segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Invasão criminosa a sede dos Poderes estava anunciada; Ibaneis foi omisso; leia análise

Governador do DF tinha dado suficientes indícios, dias atrás, de que sabia que tudo podia acontecer, e não fez nada, literalmente nada

Mas a gravidade do que aconteceu em Brasília neste domingo, 8, não se restringe às responsabilidades das autoridades do DF. Foto: Eraldo Peres/AP

A pergunta que grita e não quer calar, em face da criminosa invasão das sede dos poderes da República brasileira, é como explicar que todas as autoridades públicas responsáveis não tenham levado a sério as notícias que há dias circulavam nas redes sociais e anunciavam que haveria nesses dias – próximos da data da simbólica da invasão do Capitólio nos Estados Unidos – um novo e grave atentado contra a democracia brasileira?

Lula avalia que atos terroristas têm financiamento de empresários até no exterior

Os chamados “bolsonaristas radicais” não esconderam nada, anunciaram com antecedência que estavam preparando caravanas de centenas de ônibus em direção a Brasília para realizar uma mudança de estratégia de sua ação de contestação golpista dos resultados da eleição de 2022. A desmobilização dos acampamentos em frente dos quartéis militares não foi uma ação política de reconhecimento que seus participantes estavam errados, mas uma ação de preparo para o que aconteceu neste domingo, 8, o questionamento e a deslegitimação das instituições democráticas – Executivo, Legislativo e STF. Só não viu que isso estava sendo preparado quem não quis.

Diante disso é um erro que a intervenção federal no governo do DF seja apena sobre o setor de segurança. O governador Ibaneis Rocha tinha dado suficientes indícios, dias atrás, de que sabia que tudo podia acontecer, e não fez nada, literalmente nada – a não ser demitir o seu secretário de Segurança depois que o leite tinha sido derramado. Houve omissão do governador e, nesse sentido, não se justifica que tenha sido poupado da intervenção federal.

Mas a gravidade do que aconteceu em Brasília neste domingo, 8, não se restringe às responsabilidades das autoridades do DF. Com relação ao que se revelou nas últimas horas é sabido que o governo federal também sabia que a ação golpista estava sendo preparada. É estranho que em face dessas informações a Polícia Federal não tenha sido mobilizada para enfrentar a situação com os seus recursos. Outra pergunta delicada se refere ao setor de inteligência do governo federal: esse setor não foi acionado? O que explica que não tivesse produzido as informações para que o Ministro da Justiça, e mesmo o presidente da República, pudessem agir com a antecedência devida em preparação à loucura coletiva que ocorreu em Brasília. Foi inexperiência ou incompetência das novas autoridades?

A democracia brasileira sobreviveu bem aos atentados que o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou contra ela em seus quatro anos de mandato, e isso em grande parte pela ação das instituições democráticas. Mas sempre se soube que os que não aceitaram os resultados das eleições de 2022 se preparavam para atacá-las. A invasão deste domingo, 8, de suas sedes teve um significado simbólico claro, o de contestar a democracia e o estado de direito democrático. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve levar isso em conta se quiser responder de maneira correta ao que está acontecendo no País.

José Alvaro Moisés, o autor deste artigo, é cientista politico. Publicado originalmente por O Estado de S. Paulo, em 01.01.23, às 23h42

Extremistas bolsonaristas articulavam invasão de sedes dos três Poderes nas redes desde 3 de janeiro

Radicais divulgaram mensagens em aplicativos como o Telegram para trazer manifestantes de todo o País para Brasília, com todas as despesas pagas desde terça-feira

Depredação da Praça dos Três Poderes em Brasília  Foto: REUTERS/Adriano Machado

A invasão do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso vinha sendo preparada por extremistas leais ao ex-presidente Jair Bolsonaro desde a terça-feira, 3, quando radicais começaram a divulgar com grande intensidade mensagens em aplicativos como o Telegram e o WhatsApp para trazer manifestantes de todo o País para Brasília, com todas as despesas pagas.

As viagens de diversos quartéis que ainda abrigavam bolsonaristas que contestam o resultado da eleição começaram na sexta-feira, 6. As mensagens falavam também em enfrentamento às forças policiais caso fosse necessário, com pedidos a mobilização de ex-policiais, militares e pessoas com porte de arma.

O plano era tomar os palácios dos três Poderes, acampar no interior, além de bloquear refinarias de combustível em todo País. E assim provocar o caos para levar a uma intervenção militar com a deposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito democraticamente em 30 de outubro.

Oferecia-se ônibus de graça – a maioria saiu da frente de quartéis de todos o país. Em Jundiaí, por exemplo, os radicais partiram para Brasília da frente do 12.º Grupo de Artilharia de Campanha. Em Campinas, os bolsonaristas se reuniram diante da Escola preparatória dos Cadetes do Exército.

“Tudo pago. Água, café, almoço e janta. Ficará acampado no Planalto.” Mensagem publicada em grupos bolsonaristas mobilizando radicais para invadir Brasília

Em mensagem, os bolsonaristas radicais queriam unir policiais militares e militares da reserva das Forças Armadas. Também convocaram caçadores, atiradores e colecionadores de armas e bombeiros militares. Queriam pessoas com experiência militar para enfrentar as forças de segurança caso fosse necessário. Prometiam aos que fossem para Brasília: “Tudo pago. Água, café, almoço e janta. Ficará acampado no Planalto.”

“O povo do agro me chamou e já me contratou 3 mil ônibus de diferentes áreas do Brasil”, disse um organizador de protestos bolsonaristas em áudio produzido e divulgado nesta quarta-feira, 4. “A gente vai tomar o poder. Agora vamos mostrar o que é gente do bem quando resolve ser do mal. Iremos fazer uma reintegração da posse das casas do Poder.”

“Hoje teremos a tomada dos três Poderes! E invasão no Congresso. Será um dia de guerra." Convocação de extremistas para invasão de Brasília

Neste mesmo dia, mensagens apareceram em diversos grupos de WhatsApp e Telegram com convocações para caravanas de todas as capitais nacionais e de grandes cidades do interior. Um dos conteúdos afirmava que a participação dos manifestantes era “crucial ou será a escravidão e miséria para todos”. A publicação ainda exibia armas.

Num dos grupos centrais dos manifestantes no Telegram, uma mensagem publicada na quinta-feira falava de uma “operação” em três “trincheiras”: na primeira, a tomada do Congresso, do Palácio do Planalto, do Palácio da Alvorada e outros prédios em grande contingente. Num outro, o fechamento de rodovias e refinarias por caminhoneiros. Na terceira, ocupar os QGs. “Alinhar para concluir a missão”, finalizava o texto com a estratégia.

Na sexta-feira, mensagens ensinavam como fazer uma máscara caseira para resistir a bombas de gás lacrimogêneo. Durante os atos com vandalismo nos prédios federais em Brasília, diversos manifestantes usavam equipamentos de proteção individual.

Mobilização em larga escala

Desde a terça-feira, as mensagens que convocavam apoiadores de Bolsonaro para o Congresso foram crescendo em volume. Ao longo do sábado, alguns vídeos circulavam pedindo a presença na frente do Congresso Nacional. “Pessoal, o povo em massa deve ocupar todo esse espaço (o entorno da Esplanada), dentro e fora do Congresso. Aí sim derruba o governo”, dizia uma mensagem compartilhada em grupos ao longo da noite de sábado.

Durante a manhã deste domingo, a estratégia já se desenhava. “O Congresso é nosso! Vamos tomar posse dele!! Com cavalaria ou sem cavalaria, nada vai nos parar”, disse um usuário na filial organizadora dos manifestos de São Paulo, às 9h59 deste domingo.

“Foco, galera. Tomar a Praça dos Três Poderes”, dizia uma mensagem que começou a circular por volta das 10h da manhã. “Tomar o STF, o Planalto e o Congresso.” Outra mensagem, publicada às 10h43 da manhã dizia falar para o pessoal na frente do QG para marchar ao Congresso.

Às 10h58, uma convocação. “Hoje teremos a tomada dos três Poderes! E invasão no Congresso. Será um dia de guerra. O primeiro passo para a a rebelião de resistência civil.”

Levantamento

De acordo com levantamento da empresa de monitoramento Torabit, os brasileiros realizaram 795,5 mil menções nas redes sociais sobre a invasão de golpistas aos prédios dos Três Poderes, em Brasília entre às 16h e às 20h deste domingo, 8, com baixo apoio.

O sentimento favorável às manifestações durante a tarde foi caindo dos iniciais 25% e chegou à noite abaixo dos 10%. Predominou entre os usuários um sentimento de receio sobre o que pode acontecer nos próximos dias – desde aumento nos incidentes de violência até a preocupação com a economia e a alta do dólar. O número representa menos da metade de publicações realizadas no dia da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1,6 milhão).

O sentimento registrado por usuários às 20h foi de 67,5% de críticas, 9,2% de apoio e 23,3% neutro. O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDF), foi mencionado em 7% das postagens, associando-o à responsabilidade e cumplicidade aos atos deste domingo. Para as redes, agora ele estaria com medo das consequências. A polícia foi mencionada no mesmo volume de publicações. Uma publicação que exibe agentes tirando foto das manifestações viralizou nas redes sociais e teve mais de 3,6 milhões de visualizações.

Brasília se manteve desde às 16h nos assuntos mais comentados no Twitter. Os termos “Congresso Nacional”, “Ibaneis”, “terroristas”, “Anderson Torres (secretário de Segurança Pública do DF, exonerado neste domingo)”, “Capitólio”, “SEM ANISTIA”, “Distrito Federal”, “Bolsonaristas”, “Congresso”, “Planalto”, “Esplanada” e “Xandão” completam os destaques.

Levy Teles e Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 08.01.23, às 23h53

Intolerável assalto à democracia

Um a um, os golpistas que se insurgiram contra a ordem constitucional em Brasília, assim como os que lhes dão apoio político, material e financeiro, devem ser punidos de forma exemplar

É estarrecedora a facilidade com que baderneiros que não se conformam com a derrota de Jair Bolsonaro na eleição passada invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília na tarde de domingo, no maior ataque à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar.

Só há uma explicação para isso: a leniência das chamadas autoridades para identificar e punir os golpistas desde os primeiros crimes que cometeram após a confirmação da vitória do presidente Lula da Silva. Não foram poucas as oportunidades para que agentes do Estado fizessem valer as leis e a Constituição do País. Cada um desses agentes, no limite de sua responsabilidade, há de responder pela prevaricação perante a Justiça.

Ao que parece, uma malta de bolsonaristas só conseguiu tomar de assalto o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal porque conta com aliados muito poderosos, a começar pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o maior responsável pela intentona. Ora, o País não assistiria atônito àquelas cenas de violência na capital federal caso os golpistas não tivessem recebido apoio político, material e financeiro para fazer o que fizeram.

Acoitado na Flórida, incapaz de se curvar ao princípio mais comezinho da democracia – a transferência pacífica de poder –, Bolsonaro jamais emitiu uma palavra que pudesse ser entendida por seus radicais como uma ordem de desmobilização e respeito à Constituição e à supremacia da vontade popular. Ao contrário: desde a derrota, o ex-presidente abusou de meias palavras e insinuações para açular seus camisas pardas em uma escalada de violência que culminou na tentativa de golpe ocorrida em Brasília.

Sabe-se agora que aquele quebra-quebra promovido por bolsonaristas no dia da diplomação de Lula da Silva e Geraldo Alckmin pelo Tribunal Superior Eleitoral foi apenas uma espécie de ensaio geral para a intentona. Aparentemente, o objetivo final dos insurgentes, segundo sua lógica doidivanas, era promover uma desordem tal que levasse as Forças Armadas a intervir, restituir a Presidência a Bolsonaro e prender o presidente Lula da Silva. Nada menos.

Que haja amalucados no País capazes de conceber uma urdidura dessa natureza já é lamentável por si só. Mas ainda pior é saber que eles contam com o apoio, expresso ou tácito, de autoridades e líderes políticos.

Assim como Bolsonaro, as Forças Armadas jamais emitiram uma ordem firme para desmantelar os acampamentos golpistas que foram montados em frente a quartéis País afora. Esse silêncio acalentou os delírios golpistas dos bolsonaristas. Houve até militares que classificaram os atos contra o resultado das urnas – e, portanto, contra a Constituição – como “manifestações democráticas”. O próprio ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, mostrou-se tolerante com o intolerável, tergiversando sobre a gravidade desses acampamentos.

Mas não foram apenas Bolsonaro e alguns militares que não honram a farda que fizeram dos golpistas os idiotas úteis a desideratos liberticidas. Igualmente, o governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha (MDB), deverá responder pela falta de preparo das forças policiais sob seu comando para conter uma invasão que há muito tempo já vinha sendo preparada. A GloboNews exibiu uma imagem chocante de policiais militares do DF fazendo selfies enquanto uma súcia de bolsonaristas invadia o Congresso Nacional. Diante da manifesta tibieza de Ibaneis Rocha, fez bem o presidente Lula em decretar intervenção federal na segurança do DF.

A bem da democracia brasileira, a insurreição deve receber uma resposta à altura das autoridades constituídas. A Polícia Federal, sem prejuízo da atuação de outras instituições, deve identificar, um a um, os responsáveis pela violência contra o Estado e pela depredação do patrimônio público. Se a invasão do Capitólio, há dois anos, serviu de inspiração para os golpistas no Brasil, a diligência das autoridades dos Estados Unidos na persecução criminal de seus responsáveis deve servir de exemplo para as autoridades brasileiras. A democracia se defende, como já dissemos nesta página, lançando sobre os que atentam contra ela todo o peso da lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 09.01.23

Entenda a decisão de Moraes que afastou Ibaneis, determinou centenas de prisões e proibiu protestos

Ministro decreta prisão em flagrante de extremistas acampados em frente dos quartéis e intimação de prefeitos, governadores e generais, além da proibição de protestos até o dia 31

Terroristas durante atos de domingo. Foto: Wilton Junior/Estadão

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou o afastamento cautelar do governador do Distrito Federal (DF), Ibaneis Rocha, tem 18 páginas e todos os fundamentos usados para justificar os nove grupos de medidas.

Trata-se do mais duro despacho já proferido pelo ministro desde que se tornou relator do inquérito dos atos antidemocráticos. Ele reúne desde a determinação de centenas de prisões em flagrante, manda intimar governadores, prefeitos e comandantes militares e determina até a realização de diligências para identificar todos os extremistas que invadiram os prédios dos três Poderes, em Brasília. Relatório do Exército mostra que haveria cinco mil deles nos acampamentos de todo o País. Quem permanecer neles, poderá ser preso. 

Afastamento

A primeira medida é o afastamento do governador. Ele tem como base no artigo 319 do Código de Processo Penal. Moraes entendeu existirem indícios veementes de omissão dolosa criminosa do governador. O afastamento é uma medida cautelar diferente da prisão, que consiste na suspensão do exercício da função pública pelo prazo inicial de 90 dias. Ou seja, se estiverem presentes os motivos para manter Ibaneis afastado, a medida pode ser prorrogada como alternativa à prisão do acusado para a garantia da ordem pública.

Desocupação e prisões em flagrante

Moraes determinou no item 2 da decisão um prazo de 24 horas para que todos os acampamentos de extremistas bolsonaristas em frente de quartéis sejam desocupados e dissolvidos. Não só. Desta vez ele foi além: mandou prender em flagrante todos os acampados pela prática dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios), da Lei nº 13.260 (Antiterror), e pelos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III (perseguição) e 286 (incitação ao crime). O total de presos pode passar de mil.

Governadores, prefeitos e comandantes podem ser responsabilizados

No mesmo item 2 da decisão, o ministro mandou que a operação de desocupação e prisão dos acusados seja feita pelos PMs dos Estados e do DF, com apoio da Força Nacional e Polícia Federal se necessário. Deve o governador do Estado ser intimado para efetivar a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal. As autoridades municipais deverão prestar todo o apoio necessário para a retirada dos materiais existentes no local. O comandante militar do QG deverá, igualmente, prestar todo o auxílio necessário para o efetivo cumprimento da medida. Ambos deverão ser intimados para efetivar a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, deverá ser intimado para, sob sua responsabilidade, determinar todo o apoio necessário às Forças de Segurança.

Desocupação de vias

No terceiro item da decisão, Moraes mandou desocupar em 24 horas todas as vias públicas e prédios públicos estaduais e federais em todo o território nacional que estiverem ocupados por extremistas. Nos Estados e DF, as operações deverão ser feitas pelas PMs, com apoio da Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal e PF se necessário. Os governadores também devem ser intimados nesse caso para efetivarem a decisão, sob pena de responsabilidade pessoal.

Apreensão de ônibus e bloqueio

No quarto item da decisão, Moraes mandou apreender e bloquear todos os ônibus identificados pela Polícia Federal, que trouxeram os terroristas para o Distrito Federal. Os proprietários deverão ser identificados e ouvidos em 48 horas, apresentando a relação e identificação de todos os passageiros, dos contratantes do transporte, inclusive apresentando contratos escritos, caso existam, meios de pagamento e quaisquer outras informações pertinentes. Entre os ônibus a serem apreendidos deverão estar os 87 que se encontram estacionados na Granja do Torto e imediações.

Proibição de manifestações

No item quinto da decisão, Moraes proíbe até o dia 31 de janeiro o ingresso de quaisquer ônibus e caminhões com manifestantes no Distrito Federal. A PRF e a PF deverão providenciar o bloqueio, a imediata apreensão do ônibus e a oitiva de todos os passageiros, com base no artigo 5º da Lei antiterrorismo, que pune os atos preparatórios.

Identificação dos ônibus

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) deverá enviar ao STF o registro de todos os veículos, inclusive telemáticos, de veículos que ingressaram no Distrito Federal entre os dias 5 e 8 de janeiro de 2023;

No sétimo item, Moraes manda a PF obter todas as imagens das câmeras do Distrito Federal que possam auxiliar no reconhecimento facial dos terroristas que praticaram os atos do dia 8 de janeiro, em todos os hotéis e hospedarias do Distrito Federal, a lista e identificação de hóspedes que chegaram ao DF a partir da última quinta feira, bem como a filmagem do saguão (lobby) para a devida identificação de eventuais participantes dos atos terroristas.

Identificação pelos dados do TSE

Como oitava providência, Moraes manda que o tribunal Superior Eleitoral (TSE), sob a coordenação do assessor da presidência, Eduardo de Oliveira Tagliaferro, utilize a consulta e acesso aos dados de identificação civil mantidos naquela Corte, bem como de outros dados biográficos necessários à identificação e localização de pessoas envolvidas nos atos terroristas do dia 8 de janeiro. Os dados deverão manter o necessário sigilo.

Exclusões de contas de redes sociais

O nono e último item da decisão de Moraes manda a expedição de ofício ao Facebook, ao Tik Tok e ao Twitter para que em duas horas elas façam o bloqueio de 17 contas, perfis e canais de bolsonaristas acusados de instigar os atos antidemocráticos, sob pena de multa diária de R$ 100 mil em caso de desobediência. Elas também deverão fornecer os dados cadastrais das contas ao STF e preservar integralmente seus conteúdo. Entre os atimngidos está o blogueiro bolsonarista Bernardo Kuster.

Marcelo Godoy, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 09.01.23, às 07h42

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Primeira semana do governo Lula é marcada por confusões de atos e equívocos

Em boa hora, presidente resolveu colocar ordem na casa, afinal quem não se comunica, se trumbica

Lembrei de Abelardo Barbosa e Sergio Porto nesta primeira semana de governo. Chacrinha usava muito o bordão “eu vim para confundir, e não para explicar”. Foi exatamente o que se passou nas idas e vindas sobre o Marco do Saneamento. Uma enorme confusão sobre o papel da Agência Nacional de Águas (ANA), que deixou no ar a possibilidade de retrocesso numa das mais importantes reformas regulatórias dos últimos anos. O novo marco gerou um aumento significativo do investimento privado e impôs metas de universalização, dando esperanças de acesso a água e esgoto à população de baixa renda abandonada na lama por anos de atuação estatal.

Stanislaw Ponte Preta criou a expressão Febeapá (“Festival de Besteiras que Assolam o País”). A semana foi pródiga. Na sua posse, Lupi bradou: “A Previdência não é deficitária”. É terraplanismo puro em governo que promete respeitar a ciência. Sua “antirreforma” foi mais um anúncio a ser desmentido em menos de 24 horas.

A ideia de rever a governança das estatais, anunciada por Esther Dweck, é outro equívoco. A ministra assumiu em evento prestigiado por um discurso de Dilma, que sugeriu a reversão de inúmeras reformas do governo Temer – aquelas que salvaram o País da terra arrasada legada por ela.

A suspensão das privatizações era previsível. Inclusive, a retirada da Petrobras, que não passava de fanfarronice de Guedes. Mas quando até a Ceitec está sendo ressuscitada, nem Pollyanna resolve.

Nesse cenário, a Lei das Estatais se torna ainda mais relevante. A lei não criminaliza a política, simplesmente exige qualificação técnica para cargos na administração das estatais.

Em seu discurso, Lula errou no tempo ao afirmar que as estatais estão sucateadas. Estavam em 2015, quando se registrou prejuízo recorde no seu conjunto. A intervenção nos preços, mais investimentos para lá de duvidosos, geraram um nível de endividamento na Petrobras e Eletrobras que teria levado à falência qualquer empresa privada. Lucros foram registrados já em 2016 com uma nova gestão e, após anos de ajustes, dividendos voltaram a ser distribuídos. Quem mais ganhou com isso foi o dono delas: o governo federal, que representa a todos nós. Não houve rapinagem alguma. E junto ganharam os trabalhadores, que nos anos 2000 acreditaram na empresa e usaram o FGTS para comprar ações da Petrobras. Conseguiram recuperar todo o dinheiro perdido por conta das desastrosas administrações que se seguiram. A tal “nova governança” coloca tudo isso em risco novamente.

Em boa hora, Lula resolveu colocar ordem na casa, afinal quem não se comunica, se trumbica.

Elena Landau, a autora deste artigo, é advogada e economista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23.


A cada ‘forasteiro’, há um petista ou afim como contraponto. Isso causa ruído e agita a oposição

Lula reúne seu Ministério depois de uma primeira semana de emoção, simbologia, muitos anúncios de despesas, nenhum de receitas e ‘algumas divergências’

Lula recebeu ministros no Planalto nos últimos dias. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Lula reúne seu Ministério nesta quinta-feira, 5, depois de uma primeira semana de emoção, simbologia, muitos anúncios de despesas, nenhum de receitas, “algumas divergências” entre ministros, como admitiu Simone Tebet, do Planejamento, e solavancos e um sobe e desce da Bolsa e do dólar.

Tebet (MDB) é liberal e Fernando Haddad (PT), da Fazenda, nem tanto. José Múcio (ex-PFL), da Defesa, tem fala mansa e Flávio Dino (PSB, ex-PCdoB), da Justiça, fala duro. Carlos Fávaro (PSD), da Agricultura, tem de pacificar o agronegócio, já Paulo Teixeira (PT), do Desenvolvimento Agrário, e Marina Silva (Rede, ex-PT), do Meio Ambiente, precisam pôr as “boiadas” de volta no curral.

Vejam que, nesta “frente ampla”, onde há um “forasteiro” de MDB, PSD, União Brasil, há um petista ou aliado de primeira hora como contraponto, lembrando a verdadeira origem e a alma do terceiro governo Lula. E o presidente vai deixar claro, hoje, que quem manda é ele.

Lula não apresentou plano de governo na campanha e na transição, mas já no discurso de posse sinalizou que vai estar mais à esquerda do que nos dois primeiros mandatos. Henrique Meirelles foi ao ponto: “Parece que o Lula não vai repetir o governo dele, mas o de Dilma” (que gerou dois anos de recessão). Pano rápido.

Em uma semana, Lula demonizou o teto de gastos, sem apresentar alternativa; Luiz Marinho (Trabalho) acenou com revisão da reforma trabalhista; Carlos Lupi (Previdência), com a previdenciária. E Jean Paul Prates declarou que o governo é quem define a política de preços da Petrobras – empresa com regras e acionistas.

Prates diz que foi “mal interpretado”, mas a coceira da intervenção vem de longe e o que jogou a Petrobras no fundo do poço não foi só o petrolão, mas também o represamento político de preços na era Dilma. Bolsonaro, tosco e inábil, demitiu uns tantos presidentes, até jogar a conta para os Estados. Lula não é tosco nem inábil e, ainda por cima, cobra “a função social da Petrobras”. O que fará?

Já o “conflito” entre Dino e Múcio é jogo combinado. PT e esquerda em geral não podem exigir que Múcio chegue atirando nas Forças Armadas, tão danificadas por Bolsonaro. Ele foi posto lá exatamente para o oposto: apaziguar os ânimos e recolher as armas e balas.

Tudo isso causa ruídos e dá carne aos leões, que falam em Estado inchado, intervencionismo, desastre e, assim, mobilizam as abatidas tropas bolsonaristas na internet. É melhor deixar leões e tropas à míngua. Haddad, cauteloso, e Rui Costa (Casa Civil), desautorizando reformas das reformas, cuidam disso. Com a palavra, Lula!

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23

Democracia sempre, com toda a precaução

Frase de Lula na posse implica um trabalho permanente de vigilância e diálogo para que não haja retrocessos

A última frase do discurso de Lula da Silva na posse de domingo fala em democracia sempre. Expressa um alívio, porque escapamos de destinos indesejáveis como o da Hungria ou mesmo, na outra ponta do espectro, o da Nicarágua.

A “democracia sempre” revela que a sociedade resistiu às ameaças de Jair Bolsonaro, mas implica também um trabalho permanente de vigilância e diálogo para que realmente não haja retrocessos.

Uma das variáveis interessantes no futuro próximo é desenhar o destino desse movimento que apoiou Bolsonaro e, parcialmente, resistiu na porta dos quartéis até o dia da posse de Lula.

Há quem pense que esses eleitores voltam ao leito original da direita clássica. Discordo. Eles são produto de uma nova época e se organizam de outra maneira, através de instrumentos que não existiam no passado.

O gênio não volta mais à lâmpada. No entanto, alguma coisa pode acontecer nesse movimento de extrema direita que sacudiu o País a partir de 2018.

Seu líder foi derrotado e escolheu o péssimo caminho da fuga para a Disneylândia. Ele poderia ter trilhado a senda democrática: reconhecer a derrota, empossar o eleito e se dedicar à oposição. Ou mesmo poderia ter tentado um golpe com uma chance bem reduzida de vitória, risco de prisão ou mesmo de sua integridade física.

Bolsonaro não fez nada disso. Apenas se refugiou na amargura e esperou que movimentos de massa, isolados, resolvessem o problema que ele não conseguia equacionar.

Certamente isso vai pesar o seu futuro. Assim como pesará em termos históricos o fato de ser um presidente que não conseguiu se reeleger. É um destino que partilha com Marcelo Crivella, prefeito do Rio também derrotado. Ambos atuaram tão mal que dão aos seus sucessores uma grande chance de acertar, no princípio, apenas fazendo o trivial numa administração.

A experiência internacional, sobretudo a francesa, mostra que os partidos de extrema direita se renovam quando percebem que suas chances eleitorais se reduziram. É o caso de Marine Le Pen na França. Ela percebeu que seguiriam marginalizados e empreendeu um programa de “desdemonizacão” de seu partido. Expulsou radicais, condenou a violência e o racismo explícito, além de ter se aproximado da visão da Europa. Ainda expulsou o próprio pai, Jean-Marie Le Pen.

Também na Itália, Giorgia Meloni suavizou seu discurso sobre a Europa e pretende articular alguns países dirigidos pela direita.

Mas as semelhanças entre Europa e Brasil não podem ser levadas muito adiante. Duas mulheres, mesmo que distantes do feminismo, são mais hábeis que Bolsonaro.

A extrema direita brasileira, inspirada na norte-americana, tem características peculiares. Uma delas é a paixão pelas armas, com o projeto de armar a população. No caso brasileiro, essa bandeira é rejeitada, segundo as pesquisas, por 70% da população.

Outra característica é a negação das mudanças climáticas. Bolsonaro vai além, defende o desmatamento da Amazônia e a integração dos povos originários na sociedade abrangente.

Num contexto europeu, essa fúria destrutiva parece-me longe de ser aceita. Lembro-me de cobrir uma manifestação de neonazistas, os skinheads, em Dresden, quando trabalhava na Alemanha. Quase todos que entrevistei manifestavam alguma preocupação com o meio ambiente.

Partidos conservadores como o inglês discutem há anos sua agenda ambiental e a colocam no topo das prioridades. Lembro-me de que há dez anos já havia excelentes programas ambientais, como o do filósofo John Gray.

Uma outra característica que aproxima a direita brasileira da norte-americana é o apoio fervoroso de alguns grupos evangélicos. A decisão de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, comum a Donald Trump e Bolsonaro, não significa apenas alinhamento a Israel. Mas basicamente é a tentativa de tornar real uma profecia comum aos evangélicos, que prevê uma grande guerra na região na qual os sobreviventes aderem ao cristianismo. Não creio que essa profecia seja bem-vista por Israel, que, de qualquer forma, seria beneficiado com a transferência.

O velho Jean-Marie Le Pen, na França, não tinha condições mentais de se reinventar, por isso foi varrido pela filha. Suspeito que Bolsonaro também tenha dificuldade de análise. Parece muito dominado pelos próprios sentimentos e foi incapaz, por exemplo, de cumprir o ritual de um derrotado nas eleições.

No momento de grande indignação com a política tradicional, ele encarnou o homem simples que fala palavrões e não esconde seus pensamentos, mesmo os obscenos. Mas a História coloca problemas que um homem limitado nem sempre pode resolver. Sobretudo quando se cerca de obedientes nulidades.

Não haverá vácuo. Hamilton Mourão fez um discurso tentando preenchê-lo na passagem de ano. Governadores de Estados importantes, como São Paulo e Minas, podem também aspirar à liderança.

O último discurso de Bolsonaro revelou que ele tinha algum medo do futuro. Seus eleitores mais moderados se decepcionaram; os que o consideravam mito vão reclassificá-lo na galeria de heróis como Mickey, Pluto e Pato Donald.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23

O que nos espera?

Sobre Haddad e suas ações recai o peso total de um governo que nos libertou de um pesadelo, mas que ainda engatinha

A primeira semana de 2023 se encerra como se o ano recém despertasse tal qual um tresnoitado que tenha caído da cama na madrugada, acreditando já haver Sol. Hoje é Dia de Reis no calendário cristão, mas já não recordamos a data.

Na voraz sociedade de consumo, vivemos sempre no amanhã. No Brasil, o novo governo federal desponta como se estivesse emaranhado nos 37 ministérios criados por Lula da Silva para administrar o País. Faltam até prédios na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para lá instalar o primeiro escalão do novo governo.

Aumentar o número de ministérios pode não obedecer, no entanto, a uma forma de melhor governar, mas, sim, a uma tentativa de obter (no conhecido “jeitinho” brasileiro) maioria no Congresso.

Pergunto: trata-se do ressurgimento (ou continuidade) da velha politicalha dominante na partidocracia brasileira?

Para disfarçar, dão a isso a denominação pomposa de “presidencialismo de coalizão”, mesmo que entre em atrito ou colisão com a forma democrática de governar para a totalidade dos cidadãos e não apenas como “moeda de troca” entre os políticos.

A vitória de Lula da Silva, mais do que tudo, significou a derrota do autoritarismo e desdém administrativo de Jair Bolsonaro, mas não viajou com o ex-presidente a Orlando, na Flórida, nos EUA, para lá divertir-se com as invenções de Walt Disney.

A viagem, ou fuga, de Bolsonaro (paga por cada um de nós) foi apenas a forma com que ele evitou colocar em Lula a faixa presidencial, símbolo do poder. A cena alternativa, porém, foi a mais bela e representativa da posse presidencial. Nem a cadelinha “Resistência”, levada pela primeira-dama num gesto inadequado e ridículo, logrou manchar a beleza e representatividade do grupo que, com o cacique Raoni ao lado de Lula, subiu a rampa do Palácio do Planalto e, no topo, uma catadora de lixo negra nele colocou a faixa.

Foi como se o Brasil inteiro colocasse a faixa no presidente eleito. A ausência de Bolsonaro apenas propiciou algo mais profundo e simbólico do que a convencional passagem da faixa.

Os discursos de Lula na posse perante o Congresso e no parlatório, para a multidão, foram a um só tempo uma análise da situação que vai herdar e um compromisso a cumprir ao longo dos quatro anos de mandato. As dificuldades expostas foram parcialmente removidas já no “revogaço” assinado ao dar posse ao Ministério. A anulação imediata das facilidades criadas por Bolsonaro para o porte de armas e compra de munições foi sábia e atendeu a uma demanda da sociedade que almeja ser protegida, não matar.

Nos anos de Bolsonaro, até uma rusga ou discussão no trânsito, tão comum nas grandes cidades, podia redundar em morte. Bastaria que uma das partes estivesse armada.

Nada, porém, supera o compromisso público de Lula de desenvolver ações contra a fome, por um lado, e para minorar o impacto das mudanças climáticas, por outro. A inércia governamental na área de proteção ambiental nos tempos de Bolsonaro fez o Brasil regredir à condição de pária entre as nações. Lula foi, inclusive, veemente ao falar da proteção do meio ambiente. O ministério entregue à experiente Marina Silva foi a mostra concreta da decisão de acertar.

Por outro lado, Lula recebe agora um Brasil muito mais problematizado do que aquele que Michel Temer legou a Bolsonaro. Ou, mais ainda, nada recorda o País que Fernando Henrique Cardoso entregou ao próprio Lula em 2003.

Os cuidados extremos que cercaram a posse de Lula e Geraldo Alckmin, em que diferentes corpos policiais se mobilizaram para evitar eventuais ataques terroristas aos novos governantes, marcaram a síntese desse Brasil estranho surgido nos quatro anos de Bolsonaro. Num disparate histórico, o então presidente da República reinventou a “Guerra Fria” ao insistir no “perigo do comunismo”, e disso fez seu cavalo de batalha, em diferentes formatos ou cores.

Com isso, tentou desviar a atenção e evitar o enfrentamento dos problemas profundos, sempre mais difíceis de resolver do que ideias estapafúrdias lançadas ao vento. Foi assim que vimos Bolsonaro qualificar a pandemia de “gripezinha” ou, mais adiante, inventar que a vacina contra covid provocava aids.

O passado já passou e, agora, começa um momento novo. O Ministério de Lula é heterogêneo e as palavras iniciais do novo presidente e do seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fizeram o dólar subir e a Bolsa baixar. Em árabe, Haddad significa “ferreiro”, atividade exponencial no tempo em que se ferravam cavalos e não havia automóveis, mas hoje só usual nos hipódromos.

Na diversidade do Ministério lulista, Haddad se perfila desde já como a figura-chave ou o “homem forte”. Sobre ele e suas ações recai, desde já, o peso total de um governo que nos libertou do pesadelo bolsonarista, mas que ainda engatinha e molha as fraldas como criança.

Esperar mais do que isso é ir além do previsível, algo que nem um punhado de pitonisas pode antecipar.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor - Prêmio Jaboti de Literatura 2000 e 205, Prêmio APCA em 2004. Professor Aposentado da Universidade de Brasília (UNB). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.01.23.

Marcos republicanos sob ameaça

Confusão do governo na revisão das competências da ANA expõe sua inépcia, sua ojeriza à iniciativa privada e seu apetite por submeter agências reguladoras ao seu arbítrio

Em seu primeiro dia, o novo governo tentou desmembrar a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e esvaziar sua função reguladora no saneamento. Além de inepta, a manobra desperta apreensão por sinalizar um duplo retrocesso: no saneamento em si e na autonomia das agências reguladoras.

A MP que define as atribuições dos 37 Ministérios alterou a lei de criação da ANA para vinculá-la ao Ministério do Meio Ambiente. O mesmo ato retirou de seu nome a menção ao saneamento e excluiu sua atribuição de instituir as normas de referência no setor. Ao mesmo tempo, o decreto sobre o Ministério das Cidades atribuiu esse papel à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental da pasta.

A medida é ilegal, porque a competência da ANA para elaborar as normas foi instituída pelo marco legal do saneamento e só pode ser alterada por lei. Além disso, apesar de a MP ter repassado a ANA para o Meio Ambiente, o decreto que estrutura o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional também prevê a vinculação do órgão.

A Casa Civil já sinalizou que vai retificar a confusão, mas a sensação de insegurança já está instalada. Porém, mais do que mero equívoco, a tentativa de transferir as competências da ANA à administração direta parece ser um balão de ensaio de um governo atavicamente hostil à iniciativa privada e à independência das agências reguladoras.

Ao contrário do que se fez na energia, transportes ou telecomunicações, os serviços de água e esgoto ainda são prestados quase que exclusivamente por estatais contratadas sem licitação nem metas. O marco, aprovado em 2020, fez valer a exigência constitucional de licitação e metas, criando condições para a atração do capital privado. Para garantir segurança e previsibilidade, foi atribuído à ANA o papel de editar as diretrizes de referência a serem seguidas pelas mais de 80 agências reguladoras infranacionais.

À época, o PT se opôs ao marco, e em dezembro o grupo de transição para o novo governo já recomendou a sua “revisão” para barrar concessões ou privatizações e esvaziar a autonomia da ANA. Dito e feito.

Trata-se de uma tentativa de autorrealizar uma profecia. Membros do governo alegam que a ANA não tem “controle da sociedade”, gerando insegurança jurídica, e que o marco não trouxe os investimentos desejados. Mas, como toda agência, a ANA é fiscalizada pelo Congresso. Só em 2021, os investimentos no saneamento cresceram 27% – só os privados, 41%. Agora, porém, esse avanço está ameaçado.

“Evidentemente, essas incertezas geram a procura por um plano B”, disse ao Estadão uma fonte ligada ao setor. “No limite, as empresas privadas de saneamento vão apenas manter a estrutura que têm hoje e parar de investir, à espera de uma definição sobre o futuro.” O freio põe em risco as metas de universalização estabelecidas pelo marco, ameaçando perpetuar o estado de exclusão e degradação em que vivem os 35 milhões de brasileiros sem água potável e os 100 milhões sem esgoto.

A ofensiva sobre a ANA é parte de um conteúdo programático. As agências reguladoras foram criadas nos anos 90 para garantir que as privatizações e concessões fossem reguladas por critérios técnicos, em prol do interesse público, livres de pressões de corporações políticas e econômicas a serviço de interesses privados. Trata-se de órgãos de Estado, não de governo – e muito menos de um receptáculo de aparelhamento partidário. É justamente isso que sempre despertou a ojeriza do PT. Na oposição, o partido se opôs à criação das agências. No governo, fez o diabo para sabotá-las, fosse asfixiando-as financeiramente, fosse retardando nomeações, fosse obliterando projetos de lei que fortalecessem sua isenção e sua capacidade técnica.

A pandemia foi a grande vindicação das agências. Só Deus sabe o quanto Jair Bolsonaro teria retardado a aprovação das vacinas não fosse a autonomia da Anvisa. O lulopetismo e o bolsonarismo se apresentam como antíteses um do outro. Mas eis mais um ponto em que convergem: o anseio mútuo por submeter toda a máquina do Estado ao seu arbítrio.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.01.23

‘Quem fizer algo errado será convidado a deixar o governo’, diz Lula em primeira reunião ministerial

Petista disse que ministros devem abrir a porta para receber parlamentares e que vai conversar com o Congresso sem veto ideológico

Lula realizou na manhã desta sexta-feira, 6, sua primeira reunião ministerial como presidente. Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu a primeira reunião ministerial do seu terceiro mandato com um aviso aos ministros. O petista afirmou que “quem fizer algo errado, será convidado a deixar o governo”. Sua gestão começa em meio à polêmica do envolvimento da ministra do Turismo, Daniela Carneiro (União Brasil-RJ), com familiares de milicianos. Lula pediu a sua equipe que mantenha a porta aberta dos ministérios para receber parlamentares e disse que quer assegurar uma relação harmônica com o Congresso.

Em relação à conduta dos ministros, ao mesmo tempo em que deu o alerta sobre a possibilidade de demitir quem cometer irregularidades, prometeu não deixar ninguém para trás.

Presidente afirmou que não abandonará nenhum de seus ministros 'no meio da estrada'. 

“Todos sabem que a nossa obrigação é fazer as coisas corretas, é fazer as coisas da melhor forma possível. Quem fizer errado sabe que só tem um jeito: a pessoa será simplesmente, da forma mais educada possível, convidada a deixar o governo. E, se cometeu algo grave, a pessoa terá que se colocar diante das investigação e da própria Justiça”, disse Lula.

Como o Estadão mostrou, Lula rejeitou demitir a ministra do Turismo e o Palácio do Planalto saiu em defesa dela, minimizando o episódio.

O presidente ressaltou, porém, que vai apoiar cada um dos ministros nos “momentos bons e ruins” e vai agir como um irmão mais velho ou um pai, com a garantia de ser “honesto” com todos. “Não deixarei nenhum de vocês pela estrada”, afirmou aos 37 ministros. A reunião nesta sexta-feira, 6, foi convocada logo no primeiro dia de governo, mas, diante de desencontros entre os integrantes do governo, Lula decidiu aproveitar o encontro para impor um freio de arrumação.

O governo sofreu com desgastes de imagem e reações negativas do mercado financeiro provocados por opiniões pessoais de seus auxiliares e bate cabeça entre os projetos em análise nos ministérios.

O chefe do Executivo enfatizou que o governo não tem “pensamento único” e que é necessário “esforço” de todos os ministros para superar as divergências e atingir os resultados prioritários. “Nós não somos um governo de pensamento único. Somos um governo de pessoas diferentes. E mesmo pensando diferente, temos que fazer um esforço para que no processo de reconstrução do País a gente pense igual’, disse Lula.

Divergências entre ministros estão explícitas, tanto na equipe econômica, entre Planejamento e Fazenda, quando em áreas como Justiça e Defesa. “Somos um governo de pessoas diferentes e o importante é fazer um esforço para na reconstrução do País a gente construa igual.

Lula afirmou que os ministros têm obrigação de receber deputados e senadores. E ainda lembrou que estará aberto a conversar com todos os partidos e fez uma menção especial à atenção que dará aos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). “Não é o Lira que precisa de mim, é o governo que precisa da boa vontade do presidente da Câmara”, afirmou.

Lula assina termo de posse no Congresso ao lado dos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e Rodrigo Pacheco.  Foto: Jacqueline Lisboa/Reuters

“Vou fazer a mais importante relação com o Congresso Nacional que já tive. Estive oito anos na Presidência e eu digo aos líderes Jacques Wagner, (José) Guimarães e Randolfe (Rodrigues), que, desta vez, vocês não se preocupem pois vão ter um presidente disposto a fazer tantas quantas conversas for necessário com lideranças, partidos políticos e os presidente Rodrigo Pacheco e Arthur Lira. Não tem veto ideológico para conversar e não tem assunto proibido em se tratando do bem do povo brasileiro”, afirmou.

O recado do presidente sobre a necessidade de seus auxiliares manter interlocução constante com o Congresso remonta ao mandato da ex-presidente Dilma Roussef (PT), que foi destituída por um processo de impeachment após ter a sua base de sustentação parlamentar esfacelada, enquanto enfrentava a oposição do então presidente da Câmara Eduardo Cunha (União Brasil-RJ).

Após o discurso inicial de Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que atacou o uso da máquina pública por Bolsonaro para tentar a reeleição e agradeceu os votos recebidos pela chapa, a reunião foi fechada.

Alinhamento

Depois de assistir à exposição de divergências entre integrantes da equipe, Lula aproveita a primeira reunião para impor um “freio de arrumação” na Esplanada. O encontro, com 37 ministros, servirá para Lula enquadrar seus aliados, que já produziram três situações de desgaste em menos de uma semana.

Na lista está a declaração do ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), de que pretende fazer uma revisão da reforma previdenciária promovida pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019. Lupi acabou desautorizado pelo chefe da Casa Civil, Rui Costa, que atribuiu a Lula a palavra final sobre anúncios de políticas estudadas nos ministérios.

Houve, ainda, mais um bate-cabeça entre ministros. Desta vez, entre o titular da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), e o da Defesa, José Múcio. Dino tem classificado os protestos de aliados de Bolsonaro em frente aos quartéis como “incubadoras de terroristas” e cobra o fim desses acampamentos. Múcio, por sua vez, diz que se trata de manifestações da democracia, quando pacíficas. O ministro contou que tem parentes acampados nesses locais.

O Estadão apurou que episódios como o de Lupi, Dino e Múcio devem fazer com que Lula cobre o alinhamento do discurso da equipe. A primeira semana da volta do petista ao Planalto foi marcada por reações duras do mercado financeiro a declarações dos ministros.

O futuro presidente da Petrobras, Jean Paul Prates (PT), também provocou polêmica ao defender a revisão da política de preço de paridade de importação (PPI), que condiciona as mudanças nos preços dos combustíveis às movimentações internacionais.

Recados e agronegócio

Lula prometeu punição a crimes ambientais. O presidente deu um claro recado ao agronegócio, setor econômico em que o ex-presidente e adversário eleitoral Jair Bolsonaro (PL) tinha um pilar de seu eleitorado. O petista afirmou que “pessoas sérias”, “homens de negócio” e “empresários de verdade” do agro, que sabem produzir sem ofender e adentrar biomas como Amazônia e Pantanal, serão respeitados e bem tratados. A fala foi feita enquanto Lula elogiava do ministro da Agricultura Carlos Fávaro (PSD) por ser um elo do governo com os produtores rurais.

“Aqueles que teimarem em continuar desrespeitando a lei, invadindo o que não pode se invadido, usando agrotóxico que não pode ser usado, esse a força da lei imperará sobre eles. Nesse País tudo vale, a única coisa que não vale é cidadão bandido achar que pode desrespeitar a boa vontade da sociedade brasileira, a nossa Constituição e a nossa legislação”, disse Lula.

O petista ainda citou nominalmente os ministros da Educação, Camilo Santana (PT), da Saúde, Nísia Trindade, e da Cultura, Margareth Menezes. Ao ex-governador petista Camilo, Lula disse que deverá se reunir com ele na semana que vem para fazer um levantamento das mais de 4 mil obras paradas no setor educacional. Ao se destinar à Margareth, o presidente disse ser necessário fazer uma “revolução cultural” no País. À Nísia o petista relembrou a responsabilidade da ministra na área da Saúde e disse compreender que ela terá dificuldades em atingir os objetivos.

Weslley Galzo e Felipe Frazão para O Estado de S. Paulo, em 06.01.23

Por que Bolsonaro precisa ser punido

Para a democracia funcionar, os resultados que ela produz não podem ser irreversíveis

O ex-presidente Jair Bolsonaro participa da posse de ministros do STJ - Adriano Machado/Reuters

Bolsonaro deve ser punido por crimes que tenha cometido durante a Presidência? Eu penso que sim, mas a discussão é menos simples do que parece.

A democracia, considerada em seus elementos mais essenciais, funciona porque previne a violência política. O jogo deve ser armado de tal forma que valha mais a pena para os derrotados em um pleito entregar o poder pacificamente do que resistir à força. Não é preciso ser um Von Neumann para concluir que o risco de prisão desbalanceia essa conta, tornando mais atrativa a hipótese de aferrar-se ao poder por todos os meios. Ademais, se testemunharmos muitos ex-presidentes passando longas temporadas na cadeia, criamos um desincentivo para que pessoas, eventualmente capazes e bem-intencionadas, concorram ao cargo.

O cientista político Adam Przeworski vai além e afirma que a fórmula da redução de riscos deve valer não apenas para o destino pessoal de ex-mandatários mas também para as políticas públicas que eles defenderam. Para que os perdedores aceitem mansamente a derrota, devem estar convencidos de que não serão perseguidos pelos vencedores e de que seus projetos poderão ser retomados numa eventual volta ao poder. Para a democracia funcionar, os resultados que ela produz não podem ser irreversíveis.

Isso significa que devemos deixar Bolsonaro em paz? Creio que não. Em primeiro lugar, a estabilidade democrática é um dos valores que a sociedade deve perseguir, mas não o único. A ideia de justiça é outro, e Bolsonaro pode ser acusado de crimes graves o bastante para que não possamos apenas olhar para o outro lado. Mais importante, Bolsonaro não abriu mão do poder porque tenha introjetado o cálculo democrático. Ele nunca o aceitou e só não resistiu à força porque não encontrou apoio suficiente para isso. Conseguir uma condenação que pelo menos o exclua de pleitos pelos próximos muitos anos é um ato de autodefesa da democracia.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 05.01.23.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Salário de Bolsonaro pode chegar a R$ 80 mil brutos por mês; entenda

Ex-mandatário recebe aposentadoria como militar e ex-deputado, e pode acumular com os vencimentos de presidente de honra do PL

Ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada após a derrota para Lula, no dia 1º de novembro (Foto de  Evaristo Sá/AFP)

Os vencimentos mensais do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) podem chegar a R$ 80 mil. Derrotado na eleição presidencial do ano passado, o ex-mandatário tem garantidas duas fontes de remuneração. E ainda pode contar com uma terceira proveniente de um cargo partidário.

Por ser capitão reformado do Exército, o presidente recebe R$ 11.945,49 brutos por mês. Esta é uma das remunerações que Bolsonaro tem garantida.

Além dos vencimentos como militar, o ex-presidente também vai receber uma aposentadoria pelo tempo em que foi deputado federal. O benefício foi concedido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em dezembro do ano passado. O valor deve ficar em torno de R$ 30 mil reais.

Bolsonaro ainda pode receber R$ 39,2 mil mensais por ser presidente de honra do PL. O presidente do partido, Valdemar Costa Neto, fez o convite após a derrota para Lula nas urnas, em outubro do ano passado.

O valor acertado pelo PL equivale ao teto constitucional do setor público. O partido, no entanto, vai pagar apenas se Bolsonaro retornar ao Brasil.

O ex-presidente viajou para a Flórida dois dias antes do fim de seu mandato e está sem data para voltar. Aliados acreditam que ele permanecerá no país por três meses.

Mas o retorno ao Brasil ainda não garante o pagamento a Bolsonaro. O partido também depende de uma canetada do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, para que tenha recursos.

As contas da sigla estão bloqueadas desde que o PL apresentou uma ação pedindo a anulação de cerca de 300 mil votos apenas no segundo turno. Moraes atendeu a um pedido da legenda e liberou verbas para pagar a folha de pagamento do PL de dezembro, mas o contracheque de Bolsonaro não está contabilizado.

Publicado originalmente por O Globo — Rio de Janeiro, em 05.01.23

O monopólio lulopetista da verdade

Iniciativas do novo governo para punir ‘desinformação’ e para estabelecer a ‘verdade’ sobre o passado revestem-se de boas intenções, mas mal escondem a vocação autoritária

Levou apenas um par de dias para que o cacoete autoritário do governo lulopetista se manifestasse – revestido, é claro, e como sempre, das melhores intenções.

No dia 2 passado, ao tomar posse como ministro-chefe da AGU, Jorge Rodrigo Messias anunciou a criação de uma tal “Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia”, que tem entre suas competências “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”. Trata-se de perigosa formulação, pois nada impede, a não ser escrúpulos éticos, que o governo classifique como “desinformação” o que é mera opinião. Abre-se uma avenida para o constrangimento de críticos do governo, a título de impedir a disseminação de mentiras tendentes a prejudicar o funcionamento do Estado e, no limite, a democracia.

Tudo é ainda mais estupefaciente porque o próprio advogado-geral da União reconheceu que não há lei que defina o que é desinformação. Mesmo assim, Messias achou que era o caso de não apenas criar a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia – como se já não houvesse o Ministério Público para fazê-lo –, mas também de tomar para a AGU a prerrogativa de definir o que é desinformação. Tomem nota: “Mentira voluntária, dolosa, com o objetivo claro de prejudicar a correta execução das políticas públicas com prejuízo à sociedade e com o objetivo de promover ataques deliberados aos membros dos Poderes com mentiras que efetivamente embaracem o exercício de suas funções públicas”. Tudo vago o suficiente para servir de base a qualquer coisa – bem ao gosto de governos arbitrários.

Em outra frente, o secretário de Comunicação Social da Presidência, deputado Paulo Pimenta, anunciou a criação da Secretaria de Políticas Digitais, uma estrutura que funcionará no Palácio do Planalto para “combater a desinformação e o discurso do ódio nas redes sociais”. Ora, não cabe a um governo determinar o que é desinformação, muito menos ter uma estrutura devotada a “combater” o que chama de “discurso de ódio” – nome genérico que os petistas certamente usarão, como já o fazem, para qualificar as críticas de opositores.

É claro que, como de hábito, os petistas prometem que tudo isso será precedido de “amplo debate”, mas já se sabe com quem – a patota de sempre. Se é para valer, essa polícia do pensamento deve começar enquadrando o próprio secretário Paulo Pimenta, que é um adepto da lunática teoria segundo a qual o atentado a faca sofrido por Jair Bolsonaro foi uma armação – uma clássica fake news.

Por sua vez, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, anunciou em seu discurso de posse a criação da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade. Nada menos. Não há razão para duvidar da boa intenção do ministro, um jurista respeitável e com reconhecido histórico de defesa dos direitos humanos, mas causa apreensão que um governo pretenda estabelecer a “verdade” e a “memória” de um país, pois é exatamente assim que regimes autoritários se consolidam.

Não se sabe o que mais virá por aí, mas apenas esses exemplos bastam para concluir que o lulopetismo parece empenhado em reescrever a história, na qual se destacam os muitos crimes cometidos durante os governos de Lula e de Dilma Rousseff, e em determinar como o novo governo petista será descrito agora e no futuro, criminalizando opiniões contrárias.

Decerto movido pelo rancor de quem se julga injustiçado, o PT arreganha os dentes, sem qualquer gesto de distensão nem, muito menos, de conciliação. Pelo contrário: conforme já era esperado, os petistas, nem bem Lula esquentou a cadeira presidencial, põem em prática sua conhecida estratégia de demonizar os opositores e de reivindicar o monopólio absoluto da verdade. Para o presidente e sua turma, convictos de que encarnam o “povo” em toda a sua “diversidade”, só é válida a opinião de quem reconhece Lula como o redentor dos pobres. Considerem-se avisados: aos que não aceitarem o credo petista, resta a danação.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.01.23

"Coalizão de Lula está mais à esquerda do que ao centro"

Frente ampla da campanha se refletiu apenas em parte na escolha de ministros, com o PT ocupando o maior número de cargos, aponta cientista político. Tendência é que composição se amplie com o tempo, diz.

O corpo ministerial do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é menos heterogêneo do que a frente ampla defendida pelo presidente ao longo da campanha eleitoral, avalia o cientista político Fernando Limongi.

"A frente ampla da campanha apareceu apenas parcialmente na escolha ministerial e a expectativa era maior nesse sentido. Não que a composição feita nos ministérios seja estreita. Mas o que nós temos neste início de governo é mais uma coalizão necessária para governar", afirma em entrevista à DW Brasil.

Ao longo da disputa presidencial, Lula reuniu apoios vindos da esquerda à centro-direita para derrotar Jair Bolsonaro. Dos 37 ministérios, 10 estão nas mãos do PT, oito em partidos que não o apoiaram na eleição (MDB, União Brasil e PSD) e 11 com ministros sem filiação partidária. Há ainda cargos com Rede, PCdoB, PSB, PSOL e PDT.

Para Limongi, que é professor aposentado de ciência política da USP e docente na Escola de Economia de São Paulo da FGV, dado que o PT ocupa a maior parte dos cargos, a coalizão está mais à esquerda do que ao centro.

"Está bem distante do que é a composição da Câmara e do Senado atualmente, que é de centro-direita. Mas é preciso esperar para ver como essa centro-direita vai se organizar a partir de agora e como essa força estará ao redor do governo", afirma.

O cientista político acredita que a coalizão desenhada por Lula neste momento deve se expandir ao longo do governo, diante da necessidade de aprovar projetos no Congresso. "A tendência é que essa composição se amplie com o tempo, ainda que de forma mais pragmática", pontua.

A composição ministerial, segundo Limongi, também pode servir de preâmbulo para a disputa presidencial nas eleições de 2026. "Simone Tebet e Geraldo Alckmin podem se constituir em possibilidades de candidaturas de centro em relação ao Fernando Haddad ou qualquer outro nome que venha do PT. Esses dois também podem ser uma força contrária ao nome que surgir do núcleo bolsonarista", avalia.

DW Brasil: A frente ampla defendida por Lula durante a campanha apareceu na escolha do corpo ministerial?

Fernando Limongi: A frente ampla da campanha apareceu apenas parcialmente na escolha ministerial e a expectativa era maior nesse sentido. Não que a composição feita nos ministérios seja estreita. Mas o que nós temos neste início de governo é mais uma coalizão necessária para governar.

Partidos que não apoiaram Lula nas eleições (MDB, União Brasil e PSD) foram contemplados com oito ministérios. O que esse número representa na prática para a governabilidade?

O arranjo feito por Lula lhe dá 51% dos votos na Câmara (cerca de 262 deputados) e 55% do Senado (cerca de 45 senadores). É uma maioria bem estreita. Óbvio que tem mais partidos a serem integrados com distribuição dos cargos de segundo escalão, mas essa tem de a ser a característica dos primeiros anos de primeiro mandato em todos os governos. Uma coalizão mais estreita no começo e uma abertura maior depois.

O Fernando Henrique Cardoso começa com uma composição menor e depois é forçado a incorporar o PP e ter uma maioria mais confortável para aprovar a reforma da Previdência, após uma derrota na comissão especial encarregada de analisar a proposta. A mesma coisa aconteceu com o Lula, que começa o governo sem o PMBD e depois vai incorporando o partido à sua base para integrar o governo, até chegarmos em um momento catalisador que foi o mensalão. A tendência é que essa composição se amplie com o tempo, ainda que de forma mais pragmática.

Existem condições que diferenciam este governo de outros?

A eleição foi bastante polarizada, dividida e a vitória do Lula foi apertada. Ao mesmo tempo, houve a eleição de uma grande bancada de direita comandada pelo Jair Bolsonaro e com uma votação surpreendente no primeiro turno. Agora, muitos desses partidos que pularam na canoa do bolsonarismo vão precisar rever sua estratégia. Assim, vai se depurando aquilo que será oposição e o que será governo. Essas forças demoram um pouco a se organizar, então ainda teremos trocas de partido e definições partidárias que podem mudar o rumo do que estamos vivendo agora, e essas acomodações são naturais do processo político. Esse início de lua de mel vai se transformando. Lula precisou pagar dívidas agora e quem se provar incapaz ou sem capacitação de entregar, vai dançar.

A composição ministerial com PSD, União Brasil e MDB é benéfica para o PT no Congresso? A partir da nomeação de ministros, ficam garantidos votos de parlamentares dessas legendas a projetos do Executivo?

Esses partidos são pragmáticos, ainda que o União Brasil tenha alguns elementos estranhos ao PT, como o ex-juiz Sergio Moro, que se elegeu senador pelo Paraná e não vai compor com o governo de forma nenhuma. Mas a tendência é de que, firmado o acordo desse tipo entre os partidos em nível nacional, e ainda que com algumas dissidências regionais, sejam siglas confiáveis e entreguem os votos para aprovar projetos no Congresso. O que nós ainda precisamos esperar é a forma como os partidos vão se posicionar à medida que o governo for definindo a sua linha política, o discurso e como ele vai se relacionar com os grupos políticos.

Lula deu ao PT ministérios-chave, como Fazenda, Casa Civil, Educação, Desenvolvimento Social e Relações Institucionais. Como o senhor analisa tais escolhas?

O partido do presidente vai centralizar os postos-chave e ministérios importantes porque sabe que ali estão os processos decisivos para o país. É uma forma de controlar o dinheiro, as ações de maior impacto e deixar marcas da gestão perante o eleitorado.

O senhor acredita que nomes como os de Fernando Haddad, Simone Tebet e Geraldo Alckmin, nomeados ministros, iniciam seus mandatos já de olho nas eleições de 2026? 

A disputa começou assim que a urna em 2022 foi fechada. Esses três nomes estão no páreo. Em geral, nos dois primeiros anos de governo essa luta é menos aberta. É uma tentativa de ocupar espaço, marcar posição e em algum momento se definem campos e grupos mais definitivos. Lula já disse que está com idade avançada e que não será candidato à reeleição. A partir daí, as peças se movem.

Tebet e Alckmin podem se constituir em possibilidades de candidaturas de centro em relação ao Haddad ou qualquer outro nome que venha do PT. Esses dois também podem ser uma força contrária ao nome que surgir do núcleo bolsonarista. Tem muita água para rolar ainda. Políticos pensam nisso, mas quem se apreça demais corre o risco de se queimar.

Em 2002, por exemplo, quem apostaria na figura da Dilma para ser sucessora do Lula em 2010? Todos imaginavam que seria o José Dirceu. Ela chefiou a Casa Civil, houve o mensalão e ganhou espaço internamente no partido. Mas ainda é muito cedo para prevermos algo.

Ao olhar para o corpo ministerial atual, pode-se dizer que o governo fez uma composição mais à esquerda ou ao centro?

Dado que o PT ocupa a maior parte de cargos, a coalizão está mais à esquerda do que ao centro. E está bem distante do que é a composição da Câmara e do Senado atualmente, que é de centro-direita. Mas é preciso esperar para ver como essa centro-direita vai se organizar a partir de agora e como essa força estará ao redor do governo. São forças que estão se delineando. A liderança da centro-direita sempre foi exercida pela dupla PSDB-PFL. O PSDB praticamente desapareceu, e o PFL, que se transformou em DEM, desembocou no União Brasil. O União está indo em direção a Lula, mas esse movimento não pode ser brusco, leva tempo. Ou seja: os movimentos estão acontecendo.

Partidos como PP, PL e Republicanos podem compor com o PT em pautas específicas ou isso é improvável?

Não acredito que PP, PL ou Republicanos entrem para o governo ou apoiem o governo sem contrapartida. Eles vão se consolidar como partidos de oposição. Mas a situação da oposição é ainda mais indefinida que a do governo, porque eles estão sem rumo desde que o Bolsonaro deixou a vida pública. Ainda não sabemos se e como ele pretende liderar essa oposição como uma alternativa para 2026.

De qualquer forma, são grupos que podem encontrar apoio em governos estaduais nos próximos quatro anos: Minas Gerais, com Romeu Zema, Rio de Janeiro, com Cláudio Castro, e São Paulo, com Tarcísio de Freitas.

A oposição tem como sobreviver e se organizar. A questão é quem vai liderar isso. Quanto menos organizada a oposição estiver, mais fácil será para o governo Lula fazer alianças e conquistar votos no Congresso.

Guilherme Henrique para Deutsche Welle Brasil, em 04.01.23

Tudo para dar certo

Os mais ricos e o agronegócio devem ser chamados a razão e ir ao debate sobre o mínimo que pagam de impostos e creio que eles não se furtarão a entender os seus papéis diante da conjuntura de desigualdade social e mudança climática a ser vencida; ninguém é rico em Terra de pobres.

Continuo otimista e esperançoso. Vendo e ouvindo as manifestações do mercado nessas últimas semanas penso ser recomendável voltar a repetir a frase “o Mercado não deve se preocupar somente com o que o Governo irá fazer, mas também com o que ele fará para ajudar o Governo a implementar o desejado desenvolvimento sustentado com paz, equilíbrio fiscal, justiça social e respeito irrestrito a nossa Constituição”.

Pelo que leio, há um consenso entre os especialistas, o governo Lula irá receber o bastão em situação melhor do que ele o recebeu do presidente FHC. Investidores externos e internos tem essa percepção e isso é muito bom. E importante sentir que os investidores e empreendedores acreditam que há relevantes segurança institucional e jurídica no Brasil e que aconteça o que acontecer, o Congresso Nacional mesmo a médio prazo, terá sempre a característica e a face do Centro, com tendência a Centro direita.

Alguns eventuais “excessos” dos Tribunais Superiores, do Legislativo e do Executivo ,tem-se a impressão de que podem e devem ser contidos mercê do aprendizado de erros e pressão da sociedade esclarecida e não revanchista.

No que concerne aos subsídios, renúncias fiscais e privilégios de varia ordem concedidos a indústrias pouco competitivas haverá, assim espero, um caminho equilibrado na definição do que deve ser excluído por despiciendo ou que ainda acolha tecnologias ultrapassadas e enseja acomodações com falta de inovação. A competitividade do produto brasileiro deve estar no radar

Os mais ricos e o agronegócio devem ser chamados a razão e ir ao debate sobre o mínimo que pagam de impostos e creio que eles não se furtarão a entender os seus papéis diante da conjuntura de desigualdade social e mudança climática a ser vencida; ninguém é rico em Terra de pobres.

Os investidores de além-mar na hora da definição de suas escolhas de investir demonstram ter um particular afeto ao Brasil, eis que mantidos os nossos compromissos de não agressão ao meio ambiente e um crescente protagonismo eficiente e eficaz do nosso país no quesito proteção preditiva ao meio ambiente e na busca incessante do equilíbrio fiscal. Antevejo com Esperança um bom fluxo de capitais estrangeiros sobretudo daqueles comprometidos com os fundamentos ESG, desse modo como corolário haverá formação de capital e poupança destináveis para investimentos governamentais em integração racional da infraestrutura e saneamento .

Matriz energética predominantemente renovável, é a que temos e a Petrobras tornando-se empresa de energia e não só de Petróleo e Gás, facilitara a nossa transição energética e a eficientização do desempenho dos combustíveis derivados de petróleo, em benefício do consumidor. No entanto acredito que devamos pensar muito sobre subsídios estatais a combustíveis fosseis e o ainda falado  Fundo  de Estabilização de Petróleo   

Eólicas, fazendas solares, biocombustíveis, outros incluso os sintéticos e Hidrogênio verde, nos radares de ampliação de uso, serão um bom mote a ser perseguido.

Por outro lado, é inquestionável a relevante maior participação do Brasil no florescente Mercado de Créditos de Carbono global, nesse intento será absolutamente necessário que o Congresso Nacional conclua a votação do PL528 – que regulamenta o Mercado de Redução de Emissões e a compra e venda dos Créditos de Carbono, assim como decretos subsequentes ensejando segurança jurídica e normativa a esse Mercado de Créditos de Descarbonização

 Os discursos que ouço são bons e apontam na direção de um equilíbrio entre o que o Governo pode e deve fazer e aquilo que o Banco Central imporá no combate da inflação. Oxalá.

No Maranhão esse meu otimismo esperançoso encontra maior guarida. O Governador Brandão tem ampla maioria na Assembleia, apoio da bancada federal, traquejo administrativo mercê de estar no Executivo por mais de doze anos e de ter sido deputado operoso. Desejo-lhe muito sucesso e largo pensamento estratégico

Se o presidente Lula e sua equipe tiverem aprendido com os erros do passado e analisado alguns erros do presente, ele que é um político “passado na casca do alho” sobreviverá e fará um grande governo 

Essa é a minha prece de bom Ano Bom. Quem viver verá.

Luiz Raimundo Carneiro de Azevedo, o autor deste artigo, é engenheiro civil, Professor Titular Da UEMA/Universidade Estadual do Maranhão  e consultor da UNIVERSIDADE CEUMA.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Simone Tebet: as ideias da nova ministra sobre a economia que divergem do PT

"Uma tendência mais próxima da centro-direita" na economia: foi assim que a senadora Simone Tebet (MDB-MS) definiu seu perfil durante uma entrevista à BBC News Brasil concedida em maio de 2021. 

Na mesma ocasião, disse que, na pauta de costumes e políticas públicas, se considera "mais próxima da esquerda".

Simone Tebet, que ficou em terceiro lugar na eleição presidencial, passou a apoiar Lula e a fazer campanha ao lado dele (Getty Images)

Após semanas de negociação, Tebet foi anunciada como ministra do Planejamento do governo de Luiz Inácio Lula da Silva nesta quinta-feira (29/12). O ministério costuma ser responsável pelo comando do Orçamento, do Patrimônio da União, e também é esperada participação na gestão do PPI (Programa de Parcerias e Investimentos), que define privatizações e concessões ao setor privado.

A senadora, que ficou em terceiro lugar na eleição presidencial, passou a apoiar Lula — e a fazer campanha ao lado dele — até a disputa pelo segundo turno.

Agora, a nomeação de Tebet se junta a outros dois ex-presidenciáveis que terão a missão de conduzir áreas da economia no novo governo Lula: Fernando Haddad (PT), candidato em 2018, como ministro da Fazenda, e o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), candidato em 2006 e 2018, que ficará com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.

Além de ex-candidatos à Presidência, os três nomes também têm em comum o fato de serem apontados como possíveis sucessores de Lula para disputar a campanha de 2026. O petista afirmou que não tentará a reeleição.

Ao mesmo tempo em que são aguardadas mais sinalizações sobre as diretrizes do novo governo na economia, especialmente na área fiscal, também é uma questão — cuja resposta só virá na prática — quanta autonomia terão os ministros à frente de suas pastas.

O que se sabe é que Haddad e Tebet têm visões diferentes sobre economia e estão em ministérios que se complementam — e que trabalharão, ainda, com Alckmin e Márcio França (PSB), anunciado como ministro de Portos e Aeroportos.

Quais, então, são pontos que a senadora apresentou visões que divergiram ou podem divergir do PT?

- Teto de gastos:

Enquanto senadora, Tebet votou, em 2016, a favor da proposta de teto de gastos, que limita o crescimento de gastos públicos. Lula, no entanto, critica a medida, e a proposta de governo petista prevê a revogação do teto de gastos.

- Autonomia do Banco Central:

A senadora também votou a favor da proposta que previa autonomia do Banco Central. Ao mesmo tempo, o PT se opôs à medida e inclusive acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar suspender a medida, sob o argumento de que retira do chefe do Executivo a autoridade sobre a definição da política econômica.

- Marco Legal do Saneamento:

A senadora apoiou a aprovação do Marco Legal do Saneamento, que foi fortemente criticado pelo PT no Congresso.

Os defensores da proposta argumentam que a medida abre o setor de saneamento à iniciativa privada com o objetivo de atingir a universalização do acesso à água potável e à rede de esgoto até 2033. Os críticos diziam que as mudanças aumentariam a tarifa de água para áreas mais pobres com o fim do chamado subsídio cruzado — em que o lucro em área populosa custeia o prejuízo em municípios menores.

- Privatizações:

O plano de governo de Tebet, então candidata, dizia que, se eleito, seria "o governo das concessões, das parcerias público-privadas, das privatizações e da desestatização, sob coordenação do BNDES e com recursos destinados à redução da pobreza e à educação infantil". O documento não detalha as privatizações.

O plano de Lula, por outro lado, aponta como um dos problemas do Brasil que "setores estratégicos do patrimônio público são privatizados" e se opõe às privatizações da Petrobras, Eletrobras e Correios.

Neste ponto, há um entendimento: Tebet já afirmou ser contra a privatização da Petrobras.

Mas Márcio França, após ser indicado para o comando do Ministério de Portos e Aeroportos, afirmou que freiaria concessões e privatizações. Na ocasião, disse que venceu um pensamento político e que "não tem reservas a nada que seja privado, mas não tem como regra que tem que privatizar tudo".

'Centro-direita na economia'

Redução dos gastos e do papel do Estado fazem parte do que é entendido como uma visão de centro-direita na economia — e a discussão sobre responsabilidade fiscal é um debate típico da divergência entre as diferentes linhas de pensamento na economia.

"Pensando no olhar de esquerda, as políticas sociais tendem a ocupar um espaço da universalização, da garantia ampla dos direitos sociais. E isso, obviamente, tem um certo embate com relação à proposta de ser mais à direita, em que redução do gasto, austeridade, a redução do papel do Estado configuram essa visão mais centro direita", explica a economista Vivian Almeida, professora do Ibmec.

Sobre a forma com a qual Tebet define sua visão da economia, Almeida diz que reflete uma visão de que o Estado deve "deixar o espaço livre para que as pessoas gozem das suas liberdades, vocações e possibilidades de tocar as suas vidas na questão de como elas vão gerar sua própria renda".

"Para isso, (segundo essa visão) o Estado deve cobrar menos impostos para quem produz, criar um bom ambiente de negócio, em que as pessoas tenham certeza de que os acordos serão cumpridos… Isso é ser direita na economia", explicou.

No plano de governo, Tebet falava o seguinte: "É preciso colocar o Estado brasileiro para propiciar melhores condições para o investimento privado acontecer, com estabilidade e responsabilidade. O governo tem que possibilitar ambiente estável, previsível, pacífico, com segurança institucional, jurídica e regulatória".

Em entrevista à colunista Miriam Leitão, publicada pelo jornal O Globo, Haddad disse que "no Planejamento haverá uma visão de economia diferente da que foi defendida durante a eleição, mas foi uma aliança de segundo turno", depois de afirmar que o governo não pode ser homogêneo.

"Simone tem minha simpatia pessoal, é uma pessoa transparente, que vai colocar, somar e refletir junto. E ela falou que em mais de 90% da agenda ela e eu chegaríamos à mesma conclusão. E, naquilo que porventura houver divergências, há uma instância de arbitragem, que é a Presidência da República. Nós vamos estar juntos no Conselho Monetário Nacional, na Camex, em tantas instâncias colegiadas", disse Haddad.

Na mesma entrevista, disse que é uma atribuição do Planejamento fazer um pente fino em todos os planos, ao ser questionado se haveria uma revisão de programas para avaliação de gastos e eficiência.

O presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, se manifestou em rede social a favor da nomeação de Tebet antes do anúncio oficial, defendendo um "programa robusto de avaliação periódica de políticas públicas, em busca de eficiência", com ajuda do tribunal.

Este texto foi publicado, originalmente, em 29.12.22, pela BBC News Brasil, em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64111698

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Frente ampla

Lula precisa ser mais incisivo na ação de seu governo, mais ainda do que foi na montagem de seu ministério

Não houve nos anos recentes nenhum candidato que tenha assumido a Presidência da República com o país tão dividido quanto hoje, e com uma expectativa de futuro tão restrita quanto neste terceiro mandato de Lula. Pouco mais da metade dos brasileiros espera que o governo seja “ótimo” ou “bom”, índice menor que todos os recentes presidentes eleitos tiveram. Nem mesmo Dilma Rousseff, que também venceu a reeleição derrotando o tucano Aécio Neves por pequena diferença, teve pela frente uma oposição tão bem organizada como a que espera por Lula, mesmo que Bolsonaro tenha perdido grande parte do seu capital político com a fuga patética.

O genial brasileiro Nélson Rodrigues, ora muito lembrado pelo que escreveu sobre Pelé, também tem frases sobre política que se encaixam muito bem na nossa situação:

— O presidente que deixa o poder passa a ser automaticamente um chato. (…) O ex-presidente adquire, imediatamente, um ar de museu de cera.

Bolsonaro cuidou de embalsamar sua figura de líder da oposição, mas o antipetismo, mais que o bolsonarismo, continua forte entre nós, e a direita tem, depois de muito tempo, novos quadros que podem substituir com vantagem o desmoralizado e tosco líder em regiões fundamentais do país: Tarcísio de Freitas em São Paulo; Romeu Zema em Minas Gerais; Eduardo Leite no Rio Grande do Sul.

Dilma teve pela frente uma oposição democrática pela ação do PSDB, e perdeu-se pela incapacidade de governar. Sempre que o país esteve dividido, como em 1989 com a eleição de Collor, e em 2014 com a reeleição de Dilma, o final do filme foi trágico politicamente. Lula não está acostumado a governar com uma oposição furibunda como a que se avizinha, mas teve a sorte de ter pela frente um líder populista que não jogou nunca o jogo democrático e, fracassando no seu objetivo ditatorial, perdeu literalmente o rumo de casa e foi curar suas feridas num autoexílio de fantasia.

Assim como entendeu, durante a campanha eleitoral, que precisava montar uma “frente ampla” que desse a sua candidatura uma estatura que apenas a esquerda não lhe conferia, Lula precisa ser mais incisivo na ação de seu governo, mais ainda do que foi na montagem de seu ministério. As fotos das posses anteriores, comparadas com a de agora, deixam evidente um ministério mais policromático, também nas vestimentas, que reflete bem a diversidade cultural do nosso povo. São apenas símbolos, mas importantes para o começo.

O PT ainda é hegemônico, mas não por meio de suas facções mais radicais. Por isso talvez Lula tenha elevado o tom em certos pontos de seus discursos, usando palavras verdadeiras no conteúdo, mas pesadas na forma, para defender a redução da desigualdade brasileira, que é de fato nossa grande chaga.

Lula entrou para a História do país ao colocar no centro das atenções de seu governo a questão da fome e da miséria. Mesmo que vários governos anteriores tenham tido essa sensibilidade, foi Lula quem, com o Bolsa Família, depois do fracasso do Fome Zero, que tinha a mesma raiz, colocou como cláusula pétrea das gestões governamentais o auxílio aos mais necessitados. Hoje, novamente, coloca a redução da desigualdade como base para as demais políticas públicas.

A transversalidade do tema, por si, já mostra sua importância. Não é possível ser uma grande nação com milhões de pessoas morrendo de fome, nem é possível crescer economicamente com uma desigualdade como a que temos. O crescimento, quando vem, frequentemente aumenta a desigualdade, pela disfuncionalidade de nossa sociedade.

Ou então, como em 2021/2022, quando a desigualdade caiu porque ricos e pobres tiveram queda de renda, com os ricos perdendo mais segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A desigualdade mostra-se ainda na fragilidade de nosso sistema escolar, nas políticas públicas de saúde, na precariedade de nossos transportes.

O clima de 2010 prenunciava o que aconteceu em 2013, e levou a Bolsonaro. O clima de hoje pode prenunciar um avanço democrático ou a volta do extremismo. Depende de que Lula entenda que tem de governar com a “frente ampla”.

Merval Pereira, o autor deste artigo, jornalista e escritor, é Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.01.23.