece os segredos do outro. Richelieu era um grande mandonista. Maquiavel era um grande alcoviteiro. Aquele que detém a informação detém maior dose de poder, veja o exemplo do ex-diretor-geral do FBI, J. Edgar Hoover. Quem sabe mais manda mais, e a Polícia Federal é atualmente a grande detentora dos segredos da nação. Em qualquer setor da nossa convivência humana, há sempre o grupo dos illuminati (do latim, iluminados. Referência a termo consagrado na literatura sobre grupos de pessoas detentoras de informações privilegiadas, e por isso dotados de grande poder conspiratório). 

Em termos de Ordem dos Advogados do Brasil, o senhor acha que a advocacia está em boas mãos? 

— Eu briguei pelo grupo que está aí, à frente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo e da Caasp . Eu creio que de todos os presidentes que a Ordem teve desde que eu me conheço como advogado, Marcos da Costa é mais puro de todos. Se esse moço se conservar como é, será um grande presidente da corporação. Tive oportunidade de dizer para ele, ainda menino, há muito tempo: “Se você não mudar, você será presidente da OAB. Guardo até a fotografia desse momento". 

Revista da Caasp — Que conselho o senhor daria ao advogado em começo de carreira? 

Paulo Sérgio Leite Fernandes — Aprenda a dizer não. Os advogados de hoje estão sendo plasmados na obediência. As faculdades de Direito estão ensinando os meninos a serem dóceis. Com 730 mil advogados, se quisermos, paramos o Brasil. Ou o fazemos andar de verdade.


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