terça-feira, 7 de março de 2023

Ex-chefe da Receita foi demitido por Bolsonaro 1 mês após reter joias e 4 negativas de liberá-las

Trinta e sete dias após integrantes do governo Bolsonaro tentarem entrar ilegalmente no País com um conjunto de joias presenteado pelo regime da Arábia Saudita para a então primeira-dama Michelle Bolsonaro, sem declarar na alfândega, o secretário da Receita Federal à época, José Tostes, perdeu o cargo.

José Tostes foi dispensado do comando da Receita 37 dias depois de as joias enviadas a Bolsonaro e Michelle Bolsonaro serem barradas pelo órgão na alfândega de Guarulhos, em São Paulo (Foto: Dida Sampaio/Estadão)

Antes da queda de Tostes, quatro tentativas já tinham ocorrido para tentar entrar com as joias no País. O primeiro ato foi a decisão da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME) Bento Albuquerque de entrar com as joias sem declará-las. Depois, o próprio Albuquerque voltou à área restrita e tentou levar os pacotes, informando que se tratava de presentes para Michelle Bolsonaro. O terceiro ato foi o envio de um ofício do MME ao Ministério de Relações Exteriores (MRE), em 3 de novembro daquele ano, solicitando ajuda. O MRE, por sua vez, pediu informações para saber que providências tomar para liberar as joias.

Auditores da alfândega já monitoravam viagens de Bento Albuquerque antes de apreensão de joias

No lugar de Tostes, o presidente Jair Bolsonaro colocou o auditor fiscal de carreira e especialista em direito tributário Julio Cesar Vieira Gomes, nomeado cinco dias depois para chefiar a Receita. Julio Cesar era pessoa próxima da família Bolsonaro. O decreto de nomeação assinado por Bolsonaro seria publicado no dia 7 de dezembro de 2021. A escolha, porém, já era conhecida anteriormente.

Joias apreendidas em 2021; itens no valor de R$ 16,5 milhões foram presente do regime saudita para o casal Bolsonaro. Foto: Estadão

No dia 3 de dezembro, a informação da troca de comando da Receita foi vazada pela imprensa, no bojo de uma “grande reestruturação” nas secretarias do Ministério da Economia, com a criação de uma Secretaria Especial de Estudos Econômicos e troca de secretários. A estratégia, na prática, era a de esvaziar o impacto da demissão de José Tostes com a notícia de mudanças importantes na equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes. Tostes, que já era servidor aposentado da Receita quando comandava o órgão, era bem avaliado pela área técnica em geral.

Guedes demitiu Tostes, que estava em atrito com a família Bolsonaro, também por conta da nomeação em torno de indicação do corregedor da Receita, um posto que interessava. Tostes foi avisado no dia anterior a esse vazamento de que o presidente queria o seu cargo. No Diário Oficial, a exoneração de Tostes por Bolsonaro foi publicada com a informação de que teria sido “a pedido”.

À frente da Receita, Tostes sempre esteve sob pressão da família do ex-presidente Bolsonaro, em razão das investigações da denúncia da prática de “rachadinha” na Assembleia do Rio de Janeiro contra o seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro.

Guedes acenou para José Tostes com a possibilidade de um cargo na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, e anunciou a criação de outros dois cargos de adido da Receita na Índia e em Bruxelas. O fato, porém, é que Tostes não chegou a assumir o cargo em Paris.

Procurados pela reportagem, Tostes e Guedes não responderam ao pedido de entrevista. Como revelou o Estadão, o novo chefe da Receita escolhido por Bolsonaro, o auditor fiscal Julio Cesar, atuou para que os fiscais do órgão liberassem as joias apreendidas naquele 26 de outubro de 2021. Julio Cesar faria diversas tentativas, sem sucesso. Em 30 de dezembro de 2022, a um dia de acabar o mandato de Bolsonaro, ele foi indicado pelo presidente para assumir um cargo na Embaixada brasileira em Paris, mas o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reverteu a nomeação no início do governo Lula.

O ofício encaminhado para resgatar as joias apreendidas pela Receita diz que “os bens foram ofertados ao presidente da República pelo reino da Arábia Saudita”. O documento obtido pelo Estadão foi enviado no fim do dia 28 de dezembro de 2022, restando três dias para o fim da gestão Bolsonaro, e é assinado pelo tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” de Bolsonaro.

O documento 736/2022/GPPR-AJO/GPPR é explícito em “determinar desde já que os bens sejam retirados” pelo primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva por ordem do gabinete de Bolsonaro. O ex-presidente se mudou para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro e não passou a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O ofício envolve diretamente Bolsonaro nas tratativas para reaver os diamantes. A ordem foi dirigida ao ex-secretário da Receita Federal Julio Cesar Vieria Gomes, que, no mesmo dia, determinou à Superintendência da Receita em São Paulo para que fosse acatada e, as joias, devolvidas.

No dia seguinte, um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) levou à Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo, o primeiro-sargento Jairo Moreira da Silva, com a missão de resgatar as joias de diamantes, avaliadas em 3 milhões de euros, ou R$ 16,5 milhões.

Como revelou o Estadão, o presente dado pelo regime saudita foi apreendido, porque a comitiva tentou entrar de forma ilegal, com o item na mochila do assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, em 26 de outubro de 2021. Antes de recorrer ao comando da Receita, o governo Bolsonaro também já tinha acionado o Ministério de Minas e Energia e o Itamaraty.

As pressões sobre a Receita até a demissão de Tostes

1) A entrada ilegal das joias - nada a declarar

No dia 26 de outubro de 2021, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e seu assessor Marcos André Soeiro desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos do voo 773, proveniente da Arábia Saudita. O assessor trazia na mochila o estojo com as joias (um colar, um par de brincos, um anel e um relógio) para o casal Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.

Ele fez a primeira tentativa de entrar com as joias ilegalmente no País. O militar optou pela saída “nada a declarar” para deixar a área do aeroporto sem registrar a posse dos bens estimados em R$ 16,5 milhões, infringindo a legislação. A manobra foi frustrada. Os servidores da Receita pediram para conferir a bagagem logo que ele passou pelo raio-X. Com a descoberta, os diamantes foram apreendidos.

2) A carteirada

O ministro e o servidor estavam representando o governo brasileiro na reunião de cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”, realizada na capital daquele país.

Com a apreensão das joias, o ministro volta para a área restrita do aeroporto, mesmo após ter passado pela alfândega, o que geralmente não é permitido, e faz a segunda tentativa de entrar com as joias no País. Ele alegou que era um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O ex-ministro repetiu a mesma versão ao Estadão, acrescentando que o relógio era para o ex-presidente, em entrevista na sexta-feira, 03.

No ato de apreensão, foi dada ao almirante a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas o ministro não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e, seguindo os trâmites burocráticos, poderiam ser liberadas.

3) A pressão sobre a Receita 1

O Ministério das Relações Exteriores é acionado pelo presidente Bolsonaro e pede, no dia 03 de novembro de 2021, à Receita, para que tome “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Neste momento, após reiteradas negativas da Receita, o governo começa a mudar a versão e dizer que as joias eram para o acervo, sem especificar qual.

“Considerando a condição específica do Ministro —representante do Senhor Presidente da República; a inviabilidade de recusa ou devolução imediata de presentes em razão das circunstâncias correntes; e os valores histórico, cultural e artístico dos bens ofertados; faz-se necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”, diz o ofício do Itamaraty ao qual o Estadão teve acesso.

Em resposta, a Receita volta a informar que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos.

4) A pressão sobre a Receita 2

No mesmo dia 03 de novembro de 2021, o gabinete do então ministro Bento Albuquerque reforça a pressão sobre a Receita em mais uma tentativa para conseguir colocar as mãos nas joias e entregá-las a Bolsonaro.

Em ofício, pede “liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão”. Em combinação com o Itamaraty, o ex-ministro também passa a usar que a versão que a destinação seria para o acervo, novamente, sem dizer para o qual. A Receita mantém a apreensão.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 07.03.23.

Encontros e desencontros governamentais

Dia a dia se cava um abismo diante de um governo eivado por contradições. De um lado, iniciativas reparadoras e urgentes; de outro, impressionante volta a um passado nocivo

Os primeiros passos do novo governo federal desenham jornada marcada por acertos notáveis, mas também atravessada por descaminhos inacreditáveis, evidenciando, a rigor, preocupante falta de rumo em direção à gigantesca tarefa de governar o País para todos. Observa-se cenário de desencontros, fragmentações e impasses que atravancam a ação, o que implica prejuízos à retomada da normalidade, um desafio num país que se mostrou profundamente dividido desde as eleições.

Naturalmente, é um alívio testemunhar decisões como a busca de inspiração e fundamentos na bem-sucedida experiência da educação básica do Ceará, com vistas à melhoria da aprendizagem dos nossos jovens. Louvável, também, a prioridade de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), necessidade cabalmente demonstrada durante a pior fase da pandemia da covid-19, seja por sua relevância na travessia, seja pelos problemas gerenciais registrados. Digno de nota, o Brasil ter voltado à cena global como interlocutor e player decisivo em questões como integração regional, comércio internacional e convulsão climática. Vale lembrar o protagonismo na COP27, no Egito, antes mesmo da posse.

De outra sorte, dia a dia vem sendo cavado verdadeiro abismo diante de um governo eivado por contradições, como se estivesse perdido em seu próprio labirinto. De um lado, iniciativas reparadoras e tão urgentes; de outro, impressionante volta a um passado repetidamente nocivo à vida brasileira. É decepcionante que estejamos assistindo novamente à subsunção de empresas públicas a arranjos que menosprezam o profissionalismo. Como não se espantar diante de comportamentos reticentes quanto a uma normatização fiscal efetiva que ancore as expectativas econômicas no País? Surpreendentemente, a autonomia do Banco Central entra na mira de fogo, como se fosse mera letra legal, sem consequências desastrosas. Vale registrar que essas são questões já assimiladas como fundamentos de governanças modernas mundo afora, deixando de constar de receituários que diferenciariam esquerda e direita.

Importante salientar que ruídos e ações desarticulados em nada contribuem para embasar o esforço nacional no enfrentamento das turbulências do atual cenário internacional, marcado pelas disputas entre EUA e China, guerra na Ucrânia, emergência climática, entre outras. Um já perceptível descompasso entre discurso e prática também pode levar ao desperdício de oportunidades preciosas que se colocam diante do Brasil, como a descarbonização da economia, o imperativo da transição energética ou a expansão da demanda por alimentos, além das possibilidades nos terrenos da infraestrutura e da digitalização.

O País precisa reafirmar seu rumo em direção à modernização de suas instituições, o que significa respeito a boas agências regulatórias, a adequados marcos legais, assim como compromisso firme com a segurança jurídica. Além de compromisso com o equilíbrio fiscal e progresso nas inadiáveis reformas estruturantes, alcançando o sistema tributário e as máquinas governativas. Caso contrário, continuaremos prisioneiros de taxas de crescimento medíocres, além de perdermos novas oportunidades para um desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.

Nesse sentido, a preliminar mais desafiadora é o próprio governo acertar o passo no rumo certo, evitando a armadilha de caminhos que, no passado, já nos levaram a fracassos retumbantes. Governos podem muito, mas não podem tudo, nem fazer e acontecer, sem medir consequências. Os erros cobram o seu preço. E quem paga a maior parcela da conta são os pobres, com inflação, desemprego e recessão econômica. Ademais, o que fortalece a democracia são os êxitos que alcança e preserva. Nesse sentido, uma governança errática só nos imporia ainda mais desafios. Alerto que o Brasil é parte do ambiente planetário, que vem colecionando exemplos de hostilidades e violentos ataques aos fundamentos democráticos.

Sem dúvida, cabe à liderança arbitrar as diferenças e reger a orquestra alçada ao poder, assim impedindo cenário de disputas internas que virem um “todos contra todos”, o que torna o time disfuncional e produz momentos de constrangimento público que não favorecem a superação das emergências postas. De fato, o líder deve abrir espaço saudável à diversidade de concepções de mundo e às inovações, tendo como princípios o fortalecimento do conjunto e a consecução das finalidades, em vez de fragmentação. Abandonando o biombo de uma diversidade de fachada, deve recusar o lugar de maestro das desavenças, que pode até lhe dar poder fugaz, mas que certamente engessará o conjunto em discórdias autofágicas.

Enfim, num país que mudou muito nas últimas décadas e que não para de se transformar, tudo o que menos precisamos é de um governo que aposta em semear e administrar divergências interna corporis como forma de gestão e exercício de poder, mantendo-se atrapalhado diante de sua inadiável agenda modernizante. O Brasil sabe aonde deseja chegar. Esse desencontro de perspectivas sinaliza erros na largada e, ao persistir, indica perspectivas pouco alvissareiros, logo adiante. Minha torcida é para que o governo escolha como estratégia a coesão político-administrativa que passa pela união da boa política com a boa técnica.

Paulo Hartung, oo autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR. Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O estado de S. Paulo, em 07.03.23

Guerra na Ucrânia: como o destino de Putin está ligado ao futuro do conflito

Eu frequentemente penso em algo que ouvi na TV estatal russa há três anos.

Na época, os russos estavam sendo incentivados a apoiar mudanças na constituição que permitiriam a Vladimir Putin permanecer no poder por mais 16 anos.

Putin em discurso anual à nação, em fevereiro (Crédito: Shutterstock)

Para convencer o público, o âncora do noticiário retratou Putin como um capitão que conduz o bom navio Rússia através das águas tempestuosas da agitação global.

"A Rússia é um oásis de estabilidade, um porto seguro", disse o âncora. "Se não fosse por Putin, o que seria de nós?"

Em 24 de fevereiro de 2022, o capitão do Kremlin zarpou em uma tempestade criada por ele mesmo e foi em direção ao iceberg.

A invasão da Ucrânia por Vladimir Putin trouxe morte e destruição ao país vizinho da Rússia. Isso resultou em enormes baixas militares para seu próprio país: algumas estimativas colocam o número de soldados russos mortos em dezenas de milhares.

Também houve centenas de milhares de cidadãos russos que foram convocados para o exército, enquanto prisioneiros — incluindo assassinos condenados — foram recrutados para lutar na Ucrânia.

A guerra afetou ainda os preços da energia e dos alimentos em todo o mundo e continua a ameaçar a segurança global.

Todos problemas monumentais como o Titanic.

Então, por que o presidente da Rússia decidira por essa manobra?

Vladimir Putin está no comando da Rússia há mais de 20 anos (Reprodução / Gov. da Rússia)

"No horizonte, estavam as eleições presidenciais russas de 2024", aponta a cientista política Ekaterina Schulmann.

"Dois anos antes dessa votação, [o Kremlin] queria algum acontecimento vitorioso. Em 2022, eles alcançariam seus objetivos. Em 2023, eles colocariam na mente dos russos que eles eram sortudos por ter aquele capitão comandando o navio, não apenas conduzindo em água turbulentas, mas também levando para praias novas e mais ricas. Então, em 2024, as pessoas votariam. Bingo. O que poderia dar errado?"

Muito — se seus planos forem baseados em suposições e erros de cálculo.

O Kremlin esperava que sua "operação militar especial" fosse rápida como um relâmpago. Dentro de semanas, pensava, a Ucrânia estaria de volta à órbita da Rússia.

Mas o presidente Putin subestimou seriamente a capacidade da Ucrânia de resistir e revidar, bem como a determinação das nações ocidentais de apoiar Kiev.

O líder da Rússia ainda não reconheceu, porém, que cometeu um erro ao invadir a Ucrânia. O jogo de Putin é avançar e aumentar as apostas.

O que me leva a duas questões-chave: como Vladimir Putin vê a situação um ano depois e qual será seu próximo passo na Ucrânia?

Nas últimas semanas, ele nos deu algumas pistas.

Em fevereiro, em seu discurso anual à nação, sua fala estava cheia de bile contra o Ocidente. Ele continua a culpar os Estados Unidos e a aliança militar Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pela guerra na Ucrânia e a retratar a Rússia como uma parte inocente.

Sua decisão de suspender a participação no último tratado de controle de armas nucleares remanescente entre a Rússia e os Estados Unidos, o New Start, mostra que o presidente Putin não tem intenção de se retirar da Ucrânia ou de encerrar seu impasse com o Ocidente.

No dia seguinte ao discurso, em um estádio de futebol de Moscou, Putin dividiu o palco com soldados russos da linha de frente. Em uma manifestação pró-Kremlin altamente coreografada, o presidente Putin disse à multidão que "há batalhas acontecendo agora nas fronteiras históricas [da Rússia]" e elogiou os "corajosos guerreiros" da Rússia.

Conclusão: não espere nenhuma reviravolta partindo de Putin.

Putin participou em fevereiro de evento com a presença de soldados que estiveram na linha de frente da guerra na Ucrânia, mostrando que não planeja recuar do conflito (Reuters)

"Se ele não enfrentar resistência, ele vai até onde puder", analisa Andrei Illarionov, ex-assessor econômico do presidente Putin. "Não há outra maneira de detê-lo além da resistência militar."

É possível negociar a paz com Putin?

“É possível sentar com qualquer um”, continua Illarionov, “mas já temos um histórico de acordos com Putin".

"Ele violou todos os documentos: o acordo sobre a criação da Comunidade de Estados Independentes; o tratado bilateral entre a Rússia e a Ucrânia; o tratado sobre a fronteira internacionalmente reconhecida da Rússia e da Ucrânia; a carta da ONU; a Lei de Helsinque de 1975; o Memorando de Budapeste... E assim por diante. Não há documento que ele não violaria."

Quando se trata de quebrar acordos, as autoridades russas têm por sua vez uma longa lista de ressentimentos contra o Ocidente. No topo dessa lista está a afirmação de Moscou de que o Ocidente quebrou uma promessa feita na década de 1990 de não ampliar a aliança da Otan para o leste.

No entanto, em seus primeiros anos no cargo, Vladimir Putin parecia não ver a Otan como uma ameaça. Em 2000, ele não afastou a possibilidade de a Rússia um dia se tornar membro da organização.

Dois anos depois, perguntado sobre a intenção declarada da Ucrânia de ingressar na Otan, Putin respondeu: "A Ucrânia é um Estado soberano e tem o direito de escolher como garantir sua própria segurança...".

Ele insistiu que a questão não prejudicaria as relações entre Moscou e Kiev.

O Putin de 2023 é um personagem muito diferente. Fervendo de ressentimento com o "Ocidente coletivo", ele se autodenomina líder de uma fortaleza sitiada, repelindo as supostas tentativas dos inimigos da Rússia de destruir seu país.

A partir de seus discursos e comentários — e suas referências a governantes imperiais russos como Pedro, o Grande e Catarina, a Grande — Putin parece acreditar que está destinado a recriar o império russo de alguma forma.

Mas a que custo para a Rússia? Putin já teve uma reputação de trazer estabilidade ao seu país. Isso desapareceu em meio às baixas militares e às sanções econômicas. Centenas de milhares de russos deixaram o país desde o início da guerra, muitos deles jovens, qualificados e educados — uma fuga de cérebros que prejudicará ainda mais a economia da Rússia.

Como resultado da guerra, de repente, há muitos grupos com armas, incluindo grupos militarizados e privados, como o grupo Wagner, de Yevgeny Prigozhin.

As relações com as forças armadas oficiais estão longe de harmoniosas. O conflito entre o Ministério da Defesa russo e o grupo Wagner é um exemplo das disputas internas entre as elites.

A instabilidade somada a um cenário com exércitos privados é um coquetel perigoso.


O editor Konstantin Remchukov tem que a Rússia esteja diante de uma guerra civil

"É provável que a guerra civil cubra a Rússia na próxima década", afirma Konstantin Remchukov, proprietário e editor do jornal Nezavisimaya Gazeta, com sede em Moscou.

"Existem muitos grupos de interesse que entendem que, nessas condições, há uma chance de redistribuir a riqueza."

"A chance real de evitar a guerra civil será se a pessoa certa chegar ao poder imediatamente após Putin. Uma pessoa que tenha autoridade sobre as elites e determinação para isolar aqueles que desejam explorar a situação."

Pergunto a Konstantin se as elites russas estão discutindo quem é o homem ou a mulher certa.

"Silenciosamente. Com as luzes apagadas. Eles discutem isso. Eles terão sua voz."

Putin sabe que essas discussões estão acontecendo?

"Ele sabe. Acho que ele sabe de tudo."

A Rússia sobreviverá, como tem feito por séculos. Já o destino de Vladimir Putin está agora irrevogavelmente ligado ao resultado da guerra na Ucrânia.

Steve Rosenberg, o autor deste artigo, é Editor da BBC em Moscou. Publicado originalmente em português em 07.03.23. ( https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4yg28v1wwo)

segunda-feira, 6 de março de 2023

‘Não veio um Lula Mandela, veio um Lula anti-Bolsonaro’, diz Tasso Jereissati

Um dos fiadores da aliança que ajudou a eleger o petista no segundo turno, ex-senador tucano critica ‘agressividade’ e ‘linha radical’ da política econômica do governo

Entrevista com Tasso Jereissati, concedida a Pedro Vencelau para O Estado de Paulo

'Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica', diz o ex-senador Tasso Jereissati. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ex-governador do Ceará, foi senador de 2003 a 2010 e de 2015 a 2022. Tucano histórico, comandou o partido duas vezes.

Depois de apoiar publicamente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição presidencial do ano passado e atuar como um dos principais interlocutores entre PT e PSDB em diversos momentos da política brasileira, o empresário e agora ex-senador Tasso Jereissati está frustrado com os rumos do Palácio do Planalto.

“Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica”, afirmou o tucano em entrevista ao Estadão, referindo-se aos embates do governo com o Banco Central. Aos 74 anos, o ex-governador do Ceará e ex-presidente do PSDB não disputou as últimas eleições e hoje tem um assento na Executiva Nacional da legenda.

Como o senhor avalia os primeiros meses do governo Lula no aspecto econômico e esse embate promovido com o Banco Central?

Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica. Não é radical só pelo fato de ser de esquerda, que tem propostas boas, mas pelas ideias ultrapassadas, vencidas e que já foram testadas. É radical também pelo tom da agressividade. Esse embate com o Banco Central é inteiramente desnecessário. Em relação ao presidente do Banco Central, chegou a ser feito um ataque pessoal. Isso é profundamente prejudicial à economia do País. Por outro lado, o (Fernando) Haddad (ministro da Fazenda) traz alguma moderação. Mas o conjunto traz uma linha agressiva que volta atrás em conquistas de outros governos, do (Michel) Temer e até do Lula.

"Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica."

Após Lula se eleger com apoio de uma frente ampla no 2º turno, esperava um governo mais amplo também?

Esperava que não só o governo, mas o próprio Lula fosse mais amplo, porque ele já foi. O Lula 1 era muito aberto. Ouvia de um lado, do outro e distinguia. Na maioria das vezes tomava o rumo correto na área econômica. Eu acompanhei isso de perto, especialmente nos três primeiros anos. Lula tinha o (Antonio) Palocci como ministro e uma equipe econômica muito boa, que tinha o Marcos Lisboa, o (Joaquim) Levy e o (Bernard) Appy. Lula tinha uma abertura para uma visão mais ortodoxa da economia maior do que tem hoje.

Acredita que Lula terá dificuldades no Senado com esse perfil de viés mais conservador da Casa?

Qualquer presidente teria de fazer muitas concessões para governar com esse perfil que saiu das eleições de 2022 no Congresso. O Lula me parece que politicamente está fazendo essas concessões. Eu li que boa parte das diretorias executivas dos ministérios não está preenchida. Você falou que o Senado na atual legislatura é conservador, mas eu diria que é mais fisiológico.

Existe um vácuo de lideranças nacionais de oposição no campo do centro. Qual deve ser o papel do PSDB, agora sob a presidência do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite?

Nós já definimos nossa posição, que é de oposição. Mas não seremos uma oposição, entre aspas, bolsonarista. O PSDB é o único partido que fez oposição ao (Jair) Bolsonaro e agora ao Lula. Foi nesse espaço de centro que trabalhamos a vida inteira. Mas, nos últimos anos, especialmente após a eleição do Bolsonaro, esse espaço desapareceu. Prevaleceram a polarização e um radicalismo gigantescos. Não restou ao eleitor outro caminho a não ser Lula ou Bolsonaro. Nunca acreditamos no Bolsonaro. Sempre fomos contra ele. Votamos no Lula no segundo turno. Mas agora, principalmente em função da política econômica, temos obrigação de ser oposição.

O que significou para o PSDB ter deixado de lançar um candidato próprio à Presidência em 2022?

Nascemos como um partido pequeno, mas de qualidade. O PSDB era reconhecido por ter os melhores quadros do Brasil e ainda intelectuais da academia e economistas. Chegamos à Presidência. Sofremos reveses e cometemos erros após perdermos a eleição para o Lula em 2022. Perdemos espaço para a polarização. Não havia espaço para um discurso de bom senso e equilibrado nas eleições de 2022. Quando apoiei Lula no segundo turno, sofri ataques da direita e do centro. Ou você era uma coisa ou era outra. A expectativa era de que o Lula viesse com a disposição de fazer um governo para todos, mas isso não aconteceu. Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos. Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles. Não veio um Lula Mandela, veio um Lula anti-Bolsonaro.

"Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos. Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles."

Qual a posição do sr. sobre o PL das Fake News?

Essa discussão tomou outro rumo depois do 8 de janeiro. Aquilo que muita gente percebia como uma luta de ódios verbalizada na internet tornou-se fato repugnante, que foi a invasão e depredação da Praça dos Três Poderes. Isso foi estimulado pelas redes sociais. Essa é uma discussão que existe no mundo inteiro. Apesar de urgente, esse debate precisa ser mais aprofundado para se chegar ao mínimo de consenso.

O governo Lula acertou na política de preços dos combustíveis? Foi uma vitória parcial do ministro Fernando Haddad?

Não foi uma vitória nem uma derrota total do Haddad. O que a gente vê são coisas improvisadas e contraditórias. Criaram um imposto novo sobre exportação de petróleo, o que é uma incoerência total para quem diz que está tendo como prioridade a reforma tributária. Um dos pilares da reforma tributária é a desoneração total das exportações. É incentivar as exportações, e não onerar. Ir na direção contrária pode causar uma série de desequilíbrios. Há uma insegurança jurídica muito grande. Ninguém sabe qual será o rumo da economia. Existe uma paralisação dos investimentos. Estão todos esperando para ver o que acontece. Hoje, toda a expectativa do mercado, que tem sido atacado como se fosse um monstro, gira em torno da vida real da economia. A grande esperança é o novo arcabouço fiscal. Se vier algo consistente, isso vai dar um start na economia.

'Discussão sobre fake news tomou outro rumo depois do 8 de janeiro', diz Tasso Jereissati. Foto: André Dusek/Estadão

O MST fez recentemente, na Bahia, as primeiras invasões de áreas produtivas neste terceiro mandato de Lula. Que leitura o sr. faz dessa relação entre o movimento e o governo?

Se isso voltar a acontecer, será a radicalização definitiva não só da política, mas da sociedade brasileira. Isso é levar para o campo uma insegurança que ele já tinha com o governo Lula. O campo, que sustenta as exportações e o crescimento da economia, vai virar um campo de revolta e de enfrentamento com o governo. Espero que isso não aconteça.

O sr. vislumbra que alguma liderança do centro democrático possa ocupar o espaço do bolsonarismo na oposição ao governo Lula?

Nossa expectativa não é ocupar o campo do Bolsonaro, mas do centro. Não temos afinidade com o bolsonarismo radical. Para não ficar só na crítica ao governo Lula, foi um enorme ganho para o País a retomada do discurso sobre meio ambiente. Voltamos a existir lá fora. Deixamos de ser pária. Nisso concordamos inteiramente com a política do Lula. E tem a questão da vacina. Vi com muita alegria o (vice-presidente) Geraldo Alckmin vacinando Lula. Esse espaço do centro estava muito enxertado pelo antipetismo. Nossa expectativa é ocupar a centro-direita e a centro-esquerda.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.0323

Da corrupção miúda às joias milionárias

Suspeita de que Bolsonaro tentou contrabandear joias reforça o padrão de um político cujo clã, famoso pelas rachadinhas, vê o Estado como repartição a serviço de seus interesses privados


Joias de R$ 16,5 milhões doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País. Foto: Wilton Junior/Estadão

A conjugação virtuosa do senso de dever de servidores da Receita Federal e do esforço de reportagem deste jornal deu ao País mais uma razão para acreditar que raros foram os presidentes que marretaram com tamanha violência os pilares que sustentam esta República como o sr. Jair Messias Bolsonaro.

Na sexta-feira passada, o Estadão revelou que o ex-presidente tentou de tudo, até a undécima hora do mandato, para fazer entrar no País, ilegalmente, um conjunto de joias da grife suíça Chopard avaliado em € 3 milhões, o equivalente a R$ 16,5 milhões. O pacote, contendo colar, brincos, relógio e anel cravejados de diamantes, seria um “presente” oferecido pela ditadura da Arábia Saudita à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em outubro de 2021.

Ao longo de um ano e dois meses, Bolsonaro tentou liberar essas joias mobilizando nada menos que três Ministérios – Economia, Minas e Energia e Relações Exteriores –, além de outras instituições de Estado. O ex-presidente pressionou a cúpula da Receita Federal, que, para o bem do País, respaldou o comportamento republicano de seus servidores no aeroporto de Guarulhos. Protegidos pela estabilidade constitucional para dizer “não” até mesmo ao presidente da República quando ele quer se desviar da lei, eles confiscaram as joias.

Toda essa frenética movimentação de Bolsonaro para liberar os diamantes reúne fortes indícios de tentativa de contrabando, razão pela qual a Receita não realizou o leilão das joias, que agora servem de prova. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a instauração de inquérito pela Polícia Federal para apurar esse e outros crimes que possam ter sido cometidos com o objetivo de, ao que tudo indica, levar aquele pequeno tesouro até a família do ex-presidente às escondidas.

Do início ao fim, a jornada dessas joias rumo ao Brasil esteve eivada de mistérios e ilegalidades. Afinal, a que título a ditadura saudita teria sido tão generosa com Bolsonaro? Se o objetivo não era reter para si o presente milionário, por que o ex-presidente, como manda a lei, não determinou que as joias fossem declaradas como patrimônio da União?

Os diamantes poderiam ter passado facilmente pelo controle alfandegário caso fossem declarados como presente de um Estado estrangeiro ao governo brasileiro. Por lei, teriam sido considerados patrimônio da União e seguiriam para o acervo da Presidência sem obstáculos, livre de impostos. Mas há fortes razões para crer que Bolsonaro queria as joias para si, o que implicaria o pagamento de cerca de R$ 12,3 milhões em tributos de importação pessoal.

O pagamento desses tributos, por óbvio, era algo inimaginável em se tratando de alguém como Bolsonaro, que se notabilizou por explorar o Estado como plataforma para o enriquecimento pessoal. A família Bolsonaro, no que concerne à sua vida pública, foi forjada pela corrupção miúda das “rachadinhas”, pelas fraudes na prestação de contas de verbas de gabinete, pela compra de dezenas de imóveis em dinheiro vivo, pelo depósito de cheques suspeitos nas contas de Michelle Bolsonaro, entre tantos outros escândalos. Um possível contrabando milionário seria apenas mais um risco nesse “bingo” de malfeitos.

Para evitar o pagamento dos tributos, as joias foram escondidas na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, o almirante de esquadra Bento Albuquerque, que viajara a Riad para representar o Brasil na cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”. A manobra sub-reptícia, no entanto, não resistiu ao raio X e ao espírito público dos servidores da Receita Federal em Guarulhos, que apreenderam o pacote. Prestando-se a um papel indigno de sua patente, Bento Albuquerque ainda tentou pressionar os servidores mencionando que a destinatária daqueles diamantes era a primeira-dama.

De modo paradigmático, esse caso dos diamantes revela como Bolsonaro enxerga a natureza das instituições de Estado, o exercício do poder e a relação com servidores, civis ou militares. Tudo é uma mixórdia a serviço de seus interesses privados.

Espera-se dos responsáveis pela investigação desse caso escabroso o mesmo espírito público que norteou a atuação dos bravos servidores da Receita Federal.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.03.23

domingo, 5 de março de 2023

Ruy Barbosa nunca foi tão necessário

No centenário de sua morte, Ruy Barbosa deve inspirar a luta por um país que, conforme as palavras desse gigante republicano, acredite ‘no poder da razão e da verdade’

Rui Barbosa na  campanha civilista para a Presidência da República

Quis o destino que o centenário da morte do pai maior da República fosse celebrado em meio ao tremor do maior atentado a essa mesma República desde a ditadura. Não há emblema maior do choque entre as forças republicanas e antirrepublicanas que o busto de Ruy Barbosa marretado por vândalos no Supremo Tribunal Federal.

Ruy sentiu nos ombros a ameaça da lei da força contra a força da lei. Além da violência à democracia e ao direito a partir de fora, sofreu na pele sua corrosão por dentro: a Justiça, tardia e parcial; a política, definida por Ruy como “a arte de gerir o Estado segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas ou tradições respeitáveis”, abastardada pela “politicalha” – que, para Ruy, é “o envenenamento crônico dos povos negligentes e viciosos pela contaminação de parasitas inexoráveis”.

Ruy viu lucarem com a desordem os demagogos, que, tendo violado as leis, faltado aos deveres, perdido a estima pública, viveram de “romancear revoluções”. “Vejo os depositários da ordem respirarem deliciosamente na agitação, animando-a, promovendo-a, propagando-a, e sinto empolarem-se, cada vez mais acirradas, as paixões políticas. (...) Vejo a política tender de dia em dia mais à subdivisão, ao personalismo, ao espírito de grupo”, escreveu Ruy.

A primeira lição de Ruy – a “mais poderosa máquina cerebral do nosso país”, na definição de Joaquim Nabuco, “a única luz que alumia” nas “trevas que caíram sobre o Brasil”, conforme d. Pedro II – é a lucidez. Mas seu célebre desabafo – “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus...” – é tanto mais pungente porque nele insuflou não o desânimo, mas a luta.

Uma mente realista não animada pela paixão idealista cai na apatia. Um coração idealista não esclarecido por um olhar realista esvai-se em quimeras. No curriculum vitae de Ruy, realismo e idealismo se fundem. Assim ele o lapidou em sua cripta: “Estremeceu a pátria, viveu no trabalho e não perdeu o ideal”. Sua proverbial polimatia servia a esse ideal: “Creio (...) que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino; (...) creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades”.

Pudesse eleger um monumento a si, disse, seria uma ferramenta de trabalho subscrita pelas palavras do apóstolo Paulo: “Trabalhei mais que todos”. Seu labor talhou a abolição da escravatura e a Constituição republicana – o regime federativo, a eleição direta, o habeas corpus, a responsabilidade orçamentária, o controle de constitucionalidade das leis e os direitos sociais.

Forjado o corpo da República, Ruy o animou com o espírito democrático. “A sensação de força, de bravura e eletricidade moral era unânime”, testemunhou Drummond em suas memórias de infância da campanha civilista de Ruy à Presidência da República, que contou com apoio entusiasmado deste jornal, contra a plataforma militarista de Hermes da Fonseca. Ruy, na definição do poeta mineiro, “representou o melhor, o mais puro e desinteressado pensamento do homem da rua, desencantado da engrenagem política montada no país e esperançoso (utopicamente) de erigir um governo civil inspirado na justiça, na liberdade, na representação autêntica, na virtude”. Como profetizou Ruy a um correligionário em sua campanha utópica, sabendo que seria derrotado, “perderemos, mas o princípio da resistência civil se salvará”. Com efeito, disse Drummond, “de 1910 a 1914 o Brasil teve dois presidentes: um de fato e outro de consciência”.

Desde então há duas repúblicas: uma, a da desigualdade, da corrupção, do arbítrio, do populismo e do patrimonialismo; outra, a da consciência cívica, cujo emblema maior é o busto de Ruy Barbosa – que resistiu aos inimigos do Brasil no 8 de Janeiro e que evoca o melhor deste país.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.03.23

Documento no celular, ligação a coronel: a última cartada de Bolsonaro para ficar com os diamantes

‘Estadão’ reconstituiu todos os detalhes da última ação determinada pelo então presidente para tentar reaver as joias enviadas a ele e Michelle Bolsonaro


Portal da Transparência mostra que sargento Jairo Vieira da Silva foi a Guarulhos por ordens do presidente Jair Bolsonaro Foto: Reprodução/Portal da Transparência

Eram 18 horas e 10 minutos daquela quinta-feira, 29 de dezembro de 2022, quando o servidor da Receita Federal, Marco Antônio Lopes Santanna, recebeu uma visita “em caráter de urgência” na Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo. Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) tinha acabado de chegar ao terminal do aeroporto, para “atender demandas do senhor presidente da República”, conforme foi registrado em documento da FAB. Ali, Santanna recebeu o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva.

Jairo tinha uma missão clara e determinada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Faltavam apenas dois dias para que o chefe do Executivo deixasse o mais alto posto de comando do País. Como ainda era o presidente, Bolsonaro tratou de agir. Era preciso, de qualquer maneira, retirar as joias de diamantes avaliadas em R$ 16,5 milhões que tinham sido presenteadas pelo regime da Arábia Saudita ao presidente e sua primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O militar Jairo Moreira da Silva foi direto. Ao encontrar o servidor da Receita no aeroporto, mostrou a tela de seu celular, onde exibia a imagem de um documento direcionado “ao Sr. Julio Cesar”. Tratava-se de Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que comandava a Receita Federal na gestão Bolsonaro. Ao exibir a tela do celular, Jairo dizia que estava ali para retirar “um material” retido na alfândega e que a própria chefia da Receita já deveria ter entrado em contato com a alfândega de Guarulhos. O documento apresentado fazia referência a um “Termo de Retenção de Bens” relacionado a joias.

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV - Wilton Junior/Estadão

Acontece que o servidor Marco Antônio Lopes Santanna não engoliu aquela história. De pronto, esclareceu que não tinha nenhuma informação sobre o assunto e disse a Jairo que não iria entregar nada.

Preocupado, o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva deu início, então, a uma conversa pelo celular com alguém a quem se referia apenas como “coronel”. Na frente de Santanna, sugeria ao auditor-fiscal da Receita que ele conversasse com o seu “coronel”. Santanna, porém, resistiu novamente, e informou que não havia possibilidade de fazer aquele tipo de atendimento pelo telefone.

Jairo voltou a insistir. Disse ao fiscal que iria identificar o nome do responsável da Receita que trataria da liberação no aeroporto. Santanna explicou que o ofício do governo federal exibido no celular não estava direcionado a ele, mas ao chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes. O servidor voltou a dizer que não tinha nenhum conhecimento daquela operação e que, por se tratar da tentativa de retirada e incorporação de um bem, o processo teria de ser apresentado, formalmente, por meio de um “Ato de Destinação de Mercadoria”.

O emissário de Bolsonaro, porém, não estava disposto a sair do aeroporto sem as joias e tinha ordens para deixar o local apenas com o estojo na mãos. Jairo exibiu, desta vez, um “Termo de Retenção” emitido pela Receita, na tela de seu celular, mas Santanna segurou a pressão e disse, categoricamente, que não teria como ajudar.

O emissário, então, se exasperou. Disse que chegou àquela hora de Brasília e foi diretamente para a alfândega, porque cumpria uma missão “em caráter de urgência”. O auditor-fiscal pediu, então, que o documento fosse enviado para o e-mail corporativo da alfândega, mas Jairo disse que preferia aguardar orientações, porque o seu “coronel” iria falar com mais alguém.

Foi neste momento que o primeiro-sargento da Marinha comentou a troca de comando na Presidência da República, o que viria a ocorrer em apenas dois dias. Em sua tentativa de convencimento, Jairo disse ao agente da Receita que aquilo tudo fazia parte da troca de governo e que “não pode ter nada do antigo pro próximo, tem que tirar tudo e levar”.

Uma nova ligação tocou no celular do militar. Era Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que comandava a Receita Federal e era alinhado a Jair Bolsonaro. O militar passou o celular para as mãos do auditor-fiscal, dizendo que seu chefe desejava falar com ele. O pedido de liberação das joias foi reforçado por Julio, mas o servidor Marco Antônio Lopes Santanna se manteve inabalável, negou a liberação e pediu que entrassem em contato com o delegado da alfândega de Guarulhos, o auditor Fabiano Coelho. A ligação foi encerrada.

Santanna devolveu o celular a Jairo e pediu ao militar que aguardasse uma resposta do delegado da alfândega de Guarulhos, com o devido Ato de Destinação de Mercadoria, mas voltou a frisar que, mesmo com a apresentação do documento, naquela circunstância, haveria muita dificuldade em acessar as joias.

Jairo aguardou por algum momento, conforme foi orientado pelo servidor, mas logo depois desistiu e deixou o aeroporto, sem retornar ou contatar o auditor-fiscal. Terminava, assim, fracassada, uma das tantas tentativas de Bolsonaro de conseguir as joias.

Os registros oficiais da FAB mostram que o emissário do presidente voltaria a Brasília em um voo comercial, e não mais em uma aeronave da FAB. Caso tivesse conseguido retirar as joias, portanto, os itens entrariam pelo aeroporto de Brasília, fora de área da alfândega, e estariam nas mãos do presidente e de Michelle Bolsonaro.

Dos Estados Unidos, o ex-presidente Bolsonaro negou que tenha conhecimento sobre as joias, diz não saber do que se trata e que nada recebeu. Michelle Bolsonaro foi às redes sociais para ironizar o valor milionário do presente, disse não ter conhecimento dos itens e insultou a imprensa.

As joias seguem apreendidas até hoje no cofre da Receita, em Guarulhos.

Adriana Fernandes e André Borges para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 05.03.23, às 14h20.

sábado, 4 de março de 2023

Diamantes: Governo Bolsonaro fez 8 tentativas para ex-presidente ficar com joias de R$ 16,5 milhões

Do uso de três ministérios e militares a versões contraditórias sobre para quem eram os presentes, entenda como o ex-presidente fez de tudo para reaver os diamantes doados pelo regime saudita

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV

Registro da FAB do voo do 1º sargento da Marinha para buscar as joias de Michelle a pedido do presidente Jair Bolsonaro Foto: Reprodução/Portal da Transparência

O ex-presidente Jair Bolsonaro atuou pessoalmente para tentar liberar o conjunto de joias e relógio de diamantes avaliado em 3 milhões de euros (cerca de R$ 16,5 milhões) trazidos ao Brasil de forma ilegal para ele. Ele também acionou três ministérios para forçar a liberação dos itens.

Como revelou o Estadão na sexta-feira, 03, o presente milionário dado pelo regime saudita acabou apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos. Eles estavam na mochila de um militar, assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que viajara ao Oriente Médio em outubro de 2021.

(Ministério da Justiça aciona PF para investigar joias de diamantes de Michelle e Bolsonaro)

Entenda de que forma Bolsonaro usou a estrutura do governo, mobilizando os ministérios de Minas e Energia, Economia e Relações Exteriores, além de militares, para reaver as joias:

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV

1) A entrada ilegal das joias - nada a declarar

No dia 26 de outubro de 2021, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, e seu assessor Marcos André Soeiro desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos do voo 773, proveniente da Arábia Saudita. O assessor trazia na mochila o estojo com as joias (um colar, um par de brincos, um anel e um relógio) para o casal Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.

Ele fez a primeira tentativa de entrar com as joias ilegalmente no País. O militar optou pela saída “nada a declarar” para deixar a área do aeroporto sem registrar a posse dos bens estimados em R$ 16,5 milhões, infringindo a legislação. A manobra foi frustrada. Os servidores da Receita pediram para conferir a bagagem logo que ele passou pelo raio-X. Com a descoberta, os diamantes foram apreendidos.

2) A carteirada

O ministro e o servidor estavam representando o governo brasileiro na reunião de cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”, realizada na capital daquele país.

Com a apreensão das joias, o ministro volta para a área restrita do aeroporto, mesmo após ter passado pela alfândega, o que geralmente não é permitido, e faz a segunda tentativa de entrar com as joias no País. Ele alegou que era um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O ex-ministro repetiu a mesma versão ao Estadão, acrescentando que o relógio era para o ex-presidente, em entrevista na sexta-feira, 03.

No ato de apreensão, foi dada ao almirante a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas o ministro não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e, seguindo os trâmites burocráticos, poderiam ser liberadas.

3) Acervo privado X público

No dia 29 de outubro de 2021, o chefe de gabinete adjunto de Documentação Histórica do gabinete pessoal do presidente da República, Marcelo da Silva Vieira, envia um ofício para o chefe de gabinete do ministro de Minas e Energia, José Roberto Bueno Júnior. No documento, ele afirma que o encaminhamento das joias seria feito e que a análise seria para a incorporação ao “acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.

A regra sobre o assunto sobre este assunto é clara. Segundo o Tribunal de Contas da União, em julgamento realizado em 2016, ex-presidentes só podem ficar com lembranças de caráter “personalíssimo” ou de uso pessoal, como roupas e perfumes.

4) A pressão sobre a Receita 1

O Ministério das Relações Exteriores é acionado pelo presidente Bolsonaro e pede, no dia 03 de novembro de 2021, à Receita, para que tome “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Neste momento, após reiteradas negativas da Receita, o governo começa a mudar a versão e dizer que as joias eram para o acervo, sem especificar qual.

“Considerando a condição específica do Ministro —representante do Senhor Presidente da República; a inviabilidade de recusa ou devolução imediata de presentes em razão das circunstâncias correntes; e os valores histórico, cultural e artístico dos bens ofertados; faz-se necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”, diz o ofício do Itamaraty ao qual o Estadão teve acesso.

Em resposta, a Receita volta a informar que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos.

5) A pressão sobre a Receita 2

No mesmo dia 03 de novembro de 2021, o gabinete do então ministro Bento Albuquerque reforça a pressão sobre a Receita em mais uma tentativa para conseguir colocar as mãos nas joias e entregá-las a Bolsonaro.

Em ofício, pede “liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão”. Em combinação com o Itamaraty, o ex-ministro também passa a usar que a versão que a destinação seria para o acervo, novamente, sem dizer para o qual. A Receita mantém a apreensão.

Ministro Bento Albuquerque representou o governo brasileiro em reunião de cúpula na Arábia Saudita em 25 de outubro de 2021


6) A pressão sobre a Receita 3

No fim do mandato de Bolsonaro, o então secretário da Receita Federal, Julio Cesar Viera Gomes, entra em campo para liberar o material, no dia 28 de dezembro de 2022.

O secretário envia ofício para a área de alfândega do órgão em São Paulo em que pede a liberação.

Os servidores do órgão, que têm autonomia, responderam novamente que só liberariam as joias mediante pagamento do imposto.

7) O gabinete de Bolsonaro

Em 28 de dezembro de 2022, após seis tentativas frustradas, o próprio Bolsonaro entra em ação. O ex-presidente envia um ofício ao gabinete da Receita Federal para solicitar que as pedras preciosas fossem destinadas à Presidência da República, em atendimento ao ofício da “Ajudância de Ordens do Gabinete Pessoal do Presidente da República”.

Novamente, o pedido é negado.

8) O voo da FAB

A última tentativa de reaver as joias foi em 29 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro estava prestes a deixar a Presidência.

Bolsonaro, mais uma vez, se coloca na linha de frente da operação para pegar as joias e tenta atropelar a decisão da Receita

Por determinação de Bolsonaro, um funcionário do governo pega um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) e desembarca no aeroporto de Guarulhos, dizendo que estava ali para retirar as joias. “Não pode ter nada do (governo) antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”, argumentou o militar, segundo relatos colhidos pelo jornal.

A justificativa do enviado de Bolsonaro contraria a versão do ex-presidente, que, após a revelação da reportagem, passou a dizer que as joias seriam para o acervo oficial.

O Estadão localizou a solicitação do chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, à época o tenente-coronel Mauro Cid, para que a FAB levasse o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva até São Paulo. O documento dizia que a viagem de Silva era “para atender a demandas do Senhor Presidente da República naquela cidade”, com retorno “em voo comercial no trecho Guarulhos para Brasília”.

Em nenhum momento, durante a troca de comunicações e mensagens entre os órgãos públicos, Bolsonaro disse que as joias eram para o acervo da Presidência. O caso também nunca foi divulgado pelo governo anterior. Só veio a público com a reportagem do Estadão.

As regras

Se fossem considerados bens do viajante, seria necessário pagar os impostos. A única maneira possível de se retirar qualquer item apreendido pela Receita na alfândega – e isso vale para itens com valor superior a US$ 1 mil ou mesmo joias milionárias – é fazer o pagamento do imposto de importação, que equivale a 50% do valor estimado do item, além de uma multa de mais 25%, pela tentativa de entrar no País de forma ilegal.

Se as joias fossem classificadas como presentes do regime saudita ao governo brasileiro, elas passariam a compor o patrimônio da União e seria preciso a formalização oficial.

Conforme revelado pelo Estadão, depois de passarem mais de um ano em poder da alfândega, os itens milionários seriam oferecidos em leilão de itens apreendidos pela Receita por sonegação de impostos. Essa decisão, porém, acaba de ser suspensa, porque as joias passaram a ser enquadradas como prova de crime.

O Ministério da Justiça acionou a Polícia Federal para investigar os fatos revelados pelo Estadão que podem configurar crimes de descaminho, além de peculato e lavagem de dinheiro, entre outras ilegalidades.

As versões

Na sexta-feira, após o Estadão ter revelado o caso, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro disse que “não estava sabendo” que tinha “tudo isso”, referindo-se às joias de diamantes avaliadas em R$ 16,5 milhões. “Quer dizer que, ‘eu tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória”, publicou Michelle nos stories do Instagram.

O ex-presidente Jair Bolsonaro disse à CNN que não tinha conhecimento dos presentes e dos valores, mas que as joias iam para o o acervo da Presidência. Negou que tenha cometido alguma ilegalidade.

Depois de afirmar ao Estadão que as joias eram para o casal Bolsonaro, o ex-ministro alterou a versão. Ao jornal O Globo, disse que as peças seriam “devidamente incorporadas ao acervo oficial brasileiro”.

Adriana Fernandes e André Borges para O Estado de S. Paulo, em 04.03.23, às 19h23

sexta-feira, 3 de março de 2023

Governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente colar e brincos de diamante de R$ 16,5 mi para Michelle

As peças, avaliadas em 3 milhões de euros, foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos com assessor do ex-ministro de Minas, Bento Albuquerque; Bolsonaro mandou ofício para a Receita devolver as joias e até avião da FAB para buscá-las; veja fotos

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: Estadão/Wilton Junior/Estadão

O governo Jair Bolsonaro tentou trazer ilegalmente para o País colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes avaliados em 3 milhões de euros, o equivalente a R$ 16,5 milhões. As joias eram um presente do governo da Arábia Saudita para a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Estavam na mochila de um militar, assessor do então ministro Bento Albuquerque, das Minas e Energia, que estivera no Oriente Médio na comitiva do presidente, em outubro de 2021.

Ao saber que as joias foram apreendidas, o ministro retornou à área da alfândega, e tentou usar o cargo para liberar os diamantes. Foi nesse momento que Albuquerque disse que o conjunto de diamantes era um presente do governo da Arábia Saudita para Michelle Bolsonaro. A cena foi registrada pelas câmeras de segurança, como é de praxe nesse tipo de fiscalização. Mesmo assim, o agente da Receita reteve as joias, porque, no Brasil, é obrigatório declarar à Receita Federal qualquer bem que entre no País que passe de US$ 1 mil.

Nesta sexta-feira, procurado pela reportagem, o ex-ministro admitiu que trouxe para Michelle, mas afirmou que era um pacote fechado e não sabia o que tinha dentro.

O Estadão apurou nos últimos dois meses que houve quatro tentativas frustradas de Bolsonaro de reaver as pedras preciosas, envolvendo três ministérios (Economia, Minas e Energia e Relações Exteriores) e militares. A última ocorreu quando faltavam apenas três dias para deixar o mandato, em 29 de dezembro. Um funcionário do governo pegou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e desembarcou no aeroporto de Guarulhos, dizendo que estava ali para retirar as joias. O funcionário, que se identificou como “Jairo”, argumentava que “não pode ter nada do [governo] antigo pro próximo, tem que tirar tudo e levar”, conforme relatos colhidos pelo jornal.

A reportagem localizou a solicitação para a FAB levar o chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, o 1º sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, que foi para Guarulhos “para atender demandas do Senhor Presidente da República naquela cidade e retornará em voo comercial no trecho Guarulhos-SP para Brasília-DF”.

No dia 28 de dezembro de 2022, houve mais uma tentativa do gabinete do presidente de reaver as peças. Desta vez, o próprio presidente da República enviou um ofício ao gabinete da Receita Federal para solicitar que os bens fossem destinados à Presidência da República, em atendimento ao ofício 736/2022, da “Ajudância de Ordem do Gabinete Pessoal do Presidente da República”.

Flagrante

A apreensão ocorreu no dia 26 de outubro de 2021, durante uma fiscalização de rotina entre os passageiros do voo 773 que desembarcaram nos terminais de Guarulhos, com origem na Arábia Saudita. Após a passagem das malas pelo raio x, os agentes da Receita decidiram fiscalizar a bagagem de Marcos André dos Santos Soeiro, o assessor de Bento Albuquerque. Ao checar o conteúdo de uma mochila, os fiscais se depararam com a escultura de um cavalo de aproximadamente 30 centímetros, dourada, com as patas quebradas. Dentro dela, encontraram ainda o estojo com as joias trazidas para Michelle Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.

A única maneira possível de se retirar qualquer item apreendido pela Receita na alfândega – e isso vale para itens com valor superior a US$ 1 mil ou mesmo joias milionárias – é fazer o pagamento do imposto de importação, que equivale a 50% do valor estimado do item, além de uma multa de mais 25%, pela tentativa de entrar no País de forma ilegal.

No caso dos Bolsonaro, portanto, a retirada formal e correta das joias apreendidas e estimadas em R$ 16,5 milhões custaria nada menos que R$ 12,375 milhões. Como o pagamento estava fora de cogitação, o que restou foi recorrer aos órgãos do próprio governo.

Depois de não conseguir retirar os itens na alfândega do aeroporto, o Ministério de Minas e Energia envolveu outro ministério na tentativa de reaver as joias para o presidente. Desta vez, o MME acionou, em 3 de novembro de 2021, o Ministério de Relações Exteriores. O Itamaraty, então, reforça a pressão sobre a Receita e pede “providências necessárias para liberação dos bens retidos”.

Por meio de uma “Nota Executiva”, porém, a Receita volta a negar e informa que o único procedimento a ser adotado é o pagamento da multa e do imposto.

O comando da Receita à época também entrou na força-tarefa para liberar as joias. Os servidores da Receita, contudo, que têm estabilidade na função e são funcionários de Estado, resistiram às pressões e fizeram valer a lei.

Joias do tapete vermelho

A marca Chopard é uma das mais famosas e caras do mundo. De origem suíça, foi fundada em 1.860 e costuma ser utilizada nos tapetes vermelhos de Hollywood.

O governo brasileiro poderia ter recebido as joias, caso tivessem desembarcado como um presente oficial para o presidente da República e a primeira-dama. Os bens, porém, ficariam para o Estado brasileiro, e não com a família Bolsonaro.

Bento Albuquerque confirmou à reportagem do Estadão que as joias trazidas ao Brasil da Arábia Saudita eram, de fato, um presente para Michelle Bolsonaro.

Albuquerque, porém, afirmou que desconhecia o conteúdo do estojo de joias. Segundo o ex-ministro, os itens passaram pela alfândega saudita e embarcaram no voo comercial, sem que ele e sua comitiva fossem questionados sobre o conteúdo dos presentes. “Nenhum de nós sabíamos o que que eram aquelas caixas”, disse Albuquerque.

No ato da apreensão dos itens, ao ser questionado pelo agente da Receita Federal, Albuquerque relatou a quem se destinavam os presentes. “Isso era um presente. Como era uma joia, a joia não era para o presidente Bolsonaro, né... deveria ser para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. E o relógio e essas coisas, que nós vimos depois, deveria ser para o presidente, como dois embrulhos.”

A reportagem tentou contato com o ex-presidente Jair Bolsonaro. O advogado Frederick Wassef, que se apresentou como representante do ex-presidente, disse que não comentará o assunto.

Adriana Fernandes e André Borges para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 03.03.23, às 18h44.

Ruy Barbosa deveria ser considerado herói brasileiro

Ele está acima de Caxias, Pedro I, Tiradentes e Vargas

Eu sei — esta coluna deveria ser sobre o digital, sobre seus efeitos na sociedade. Mas é que visto também outros chapéus, além do de repórter de tecnologia. Há o repórter político e o do sujeito que escreve livros de história do Brasil. E esta semana fez cem anos da morte de um de meus dois heróis na história brasileira. Então, me permitam. Gostaria de lhes convencer de que Ruy Barbosa deveria ser nosso herói coletivo. Vale muito mais que um Caxias, mais que Tiradentes, não tem Pedro I ou Getúlio Vargas. Nenhum vale o que Ruy valeu.

E, ainda assim, não é de sempre que vem a convicção. Só o conheci recentemente. O Ruy da minha cabeça e escrevia muito difícil e, como jornalista, tenho preconceito com quem escreve empolado. Nunca prestei atenção até que fui escrever um livro sobre o Tenentismo. Basta um mergulho ligeiro na Primeira República para logo entender que não é possível compreender o nascimento da República sem antes entender o político que acumulou mais derrotas nela. Ruy.

Quando se elegeu pela primeira vez, Dom Pedro II era um sujeito de longa barba loura, que usava para esconder aquele queixo de Habsburgo. Ao morrer, ainda metido em reuniões, Ruy já havia assistido ao início do movimento que terminaria por colocar Getúlio no poder. Ele viu o Brasil que conhecemos nascer. E quis que este fosse diferente.

Sua grande briga no primeiro terço da vida pública foi pela Abolição da escravatura. No segundo terço, a briga foi dupla. De um lado contra oligarcas e seu patrimonialismo, o uso dos recursos do Estado por gente poderosa como se fosse coisa pessoal. Do outro, a fixação do Brasil no cenário internacional como uma nação pacífica. No terço final, o velho Ruy estava convencido de que uma das maiores ameaças à democracia vinha dos militares.

Ruy ajudou a aumentar a importância do Brasil lá fora. Na luta dos abolicionistas dentre os quais se incluía, a vitória foi só pela metade – acabou a escravidão, mas não foi aberto espaço real na sociedade. Ruy perdeu para os oligarcas e perdeu para os militares. A democracia liberal que imaginou, com ênfase em educação para todos, direito ao voto ampliado e um país mais aberto ao mundo, não veio. A Nova República é o que chegou mais perto – os ideais da Nova República são os ideais de Ruy.

A luta não foi só dele. Mas, quando começou, estava sozinho. Afinal, quando veio a República, meu outro herói era monarquista. Joaquim Nabuco preferiu ficar em casa. Se o Brasil dos sonhos tem um pai fundador, não há nome melhor. Mesmo escrevendo daquele jeito.

Pedro Dória, o autor deste artigo, é Jornalista e Historiador. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.03.23

Por que planos de paz como o de Lula podem acabar favorecendo Rússia, na visão de analistas internacionais

"Portanto, faz sentido o alvoroço da Rússia com qualquer 'plano de paz' que surja, se puder tirar proveito dele no futuro", acrescenta o especialista, que viveu na Rússia no início da década de 90 e também é diretor de pesquisa do Conflict Studies Research Center (CSRC), um centro de estudos anteriormente ligado ao Ministério de Defesa britânico.

Para Keir Giles, 'faz sentido que a Rússia se anime com qualquer 'plano de paz' que surja, se puder tirar proveito dele no futuro'

"As tentativas de mediação provavelmente favorecerão a Rússia. A Ucrânia precisa lutar para libertar seus cidadãos que vivem sob a bárbara ocupação militar russa. Moscou pode aceitar um cessar-fogo, a fim de 'congelar' a linha de frente e manter o controle dos territórios ocupados, enquanto espera para ganhar força e confiança suficientes e avançar novamente", diz Keir Giles, consultor sênior do Programa Rússia e Eurásia da Chatam House, o mais importante instituto de relações internacionais do Reino Unido.

Giles se refere aos comentários do vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, em entrevista à agência de notícias estatal russa Tass na quinta-feira (23/2). Segundo ele, Moscou está estudando a proposta de Lula para encerrar o conflito enquanto continua avaliando a situação na Ucrânia.

Por enquanto, nenhuma proposta formal foi enviada pelo governo brasileiro à Rússia.

Lula tem buscado apresentar Brasil como possível mediador para conflito entre Rússia e Ucrânia (Reuters)

Resolução aprovada com apoio do Brasil

Também nesta quinta-feira, com trecho proposto pelo Brasil, a ONU aprovou uma resolução que pede a retirada das tropas russas da Ucrânia.

Foram 141 votos a favor, 7 contra e 33 abstenções.

O texto traz recomendação dos brasileiros pelo "fim das hostilidades” entre Rússia e Ucrânia.

O Brasil, que em outras votações sobre o conflito chegou a se abster, votou a favor da resolução, o único do grupo dos BRICS — China, Índia e África do Sul se abstiveram.

A resolução não é vinculativa, mas, apesar de o valor meramente simbólico, tem peso político.

Lula vem tentando promover o Brasil como um potencial mediador para o fim da guerra, numa tentativa de reinserir o país no cenário político mundial após o isolamento amargado durante o governo de seu antecessor, Jair Bolsonaro (PL).

A ideia do presidente brasileiro é criar um grupo de países, possivelmente incluindo Índia, China e Indonésia, para mediar as negociações, uma espécie de "clube da paz".

Giles ressalva, contudo, que "se um grupo de mediadores de paz para a Ucrânia inclui Índia e China, eles também se abstiveram de condenar a guerra da Rússia contra a Ucrânia", em alusão à resolução recentemente aprovada pela ONU.

O Brasil não é o único país a propor soluções para o conflito; China, Turquia e muitos outros também se voluntariaram a mediar as negociações.

Também pesa contra Lula o fato de que, em entrevista à revista americana Time no ano passado, tenha responsabilizado o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, a União Europeia e os Estados Unidos pela guerra em curso na Ucrânia.

"Esse cara (Zelensky) é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado”, disse Lula. “(...) O comportamento dele é um comportamento um pouco esquisito, porque parece que ele faz parte de um espetáculo", acrescentou na ocasião.

Para Giles, "Lula não é o único a sugerir que a Rússia não tem culpa de ter iniciado a invasão da Ucrânia há um ano".

"Por mais bizarro que possa parecer para qualquer um que tenha ouvido o presidente Putin expondo sua ambição de restaurar o Império Russo, é uma visão que influenciou vários países fora da área euro-atlântica".

"Isso inclui os estados da África que se abstiveram na votação da Assembleia Geral da ONU sobre uma resolução para condenar o ataque da Rússia e, assim, deram aprovação tácita a uma guerra de reconquista colonial."

"A Rússia naturalmente vê o benefício dessa ambivalência e, portanto, a encorajará sempre que possível — como expressar gratidão ao Brasil por não condenar sua agressão", conclui.

Em entrevista à revista americana Time, Lula disse que presidente da Rússia, Vladimir Putin, não seria único culpado pela guerra (Reuters)

'Sem alinhamento automático'

Lula tem evitado um alinhamento automático com os Estados Unidos e a União Europeia e busca se apresentar como defensor da tradicional posição de neutralidade da diplomacia brasileira.

Mas essa neutralidade também tem motivos econômicos: a Rússia é, há anos, líder no mercado de fertilizantes, vitais para o agronegócio brasileiro e majoritariamente importados.

Lula negou, por exemplo, um pedido do governo da Alemanha para o Brasil fornecer munição de tanques que seria repassado por Berlim à Ucrânia.

Apesar do não-alinhamento, o presidente vem discutindo o conflito com grandes líderes ocidentais, incluindo o presidente francês Emmanuel Macron, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o chanceler alemão, Olaf Scholz.

Para o pesquisador Mathieu Boulègue, contudo, "não deve haver nenhum incentivo da comunidade internacional para negociar ou barganhar com um criminoso de guerra", diz ele, em alusão à Rússia.

"Nenhum compromisso deve ser feito, e a Ucrânia deve ser apoiada ao máximo. Ponto final", acrescenta Boulègue, que é especialista em questões de segurança e defesa da Eurásia, com foco na política externa russa e assuntos militares.

Assim como Giles, Boulègue levanta suspeitas sobre a real intenção da Rússia de alcançar uma solução pacífica para o conflito.

"Nada que o Kremlin faça ou diga sobre 'acordos negociados' ou soluções de paz pode ser confiável ou levado a sério. Moscou não negociaria de boa fé ou seria digno de confiança para implementar o que quer que assine."

Ele também permanece pessimista sobre um fim próximo da guerra.

"A Ucrânia não negociará com um invasor que nem mesmo reconhece o direito dos ucranianos de existirem como nação".

Em conversa com a BBC News Brasil, embaixadores brasileiros reservadamente disseram desconhecer qualquer iniciativa dos russos de contato com o Itamaraty para pedir detalhes sobre a sugestão brasileira do clube da paz. Mas veem no gesto público de Moscou um reconhecimento do Brasil como um "negociador honesto" em campo. O mesmo reconhecimento, aliás, teria sido dado ao Brasil pelo lado ucraniano: no último dia 18, o chanceler Mauro Vieira se encontrou com o Ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, às margens da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, para expor a posição brasileira sobre a guerra. Nesta sexta, Zelensky se disse aberto a negociações com outros países além dos aliados da OTAN.

O governo do Brasil e o da Ucrânia trabalham para viabilizar uma ligação telefônica entre Lula e Zelensky já na semana que vem. (A conversa on line entre os dois ocorreu ontem, quinta feira)

Luís Barrucho, de Londres - UK para a BBC News Brasil, em 03.03.23 (Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c801gk58e5po)

'Salgadinho é mais barato que fruta': subsidiados no Brasil, ultraprocessados causam 57 mil mortes no país, diz estudo

O país acumula, na visão dos especialistas, um histórico de prioridades erradas: concede uma série de subsídios e incentivos fiscais que barateiam e tornam mais acessíveis os produtos industrializados — como salsicha, macarrão instantâneo e refrigerante — enquanto dá pouco apoio à produção de frutas e legumes, principalmente de pequenos produtores.

Subsidiados no Brasil, estudo aponta que ultraprocessados causam 57 mil mortes no país (Ag. Brasil)

Os alimentos ultraprocessados são responsáveis por dezenas de milhares de mortes por ano no Brasil, aponta um estudo feito em parceria entre a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidad de Santiago de Chile. Em um mundo onde as pessoas têm cada vez menos tempo para se alimentar, pesquisadores e médicos ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que esse é um problema que está longe de ser resolvido. Para eles, a atuação do poder público, hoje falha, é a principal saída para melhorar a qualidade da alimentação dos brasileiros.

O estudo que avaliou os impactos sobre a saúde dos alimentos ultraprocessados — que são os produtos que passaram por maior processamento industrial e contêm substâncias sintetizadas em laboratório como os corantes, conservantes e aromatizantes — apontou que ele foram responsáveis diretos pela morte de 57 mil pessoas no Brasil, com base em dados de 2019, os mais recentes disponíveis sobre o tema. Para efeito de comparação, no mesmo ano, 45,5 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde.

Um exemplo do apoio público ao setor foi um decreto assinado em abril de 2022 pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) que zerou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para extratos e concentrados usados na produção de refrigerantes. A medida, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) representava um subsídio de até R$ 1,8 bilhão para a indústria de refrigerantes em três anos (sendo R$1,6 bilhão apenas para Ambev e Coca-Cola), segundo estimativa do governo federal em um relatório enviado ao Congresso Nacional.

Procurada, a Coca-Cola informou que não se manifestaria e que a reportagem deveria procurar a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir). A Ambev não se manifestou.

A Abir informou por meio de nota que "o setor gera 2 milhões de empregos em toda a cadeia e recolhe anualmente R$ 16 bilhões em impostos federais, estaduais e municipais. Vale destacar que o setor possui, ainda, uma das cargas tributárias mais altas da América Latina - aproximadamente 40% do preço de comercialização."

A associação ainda criticou as constantes mudanças na alíquota de impostos aplicada à indústria de refrigerantes. Se resumiu a dizer que o consumo de refrigerantes não tem relação direta com os níveis de obesidade no país.

"A pesquisa Vigitel do Ministério da Saúde traz dados da frequência de consumo de refrigerante no país. De 2007 a 2021, houve uma redução de 54,6% no consumo regular de refrigerantes. Na contramão desse dado, a obesidade aumentou 89,8% no Brasil", informou em nota.

"A indústria brasileira preza pela segurança jurídica. Em qualquer lugar do mundo, os investimentos realizados por uma empresa dependem do grau de confiança que se tem nas regras do jogo. Na Zona Franca de Manaus, por exemplo, o setor de bebidas não alcoólicas tem sofrido há anos com mudanças em regras pré-estabelecidas - já foram mais de onze alterações na alíquota", informou.

A Abir, no entanto, não comentou os questionamentos da reportagem sobre as mortes ligadas ao consumo de ultraprocessados no país.

Procuradas, a Associção Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos (Abiam), Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras) e Associaçao Brasileira de Bebidas (Abrabe) não comentaram o assunto até a publicação desta reportagem.

Procurado pela reportagem, a assessoria de imprensa do ministério da Economia da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro se resumiu a afirmar que a medida não era mais válida por conta da decisão da Suprema Corte. Procurada, a atual gestão não informou se pretende reduzir os impostos das bebidas açucaradas novamente.

O principal argumento do STF para derrubar o decreto de Bolsonaro foi o de que o incentivo fiscal prejudicaria a Zona Franca de Manaus, um dos principais polos de fábrica do país (inclusive de refrigerantes). Isso ocorreria porque a região, que oferece benefícios fiscais para atrair empresas, deixaria ser competitiva em relação ao restante do país, o que poderia causar uma debandada de empresas e demissões em massa.

Pediatra e nutróloga do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), Maria Paula de Albuquerque afirma que, no Brasil, a indústria de alimentos ultraprocessados é pouco cobrada pelos eventuais danos causados à saúde dos consumidores.

"Não é cobrada pelo diabetes, obesidade, hipertensão e vários tipos de câncer que causa na população. Pelo contrário, tem incentivo fiscal. Existe a falácia de que se a pessoa não quiser comer alimentos ultraprocessados, ela não come. Atualmente, o agricultor familiar não tem o mesmo apoio e incentivo que a indústria. O alimento fresco está mais caro que o ultraprocessado", afirma à BBC News Brasil.

A pesquisa sobre os ultraprocessados aponta que mais de 10% das 540 mil mortes registradas no país em 2019 são atribuíveis ao consumo destes produtos. Segundo os pesquisadores, se os brasileiros reduzissem o consumo desses alimentos em 20%, poderiam ter sido evitadas 12 mil mortes. Caso a redução fosse de 50%, 29 mil vidas poderiam ser poupadas.

O estudo se baseou em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com informações de 2017 e 2018 sobre a participação dos alimentos ultraprocessados no total de calorias ingeridas pelos brasileiros, além de dados demográficos e de mortalidade de 2019 e um estudo que revisou pesquisas sobre a associação entre a ingestão desses alimentos e o risco de mortalidade para chegar aos efeitos associados ao seu consumo.

Os ultraprocessados são geralmente encontrados em embalagens e vendidos para o consumo ou preparo rápido, como biscoitos recheados, salgadinhos, salsichas e macarrão instantâneo

De acordo com o Ministério da Saúde, as Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNTs), que são permanentes, geralmente irreversíveis e necessitam de um longo período de acompanhamento e reabilitação, estão diretamente ligadas aos ultraprocessados. Essas doenças, como câncer, problemas cardíacos, respiratórios e renais e hipertensão, foram incluídas na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) na lista das dez principais causas de morte no mundo. De acordo com o Ministério da Saúde, elas respondem por mais de 70% das mortes.

Os ultraprocessados, segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo ministério, são alimentos industrializados feitos majoritariamente ou integralmente de substâncias como óleos, açúcar e gorduras, derivados de constituintes como amido modificado ou sintetizados em laboratório com base de matérias orgânicas como petróleo e carvão. Alguns desses exemplos são os corantes, conservantes e aromatizantes.

Os ultraprocessados são geralmente encontrados em embalagens e vendidos para o consumo ou preparo rápido, como biscoitos recheados, salgadinhos, salsichas e macarrão instantâneo. São alimentos considerados com sabor agradável e realçado, mas pobres em nutrientes.

"Esse tipo de alimento é rico em calorias, gordura, sal, açúcar. O Brasil se comprometeu com a Organização Pan-Americana da Saúde a reduzir o consumo de refrigerantes para frear o aumento da obesidade, e aumentar o consumo de frutas, legumes e verduras na população adulta", diz Albuquerque.

O Ministério da Saúde, na gestão Jair Bolsonaro, informou à BBC News Brasil que incentiva práticas alimentares saudáveis por meio do Guia Alimentar para a População Brasileira, de maneira individual e coletiva. A pasta disse ainda que subsidia políticas, programas e ações que visem incentivar, apoiar, proteger e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional da população.

"O guia apresenta como regra de ouro: prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados. A adoção da classificação dos alimentos segundo nível de processamento foi considerada como mais adequada frente aos desafios de promoção de uma alimentação adequada e saudável, considerando princípios da sustentabilidade, sendo reconhecida como inovadora nacional e internacionalmente", informou a pasta em nota.

As quatro categorias são definidas de acordo com o processamento empregado na sua produção: in natura ou minimamente processados, ingredientes culinários, alimentos processados e alimentos ultraprocessados.

O ministério disse que dissemina, por meio de estratégias de comunicação e treinamento de profissionais da educação e da saúde a divulgação do Guia Alimentar, principalmente para combater a obesidade infantil e suas consequências. A intenção é educar a população para o consumo de alimentos saudáveis e prática regular de esportes.

A pasta foi novamente procurada, mas não comentou o caso até a publicação desta reportagem.

Como mudar?

Maria Paula de Albuquerque integrou o Grupo de Trabalho de Saúde e Nutrição da Agenda 227, que produziu 148 propostas de políticas públicas a serem implementadas no próximo governo federal, e diz que são necessários incentivos fiscais e a implementação de políticas públicas que priorizem a produção e publicidade de alimentos nutritivos.

"Observamos um aumento do excesso de peso não somente nos adultos, mas também em crianças, já na pré-escola. Para enfrentar um problema tão complexo, precisamos desde o início trazer o tema da nutrição para dentro das escolas e dos conteúdos pedagógicos por meio de educação alimentar e nutricional. É preciso educar as crianças e seus familiares e capacitar profissionais de educação e saúde", diz a nutróloga.

A pesquisa mais recente sobre obesidade do IBGE, de 2019, revelou que o número de adultos com mais de 20 anos com excesso de peso (Índice de Massa Corporal - IMC - maior que 25) mais do que dobrou. Subiu de 12,2% em 2003 para 26,8% em 2019.

"Hoje, vivemos em um ambiente que favorece a obesidade. Quase tudo conspira para que você coma alimentos não saudáveis. Está na hora dos alimentos ultraprocessados serem abordados como o tabaco, porque esses produtos levam ao vício", afirma.

Refrigerantes e cerveja estão entre os dez alimentos mais consumidos pelos brasileiros (Reuters)

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, revelou que os alimentos se tornam viciantes principalmente por conter altas doses não naturais de carboidratos refinados, açúcares e gordura.

Uma pesquisa feita pelo professor de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Walter Belik, em parceria com o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola e apoiado pelo Instituto Ibirapitanga e Instituto Clima e Sociedade, revelou que o brasileiro gastou, em 2020, R$ 831 milhões com refrigerantes e R$ 693 milhões em cerveja mais do que com arroz (R$ 821 milhões) e feijão (R$ 408 milhões). Os maiores gastos foram com as carnes bovina (R$ 2,8 bilhões) e de frango (R$ 1,7 bilhão).

O levantamento apontou ainda que o consumo de alimentos in natura caiu 7% entre 2002 e 2018, enquanto os de processados e ultraprocessados subiram 18% e 46%, respectivamente. A compra de refeições prontas aumentou 250%.

De acordo com um estudo feito pela Unifesp, o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta R$ 1,5 bilhão anualmente apenas com custos relacionados a obesidade e sobrepeso.

Mexer no bolso

Andre Braz, economista da FGV e coordenador-adjunto do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), diz que, em 2022, o preço dos alimentos in natura subiu mais do que os de processados e ultraprocessados.

A inflação medida pelo IPC em dezembro de 2022 foi de 4,3%, em relação ao mesmo período do ano anterior. Entretanto, a cebola subiu 114,66%, a maçã, 57,53%, a batata inglesa, 52,56% e a banana nanica, 35,96%.

Já entre os alimentos processados e ultraprocessados, os maiores aumentos foram da maionese (32,25%), do tempero pronto (18,75%) e do macarrão instantâneo (19,73%), segundo o IPC.

Para Braz, muitas pessoas optam por comer um alimento ultraprocessado a uma fruta por uma questão cultural.

Para o economista Andre Braz, a solução é desestimular o consumo de ultraprocessados por meio da taxação dos produtos. (PA Média)

"O alimento ultraprocessado é prático. Não precisa cozinhar ou descascar. Tem alguns que você só abre a lata e come. Essa praticidade é conveniente para quem trabalha muitas horas. É comida barata e com muita caloria, então você vicia naquilo. Seu corpo está com fome, você come rápido, ele para de reclamar e você vicia em algo pouco nutricional", afirma.

Esse é um problema de saúde que bate às portas do SUS. Para o economista, as empresas que vendem produtos que causam doenças e mortes deveriam pagar por esse custo extra aos cofres públicos.

"Esses produtos geram um problema para a administração pública. O cigarro vicia, mas tem um imposto gigante. A salsicha, não. Você pode se intoxicar de salsicha, mas a contrapartida de imposto não é suficiente para custear o governo. A cerveja ainda tem um imposto alto também, mas os outros alimentos não", afirma.

Para Andre Braz, a solução é desestimular o consumo de ultraprocessados por meio da taxação destes produtos.

"Assim, você estimula o indivíduo a largar a lata de sardinha e pegar a fruta. O ideal é que esses alimentos sejam taxados para que esse dinheiro seja destinado a hospitais e educação infantil. Se o preço do refrigerante triplicar, as pessoas correm para o suco em pó. Se aumentar também, elas vão comprar água ou suco natural", afirma.

Redução em Portugal

Em Portugal, um estudo da Nova School of Business and Economics apontou que as vendas de refrigerantes no país caíram 12,5% em 2022 em relação a 2017. De acordo com o jornal português Sapo, isso ocorreu após a aprovação de uma lei que elevou a taxação de bebidas açucaradas, como o refrigerante.

De acordo com a publicação, as exportações ou as grandes empresas não foram afetadas pela medida, e os mais prejudicados foram os pequenos produtores.

No Brasil, um projeto de lei que prevê a taxação da venda de refrigerantes em até 20% tramita Senado. O texto já foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais e agora segue à Comissão de Assuntos Econômicos.

O projeto de lei prevê que 80% do dinheiro arrecadado sejam destinados a despesas com ações e serviços públicos de saúde, seguindo diretrizes do SUS. Esse dinheiro seria recolhido ao Tesouro Nacional e repassado diretamente ao Fundo Nacional de Saúde.Os outros 20% restantes serviriam para custear programas e projetos esportivos e paradesportivos.

Rótulo e o desestímulo

Para Maria Paula de Albuquerque, é necessária a adoção de leis para desestimular o consumo de ultraprocessados no país.

"A lei de rotulagem no Brasil avança em passos lentos. Especialistas e a sociedade civil, em consulta pública solicitaram uma rotulagem frontal octagonal, a mesma usada no Chile, que privilegia as informações de alerta para o consumidor, como alimento com alto teor de gordura ou açúcar. Mas o modelo entregue pela Anvisa usou um rótulo frontal menor e, portanto, com menos impacto", diz.

A lei de rotulagem no Chile foi alterada em 2019 com o objetivo de fornecer informações mais claras e precisas aos consumidores sobre os produtos que compram. Entre as principais medidas, estão os rótulos de advertência com destaque em octógono quando o alimento contém substâncias potencialmente nocivas à saúde, como bebidas alcoólicas e cigarros.

No país, também são exigidas as identificações de alergênicos e informações nutricionais, como quantidade de calorias, sódio e açúcar.

Em nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou que o Brasil adotou em 2019 o modelo de rotulagem frontal que indica ao consumidor os alimentos com alto índice de sódio, açúcar e gordura. Segundo o órgão, a escolha está "largamente amparada em dados técnicos" e se aplica aos alimentos embalados, processados e ultraprocessados.

Estudo aponta que consumo de produtos ultraprocessados pode viciar (Reuters)

"Antes de propor o design de lupa na rotulagem nutricional frontal, a Anvisa analisou os modelos adotados, de forma mandatória ou voluntária, em mais de 40 países. Entre as mais de 82 mil contribuições recebidas na consulta pública, foram recebidas manifestações para a melhoria dos critérios de legibilidade e design do modelo de rotulagem nutricional frontal proposto, de forma a permitir sua declaração na diversidade de tipos e tamanhos de embalagens disponíveis no mercado", informou a Anvisa.

Segundo o órgão, o modelo da lupa foi escolhido por "ser o mais alinhado ao objetivo regulatório traçado, por facilitar a compreensão da rotulagem nutricional pelo consumidor brasileiro, possibilitando escolhas autônomas e conscientes pelos consumidores, sendo o mais coerente com o papel da alimentação na saúde da população".

Para Albuquerque, é necessário dar incentivos fiscais ao pequeno agricultor e favorecer hortas comunitárias para valorizar o consumo de alimentos frescos e com alto teor nutritivo e taxar alimentos que causam doenças.

"A gente tem que proporcionar escolhas melhores para o consumidor. Ou seja, comida de verdade. Hoje, não temos problemas na produção de alimentos. O Brasil tem alimento para todos, mas nem sempre isso é acessível. Precisamos garantir o direito à alimentação adequada, reforçar as práticas de educação nutricional nas escolas e comunidades e fortalecer as macropolíticas e governança sobre o tema."

Felipe Souza - @felipe_dess, de S. Paulo - SP para a BBC News Brasil, em 03.03.23