terça-feira, 4 de outubro de 2022

Com reeleição, Bolsonaro terá força para pedir impeachment de ministros do STF

 Caso o presidente Jair Bolsonaro (PL) se reeleja no dia 30, nos próximos quatro anos ele terá poder para criar muitos problemas para o Supremo Tribunal Federal, um dos alvos preferenciais de seus ataques, inclusive pedindo impeachment de ministros. 

As eleições deste domingo (2/10) deram grande impulso ao bolsonarismo no Congresso Nacional, sobretudo no Senado. 


Partido de Bolsonaro, PL terá amaior bancada do Senado em 2023

Levar adiante o projeto de destituição de um ministro do Supremo, porém, é algo bastante complicado mesmo para um Bolsonaro forte no Congresso. Entre outras coisas, porque é fundamental para isso conseguir a eleição de um aliado como presidente do Senado, que é quem tem o poder de dar andamento ou "engavetar" um pedido de impeachment de ministro do STF. 

Dos 27 senadores eleitos neste domingo (2/10), 20 apoiam Bolsonaro ou têm alguma ligação com ele. Cinco ex-chefes de ministérios do atual governo conquistaram uma cadeira no Senado: a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves (Republicanos-DF); o ex-ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes (PL-SP); a ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Tereza Cristina (PP-MS); o ex-ministro do Desenvolvimento Social Rogério Marinho (PL-RN); e o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro (União Brasil-PR) — que rompeu com o presidente, mas voltou a afagá-lo na campanha eleitoral. Também foram eleitos senadores o vice-presidente, Hamilton Mourão (Republicanos-RS), e o ex-secretário da Pesca Jorge Seif Jr. (PL-SC).

Além dos ex-integrantes do governo, terão assento na casa os aliados Cleitinho (PSC-MG), Romário (PL-RJ), Magno Malta (PL-ES), Wilder Morais (PL-GO), Wellington Fagundes (PL-MT), Jaime Bagattoli (PL-RO), Dr. Hiran (PP-RR) e Dorinha (União Brasil-TO).

Outros aliados do presidente que continuarão no Senado são seu filho Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Carlos Portinho (PL-RJ), Eduardo Girão (Podemos-CE), Luiz Carlos Heinze (PP-RS), Jayme Campos (União Brasil-MT), Eliane Nogueira (PP-PI), Lasier Martins (Podemos-RS) e Marcos Rogério (PL-RO) — este caso não se eleja governador.

Com oito dos 27 senadores eleitos, o PL, partido de Bolsonaro, terá 14 parlamentares na casa em 2023 — a maior bancada. O União Brasil elegeu cinco representantes e terá dez membros no Senado. Outras legendas aliadas ao governo terão representação expressiva na casa, como PP (seis senadores) e Republicanos (três). Contando o PSD (11) e o Podemos (seis) — que têm apoiadores de Bolsonaro —, o presidente deve ter maioria no Senado se for reeleito.

Segundo o colunista do portal UOL José Roberto de Toledo, se Bolsonaro tiver mais um mandato, vai dispor de apoio para promover o impeachment de ministros do STF.

"O que me preocupa é o cenário do que emerge da eleição para o Senado e para a Câmara dos Deputados. Esse Congresso que foi eleito, no Senado, por exemplo, dá maioria suficiente para impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal."

Jair Bolsonaro fez dos ataques ao STF uma estratégia para galvanizar seus apoiadores. As investidas têm duas origens. A primeira está nas decisões que declararam que estados e municípios têm competência para impor medidas sanitárias contra a Covid-19, como as de isolamento social. A segunda está nos inquéritos que apuram a propagação de fake news e atos antidemocráticos, bem como o financiamento dessas atividades por bolsonaristas. Há ainda um terceiro foco de ataques contra o Judiciário, mais especificamente, em face do Tribunal Superior Eleitoral e seus magistrados, relativo ao descrédito das urnas eletrônicas.

Em 2021, Bolsonaro pediu ao Senado o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. A medida foi repudiada pelo Supremo Tribunal Federal e pela OAB, e rejeitada pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem não existem fundamentos para impeachment contra ministros do STF.

Rito do impeachment

Ministros do Supremo Tribunal Federal podem ser alvos de pedidos de impeachment pelos seguintes crimes de responsabilidade (artigo 39 da Lei 1.079/1950): alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; proferir julgamento quando, por lei, seja suspeito na causa; exercer atividade político-partidária; ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; e proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções.

Além disso, o presidente do STF ou seu substituto no exercício do cargo podem responder por crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária.

O pedido de impeachment de ministro do Supremo deve ser apresentado ao presidente do Senado. Caso ele seja aceito, será instalada uma comissão especial de 21 senadores para emitir um parecer em até dez dias. O Plenário da casa vai avaliar o parecer. Se a maioria dos integrantes da casa (41 senadores) o aprovar, o processo é aberto.

O ministro denunciado passa a ter acesso a todos os documentos e tem dez dias para apresentar defesa à acusação. Caso o magistrado não esteja no Brasil ou não seja localizado, o prazo pode ser estendido por mais 60 dias.

Ao fim do período, com ou sem manifestação do magistrado, a comissão terá mais dez dias para decidir se a acusação é procedente. Um novo parecer vai para votação no Plenário e, novamente, precisa de maioria simples dos senadores para ser aprovado. Caso isso ocorra, o magistrado será suspenso do cargo até decisão final e perderá um terço dos vencimentos.

O processo então é remetido ao STF. Se o presidente da corte for o acusado, um substituto presidirá a sessão de julgamento no Senado, que contará com o ministro acusado, o denunciante e testemunhas. Ao final, os senadores deverão responder à seguinte pergunta: "Cometeu o acusado o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?". Se dois terços dos parlamentares (54) responderem "sim", o ministro é destituído imediatamente do cargo.

Em seguida, os parlamentares ainda devem analisar se o magistrado deve ficar inabilitado para exercer função pública pelo tempo máximo de cinco anos. O quórum para importar tal medida é o mesmo — de dois terços dos senadores.

Obstáculos ao impeachment

Ainda que Jair Bolsonaro seja reeleito e tenha maioria no Senado, não será fácil aprovar o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal.

Primeiro que diversos aliados de Bolsonaro não embarcam nos ataques ao STF porque temem uma postura mais dura dos ministros quando forem julgar processos relativos a seus interesses — que, muitas vezes, são ações penais contra tais políticos.

O presidente do Senado também teria de ser favorável à medida, pois depende dele o prosseguimento de pedido de impeachment contra ministro do Supremo. O atual presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pode tentar a reeleição no começo de 2023. Ele já deixou claro que não concorda com a destituição de integrantes do STF.

Além disso, o quórum para condenar um ministro a perder o cargo é alto. É preciso que 54 senadores, o equivalente a dois terços da casa, votem nesse sentido.

De qualquer forma, com Bolsonaro mais forte no Congresso — o PL também terá a maior bancada da Câmara dos Deputados —, o STF pode passar apuros. Por exemplo, nas hipóteses de restrições orçamentárias, comissões parlamentares de inquérito e propostas de emenda à Constituição.

O presidente e seus aliados têm o plano de apoiar, em um novo mandato, proposta de emenda à Constituição para aumentar o número de ministros da corte, conforme informam os jornalistas Elio Gaspari, dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo; Andréia Sadi, da GloboNews; Guilherme Amado, do portal Metrópoles; e Lauro Jardim, de O Globo.

Apresentada pela deputada Luiza Erundina (Psol-SP), a PEC 275/2013 transforma o STF na Corte Constitucional. A competência do tribunal seria restrita a processos relativos à interpretação e aplicação da Constituição. As demais atribuições atuais do Supremo, como as de julgar ações penais de autoridades com foro privilegiado, Habeas Corpus, mandados de segurança e pedidos de extradição de estrangeiros, iriam para o Superior Tribunal de Justiça.

A Corte Constitucional manteria os 11 ministros do STF e adicionaria quatro integrantes, totalizando 15 julgadores. O processo de escolha seria diferente do atual. Hoje, o presidente da República indica um nome e ele é submetido a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, composta por 27 parlamentares. Se for aprovado por maioria simples, o parecer da CCJ é encaminhado ao Plenário da casa legislativa. O candidato preciso do aval de 41 dos 81 senadores para se tornar ministro do Supremo.

De acordo com a PEC 275/2013, os postulantes a uma vaga na Corte Constitucional seriam selecionados a partir de listas tríplices elaboradas pela magistratura (feita pelo Conselho Nacional de Justiça), pelo Ministério Público (feita pelo Conselho Nacional do Ministério Público) e pela advocacia (feita pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil). Os candidatos precisariam da aprovação pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado para ser nomeados para o tribunal pelo presidente do Congresso.

Em 2017, a PEC 275/2013 recebeu parecer favorável da relatora, a então deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), filha de Roberto Jefferson, mas não chegou a ser votada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara.

Embora fosse perder o poder de indicar diretamente os ministros da corte, Bolsonaro, com a manutenção da maioria governista no Parlamento que detém hoje, conseguiria emplacar nomes de seu agrado. Caso a proposta fosse aprovada, o presidente controlaria seis nomeações em um segundo mandato — duas decorrentes das aposentadorias dos ministros Ricardo Lewandowski (em maio de 2023) e Rosa Weber (em outubro de 2023) e quatro geradas pela ampliação de integrantes do tribunal.

Dessa maneira, Bolsonaro poderia indicar oito dos 15 magistrados da Corte Constitucional, incluindo os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que indicou para o STF em seu primeiro mandato.

Sérgio Rodas, oo autor deste artigo, é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro. Publicado originalmente em 03.10.22 às 17h26

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Empresários querem definição clara de Lula sobre política econômica antes de declarar apoio

Grupo do PIB que apoiou Simone Tebet (PMDB) agora tende para o candidato do PT, desde que ele migre para o centro, tanto na política quanto na economia; uma minoria deve priorizar Bolsonaro

Para conquistar apoio de parte do empresariado brasileiro, candidato do PT terá que 'migrar' rumo ao centro em relação à economia.  Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Uma parcela do Produto Interno Bruto (PIB) que apostou até o fim as suas fichas na “terceira via”, representada pela candidata Simone Tebet (MDB), percebeu que agora terá de escolher um lado da polarização, já que os votos dos eleitores se concentraram nos candidatos do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, e do PL, Jair Bolsonaro. A resistência maior nesse grupo a Bolsonaro, especialmente pela condução da crise da pandemia de covid-19, não quer dizer, porém, apoio automático a Lula no segundo turno, conforme apurou o Estadão com várias fontes do empresariado e do mercado financeiro nesta segunda-feira, 3. E isso apesar das expectativas de que a própria Tebet anuncie apoio a Lula nos próximos dias.

A posição de João Nogueira, conselheiro de diversas empresas, entre elas a petroquímica Braskem e a Wiz (de soluções para seguros), resume bem o humor dos apoiadores de Tebet. “Antes de mais nada, Lula precisa explicitar e construir um programa negociado com o centro democrático. Precisa ter uma âncora fiscal clara (para conter os gastos públicos), apoio à reforma tributária que está no Senado e quais são os programas sociais e educacionais que serão levados adiante”, diz Nogueira. “O que a gente quer ver é um programa moderno e direcionado para combater as desigualdades, mas com responsabilidade.”

Antes de qualquer declaração favorável definitiva ao petista, eles devem exigir do candidato algo que ele não deu até agora nem ao mercado financeiro nem aos eleitores: clareza na condução de sua política econômica. Apesar de apoios importantes – como o de Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do BC –, Lula tem evitado mostrar as cartas de como conduzirá a economia daqui em diante. A leitura, agora, é de que não basta só ter o ex-tucano Geraldo Alckmin como vice em sua chapa para atrair o mercado financeiro.

Em geral, os empresários do “time Tebet” resistiram à tentação do voto útil no primeiro turno e se comprometeram até o fim com a candidata escolhida. Entre os nomes que formaram o “pelotão de choque” e advogaram pela escolha da emedebista estão Candido Bracher (ex-presidente do Itaú Unibanco), Walter Schalka (presidente da Suzano), Fábio Barbosa (presidente da Natura & Co), Pedro Passos (um dos fundadores da Natura) e Horácio Lafer Piva (sócio e conselheiro da gigante de papel e celulose Klabin).

A sinalização mais aguardada seria o anúncio de um nome para o comando da Economia a partir de 2023, em uma eventual eleição. “O bolsonarismo é uma força política que veio pra ficar. Elegeu quem quis. O PL tem 20% da Câmara agora. Lula terá de buscar apoios de Tebet e Ciro se quiser ganhar. Não se pode subestimar a força do Bolsonaro”, diz um executivo do alto escalão de uma grande instituição financeira.

Parte do mercado vê presença da ex-presidente Dilma e de Gleise Hoffman como um problema para declarar apoio a candidatura de Lula no segundo turno.  

Segundo um dos empresários, a ida ao segundo turno não é necessariamente um fator negativo, pois dará mais chances para Lula ser mais transparente sobre suas propostas para a economia – pressão que não existia antes, já que os institutos de pesquisa apontavam boa chance de vitória de Lula ainda no domingo. Uma maior clareza, agora, seria uma forma de atrair os pouco mais de 7% de votos que se dividiram entre Tebet e Ciro Gomes (PDT).

Política econômica

Outra questão que tem assustado os empresários é o “vai” e “vem” das declarações de Lula sobre a política econômica: para cada apoio de Meirelles há uma demonização do teto de gastos, o que deixa a sinalização turva para quem quer entender o que vai acontecer mais à frente. Por isso, o banqueiro Ricardo Lacerda, do BR Partners, afirma que, se quiser angariar os votos de empresários e da classe média, Lula terá de se comprometer com nomes e políticas. “Lula passou a campanha toda sem se comprometer”, afirma o empresário, que no primeiro turno apoiou Luiz Felipe d’Avila, do Novo.

Outro fator que incomoda parte do empresariado, e é destacada por Lacerda, é o fato de o candidato aparecer constantemente ao lado de nomes a que o mercado tem resistência, como a ex-presidente Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann (presidente do PT) e Aloizio Mercadante (coordenador de seu programa de governo). “Ele vai ter de abandonar os ícones do petismo que o acompanharam recentemente”, diz o banqueiro.

Fernanda Guimarães e Fernando Scheller para O Estado de S. Paulo, em 03.10.22, às 17h44

Mulheres são as mais ansiosas para tirar Bolsonaro do poder

O eleitor de Bolsonaro é o típico homem brasileiro: homens sedentos de poder e com medo de perder os privilégios de uma herança colonial patriarcal

Apoiadores de Lula da Silva aguardam os resultados das eleições no Brasil.

Haverá um segundo turno nas eleições presidenciais brasileiras . Ainda estou esperando que institutos de pesquisa expliquem o crescimento de Bolsonaro nas pesquisas, principalmente em estados decisivos como Rio de Janeiro ou São Paulo. Lula chegou onde as pesquisas indicavam, a surpresa foi Bolsonaro. Uma explicação possível é que eleitores indecisos ou sem chance de vencer no segundo turno transferiram seu voto para Bolsonaro . Se essa hipótese for razoável, quem seriam essas pessoas?

O eleitor de Bolsonaro é o típico homem brasileiro. São homens que se projetaram como chefes na família e chefes no trabalho. Homens ávidos de poder e temerosos de perder os privilégios de uma herança colonial patriarcal. Bolsonaro se apresenta como um arquétipo de masculinidade robusta: sua política é de homens para homens. É verdade que Bolsonaro elegeu mulheres como deputadas e senadoras, o que mostra que não basta haver mulheres na política, mas que são necessárias mulheres com consciência crítica dos efeitos do patriarcado na democracia.

Cadê os eleitores de Bolsonaro? Há uma distribuição regional óbvia que se cruza com outros sistemas históricos de opressão, como a desigualdade de classes e o racismo. O Brasil que se acredita branco e educado no sul votou massivamente em Bolsonaro, enquanto o Brasil do nordeste, herdeiro da escravidão, votou em Lula. É o homem branco e alvejado das classes média e alta que impulsiona Bolsonaro como força política.

Como esse quadro sombrio pode ser revertido? Lula não tem escolha a não ser se dirigir a jovens, mulheres e pessoas de diferentes gêneros. Somos nós que, em 2018, ocupamos as ruas e gritamos “#EleNão” contra Bolsonaro, em um dos maiores movimentos de consenso da história política brasileira. Somos nós, as mulheres, que mais uma vez rejeitamos Bolsonaro nas urnas. Não somos o típico eleitor de Bolsonaro. É verdade que para muitos de nós talvez Lula não fosse o candidato para a necessária transformação democrática no país, mas é o candidato possível para conter a consolidação do bolsonarismo no país.

Lula não deve ter medo de responder a perguntas simples como se haverá paridade de gênero em seus ministérios ou se ele nomeará mulheres negras para o Supremo. Não deve se esquivar de questões prementes que afetam a vida das mulheres, como a violência doméstica ou a criminalização do aborto, a fome ou o desemprego. Há um eleitorado feminino que não votou em Lula no primeiro turno, mas que, como eu, teme Bolsonaro. É urgente encarnar a política: as mulheres são as mais impactadas pelo governo Bolsonaro e nós somos as mais ansiosas para tirá-lo do poder.

Debora Diniz, a autora deste artigo, é professora da Universidade de Brasília. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 02.10.22 às 23h:06

Derrotar o bolsonarismo vai ser muito mais difícil do que imaginávamos

A esquerda brasileira ainda não entende a força de seu oponente porque acha que só o lulismo tem penetração e alcance social

O presidente Jair Bolsonaro fala à imprensa em Brasília após ouvir os resultados das eleições. (Evaristo Sá - AFP)

Em 2018 achávamos que Bolsonaro não poderia ganhar as eleições. Ele os venceu. Nós estávamos errados. Em 2022 achávamos que o bolsonarismo havia enfraquecido. Ele voltou forte e duro . Estávamos errados novamente. O fato é que não queremos entender uma realidade que insiste em se impor: o bolsonarismo se enraizou no Brasil, veio para ficar e representa milhões de brasileiros, seus desejos, seus medos, suas esperanças. Se queremos parar de cometer erros, temos que assimilar isso. Devemos começar a julgar e interpretar o bolsonarismo pelo que é, uma radiografia de uma grande parcela da sociedade brasileira, conservadora e, sim, muitas vezes reacionária.

A gente também tem que assimilar outra coisa, que o Bolsonaro é maior que o Bolsonaro, vai além. Isso, ontem à noite, ficou muito claro e foi um tapa na cara da esquerda brasileira que ainda não entende a força de seu oponente porque acha que só o lulismo tem penetração e alcance social. O partido de Bolsonaro, o Partido Liberal, o PL, conquistou a maior base parlamentarde todos, 99 deputados. O Partido dos Trabalhadores, o PT, obteve 79. Dos 27 senadores que votaram neste domingo, o PL obteve oito; o PT, quatro. O Brasil enfrenta um Congresso conservador que vai impedir o avanço de qualquer diretriz de direitos humanos, o que significa que muito mais mulheres sofrerão violência sexual ou que muito mais LGBTs serão mortos porque em um país como o Brasil o conservadorismo se traduz em violência.

E as eleições para governadores de estado? Mais do mesmo. Nos maiores estados do país, destacaram-se representantes ou aliados do bolsonarismo. No Rio de Janeiro e Minas Gerais venceram no primeiro turno; em São Paulo, Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Bolsonaro, vai para o segundo turno com Fernando Haddad , ex-ministro de Lula, mas começa como claro favorito. É possível que, dos quatro estados mais importantes da federação, o bolsonarismo mantenha três e o PT mantenha apenas um, a Bahia, que também será definido no segundo turno.

Resultados das eleições no Brasil

O bolsonarismo está muito vivo. Ele está muito vivo no que poderíamos chamar de bolsonarismo adaptativo, mais moderado, menos radical, como é o caso dos governadores, que são uma versão muito mais leve de Bolsonaro e que até se distanciaram dele quando se interessaram. Mas um bolsonarismo mais histérico, mais delirante também está muito vivo, como no caso de figuras folclóricas do bolsonarismo moralista mais radical como a ex-ministra de Bolsonaro, Damares Alves, uma evangélica fundamentalista que foi eleita senadora com grande número de votos .

O segundo turno vai ser uma loucura. Lula começa como favorito, com 48,4% dos votos contra 43,2% de Bolsonaro. Lula vai ter que fazer muito esforço e dar o melhor de si, levar para as ruas uma militância que ontem era muito plana e formar um enorme arco de alianças com o maior número de lideranças possível. E mesmo isso não garante a vitória. A realidade é que o bolsonarismo tomou o lugar de uma direita tradicional muito mais moderada e civilizada que desapareceu, sobretudo vítima de seus próprios erros, guerras internas e lutas de egos masculinos. Algo que já sabíamos há muito tempo se confirma: sem uma direita moderada, competitiva e democrática, a extrema direita circula livremente. Vamos até imaginar que Lula vença as eleições.

Em suma, a verdade é que continuamos perplexos com o avanço da extrema direita global. Não queremos entender que o que eles significam está tão impregnado na sociedade, mas está. Tem que descer mais na rua, tem que ouvir mais. Se queremos lidar com o pushback temos que entender que o pushback é muito maior do que assumimos e, sim, muita gente está feliz com isso. A extrema direita significa muito mais do que gostaríamos.

Esther Solano, a autora deste artigo, é doutora em ciências sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 03.10.22, às 14h:07

O pior dos pesadelos

Infelizmente, o 2.º turno terá o embate de dois dos piores candidatos disponíveis. Resta esperar que ao menos respeitem o eleitor, mas, a julgar pelo histórico de ambos, é esperar demais

Lula e Bolsonaro se merecem, mas o País não os merece.

Eis o que dá confiar em Luiz Inácio Lula da Silva para “salvar a democracia”. Mesmo tendo por adversário Jair Bolsonaro – o presidente que fez por merecer a mais alta rejeição no cargo –, o líder petista mostrou-se incapaz de reunir a maioria do eleitorado em torno de sua candidatura. Agora, o Brasil terá o suplício de mais quatro semanas de uma campanha eleitoral que não apenas foi até aqui a mais desprovida de propostas e ideias da história nacional recente, como entra numa fase ainda mais sofrível, ao resumir-se a dois candidatos que são, cada um a seu modo, a exata antítese do que o País precisa.

Não há a mínima condição de mais quatro anos de Jair Bolsonaro. Seu governo foi caótico, conflituoso, desumano e assustadoramente destrutivo. Bolsonaro descumpriu o primeiro e mais básico compromisso de um presidente da República: respeitar e defender a Constituição de 1988. Ameaçou o processo eleitoral, envolveu as Forças Armadas em questões político-partidárias, foi omisso e perverso na pandemia, desorganizou a administração pública, desrespeitou leis fiscais e eleitorais, implodiu o sistema de proteção social, mostrou-se conivente com escândalos de corrupção nas pastas da Educação e da Saúde, fez da gestão do Orçamento público moeda de troca política – subvertendo os critérios de transparência e de eficiência – e usou o aparato estatal para perseguir adversários políticos e beneficiar familiares e amigos, entre outros descalabros. Isso sem falar da sua absoluta falta de decoro no exercício da Presidência. 

Ou seja, Bolsonaro violou quase todos os princípios republicanos e democráticos que este jornal defende desde sua fundação, razão pela qual não podemos considerar adequado para o País que este senhor seja reeleito. Tivesse a Procuradoria-Geral da República ou o Congresso cumprido o seu papel na proteção da lei e do regime democrático, como aliás defendemos em diversas ocasiões nesta página, o candidato do PL estaria hoje inelegível. E o eleitor estaria livre de ser submetido ao pesadelo da recondução do presidente.

Por sua vez, Lula da Silva achou que bastava ter no horizonte a possibilidade de reeleição de Jair Bolsonaro para que o eleitor crítico do presidente apoiasse incondicionalmente a candidatura petista. Não achou necessário apresentar programa de governo nem se comprometer com nenhuma proposta concreta para os próximos quatro anos. Pediu ao eleitor um cheque em branco, coisa que Lula e o PT, como bem se sabe, nunca fizeram por merecer.

O partido de Lula superou-se em desfaçatez. Após ser protagonista dos dois maiores escândalos de corrupção das últimas décadas, quis obter o apoio majoritário do eleitorado sem pedir desculpas à população e, principalmente, sem apresentar o que fará de diferente para que a corrupção não volte. Ontem as urnas mostraram que a tática marota não funcionou. Não basta destacar o caráter tenebroso da gestão de Jair Bolsonaro. O regime democrático exige mais de quem almeja ser o presidente da República.

Se quisesse realmente demonstrar preocupação com a democracia, Lula teria começado por afastar-se, sem meias palavras, dos companheiros ditadores de esquerda na América Latina; teria declarado, sem sombra de dúvidas, seu respeito pela liberdade de imprensa, abandonando qualquer ideia de controlar o que a mídia publica ou deixa de publicar; e teria rejeitado o aparelhamento ideológico da máquina estatal e a condução irresponsável de políticas econômicas, marcas do lulopetismo que acabaram por cindir a sociedade. Mas Lula não fez nada disso e não se deve ter esperança de que o fará algum dia, o que é razão mais que suficiente para que este jornal, igualmente, rejeite o voto neste senhor.

Diante de tal cenário, o que se espera é que os dois concorrentes do segundo turno ao menos respeitem a inteligência do eleitor e mantenham um mínimo de civilidade. A julgar pelo que conhecemos de ambos, infelizmente, é pedir demais.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 02.10.22 às 20h55

Como saem Ciro, Tebet e Soraya após derrota nas urnas?

As candidaturas tentaram, mas não conseguiram se contrapor ao duelo entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL).

Especialistas avaliam que Simone e Soraya saíram 'maiores' do que entraram e que Ciro é grande derrotado da terceira via (Getty Images)

Os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais neste domingo (2/10) confirmaram o que as pesquisas de intenção de voto vinham apontando há meses em relação às principais apostas da chamada "terceira via": Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil).

Enquanto Lula e Bolsonaro se preparam para o segundo turno, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam quais os caminhos possíveis dentro da política para Ciro, Simone e Soraya.

O consenso entre os entrevistados é o de que a senadora Tebet sai das eleições "maior do que entrou" e desponta como um provável concorrente para as eleições de 2026.

Soraya, eles avaliam, conseguiu algum destaque, mas teria menos chances em projetos nacionais na comparação com sua colega de Senado.

Ciro, porém, seria o grande derrotado da terceira via. Segundo os especialistas, a forma como o ex-governador do Ceará conduziu sua campanha e os números que obteve devem dificultar novas candidaturas à Presidência.

Tebet, a grande surpresa

Tebet foi, segundo os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, a principal surpresa das eleições presidenciais deste ano. Ela obteve 4,16% dos votos válidos, terminando com um total um pouco inferior a 5 milhões de votos.

Eleita pelo Estado de Mato Grosso do Sul em 2014, ela bancou seu projeto presidencial contra a vontade de algumas das principais lideranças do MDB como o senador Renan Calheiros (AL) e o ex-senador Eunício Oliveira (CE).

Eleita pelo Mato Grosso do Sul em 2014, Simone Tebet bancou seu projeto presidencial contra vontade de algumas das lideranças do MDB (AFP)

"Eu fui uma das que escrevi que a candidatura não seria uma boa jogada política, mas me enganei redondamente. Simone sai muito maior do que entrou nessa eleição", diz a doutora em Ciência Política pela PUC de São Paulo, Deysi Cioccari.

Ela diz que, dado o perfil conciliador do MDB e o bom desempenho de Tebet nas eleições, uma possibilidade seria a acomodação dela em um eventual novo governo do PT.

"Ela desponta como um bom nome para o ministério da Agricultura de um possível governo de Lula. Já em relação a Bolsonaro, não consigo vê-la compondo com ele", disse a professora.

O doutor em Ciência Política e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, Marco Antônio Teixeira, concorda com Deysi.

"Ela [Simone Tebet] só ganhou nessas eleições. Simone era pouco conhecida nacionalmente e se tornou a principal liderança visível do partido. Ela deu continuidade ao um processo de ganhar visibilidade que começou com a CPI da Pandemia", afirmou Teixeira.

O professor de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) Fernando Azevedo diz acreditar que a projeção alcançada pela senadora nestas eleições a coloca como um nome praticamente certo nas eleições presidenciais de 2026 dentro do campo liberal.

"Simone Tebet é liberal na economia e mais aberta em temas culturais e comportamentais. Ela fez uma campanha de centro, com um rosto mais apropriado para uma terceira via. A sua campanha a projetou nacionalmente e certamente será um nome competitivo no campo liberal e de centro para o pleito de 2026", disse Azevedo.

Marco Antônio Teixeira pontua apenas um obstáculo para as ambições de Simone: o MDB.

"O MDB é um partido muito heterogêneo e com lideranças regionais fortes. A própria campanha de Tebet não foi consenso. Ela tem condições de liderar o partido, mas é preciso saber se o partido se deixará ser liderado por ela", disse.

Deysi Cioccari avalia que se o MDB impuser dificuldades a Simone Tebet em seus futuros projetos, haveria outros partidos de centro-direita que poderiam abrigá-la.

"Eu vejo ela, perfeitamente, dentro do PSD de Gilberto Kassab. Ela teria bastante espaço e seria um nome de expressão dentro do partido", disse.

Soraya: 'lacração' bem-sucedida

Para os cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil, Soraya Thronicke conduziu sua candidatura em uma linha tênue e arriscada.

Ao apostar em frases de efeito, atualmente chamadas de "lacração", Soraya teria corrido o risco de ser ridicularizada, mas, segundo eles, a senadora conseguiu se sair bem ao longo da campanha. Ela obteve 0,51% dos votos válidos, com um total de pouco mais de 600 mil votos.

Soraya Thronicke apostou em frases de efeito, atualmente chamadas de 'lacração' (Getty Images)

"Ela fez uma jogada arriscada e que deu certo: tornar-se visível pela lacração. Mas ela não é igual a candidatos como o Padre Kelmon [PTB] ou outros políticos que já vimos. Ela definiu o seu território e construiu uma marca em torno de uma proposta [a do imposto único]. Independentemente de quem ganhar, ela sairá maior do que entrou", diz Deysi Cioccari.

Marco Antônio Teixeira, da FGV-SP, pontua que Soraya conseguiu alguma projeção nacional, mas em menor grau que a obtida por Simone Tebet. Ele avalia que a campanha teria sido um sucesso para ela e para o União Brasil.

"Para ela e para o partido, foi um ótimo negócio. Ela ganhou projeção nacional e o União Brasil ganhou uma liderança, um rosto forte que pode liderar o partido", avaliou.

Fernando Azevedo sustenta que a candidatura de Soraya teve o objetivo de manter o União Brasil neutro na disputa entre Lula e Bolsonaro e que o desempenho da senadora deverá cacifá-la para projetos regionais no estado de Mato Grosso do Sul.

"Provavelmente, ganhe quem ganhar, o partido [União Brasil] deverá apoiar pragmaticamente o próximo presidente exercendo o papel de um Centrão do B. Essa visibilidade que ela alcançou vai reforçar o seu nome para projetos eleitorais no seu estado", disse Azevedo.

Ciro Gomes: principal derrotado

Após sua quarta tentativa frustrada de se tornar presidente da República, Ciro Gomes é, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal derrotado da terceira via. Ele obteve 3,04% dos votos válidos, com um total de quase 3,4 milhões.

A avaliação tem como base tanto a expectativa que havia em torno do seu nome no início da campanha, quanto pela forma turbulenta com a qual ele teria conduzido sua candidatura.

Ciro chegou às eleições de 2022 após obter 12,47% dos votos em 2018. Cultivando uma imagem de estudioso dos problemas do país e defendendo ser uma alternativa à suposta polarização entre Lula e Bolsonaro, Ciro fez críticas pesadas tanto a Bolsonaro quanto a Lula.

Eleitores de Ciro se queixam de pressão por voto útil em Lula: 'Terrorismo eleitoral'

Após obter 12,47% dos votos em 2018, Ciro Gomes teve apenas 3,04% dos votos em 2022 (Divulgação)

Seu comportamento é um dos pontos que fez com que os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliem que suas chances de alçar voos nacionais no futuro são limitadas.

"Ciro disse que desistiria da presidência se perdesse essa eleição. Eu acho difícil ele desistir. Mas o fato de ele não ter conseguido estabelecer diálogo com ninguém ao longo da campanha faz com que a possibilidade de um projeto nacional fique comprometida", disse Deysi Cioccari.

"O futuro dele no curto prazo é complicado. Não vejo ele conseguindo compor ou se juntando a Lula ou a Bolsonaro no segundo turno. Ele ficou isolado", diz a especialista.

"Ciro saiu muito menor do que entrou. Sua candidatura desidratou com campanha pelo voto útil do PT. Mas para além disso, tem o seu comportamento. Ele se isolou de tal forma que perdeu até o apoio dos irmãos em seu estado, o Ceará. Ele ainda tem estatura para projetos políticos, mas para voos maiores, ele precisará mudar totalmente o seu comportamento", avalia Marco Antônio Teixeira.

Para Fernando Azevedo, se Lula vencer as eleições, Ciro poderá ser relegado ao "ostracismo".

"A estratégia adotada por Ciro de criticar duramente o Lula não funcionou e ele sai da eleição provavelmente menor do que o seu tamanho político e eleitoral em 2018. Sua presença na cena nacional deverá ser esmaecida e, em caso de vitória de Lula cairá no ostracismo", disse o professor.

Leandro Prazeres, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 03.10.22 / Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63105325

Quatro razões que explicam por que candidatura de Ciro não decolou

O candidato Ciro Gomes (PDT) encerrou sua participação na disputa presidencial no domingo (02/10), ficando em quarto lugar, com 3,05% dos votos, atrás da candidata Simone Tebet (MDB), que concorreu à Presidência pela primeira vez e terminou com 4,18%.

Nas eleições para presidente de 2018, Ciro conseguiu um resultado melhor, anotando 12.47% dos votos. (Rodrigo Paiva / Getty Images)

A BBC News Brasil conversou com cientistas políticos que elencam os possíveis motivos que fizeram não só a candidatura de Ciro não decolar, como ter um desempenho pior do que na última disputa.

1. Cálculo sobre adversários

"O Ciro tem um histórico na política brasileira, é um candidato importante. Tem disputado periodicamente, resultando na terceira ou quarta grande força. Mas neste ano ficou em uma posição muito difícil, que o impediu de avançar para o segundo turno", afirma Eduardo Miranda, doutor em Ciência Política e professor da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

Na análise do professor, Ciro inicialmente projetou sua candidatura para um cenário no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fosse candidato e que o PT tivesse menos força eleitoral.

"Então, nesse momento, ele tentou atrair o eleitor de esquerda, foi bastante crítico a (Jair) Bolsonaro. Mas Lula foi candidato e ocupou o campo da esquerda e também o da centro-esquerda", complementa o cientista político Carlos Melo, professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa).

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2. Ataque a ambos os lados

Melo aponta que, sem conseguir conquistar a ala da esquerda, o espaço da "terceira via" que Ciro tentou ocupar foi sendo esvaziado.

"Aí ele parece ter feito outros cálculos. Considerando que Bolsonaro pudesse chegar muito enfraquecido na eleição,começou a se colocar como o 'anti-Lula'. Mas Bolsonaro tem uma fatia cativa do eleitorado."

"A Simone Tebet (MDB), por exemplo, optou pela candidatura do centro. Não fez esses movimentos de 'bater' em um ou em outro para tentar cativar eleitores de diferentes lados. Já o Ciro oscilou muito em termos de posicionamento político ideológico. Isso faz com que em um determinado momento ele acabe agregando muito pouco na disputa", diz Melo.

Na avaliação da professora Maria do Socorro Braga, que leciona Ciência Política na UFSCar, o movimento de isolar-se com ataques fortes aos dois oponentes que representam, mais fortemente as alas ideológicas da direita e da esquerda, faz com que Ciro mantenha sua coerência, mas pode ter causado confusão na mente de um eleitor menos politizado, que poderia ter sido conquistado pelo político, mas que não conseguiu acompanhar seus movimentos.

"Além disso, ele não conseguiu fazer alianças com outras forças políticas e partidárias, minando a capacidade de ampliação territorialmente."

3 - Polarização do país

A professora Maria do Socorro Braga aponta a "polarização" da política brasileira como um dos principais motivos para a candidatura de Ciro não ter alcançado resultados melhores.

"É uma disputa resiliente, que não surgiu agora, entre dois lados que incitam emoções fortes no eleitorado. Esse cenário foi tão acirrado, que, em certo ponto, antecipou a disputa do segundo turno para o primeiro. Isso criou grandes desafios para outras candidaturas, não só do Ciro."

 

Ciro Gomes (Carl de Souza / Getty Images)

4. Voto útil

O voto útil, feito quando um eleitor abre mão de votar no seu candidato preferido e opte por outro para evitar um segundo turno, contribuiu para que Ciro Gomes perdesse ainda mais força na reta final, na opinião dos especialistas entrevistados pela BBC News Brasil.

"O eleitor que não queria nem Lula, nem Bolsonaro, existe, mas a maioria só carrega essa escolha até um determinado ponto. Quando essa pessoa percebe que um daqueles candidatos que ela rejeita pode ganhar, vem um outro cálculo: não gosto de um, mas o outro não quero de jeito nenhum — e assim ela encontra o mal maior, e usa seu voto para ir contra ele."

Um retrato disso vinha sendo mostrado pelas pesquisas eleitorais nos últimos tempos: Ciro chegou a alcançar 9% das intenções de voto em uma pesquisa do DataFolha divulgada no início de setembro, e Simone Tebet, quarta colocada, tinha 5%. No fim do primeiro turno, eles tinham, respectivamente, 3,05% e 4,18%.

O futuro de Ciro Gomes na política

Ciro sai das eleições, na visão dos especialistas, enfraquecido. "Ele apostou para manter sua coerência, mas politicamente isso não o beneficiou", afirma Braga.

A professora avalia que o político se aproximou sutilmente da direita na reta final das eleições, mostrando mais cordialidade — ou menos ataques diretos — a Bolsonaro do que a Lula.

"Não dá para afirmar categoricamente o que vai acontecer, mas caso o apoio a Bolsonaro permaneça, isso poderia, inclusive, criar problemas para ele dentro do PDT, forçando uma possível mudança de partido se ele quiser continuar no jogo político."

Para Eduardo Miranda, da PUC-PR, Ciro é um quadro fundamental da política brasileira e seu destino dependerá das movimentações que fará pós-eleição.

"Ele é um dos mais, se não o político mais tecnicamente preparado que disputou essa eleição — com propostas mais bem desenhadas para saúde, educação, e na questão fiscal. É estudioso, preparado, mas acho que do ponto de vista político ele é muito novo. Poderia ter se projetado como um pós-Lula, se aliar com a esquerda que voltou a ser forte no país, mas escolheu outro caminho."

Giulia Granchi, de S. Paulo para a BBC News Brasil em São Paulo, 02.10.22

'Mesmo se Lula vencer, enfrentará terceiro turno em seu governo', diz cientista político

Os resultados do primeiro turno das eleições de 2022 apontam, na avaliação do historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, que o bolsonarismo se enraizou na sociedade brasileira e, que mesmo que se eleja, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrentará um "terceiro turno" diante de um Congresso hostil ao seu governo.

Lula (PT) chegou à frente no primeiro turno (Getty Images)

Além de uma votação muito mais expressiva de Jair Bolsonaro (PL) do que indicavam as pesquisas, Alencastro destaca a eleição de diversos senadores e de deputados federais alinhados com o presidente.

"Foi uma vitória fantástica do bolsonarismo, que agora se enraíza no país, e de uma extrema-direita com uma resiliência e uma perenidade talvez bastante longa", afirma o professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O historiador avalia que, mesmo obtendo mais votos do que indicavam os levantamentos, Bolsonaro terá dificuldades para se reeleger porque ficou cinco pontos percentuais atrás de Lula na votação.

"Ele tem que recuperar isso e não tem muita reserva de voto, porque pode haver um acordo do PDT (de Ciro Gomes, quarto colocado) e o MDB (de Simone Tebet, que ficou em terceiro) com Lula", afirma.

"Por isso, ele não vai poder escapar dos debates, quando não terá o auxílio do padre (Padre Kelmon, acusado de ajudar Bolsonaro no último debate antes do pleito ao antagonizar com o candidato do PT), e vai para o mano a mano com Lula, que é um debatedor mais experiente."

Mesmo se o ex-presidente ganhar no segundo turno, ele deve ter muitas dificuldades políticas em seu governo, diz Alencastro, que foi professor da Universidade de Paris-Sorbonne, na França.

Esse prognóstico se deve por causa do fortalecimento do bolsonarismo no Congresso, segundo o historiador.

O PL, legenda de Bolsonaro, ampliou sua presença na Câmara e elegeu a maior bancada, com 99 deputados, diante dos 76 atuais, de acordo com os resultados preliminares. Também deve ter a maior bancada do Senado, com 15 representantes ao todo.

Lula diz que usará 2° turno para comparar gestão dele à de Bolsonaro

Das 27 vagas disputadas em 2022 para o Senado, 14 foram conquistadas por nomes apoiados pelo presidente, sendo quatro deles ex-ministros do governo - Rogério Marinho (PL-RN), Marcos Pontes (PL-SP), Tereza Cristina (PP-MT) e Damares Alves (Republicanos-DF) - um ex-secretário, Jorge Seif (PL-SC), além do vice-presidente, Hamilton Mourão (Republicanos-RS).

Bolsonaro (PL) teve votação mais expressiva do que indicavam as pesquisas (Getty Images)

"É algo extraordinário e que desequilibra o jogo. Acho que Lula ainda ganha, mas terá que enfrentar um 'terceiro turno' com um Congresso totalmente hostil e vai lidar com ameaças de impeachment e de pautas-bomba, como projetos de lei que detonam o orçamento", diz.

"Ou mesmo com uma proposta de emenda à Constituição para instituir um semipresidencialismo, que é uma ameaça no horizonte que quase foi uma alternativa ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) quando (o ex-deputado federal) Eduardo Cunha tentou emplacar isso e que, ao meu ver, seria um desastre total."

No médio prazo, também conta contra Lula, segundo Alencastro, o fato de ele ser quase dez anos mais velho do que Bolsonaro e não ter herdeiros políticos.

"Enquanto Bolsonaro tem (o governador reeleito) Romeu Zema em Minas Gerais, (o governador reeleito) Cláudio Castro no Rio, talvez Onyx Lorenzoni no Rio Grande do Sul. Isso é uma ameaça não só para o PT mas para toda a esquerda", afirma.

No entanto, as urnas trouxeram uma boa notícia para a esquerda, na sua avaliação, com a "resiliência" do Nordeste, onde Lula ganhou de Bolsonaro em todos os Estados.

"Foi algo muito positivo, porque mostra que o aumento do Auxílio Brasil e os esforços do governo Bolsonaro para ampliar benefícios sociais e conquistar o apoio das camadas mais desfavorecidas não funcionou", diz Alencastro.

"Isso derruba um mito importante que os pobres seguem uma liderança que concede uma ajuda como essa."

Por outro lado, a votação indica que "a extrema-direita se implantou no país", diz o professor da FGV.

"A centro-direita desabou de vez com a irrupção do bolsonarismo, que foi favorecida pelo desgaste dos aparatos políticos tradicionais, porque passou a ser percebida por parte do eleitorado como uma representante do status quo."

Rafael Barifouse, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 03.10.22 /  Esse texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63112778.

domingo, 2 de outubro de 2022

Aliados de Lula sondam Simone Tebet por apoio ou ministério

Cacife político da emedebista cresceu no PT após desempenho nas pesquisas e resposta a Bolsonaro sobre assassinato de Celso Daniel

Simone Tebet e Bolsonaro durante o debate da TV Globo nesta quinta-feira (29) Reprodução

Independentemente da colocação em que Simone Tebet termine a corrida eleitoral – se em terceiro, à frente de Ciro Gomes (PDT), ou em quarto – a candidata do MDB à presidência já se transformou em um ativo político cobiçado pelos petistas.

Nas últimas semanas, emissários de Lula procuraram aliados de Simone para abrir negociações para que ela venha a ocupar um ministério se Lula ganhar no primeiro turno, ou para que ela declare publicamente apoio ao petista em caso de a corrida eleitoral enverede pelo segundo turno.

A candidata até agora não permitiu nenhuma aproximação maior, com medo de que informações a esse respeito pudessem empurrar seu eleitor para o voto útil já no primeiro turno.

Mas interlocutores dela no MDB e no PSDB, além de aliados na campanha, dizem que ela aceita conversar sobre apoio em segundo turno e participação no governo. E apostam inclusive nas pastas que ela gostaria de ocupar, caso o flerte político se transforme em namoro: educação e desenvolvimento social.

Para o núcleo político da campanha de Lula, Simone "mudou de tamanho" nesta campanha e demonstrou que pode ajudar a atrair eleitores de centro para a campanha de Lula, em caso de segundo turno, ou para a base do governo.

A emedebista também cresceu no conceito dos petistas com a resposta a Bolsonaro sobre o assassinato de Celso Daniel durante o debate da Globo.

Como a vice de Tebet, Mara Gabrilli (PSDB), entrou na carreira política acusando lideranças petistas de participação na morte do ex-prefeito de Santo André, o PT já temia que Bolsonaro tentasse uma dobradinha com Simone sobre o tema.

Simone, porém, não acolheu a provocação do presidente da República, e respondeu que faltava a ele coragem para perguntar diretamente a Lula sobre o caso.

"Ela em nenhum momento foi ofensiva e nem agressiva com Lula e agiu de forma muito leal", disse um integrante da coordenação de campanha de Lula que tem trabalhado pela aproximação.

Uma das razões pelas quais o MDB apostou na candidatura de Simone como terceira via, ao invés de compor chapa com algum outro partido, foi o fato de que o MDB rachou na pré-campanha.

Uma ala queria seguir com Lula e outra, com Bolsonaro. Em julho, a ala lulista chegou até a ensaiar uma rebelião. Líderes de 11 diretórios do partido declararam apoio ao ex-presidente e tentaram obrigar a legenda a rifar Simone.

Nos últimos meses, vários dos candidatos a governador do MDB e PSDB fizeram campanha para outros presidenciáveis ou esconderam Simone em em suas campanhas.

Com o resultado das últimas pesquisas (ela apareceu 1 ponto percentual à frente de Ciro no Datafolha e empatada com Ciro no Ipec), Simone encerra a campanha como figura nacionalmente conhecida e moderada - tipo de aliado que interessar muito a Lula a partir da segunda-feira, esteja ele já eleito ou não.

Malu Gaspar, Jornalista, para O Globo. Publicado originalmente em 02.010.22, às 04h03. 

Nem Bolsonaro, nem Lula

Não é compatível com a democracia condenar o eleitor à escolha entre o lulopetismo e o bolsonarismo, opções nefastas para o País. Há outros candidatos democráticos e competentes


Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB, PSDB e Cidadania) tecnicamente empatados

No dia em que os brasileiros irão às urnas para escolher quem governará o País nos próximos quatro anos, este jornal se considera no dever de recomendar que os eleitores rejeitem tanto o atual presidente, Jair Bolsonaro, como o petista Lula da Silva, que pretende voltar ao poder depois de 12 anos. Ao contrário do que ambos querem fazer parecer, ainda estamos no primeiro turno, ou seja, há vários outros candidatos, alguns seguramente melhores que Bolsonaro e Lula – que, cada um à sua maneira, violentam vários dos princípios que orientam o Estadão há mais de um século.

Além de ter gestado um governo conflituoso, irresponsável e desastroso, Jair Bolsonaro ameaçou, de forma reiterada, o processo eleitoral e ainda tentou envolver, nessas manobras, as Forças Armadas. Nesta semana, voltou a pôr em dúvida se aceitará o resultado das urnas. Não há como tolerar esse tipo de atitude.

Em razão de seus firmes princípios republicanos e democráticos, este jornal chegou a exigir, em 2000, a cassação do então deputado Jair Bolsonaro, que havia ultrapassado todos os limites do decoro e da decência ao defender o fuzilamento do então presidente, Fernando Henrique Cardoso. O editorial Dejetos da democracia (8/1/2000) não deixa dúvidas: “Figuras dessa espécie, que envergonham a instituição parlamentar, em qualquer lugar do mundo, dela têm que ser expelidas, num processo natural de limpeza, pois a democracia tem que saber administrar, com tranquilidade, o escoamento de seus dejetos”.

Ao ser poupado pelos seus pares, Bolsonaro entendeu que não precisava respeitar nenhum limite – nem legal, nem político, nem moral – e foi em cima dessa ideia que se lançou à Presidência, em 2018, como candidato “antissistema”. Vitorioso, rapidamente mostrou aquilo que já antevíamos, isto é, sua absoluta incompatibilidade com a chefia do Executivo federal, por qualquer ângulo que se avalie. Como se isso não bastasse, recaem sobre o presidente e sua família suspeitas de rachadinha, lavagem de dinheiro e uso dos órgãos estatais em benefício próprio, suspeitas essas que nunca foram esclarecidas. A Presidência da República exige outro patamar moral e cívico.

A rejeição a Jair Bolsonaro, no entanto, não cega os olhos deste jornal às contradições, fragilidades e imposturas da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. O PT produziu a mais grave crise moral, política e econômica da história recente do País, não reconheceu suas responsabilidades e agora deseja voltar ao poder vendendo a falácia de que disso depende a manutenção da democracia no Brasil e a redenção dos pobres. É o lulopetismo em estado puro.

Ora, o Lula da Silva que hoje se apresenta como o experiente artífice da reconciliação tão desejada pelos brasileiros é aquele líder cujo partido hostilizou todos os governos aos quais fez oposição, jamais reconheceu os méritos dos articuladores da estabilização da economia nos anos 90 e sabotou os esforços para estabelecer a responsabilidade fiscal. O Lula que se declara “inocente” em relação a graves denúncias de corrupção, como se fosse a alma mais honesta do mundo, é o mesmo que até hoje foi incapaz de reconhecer os comprovados desvios de bilhões em recursos públicos durante os governos petistas, muitos dos quais ocorridos nas suas barbas. O Lula que hoje quer ser visto como salvador da democracia é o mesmo que nutre devoção religiosa à ditadura cubana e que é incapaz de condenar a tirania dos companheiros Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, além de defender sistematicamente a “regulação da mídia”, nome fantasia para seus devaneios censórios.

Assim, se toda votação demanda seriedade, pode-se dizer que a de hoje requer especial sentido de liberdade e de responsabilidade. Os tempos atuais, demasiadamente conturbados, têm sido ocasião de acentuados oportunismos que, depois, cobram seu preço.

Aos que têm tanto interesse em transformar essa eleição em um duelo asfixiante entre Lula da Silva e Bolsonaro, é preciso reafirmar e defender a Constituição de 1988, que consagra a liberdade política e o pluripartidarismo. O eleitor não está obrigado a escolher entre dois candidatos que, eis a verdade inconveniente, não representam nenhuma solução para o País. Cada um a seu modo, são a continuidade do atraso. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 02.10.22 às 3h00

Uma prova de fogo para a democracia brasileira

Em ampla desvantagem nas pesquisas, Bolsonaro aposta suas fichas na desestabilização do processo eleitoral. Para analistas, instituições têm força suficiente para suportar pressão, mas serão testadas.

Embora tenha tentado brevemente vender uma imagem "paz e amor", o presidente Jair Bolsonaro, em ampla desvantagem nas pesquisas de intenção de voto, parece seguir apostando suas fichas na desestabilização do processo eleitoral. A democracia brasileira vive o que analistas consideram um estresse inédito desde o fim da ditadura militar, e suas instituições serão testadas.

Em meio a repetidas investidas contra o sistema eleitoral, no dia 13 de setembro, Bolsonaro causou surpresa ao dizer, em um podcast, que aceitaria o resultado das urnas em caso de derrota. Analistas especularam que talvez o presidente modulasse o discurso para atrair eleitores moderados.

No entanto, menos de uma semana depois, no Reino Unido, Bolsonaro retomou a retórica habitual contra a segurança das urnas. A uma televisão brasileira, disse que "algo de anormal" terá acontecido dentro do TSE se ele não vencer a eleição no primeiro turno.  

Na última quarta-feira (28/09), a campanha do presidente lançou uma ofensiva contra o sistema eleitoral. Seu partido, o PL, divulgou uma nota na qual afirma haver sérias falhas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que podem afetar o resultado das eleições, tendo como base auditoria feita pelo próprio PL. Pouco depois, o TSE divulgou uma nota oficial afirmando que as conclusões do PL são "falsas e mentirosas, sem nenhum amparo na realidade".

À noite, em sua live, Bolsonaro ameaçou determinar às Forças Armadas o fechamento de seções eleitorais, com base em um factoide. O presidente insinuou que eleitores vestindo verde e amarelo seriam proibidos de votar, embora não tenha havido nenhuma decisão do TSE nesse sentido. "Vou determinar às Forças Armadas, que vão participar das seguranças, qualquer seção eleitoral em que for proibido entrar com a camiseta verde e amarela, não vai ter eleição naquela seção", ameaçou Bolsonaro.

No último debate entre os presidenciáveis, organizado pela TV Globo nesta quinta-feira, Bolsonaro fez mais uma breve pausa em sua ofensiva antidemocrática. E a postura golpista do presidente em relação ao processo democrático praticamente não foi abordada; apenas a candidata Soraya Thronicke (União Brasil) questionou se ele pretendia liderar um golpe caso seja derrotado, mas Bolsonaro se esquivou.

Assim como o presidente, apoiadores questionam pesquisas

Embora Bolsonaro alegue ter a maioria dos eleitores ao seu lado, citando o que chama de "datapovo", as pesquisas dos institutos mais respeitados, como Ipec e Datafolha, mostram o seu oponente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na frente, com ampla vantagem. Somente o petista tem condições de liquidar a eleição já no primeiro turno, segundo os levantamentos.

Entre os seguidores do presidente, é generalizada a crença no descrédito dos institutos de pesquisa, bem como do sistema eleitoral.

"Essas pesquisas são mentirosas", afirmou o comerciante Ezequiel Siqueira no desfile cívico-militar do 7 de Setembro no Rio de Janeiro, palco de um comício do presidente em busca da reeleição. "O brasileiro que está na rua hoje é Bolsonaro, aqui não tem um petista. Então, como o Lula está lá em cima na pesquisa? Somos um número muito maior, expressivo", disse.

Ezequiel, que veio de Juiz de Fora para participar do 7 de Setembro no Rio, defende abertamente uma reação caso o resultado das urnas mostre uma vitória do petista. "Eu vou ser sincero: eu acho que a gente tinha que quebrar o Brasil, quebrar tudo."

A caminho do festejo patriótico, ornamentada com um arco verde e amarelo, Denise Wanderley dizia acreditar que Bolsonaro só perde se houver fraude nas urnas eletrônicas, motivo de preocupação para a aposentada.

"Não tem um lugar aonde ele vá que não seja aclamado pelo público. Eu não vou aceitar. Dou minha vida pelo Bolsonaro", falou, com endosso de familiares e amigos que a acompanhavam.

Instituições sob pressão

Embora não seja possível prever a reação do presidente e seus apoiadores no caso de um resultado desfavorável nas urnas – seja a derrota para Lula no primeiro turno ou a ida para um segundo turno em ampla desvantagem –, há indícios claros de que as instituições serão pressionadas.

"As instituições brasileiras têm atuado de maneira deficitária no controle dos atos do Executivo, mesmo os mais arbitrários", afirma Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional na FGV Direito SP.

A advogada pondera que uma eventual insurgência golpista exigiria uma reação mais rápida, contundente e coesa das instituições judiciais e políticas, a qual não se observou até aqui.

"Porém, há leis, procedimentos (como a Lei de defesa das instituições democráticas) e atores (como as cortes superiores e o Congresso Nacional) aptos a reagir, ou seja, existe uma institucionalidade para isso", diz Machado.

A professora da FGV avalia que a sociedade civil mostrou ampla mobilização e adesão à pauta democrática, rechaçando qualquer tentativa de golpe. Uma das principais demonstrações de força foi a leitura da Carta pela Democracia em diversas capitais, em agosto.

Aos 83 anos, o advogado José Carlos Dias foi um dos articuladores da mobilização. Ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique e presidente da Comissão Arns, ele defendeu mais de 500 presos políticos durante a ditadura militar. Em entrevista recente à DW Brasil, ele disse ter confiança nas instituições.

"Eu acredito que nós temos que confiar na posição firme dos governadores, dos parlamentares sérios − graças a Deus, eles existem − e principalmente do STF e do TSE. Essas instituições todas estão muito fortes para defender a democracia brasileira", declarou.

Para o ex-ministro, um intento golpista de Bolsonaro seria escandaloso perante as instituições brasileiras e à comunidade internacional. "Não vejo como isso pode acontecer, mas que eu tenho receio, tenho", disse. "Ele tem instrumentos, milícias e parte das Forças Armadas, que poderão apoiar esse gesto de loucura."

Para o pesquisador Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as eleições presidenciais poderão representar um teste para a democracia brasileira, equivalente à invasão do Capitólio nos EUA, em 6 de janeiro de 2021.

"As instituições estão super estressadas e pressionadas, mas foram capazes de conter isso até aqui. Temos que garantir que elas consigam resistir a um teste como o 6 de janeiro brasileiro, que irá provar se nossas instituições teriam essa capacidade. O principal ponto de atenção seriam as Forças Armadas e as forças policiais", avalia.

Exército sinaliza neutralidade

Uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta sexta-feira informa que o Alto Comando do Exército teria firmado posição em prol do resultado das eleições presidenciais. A posição pode reduzir o impacto de uma polêmica auditoria das urnas pelos militares, que não deverá mais ter a finalidade de atestar a confiança nas eleições.

Uma possível insurreição golpista incentivada por Bolsonaro seria a participação de policiais de demais agentes das forças de segurança é um dos principais fatores de preocupação. Para o pesquisador Arthur Trindade, que coordena o Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (NEV-UnB), a possibilidade é remota.

"O Poder Judiciário dispõe de leis e outros instrumentos legais para processar e punir policiais amotinados. E de fato, policiais amotinados têm sido punidos. Entretanto, ao longo das últimas décadas, o Congresso Nacional tem sistematicamente anistiado os policiais insurgentes e anulado as punições. Esse cenário mudou durante o governo Bolsonaro", explica.

Em 2019, policiais militares do Ceará se amotinaram contra o governador, com apoio explícito do presidente. Governadores de 19 estados se uniram para impedir qualquer tentativa de anistiar os revoltosos. Após esse episódio, juízes e governadores aumentaram sua capacidade de coibir motins e insurreições.

"Dificilmente as polícias militares se envolveriam nesse tipo de movimento insurgente. As policiais têm dado demonstrações de cumprimento das suas obrigações funcionais e subordinação dos governadores de estados", avalia Trindade.

O pesquisador da UnB lembra que, nos preparativos para o Dia da Independência em Brasília, Bolsonaro cobrou do governador Ibaneis Rocha, seu aliado, a liberação de caminhões da polícia para participar do desfile – o que é proibido por lei. Rocha se opôs. Apesar da forte adesão ao bolsonarismo, a Polícia Militar seguiu à risca as ordens do governador.

"Desta vez, não haverá anistia"

A professora Eloísa Machado, da FGV, explica que as forças de segurança pública são subordinadas ao poder político constituído, e qualquer insurgência representará um crime contra as instituições democráticas, passível de imediata repressão (como a destituição dos cargos de comando) e responsabilização, com atuação do sistema de justiça e das corregedorias internas.

"O caso das Forças Armadas é ainda mais evidente: a Constituição repudia qualquer interferência militar na política e qualquer comandante poderá ser responsabilizado por atos golpistas, seja na Justiça comum e também perante a Justiça militar", afirma a advogada.

Para a professora, uma parte das Forças Armadas é desleal à Constituição desde 1988. "Mas é bom que saibam que, desta vez, não haverá anistia".

Machado afirma que a ameaça do presidente Bolsonaro de fechar seções eleitorais com uso das Forças Armadas configura crime eleitoral e abuso de poder político.

"Sem mencionar eventuais repercussões criminais, insertas na Lei de Defesa das Instituições Democráticas. Tudo fica ainda mais grave se pensarmos que o candidato a vice-presidente [o general da reserva Walter Braga Netto] é militar e que as Forças Armadas fazem parte deste governo desde seu início", conclui.

João Pedro Soares, do Rio de Janeiro, RJ, para a Deutsche Welle Brasil, em 01.10.22.

Brasil vai às urnas em eleição decisiva para a democracia

Pesquisas indicam que social-democrata Lula está no limiar de vencer pleito no 1° turno e impor derrota à extrema direita. Acuado, Bolsonaro sinaliza que não deve aceitar fracasso nas urnas.


O favorito: candidatura de Lula tem recuperado terreno perdido pelo PT em 2018 (Foto: Victor R. Caivano/AP/picture alliance)

Quatro anos após a onda de direita que virou de cabeça para baixo o mundo político brasileiro, os eleitores voltam às urnas neste domingo (02/10) para votar numa disputa que pela primeira vez na história brasileira reúne um ocupante do Planalto em busca da reeleição e um ex-presidente.

Apesar de contar com 11 candidatos, a campanha se desenhou para um duelo sobre duas personalidades que não poderiam representar projetos mais antagônicos: o extremista de direita de Jair Bolsonaro (PL) e o social-democrata Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

É o duelo que não aconteceu em 2018.

Representante de uma agenda que mescla ultranacionalismo, fundamentalismo cristão, desprezo pela separação de Poderes, rejeição a valores progressistas, promoção do armamento da população e flexibilização de regras ambientais, Bolsonaro já não pode se apresentar como "outsider" a exemplo do que ocorreu na eleição passada. Seus quase quatro anos de governo foram marcados por problemas econômicos e sanitários, isolamento internacional, aumento da pobreza e sucessivas crises políticas.

Apesar de tudo isso, o presidente ainda conta com uma parcela significativa de apoiadores ferrenhos, ainda fiéis à sua agenda moral, especialmente entre o eleitorado evangélico e setores mais ricos. No entanto, ele perdeu boa parte dos eleitores de centro que há quatro anos haviam aderido de maneira decisiva à sua candidatura em nome do antipetismo.

Lula, por sua vez, lançou-se à corrida apostando na nostalgia pelos seus dois bem-sucedidos mandatos à frente da Presidência (2003-2010). Sua popularidade persistente, especialmente entre as camadas mais pobres, posicionou o petista como favorito para vencer o pleito desde a divulgação das primeiras pesquisas em 2021.  

Uma eventual vitória de Lula pode marcar ainda a volta da esquerda ao poder do maior país da América do Sul seis anos após a derrocada de Dilma Rousseff, apadrinhada de Lula que sofreu um impeachment em 2016 na esteira de uma série de escândalos de corrupção, má gestão econômica, perda de apoio parlamentar e acirramento do antipetismo – especialmente entre a classe média.

Nos últimos dias, a campanha de Lula tem investido na pressão do "voto útil", tentando liquidar a eleição ainda no primeiro turno. Segundo levantamentos divulgados no sábado, o petista conta com 50% a 51% das intenções de votos uteis. Para vencer são necessários 50% mais um. No entanto, por causa da margem de erro de dois pontos percentuais e fatores como abstenção, a possibilidade de um segundo turno entre Lula e Bolsonaro permanece em aberto.

Campanha começou ainda em 2021

Oficialmente, a campanha presidencial teve início em 15 de agosto, mas o pontapé inicial da disputa foi dado em março do ano passado, quando o Supremo Tribunal Federal anulou todas as sentenças contra o ex-presidente Lula, devolvendo ao petista seus direitos políticos – e consequentemente o cacifando para concorrer novamente à Presidência, ao contrário do que ocorreu em 2018, quando ele foi barrado.

Desde então, Lula foi o único candidato que demonstrou nas pesquisas capacidade de frear o bolsonarismo, diante do fracasso de uma série de postulantes que tentaram se posicionar como "uma terceira via". Ao longo de um ano, nenhum candidato fora de Lula e Bolsonaro conseguiu romper a barreira dos dez pontos nas pesquisas.

Em um comício em Curitiba no mês de setembro, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, classificou a volta por cima de Lula como uma "redenção". Após passar 580 dias na prisão, Lula voltou à antiga "capital da Lava Jato" com chances de vencer a eleição ainda no primeiro turno.

Bolsonaro, por sua vez, também lançou mão de todo o tipo de tática em busca da sua própria "redenção" e tentar reverter sua impopularidade. Seu governo promoveu a criação de uma série de benefícios sociais em pleno ano de eleições e ainda transformou o bicentenário da Independência em comícios a favor da sua reeleição. Com o objetivo de tentar reverter sua alta rejeição entre o eleitorado feminino, Bolsonaro também arregimentou a primeira-dama, Michelle, para participar da campanha.

Ao longo da campanha, Bolsonaro ainda tentou pintar a disputa como uma "luta do bem contra o mal" e lançou uma série de ataques contra seu principal rival, especialmente no último debate televisivo. Assim como ocorreu em 2018, a base do presidente também fez uso extensivo de distribuição de fake news contra adversários.

No entanto, as táticas não haviam revertido até a véspera da eleição a posição de desvantagem de Bolsonaro em relação a Lula. No último Datafolha, o presidente permanecia 14 pontos atrás do petista. 

Na reta final, o presidente pareceu abdicar de tentar virar votos de eleitores que não apoiam o governo, viajando a uma "zona de conforto": o estado de Santa Catarina, no qual possui uma esmagadora maioria das intenções de voto, em vez de se concentrar em colégios eleitorais maiores nos quais Lula aparece à frente.

O risco Jair Bolsonaro

Se o pleito de 2018 já havia sido marcado por um clima de acirramento político jamais visto desde a volta das eleições diretas para presidente em 1989, com o próprio Bolsonaro sendo alvo de um atentado, a disputa deste domingo também desperta temores de violência.

Nos últimos meses, ganharam destaque casos como o assassinato de um dirigente petista para um apoiador de Bolsonaro em Foz do Iguaçu. Entrevistadores de institutos de pesquisa foram agredidos nas ruas e jornalistas foram novamente alvo de assédio por parte de membros da base radical do presidente.

Nos últimos anos, o governo Bolsonaro também flexibilizou o acesso a armas de fogo no país. Como resultado: a venda explodiu e milhares de apoiadores do presidente correram para se armar. Durante a pandemia, Bolsonaro já havia defendido armar a população para que ela se insurgisse contra governadores e prefeitos que haviam implementado medidas de isolamento.

Se o clima nas ruas já é suficiente para causar preocupação, as atenções também se voltam para o Planalto. Segundo as últimas pesquisas do Ipec e do Datafolha, Bolsonaro pode perder a eleição já neste domingo. Caso ainda consiga passar para o segundo turno, sua derrota se desenha praticamente certa, segundo os institutos, diante da alta rejeição que seu nome provoca entre a maioria do eleitorado.

Jair Bolsonaro reconhecerá o resultado? O presidente já sinalizou diversas vezes que não pretende conceder uma eventual derrota. Ele ainda insinuou que pode estimular uma ofensiva semelhante àquela lançada pelo seu ídolo, o ex-presidente americano Donald Trump, que em janeiro de 2021 instigou a invasão da sede do Congresso americano por uma turba de apoiadores radicais – tudo com o objetivo de tentar impedir a oficialização da sua derrota e a vitória do democrata Joe Biden. "Aqui no Brasil se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa, a fraude existe", disse Bolsonaro em janeiro, em mais uma das suas falas contra o sistema de votação no Brasil.

Ainda em 2018, antes de tomar posse, Bolsonaro já vinha desenhado essa estratégia, ao afirmar que só não havia ganhado no primeiro turno daquele ano por causa de supostas "fraudes" nas urnas. Posteriormente, as maquinações se tornaram mais amplas e ele chegou a incentivar as Forças Armadas a participarem da fiscalização processo eleitoral, levantando temores de interferência. O presidente também afirmou há duas semanas de maneira ameaçadora que "se não ganhar no primeiro turno" com "60%" dos votos, algo de "anormal" terá acontecido "dentro do TSE".

Apesar de ter condicionado sua base radical a duvidar dos números de pesquisas e da segurança das urnas eletrônicas, o presidente tem encontrado pouco apoio na classe política tradicional para suas falas golpistas. Seus principais aliados do Centrão na Câmara e no Senado vêm evitando endossar as ofensivas do presidente contra o sistema eleitoral e alguns já demonstram sinais de resignação com uma provável derrota de Bolsonaro e ensaiam a construção de pontes com um eventual governo Lula.

Governos estrangeiros, incluindo o dos EUA, também já avisaram que têm confiança no sistema eleitoral brasileiro e que vão reconhecer sem demora o vencedor da eleição. Em julho, Bolsonaro chegou a reunir dezenas de embaixadores em Brasília para lançar ataques às urnas eletrônicas e ao STF, mas o encontro só explicitou ainda mais o isolamento internacional do presidente.

Diversos chefes de Estado ou governo do exterior não escondem sua preferência por Lula. No ano passado, ainda na posição de pré-candidato, o petista foi recebido com honras de chefes de estado pelo presidente francês Emmanuel Macron e se encontrou com Olaf Scholz, quando o atual chanceler federal da Alemanha ainda costurava a montagem do seu governo.


Jair Bolsonaro conseguiu manter uma base leal ao longo de quase quatro anos de governo, mas fatia não deve ser suficiente para garantir reeleiçãoFoto: Marcelo Chello/AP/picture alliance

A "frente ampla" de Lula

Nos últimos dias, a campanha de Lula passou a receber apoio até mesmo de antigos adversários, incluindo um dos autores do impeachment de Dilma, o jurista Miguel Reale Jr., e o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, relator do julgamento do Mensalão. Um total seis ex-ministros do Supremo declaram apoio ao petista.

Em contraste com o que ocorreu na campanha de 2018, quando o PT foi representado pela candidatura de Fernando Haddad, Lula conseguiu formar uma ampla rede de apoios de diferentes atores do espectro político. O carro-chefe dessa estratégia foi a escolha do seu vice, o ex-governador e ex-rival Geraldo Alckmin, cuja presença na chapa foi o gesto mais explícito para atrair o eleitorado de centro-direita e reforçar a campanha petista em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país.

O petista ainda fez as pazes com ex-aliados, notadamente a ex-senadora Marina Silva (Rede) e o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles (União Brasil). "Existem momentos na história em que há algo muito forte em jogo", disse Marina Silva ao anunciar apoio a Lula.

A terceira via que nunca decolou

Desde que Lula recuperou seus direitos políticos em 2021, o Brasil passou a assistir uma série de tentativas de viabilizar uma "terceira via" para fazer frente ao petista e a Bolsonaro. Alimentada pela imprensa e por parte da elite política, a procura envolveu nomes como os ex-governadores João Doria, Eduardo Leite, os senadores Alessandro Vieira e Rodrigo Pacheco e os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro. Nenhum decolou nas pesquisas. Moro, o ex-juiz responsável por tirar Lula da disputa de 2018, posteriormente se viu obrigado a disputar uma vaga ao Senado pelo Paraná, após se envolver uma série de imbróglios com diferentes partidos e a Justiça eleitoral.

No final, da "terceira via", só sobraram dois candidatos que não registram traço nas pesquisas: Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), que aparecem com entre 5% e 6% das intenções de voto.

Ao longo da campanha, Ciro insistiu em uma estratégia de pintar Lula e Bolsonaro como equivalentes, representantes do mesmo sistema que, na sua visão, levou o Brasil à ruína. Paralelamente, Ciro fez acenos à direita e passou a reforçar mensagens nacionalistas, o que levantou especulações de que ele pretende lançar um movimento para reunir radicais eleitores órfãos de Bolsonaro durante um eventual governo Lula. A tática, por enquanto, não tem dado certo. Ao lançar ataques até mesmo pessoais contra Lula, Ciro acabou afastando parte dos seus eleitores progressistas. Nos últimos levantamentos do Ipec e do Datafolha, ele oscilou negativamente e apareceu empatado ou até mesmo atrás da senadora Simone Tebet, outra política que tentou se viabilizar como "terceira via".

Jean-Philip Struck, Repórter, para a Deutsche Welle Brasil, em 02.10.22

Lula acaricia a volta ao poder no Brasil pela porta da frente

A vitória da ex-presidente significaria a superação do trauma do impeachment de Dilma Rousseff e a culminância da virada à esquerda da América Latina. A principal questão é se ele vence no primeiro turno ou tem que esperar até 30 de outubro

O ex-presidente Lula, de esquerda, e o presidente Bolsonaro realizaram dois atos eleitorais neste sábado em São Paulo. (AFP)

O filho de Dona Lindu fez história há duas décadas, quando se tornou o primeiro presidente do Brasil sem diploma universitário, o primeiro trabalhador no auge do poder em um país desigual e classista como poucos. Agora você tem a oportunidade de oferecer aos seus compatriotas um novo horizonte e reescrever o último capítulo de sua história. Luiz Inácio Lula da Silva (76 anos, Garanhuns, Pernambuco) acaricia seu retorno à presidência pela porta da frente neste domingo. Se o retrato que emana das pesquisas há meses estiver correto, o esquerdista derrotará o presidente Jair Messias Bolsonaro, 67, da extrema direita. Significaria a volta dos progressistas ao governo após o trauma do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e o grande culminar davirar à esquerda da América Latina, na esteira da Colômbia, Chile, Argentina e México.

A questão principal é se Lula obtém 50% mais um dos votos válidos —sem nulos ou em branco— que precisa para sentenciar a disputa neste domingo ou tem que ir para segundo turno com Bolsonaro —ex-militar que flerta com o golpe — dentro de quatro semanas. Muito provavelmente, os brasileiros voltarão às urnas eletrônicas em 30 de outubro. A última pesquisa deu à esquerda neste sábado 50% e à extrema direita 36%.

Se Bolsonaro marcou um gol ao fazer Neymar pedir voto nele no TikTok, a rede que está na moda entre os jovens, o compositor Chico Buarque apelou neste sábado no Instagram para que "quem não gosta de Lula" peça a eles votar porque "se trata de salvar a democracia". Os pais do cantor participaram da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) durante a ditadura.

Outra grande incógnita é como o líder de extrema-direita reagirá à derrota prevista pelas pesquisas diante da grande campanha que está promovendo contra o sistema eleitoral , que minou a credibilidade das urnas eletrônicas, que o Brasil utiliza há 25 anos. Boa parte dos bolsonaristas —um terço do eleitorado— se declara convencido de que tudo é fraudado para roubar a vitória de seu líder. O assunto é técnico e delicado. O medo de um colapso da ordem constitucional e as especulações sobre isso estão no ar há meses. Os fiéis a Bolsonaro também não confiam nas pesquisas. Seus constantes ataques ao judiciário, à imprensa e a quem discorda - a quem considera um inimigo - corroeram a democracia brasileira, uma das maiores do mundo.

Para Lula, é uma disputa entre democracia e barbárie. Para Bolsonaro, uma luta entre o bem e o mal. O eleitorado —156 milhões de pessoas— também vota na Câmara dos Deputados e em um terço do Senado, além dos governadores e das assembleias parlamentares dos 27 estados.

O complicado regulamento eleitoral brasileiro impede comícios a partir de sexta-feira, mas não caminhadas. Por isso, neste sábado, Lula apareceu em uma espécie de papamóvel na principal avenida de São Paulo, a Paulista. E Bolsonaro tem circulado pelo norte da metrópole à frente de um grupo de motociclistas.

A biografia do esquerdista é extraordinária, mas ele foi arrastado para a lama pelo escândalo de corrupção da Lava Jato, que varreu políticos e empresários intocáveis . Ele ficou preso por mais de 20 meses, condenado por corrupção. Essas penas, agora anuladas por razões processuais, impediram-no de disputar as eleições anteriores , em 2018, nas quais também era favorito. Ele sempre defendeu sua inocência.

Filho de pais analfabetos e caçula de sete filhos, nasceu em Pernambuco, no mais pobre do Brasil, o Nordeste, historicamente assolado pela seca. Era criança quando emigrou em família numa viagem de 13 dias para São Paulo, onde se reencontraram com o pai, Aristides, que sempre se esforçou para garantir a alimentação, mas que maltratava as crianças até que um dia a esposa agarrou eles e o levaram embora eles abandonaram Ela protagoniza muitos de seus discursos.

Lula — que nunca foi bom aluno, mas sempre exibiu desenvoltura e carisma — soube aproveitar as oportunidades oferecidas por São Paulo. Quando criança, trabalhou como engraxate antes de ingressar em uma escola técnica que abriu as portas para um emprego permanente na metalurgia. Lá, ele perdeu o dedo mindinho esquerdo, razão pela qual Bolsonaro o chama de "nove dedos".

Greves Contra a Ditadura

O turner tornou-se um líder sindical. E ele, que não desacreditou que os militares tomaram o poder em 1964 para trazer ordem ao Brasil, segundo a biografia de Lula, Volume I, liderou as grandes greves contra a ditadura. Desde a primeira tentativa, em 1989, perdeu três vezes antes de chegar à presidência e ser reeleito. Seus oito anos no poder (2003-2010) foram um período de prosperidade graças à demanda chinesa por matérias-primas. Ele foi capaz de implementar programas sociais ambiciosospara os historicamente deserdados. "Colocamos os pobres no orçamento", ele costuma dizer. A vida de milhões de pessoas melhorou como nunca antes. A eletricidade, a geladeira, a máquina de lavar chegaram para muitos... Os filhos das empregadas domésticas entraram na universidade. Ele levantou bolhas. As elites consideraram que deslocaram seus filhos. Graças a essa prosperidade, muitos pobres, negros e mestiços, voaram de avião.

Foi o Brasil que seduziu o mundo e Barack Obama. Nos aglomerados de um G-20, o então presidente dos Estados Unidos disse: “Eu adoro esse cara. Ele é o político mais popular do mundo!” No ano seguinte, Lula deixou o poder com 87% de popularidade.

Esse é o Brasil que ele vendeu nesta campanha, não aquele que veio depois, com Dilma Rousseff, a quem elegeu como herdeira política. O da corrupção sistêmica e da recessão que levou ao impeachment que encerrou 14 anos de governos progressistas. Nesse terreno fértil, germinou um ódio feroz contra os políticos em geral e o PT em particular, onda que Bolsonaro, deputado medíocre, habilmente montou para se tornar a surpresa das eleições de 2018.

Agora, a situação econômica é sombria. Mais de 33 milhões de brasileiros passam fome, o desemprego gira em torno de 9%, a inflação chega a 8,7% e o Fundo Monetário Internacional calcula que o PIB fechará este ano com alta de 1,7%.

Se perder, Bolsonaro será o primeiro presidente a não ser reeleito até agora neste século. Sua gestão desumana e desastrosa da pandemia , que já matou 670.000 brasileiros, é a principal razão pela qual muitos daqueles que apostaram nele como o salvador lhe viraram as costas. Para sobreviver no cargo, ele se jogou nos braços da velha política, dos partidos que oferecem apoio parlamentar ao maior lance e promoveu um generoso programa de ajuda econômica a 20 milhões de pobres. A economia resistiu ao puxão após a pandemia.

Nostálgico da ditadura, ultraconservador, machista, ele cumpriu sua promessa de desmantelar a política ambiental, facilitar a venda de armas e colocar um juiz “terrivelmente evangélico” no STF, como disse Bolsonaro. Com ele, o desmatamento acelerou , o Brasil é visto como um vilão ambiental e está diplomaticamente mais isolado do que nunca.

Aos olhos de muitos, o líder do PT é o novo salvador. Outros vão votar nele com relutância ou tapando o nariz porque o consideram o único capaz de expulsar Bolsonaro. Desta vez, para melhorar suas opções, ele tem Geraldo Alkcmin, uma ex-figura clássica de centro-direita e acérrimo defensor do impeachment de Dilma Rousseff , como seu candidato a vice-presidente. Agora, o público dos comícios lulista aclama.

Lula oferece a volta a um Brasil feliz e próspero, onde todos podem fazer churrasco e uma cerveja nos finais de semana sem entrar em detalhes incômodos sobre como pretende ressuscitar uma economia que tem crescimento estagnado há quase uma década e de onde virá o dinheiro pagar por isso, a inclusão dessa maioria pobre.

O time de Lula reservou a Avenida Paulista para a noite de domingo, mas Lula só será visto se vencer no primeiro turno. Caso contrário, será reservado. Os bolsonaristas também queriam se encontrar lá, mas só poderão fazê-lo no improvável caso de o presidente ser reeleito naquela mesma noite. Espera-se uma contagem rápida graças às urnas eletrônicas, que agora são apenas um orgulho nacional para metade do Brasil.

Naiara Galarraga Gortazar, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 02.10.22, às 04h:25. Naiara, a autora deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Anteriormente, ela foi vice-chefe da seção Internacional, correspondente de migração e enviada especial. Trabalhou nas redações de Madri, Bilbao e México. Durante uma pausa em sua carreira no jornal, foi correspondente em Jerusalém da Cuatro/CNN+. É licenciada e mestre em Jornalismo (EL PAÍS/UAM).