sábado, 2 de maio de 2009

O Caro Amigo Morreu

Naquele disco Meus Caros Amigos de Chico Buarque, em plena ditadura militar, há na ultima faixa um chorinho em que ele manda noticias da terra a um caro amigo, e muitos pensaram logo que era o Pinxinguinha.

Depois, dado o grau de intimidade do missivista com o destinatário, foram se ampliando as especulações, sempre a partir de premissas que o caro amigo do chorinho morava no além.

Só muito depois, com a volta dos exilados, desfez-se o mistério em torno da verdadeira identidade do caro amigo – Augusto Boal, diretor de teatro, frentista na resistência que, escapando de algumas ciladas para não ser morto, fugiu para a Argentina.

Naquele tempo, logo para onde...

Francis Hime, parceiro de Chico naquela e em outras, contou que estavam às vésperas do aniversário de Boal quando resolveram compor o chorinho, gravá-lo numa fita cassete e remetê-lo por mão própria e segura a Buenos Aires.

Muito depois é que o chorinho apareceu na ultima faixa do long-play do Chico, Meus Caros Amigos. Naquele tempo era long-play. A Marieta citada na letra é a Severo, com quem Chico estava casado. E a Cecília para quem ele manda um beijo é a mulher de Boal.

Depois de anistiado, Boal ainda foi perseguido. Eu mesmo, quando Juiz, livrei-o de uma encrenca tributária, pura perseguição política em que o envolveram.

O corpo cansado e a alma sofrida de Boal não resistiram a tantas intempéries. A sua arte a serviço dos ideais democráticos sobrevive como exemplo. Ele somava 78 anos de idade.

Olha aqui a letra do chorinho com o qual Chico e Francis num drible de olé à censura política da época homenagearam Augusto Boal:

Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando e também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco

Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus
...

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