sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dinheiro impresso não é auditável

Comprar imóveis por valores fantasiosos esconde origem da bufunfa

Ilustração de Débora Gonzales para coluna de Renato Terra publicada em 1º de setembro de 2022 - Débora Gonzales

Uma comissão de pastores, empresários, radialistas e deputados foi convocada para debater sobre um dilema que se instaurou nesta semana depois da revelação feita pelos jornalistas Juliana Dal Piva e Thiago Herdy de que "metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo".

A pergunta complexa que emergiu foi a seguinte: a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?

De bate-pronto, ninguém arriscou falar em voz alta a resposta que decerto todos tinham na ponta da língua. Era necessário refletir, ponderar.

Sobre um fundo  amarelo há um splash vermelho promocional, sobre o splash há uma impressora portátil azul imprimindo dinheiro que voa por todas as partes da página.

Um radialista grisalho de pele alva quebrou o silêncio. "Há uma coerência entre pedir o voto impresso e usar dinheiro impresso", afirmou.

Dois pastores concordaram e lembraram que o pagamento em barras de ouro também está livre de fraudes eletrônicas.

"O problema é que o dinheiro vivo não deixa rastros. A pessoa pode declarar a compra de um imóvel de R$ 2 milhões e pagar R$ 150 mil em cédulas. Ninguém consegue checar se o valor pago é o mesmo valor declarado. É um método muito usado para quem quer lavar dinheiro. Ou seja, a pessoa ganha fortunas de maneira ilegal e depois tem que arrumar um jeito de declarar essa grana.

Comprar imóveis por valores fantasiosos é uma prática perfeita para esconder a origem da bufunfa sem deixar pistas. Ou até o contrário. A pessoa pode comprar um imóvel de R$ 500 mil e declarar R$ 300 mil para pagar menos impostos. Quem está interessado em fazer tudo certinho faz transferência bancária.

"Ou seja, o dinheiro vivo pode ser impresso, mas não é auditável", disse uma empresária.

Tachada de comunista, essa empresária foi expulsa da reunião. Deputados lembraram a possibilidade de decretar sigilo de cem anos para a imprensa e para todas as mulheres.

O radialista grisalho ficou com o rosto levemente vermelho. Ainda não havia uma boa resposta. Num estalo, argumentou que a culpa poderia ser do Lula por não ter criado o Pix na época em que os imóveis foram comprados.

A discussão ganhou corpo -afinal, Lula também tem acusações de compras ilegais de imóveis. "E tem mais! Lula está dizendo aí que criou o Portal da Transparência. O que só pode significar que esse negócio de transparência é ruim", falaram, entusiasmados, os deputados.

Enfim, todos concordaram. Em suma, a resposta para o dilema "a transparência nas eleições pode ser defendida por uma pessoa que não defende a transparência?" seria "e o PT?".

Renato Terra, o autor deste artigo, é roteirista e documentarista. Dirigiu "Uma Noite em 67" e "Narciso em Férias". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 01.09.22

Simone Tebet se tornou mais conhecida nas redes sociais e de quebra conquistou votos

Candidata à Presidência com menos seguidores entre os melhores colocados, senadora cresceu em todas plataformas

A senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata da chamada terceira via à Presidência em 2022. Foto: Reprodução/Facebook - 21/8/2022

A campanha de Simone Tebet, do MDB, certamente comemorou os dados da pesquisa Datafolha, divulgados na quinta-feira, 1º de setembro. A candidata pulou de 2% para 5% das intenções de voto. Pouco para aspirar ambições maiores? Provavelmente, mas o desempenho corrobora algo que fica cada vez mais evidente: independentemente dos resultados, a senadora já obteve uma importante conquista: tornar-se mais conhecida nas redes sociais.

Levantamento feito pela Torabit, parceira do Estadão na criação do Monitor de Redes Sociais, mostra que Tebet cresceu em todas as plataformas, sobretudo no Instagram. É verdade que o mesmo ocorreu com todos os candidatos mais bem colocados na corrida eleitoral - Ciro, Lula e Bolsonaro -, mas Tebet era (é) de longe a menos conhecida deles em todo o País. Prova disso é que durante o horário eleitoral desta quinta-feira a senadora se apresentava ao eleitor, voltava à sua cidade e por aí foi.

Os dados mostram a conquista de seguidores entre os dias 16 de agosto, início do horário eleitoral gratuito, e a última terça-feira, dia 30 de agosto. A rede em que ela obteve mais seguidores foi o Instagram. Simone amealhou 175.201 novos seguidores. Uma alta que impressiona, de 90,6%, mas é justificada pela base ser pequena: ela era acompanhada por 193.276 pessoas e agora é seguida por 368.477.

No Facebook, a candidata ganhou 13,5 mil novos seguidores (alta de 8,4%). No Twitter, o ganho foi de 19.856 perfis (+ 5,9%) e, finalmente, no YouTube, ela saltou de 9.580 inscritos em seu canal para 12.100 - mais 2.520 inscritos, ou 26,3% de alta. Como escreveu a jornalista Adriana Ferraz, a pauta feminina tende a ganhar espaço nas campanhas após o debate mas, para atrair as eleitoras, os candidatos precisam entender as demandas do público feminino.

Daniel Fernandes para O Estado de S. Paulo, em 02.09.22

Guzzo: sonho de Lula é uma campanha sem falar de corrupção

É duro para o ex-presidente convencer alguém de sua inocência dizendo que ‘o processo foi resolvido pelo STF’

Primeiro debate dos candidatos à Presidente promovido na TV Bandeirantes (Band) teve a presença dos candidatos: Luiz Felipe D’Avila (Novo), Soraya Thronicke (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT). Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

O ex-presidente Lula não quer que seja assim, e tem nisso o apoio de muita gente, mas vai ser dessa forma: daqui até a eleição de outubro, ele será obrigado a ficar rolando na calçada numa briga corpo a corpo com a corrupção. É, entre todos, o assunto do qual Lula quer falar menos.

Seu sonho dourado é uma campanha eleitoral inteira, toda ela, igual à “sabatina” que recebeu de presente dos apresentadores da Rede Globo. Não teve, ali, de responder à nenhuma pergunta de verdade; em vez disso, recebeu uma homenagem. “O senhor não deve nada à Justiça”, declarou o entrevistador, antes de mais nada e acima de tudo.

Foi tão bom para Lula, mas tão bom, que a frase de absolvição da Globo passou a fazer parte da propaganda oficial do PT na televisão; é difícil que se consiga chegar de novo a tal ponto. Mas esse paraíso não existe na vida real. Já no debate entre os candidatos, logo a seguir, não havia mais apresentadores como os que houve na “sabatina”, e a vida ficou dura.

Apareceram na ocasião, é claro, os militantes mais agitados do “antibolsonarismo” – só que isso não melhorou a vida de Lula. Na maior parte do tempo, teve de ouvir dos outros candidatos que o seu governo foi o mais corrupto da história do Brasil – e não conseguiu dar nenhuma resposta coerente para nada disso.

Primeiro debate dos candidatos à Presidente promovido na TV Bandeirantes (Band) teve a presença dos candidatos: Luiz Felipe D’Avila (Novo), Soraya Thronicke (União Brasil), Simone Tebet (MDB), Jair Bolsonaro (PL), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT).

O problema central de Lula, nesta campanha eleitoral, é que não são os adversários que estão dizendo que ele é ladrão – quem diz isso é a Justiça brasileira, que o condenou pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em três instâncias e por nove juízes diferentes.

É uma questão de prontuário; não há o que se possa fazer a respeito. Houve, é claro, o número de vassalagem da “sabatina”, mas provavelmente não dará para fazer de novo. De mais a mais, o que é que adianta esse tipo de bajulação explícita? É o exato contrário: Lula continua devendo tudo à Justiça. Não foi absolvido de absolutamente nada – ganhou de presente do STF a anulação dos seus processos penais, mas nosso tribunal supremo não disse uma sílaba sobre culpa, provas e fatos. Houve apenas um erro de endereço quanto ao lugar de julgamento, segundo decidiu o ministro que fez a “descondenação”. Que coisa, não?

É duro para Lula, ou para qualquer um, convencer alguém de sua inocência dizendo que “o processo foi resolvido pelo STF”. Que moral tem hoje essa gente para decidir alguma coisa sobre corrupção? Ganhar uma decisão favorável desse STF que está aí, aos olhos da maioria do público, equivale a receber um atestado de boa conduta do PCC. O que adianta, então, Lula ficar falando que foi “inocentado pelo STF”? Melhor, talvez, não dizer nada.

A dificuldade é que não dá para chegar ao dia da eleição só ouvindo hinos de honra ao mérito como os que recebeu na “sabatina”. Não poderia haver demonstração melhor de que as coisas não vão bem do que o pedido do PT para mudar as regras dos próximos debates. Só time que perde, como é bem sabido, parte para cima do juiz no fim do jogo para reclamar.

J.R. Guzzo, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22.09.22

Setembro chegou e Bolsonaro vai botar navios e aviões na campanha e ‘canhões’ contra Lula

Com o presidente acossado pela compra de 107 imóveis por familiares, 51 deles em dinheiro vivo, petista ganhou munição numa área-chave: a corrupção.

Setembro chegou com Bolsonaro atrás nas pesquisas. Foto: Albari Rosa/AFP

Com sua obsessão em transformar o 7 de Setembro e o bicentenário da República nos maiores espetáculos da Terra e da sua campanha à reeleição, Jair Bolsonaro criou um problemão para a prefeitura do Rio e uma saia-justa para as Forças Armadas, particularmente o Exército. Mas não foi só isso. Mais uma vez, gerou enorme constrangimento para países amigos do Brasil.

Que alguma entidade da sociedade civil comece o desafio e pressione os candidatos à Presidência a deixar o eleitorado conhecê-los de verdade: abrindo suas declarações do IR dos últimos anos

As forças navais do Brasil e de 18 outros países das Américas estão no País para participar da Operação Unitas, exercício conjunto que vem desde 1960 e, neste ano, justamente ano eleitoral, ocorre no Brasil, a partir do Rio. E agora? Os países discutem nos bastidores se vão ou não reforçar o bicentenário da independência brasileira, o que corresponde a dar mais visibilidade à campanha de Bolsonaro.

São 5,5 mil militares, 20 navios de guerra, um submarino e 21 aeronaves que fazem a alegria das famílias e serão chamariz para a campanha. A operação começa oficialmente no dia seguinte, mas muitos países participarão do 7 de Setembro/bicentenário e um dos mais importantes, senão o mais, os EUA, faz suspense. “Duvido que isso mude a opinião do eleitor que não decidiu em quem votar”, diz um diplomata de um dos 18 países.

O problema são os países amigos serem usados grosseiramente não para manobras militares, mas para manobras eleitoreiras de um presidente que já convidou embaixadores estrangeiros para servir de figurantes naquela cena lamentável em que ele achincalhou o sistema eleitoral, o TSE e ministros do STF, ao vivo e em cores. Navios e aviões estrangeiros serão, certamente, um chamariz para o ato de campanha bolsonarista.

Nas Forças Armadas brasileiras, imagine-se o espanto quando o presidente se dispôs a exigir que a parada do 7 de Setembro seja na Praia de Copacabana. O jeito para nem desobedecer a Bolsonaro nem cumprir ordem absurda foi cancelar a parada no centro e quebrar um galho em Copacabana.

Setembro chegou com Bolsonaro atrás nas pesquisas, acossado pela compra de 107 imóveis por familiares, 51 deles em dinheiro vivo. Para tentar confundir a galera, diz que a maioria dos imóveis era do ex-cunhado, mas eram só oito, dentro do esquema. E alegou que “moeda corrente não é dinheiro vivo”, mas, sim, a moeda do País, atualmente, o real. Ah, sei!

Como Bolsonaro torrou todos os cartuchos e não atingiu o alvo – encostar ou superar Lula (PT) –, ele vai partir para a ignorância. Exigir um 7 de Setembro e um bicentenário da independência em Copacabana é parte disso. Tem mais: os canhões de fake news estão voltados para o favorito nas pesquisas. Mas Lula ganhou munição numa área-chave: a corrupção.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.09.22

Bolsonaro deve explicações

A compra de imóveis em dinheiro vivo costuma servir à lavagem de dinheiro. A família Bolsonaro comprou 51 imóveis em dinheiro vivo. Está claro que o presidente deve explicações


Este é apenas um dos imóveis comprados em dinheiro vivo

O governo Bolsonaro tem problemas sérios envolvendo corrupção e gestão obscura de recursos públicos, com destaque para negociações suspeitas de vacina anti-covid, pedidos de dinheiro por pastores evangélicos no Ministério da Educação e, principalmente, o orçamento secreto – que cria as condições ideais para o florescimento da corrupção, por permitir gastos sem transparência e sem critério. Tudo isso é rigorosamente contrário à promessa de Jair Bolsonaro de combate implacável à corrupção. No entanto, há algo ainda mais explicitamente avesso à moralidade pública e diretamente relacionado ao presidente da República: o sistema metódico de compra de imóveis com o uso de dinheiro vivo da família Bolsonaro. 

O caso é gravíssimo e deveria merecer mais atenção dos eleitores brasileiros. Afinal, o Brasil aprovou a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, justamente porque a sociedade se cansou de políticos delinquentes. Está claro que Bolsonaro precisa explicar a origem dos milhões de reais em dinheiro que ele e sua família conseguiram movimentar na negociação de dezenas de imóveis, aparentemente sem ter renda suficiente que a justifique.

O site UOL revelou que, desde os anos 90, o presidente, seus irmãos e seus filhos negociaram 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com o uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante pago em dinheiro vivo equivale a R$ 25,6 milhões.

Não é crime comprar um imóvel usando dinheiro vivo. Mas essa modalidade de pagamento, especialmente se é recorrente, consiste em forte indício de lavagem de dinheiro. É justamente um dos crimes pelos quais o ex-presidente Lula da Silva foi condenado no caso do triplex do Guarujá. O crime de lavagem de dinheiro consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Uma vez que o dinheiro vivo não tem rastreabilidade, seu uso é muito propício para ocultar ou dissimular a real origem de determinado recurso. 

Quando veio à tona que a família Bolsonaro comprou 51 imóveis envolvendo pagamento em dinheiro vivo, o presidente não contestou o dado. Limitou-se a perguntar, com sua habitual truculência: “Qual o problema comprar com dinheiro vivo algum imóvel?”.

Ora, não foi apenas “algum imóvel”. Foram 51. E tudo fica ainda mais suspeito quando se toma conhecimento de que as declarações de bens e renda da família Bolsonaro entregues à Justiça Eleitoral, como revelou o Estadão, não indicam guarda de dinheiro em espécie em casa. De 1998 até agora, apenas o filho Carlos informou ter guardado R$ 20 mil em espécie por ao menos oito anos.

Tudo isso é escandaloso – e demanda pronto e inequívoco esclarecimento. Os mesmos eleitores que, com razão, cobram de Lula da Silva explicações sobre os casos cabeludos de desvio de recursos públicos nos governos do PT devem exigir de Bolsonaro que explique qual foi a mágica financeira que permitiu que ele e seus filhos parlamentares, cujos salários não superam R$ 40 mil brutos, fossem capazes de movimentar milhões de reais no ramo imobiliário, e tudo em cash.

Nem Bolsonaro nem seus filhos foram capazes, até agora, de esclarecer os muitos indícios da prática de rachadinha (apropriação de salários de assessores parlamentares) por parte do clã. Ou seja, há a suspeita de ocultação da origem de bens (pelo uso de dinheiro vivo na compra de 51 imóveis) e, ao mesmo tempo, há a suspeita da origem ilícita desses recursos (a rachadinha), elementos do crime de lavagem de dinheiro. Por muito menos, e com base em indícios muito mais frágeis, inúmeras pessoas foram denunciadas e chegaram a ser presas na época da Lava Jato.

Como candidato à reeleição e, sobretudo, como candidato que se apresenta como incorruptível, Bolsonaro tem o dever de esclarecer a origem desses recursos. Quem quer ser (ou continuar a ser) presidente da República não pode deixar dúvidas sobre sua honestidade, ainda mais quando se está diante de suspeitas de lavagem de dinheiro.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 02.09.22

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Outra Rússia é possível

A dissolução da União Soviética sob a liderança de Gorbachev mudou o sentido da história contemporânea

Um homem coloca uma rosa em uma escultura dedicada a Mikhail Gorbachev no Monumento aos Padres da Unificação em Berlim na quarta-feira. (LISI NIESNER (REUTERS)

Com a morte, fixa-se definitivamente a trajetória do personagem político. Já se passaram 30 anos desde que Mikhail Gorbachev perdeu o poder e encerrou sua carreira como governante, quando a União Soviética, o Estado que ele presidia, foi dissolvida. Mas o seu desaparecimento aos 91 anos, após uma longa doença, colocou à luz do contraste com Vladimir Putin o verdadeiro valor da sua vida política, das suas decisões, da sua coragem e, sobretudo, da sua decência como governante, que acabaram preferindo a liberdade de seus concidadãos de usar a força para mantê-los sob um sistema comunista esclerosado e irreformável.

O saldo é histórico. Durante os breves mas intensos sete anos de sua liderança, ele empreendeu o desarmamento nuclear, retirou tropas do Afeganistão, permitiu a emigração em massa de cidadãos judeus para Israel, libertou dissidentes e iniciou o que é mais popularmente associado ao seu governo: as reformas políticas e econômicas da perestroika sem muito sucesso e a liberdade da glasnost, a transparência que rompeu a opacidade do regime soviético. Rompeu com a doutrina Breznev de soberania limitada, de modo que as transições democráticas foram abertas em regimes comunistas como os da Polônia, Hungria ou República Democrática Alemã. Deu luz verde à unificação alemã na Aliança Atlântica, dissolveu o Pacto de Varsóvia, a aliança militar oposta à OTAN, e o Comecon, o falso mercado comum socialista. Com ele a Guerra Fria terminou, o Muro e a Cortina de Ferro caíram e a Europa recuperou sua unidade.

A admiração e gratidão que sua figura desperta, e especialmente nos países da Europa Central e Oriental da antiga órbita soviética, é diretamente proporcional à difamação que ele ainda levanta entre os líderes da Rússia de hoje e outros regimes hostis à democracia e ao pluralismo. Alguns não perdoam o desaparecimento da União Soviética e do bloco de ditaduras socialistas, exercendo sua função de ameaça histórica necessária para conter os excessos do capitalismo (e ao mesmo tempo desconsiderando o alto preço pago por aqueles que sofreram sob seus regimes totalitários) por 70 anos). Outros, do nacionalista russo e do conservadorismo imperial, não o perdoam pela redução do território imperial e pela perda do status da Rússia como superpotência.que destaca a frieza do Kremlin.

Mas não se trata apenas de sua dimensão internacional. Com Gorbachev são inauguradas três décadas de multilateralismo, paz e cooperação internacional e desarmamento, enquanto Putin é o homem do unilateralismo, da guerra, da polarização e do rearmamento. Se o primeiro representa o sonho de um mundo pacífico e estável governado pelo direito internacional, o segundo significa a cunha da violência e da guerra como instrumentos de instabilidade com os quais os mais fortes poderão impor sua lei a todos. Pior ainda é o contraste interno, entre uma Rússia esperançosa que ampliou o ar da liberdade, e a Rússia deprimida pela guerra contra um país irmão e por uma economia abalada pelo esforço de guerra, as sanções e a corrupção de uma oligarquia mafiosa.

Ainda teremos que esperar a poeira das batalhas baixar para que o balanço de Gorbachev adquira toda a sua dimensão na própria Rússia. Mas seu legado de liberdade e respeito é sólido e indiscutível, assim como foi até o último momento sua atitude esperançosa em relação ao futuro e à juventude que deve liderá-lo.

Editorial do EL PAIS, em 01.09.22

Líderes para poderes com pés de barro

A única coisa que Putin e Gorbachev compartilham é terem sido figuras-chave na compreensão da evolução da URSS então e da Rússia hoje, além de agentes determinantes da dinâmica de mudança e conflito na ordem internacional

Um mural em Roma pelo artista Harry Greb dedicado à guerra na Ucrânia.  MARILLA SICILIA / ZUMA PRESS / CONTACTOPHOTO (MARILLA SICILIA / ZUMA PRESS / C)

Em The Rise and Fall of Great Powers , Paul Kennedy argumenta que as nações ocupam um lugar de destaque no mundo com base em seus recursos internos, sua capacidade produtiva ou as mudanças tecnológicas que são capazes de empreender. Se seu poder diminui em relação a outras potências, ou seja, seu poder relativo diminui, sua posição na ordem internacional também diminui.

Outras análises sistêmicas se baseiam no inevitável conflito internacional que deriva do confronto entre uma potência hegemônica e uma potência emergente que ameaça tomar seu lugar (a famosa armadilha de Tucídides). Seguindo uma lógica semelhante, John Mearsheimer evoca que o conflito entre as grandes potências é inevitável, pois somente em raras ocasiões as mudanças no equilíbrio do poder mundial ocorrem pacificamente.

O colapso da URSS foi uma dessas raras ocasiões. A então segunda potência internacional foi desmembrada e seu poder no sistema foi diluído como o açúcar. Fê-lo por conta própria, sem guerra aberta contra os Estados Unidos ou como consequência de um plano viável para recuperar o terreno perdido: um caso digno de estudo para refutar as crenças e postulados tradicionais da disciplina das relações internacionais.

As ideias, o carisma e o caráter de seu então líder, Mikhail Gorbachev, foram fundamentais para entender o que aconteceu. Ele não agiu pela força de ações decisivas, mas sim por aversão ao uso da força, combinando suas ideias reformistas com uma abordagem hesitante às transformações radicais. A consequência de seus menos de sete anos no poder foi o fim do regime comunista de partido único, a queda do império soviético, o nascimento de novos estados na Europa Central e Oriental e a interrupção da corrida armamentista global.

É de se perguntar se um sistema soviético em crise terminal teria tomado um rumo diferente sob um líder diferente . Talvez a debilidade e corrupção do Kremlin, a situação econômica e social da URSS ou sua perda de poder em relação a Washington fossem fatores mais determinantes do que qualquer tentativa de mudança ou liderança alternativa, como alegavam os detratores de Gorbachev na época. Seja como for, a figura de Gorbachev demonstra que os líderes podem influenciar tanto quanto os fatores estruturais no curso da política global.

A Rússia hoje continua sendo um gigante com pés de barro, embora com um líder determinado a desfazer o legado de Gorbachev . Vladimir Putin e seu expansionismo beligerante consideram a queda da URSS como a maior catástrofe geoestratégica do século XX. Sua referência é Pedro, o Grande , não um Gorbachev que para o Kremlin é uma figura desprezível. Putin parece determinado a se estabelecer como o autocrata com mão de ferro que a URSS teria exigido no tempo de Gorbachev para evitar seu desmembramento. A guerra na Ucrânia mostra que Putin questiona a soberania e o direito de existência dos países que já fizeram parte do império soviético.

A Rússia, apesar de permanecer uma potência militar determinante, hoje tem uma economia estagnada, desigualdade e corrupção desenfreadas e crescente agitação social. Sua política externa não é um sinal de força, mas sim de aspiração para recuperar o status perdido. A única coisa que Putin e Gorbachev compartilham é terem sido figuras-chave na compreensão da evolução da URSS então e da Rússia hoje, além de agentes determinantes da dinâmica de mudança e conflito na ordem internacional.

Pol Morillas, o autor deste artigo, é diretor do CIDOB (Barcelona Center for International Affairs) @polmorillas. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 31.08.22

Emenda Constitucional 125/22 é inconstitucional e tem de ser revogada

Tendo como pano de fundo o grande volume de recursos que sobem ao Superior Tribunal de Justiça, o Congresso votou e o Executivo sancionou a Emenda Constitucional nº 125/22, estabelecendo barreiras visando minorar o número de recursos ajuizados. 

Com esse propósito acresceram ao artigo 105 da CF os §§2º e 3º nº §2º, para restringir os recursos restou estabelecido que o requerente deverá demonstrar, obrigatoriamente, a relevância da questão discutida para que possa ser admitido o recurso. Estabeleceu ainda que a questão tenha valor fiscal de pelo menos 500 salários mínimos.

Inafastável, portanto, que a EC é rigorosamente inconstitucional pois, declaradamente, infringe o artigo 5º, caput, da CF que disciplina os princípios fundamentais dos cidadãos e fixa a igualdade entre todos como valor fundamental. Em consequência, explicita nos incisos XXXV, LIV e LV que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito"; assegura também que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e, ainda, que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo é assegurado o contraditório e a ampla defesa".

Tais fundamentos não se coadunam com as restrições desenhadas no acrescido §2º trazido, vez que "estipular a relevância da questão em discussão" é estabelecer exercício absolutamente ilegal pois que sobre ser subjetivo ainda é cerceamento de liberdade. Ademais, ao requerente é rigorosamente garantido insucesso posto que a necessidade da fundamentação foi estabelecida com o propósito de barrar a admissibilidade do recurso. Dessa forma, flagrantemente infringindo os requisitos fundamentais acima retratados. Da mesma forma é o limite mínimo de 500 salários posto que agride o fundamento pétreo da igualdade entre todos.

Se válido for esse princípio, estará consagrado que o cidadão com demanda de valor inferior a 500 salários, ou de valor inestimável, terá vetada a regra pétrea fundamental da ampla defesa. Consequentemente transformando o STJ em tribunal para poucos e privilegiados, ou seja, tribunal voltado à elite e assim, infringindo o princípio fundamental da igualdade entre todos.

Trata-se, portanto, de EC absolutamente infringente aos direitos dos cidadãos e como tal, por sua inequívoca inconstitucionalidade, impõe-se revogá-la.

Porém, mais republicano tivesse sido o Legislativo e menos elitista teria aproveitado para melhorar o ordenamento processual, para diminuir o volume de feitos. Para tanto deveria ter reordenado as funções dos Tribunais de Justiça dos Estados, vez que nestes se originam os recursos especiais. Tribunais que se encontram, também, "atolados de recursos" — apelos e embargos de declaração que advém de julgados de piso, estes também assoberbados e desapetrechados.

Como se vê, não basta editar EC restritiva para "solucionar o problema do STJ"; o que se fez não foi resolver o problema, mas aplicar inconstitucional cerceamento de liberdade.

Assim deveria o Legislativo ter estabelecido que as cortes estaduais criassem câmaras superiores com atribuição específica de julgar, fundamentadamente, a admissibilidade do recurso especial, deduzido em razão de decisões proferidas nas câmaras ordinárias. Mecanismo que suprimiria, nesses casos, não só a hipótese dos embargos de declaração, como também a do agravo, posto que toda matéria seria discutida nas câmaras especiais, que julgariam a admissão do REsp.

Da decisão proferida na câmara especial somente caberia "recurso de divergência" que estaria condicionado a que o recorrente comprovasse a existência de decisão divergente proferida em qualquer outro Tribunal de Justiça, em outro Estado da Federação. Assim sendo consagrado e homenageado o fundamento constitucional do STJ, que é uniformização da jurisprudência.

Não cabendo recurso de divergência, o recorrente poderá ainda, se o tema for constitucional, deduzir o RE encaminhando a questão ao STF. Não havendo a hipótese de cabimento do RE restaria transitada a questão, dessa forma encerrando o feito em definitivo, trazendo economia processual, celeridade, e nos feitos penais o cumprimento definitivo da pena.

Tivesse havido no Legislativo federal menos ânimo de restrição, e mais espírito republicano, certamente o país estaria no rumo para cumprir o ordenamento "ordem e progresso".

José Roberto Cortez, o autor deste artigo, é especialista em Direito Empresarial e sócio fundador do escritório Cortez Advogados. Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 01.09.22.

Oligarca russo morre após cair de janela de hospital em Moscou

Ravil Maganov era presidente do conselho da Lukoil, maior empresa privada de petróleo da Rússia e uma das poucas empresas do país a pedir publicamente o fim da guerra na Ucrânia 

Ravil Maganov ao lado do presidente russo Vladimir Putin. (Foto: Mikhail Klimentyev/ Sputnik/ AFP - 21/11/2019)

O presidente do conselho da Lukoil, maior empresa privada de petróleo da Rússia, Ravil Maganov, após cair da janela do 6° andar de um hospital em Moscou, informaram agências internacionais nesta quinta-feira, 1°.

Um comunicado da Lukoil informou apenas que Maganov “faleceu após uma doença grave”, sem detalhar o caso.

The Economist: Putin está levando a Rússia a um tipo russo de fascismo

Reportagens da imprensa russa disseram que o corpo do oligarca foi encontrado nas dependências do Hospital Clínico Central, onde a elite política e empresarial da Rússia é frequentemente tratada. Ele havia sido internado no hospital após sofrer um ataque cardíaco.

A agência de notícias estatal Tass citou uma fonte policial não identificada, dizendo que o incidente aconteceu por volta das 07h00 (01h00 em Brasília). O caso está sendo investigado como suicídio. Apesar da internação motivada pelo problema cardíaco, Maganov, de 67 anos, estava tomando antidepressivos, segundo a mesma fonte policial.

A Lukoil foi uma das poucas empresas russas a pedir publicamente o fim da operação militar da Rússia na Ucrânia, pedindo em março a “cessação imediata do conflito armado”.

O presidente do conselho da Lukoil trabalhava em cargos executivos na petroleira desde 1993. Ele foi o primeiro vice-presidente executivo e supervisionou a exploração e produção. Em 2020, o conselho de administração da Lukoil nomeou Maganov como presidente no lugar de Valeri Greifer, que faleceu em abril daquele ano./ AP e EFE

Redação d'O Estado de S. Paulo, em 01.09.22

Veja como Bolsonaro e os filhos pagaram imóveis com dinheiro vivo

Documentos emitidos por cartórios registram compras feitas em ‘moeda corrente’, em diferentes transações ao longo de anos; mesmo legal, prática gera suspeitas de órgãos de controle, mas presidente não vê problema


Foto: Reprodução/Instagram Eduardo Bolsonaro

“Moeda corrente do País contada e achada certa.” Com pequenas mudanças, essa expressão, que significa pagamento em dinheiro vivo, se repete em escrituras de compra e venda de imóveis pelos políticos da família Bolsonaro, obtidas em cartórios pelo Estadão. A prática não é ilegal, mas é vista com desconfiança por órgãos de controle e investigação, como o Ministério Público. O motivo é que esses recursos aparentemente não passam pelo sistema bancário, o que torna difícil ou até impossível rastrear se sua origem é lícita. O presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, demonstrou não ver problema no procedimento. A família em geral atribui as denúncias a “perseguição”.

Entre os Bolsonaros envolvidos com política, o comportamento vem de décadas. Em 12 de maio de 2006, por exemplo, o então deputado Jair Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle, sua então mulher, compareceram ao cartório do 17º Ofício de Notas do Rio. Foram fechar a compra de uma casa na Rua Divisória , 30, casa XV, e respectivo terreno. Os vendedores foram um dos irmãos do hoje presidente, Renato Antonio Bolsonaro, e sua mulher, Maria Aparecida Leite Bolsonaro. O preço de R$ 40 mil foi todo quitado no ato, em cédulas de reais. Se corrigido pela inflação oficial (IPCA) medida até julho de 2022, o total chegaria hoje a R$ 99,4 mil.

Ana Cristina Valle, uma das ex-mulheres do presidente Jair Bolsonaro, também é investigada por suposto esquema de rachadinha. Foto: Fabio Motta/Estadão - 2018

Três anos antes, em 3 de junho de 2003, o filho “Zero Dois” do presidente, vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), então com 20 anos de idade e no primeiro mandato na Câmara Municipal do Rio, foi ao mesmo cartório. Pagou, por um apartamento na Tijuca, na zona norte carioca, R$ 150 mil, em “moeda corrente do País, contada e achada certa”, segundo a escritura. Corrigido pela inflação medida pelo IPCA, o valor, em julho de 2022, seria de R$ 441.501,34.

Já Eduardo Bolsonaro, atualmente deputado federal pelo PL de São Paulo, quitou quase um terço de uma transação imobiliária em dinheiro vivo, segundo escritura do 24º Ofício de Notas. Em 3 de fevereiro de 2011, Eduardo comprou um apartamento em Copacabana por R$ 160 mil. Pagou R$ 110 mil por cheque administrativo e R$ 50 mil “através de moeda corrente do País, tudo conferido, contado e achado certo”. Onze anos depois, esse valor, corrigido pelo IPCA, quase dobrou: chegou a R$ 99.489,76 de acordo com os índices de inflação medidos até julho de 2022.

Eleito para seu primeiro mandato em 2014 e empossado em 2015, Eduardo Bolsonaro comprou, em 29 de dezembro de 2016, um apartamento em Botafogo por R$ 1 milhão. De acordo com a escritura do 17º Ofício de Notas, o parlamentar pagou, no ato da compra, R$ 100 mil. Em julho de 2022, seriam R$ 134.664,06, segundo correção pelo IPCA. Também financiou R$ 800 mil pela Caixa Econômica Federal e pagou um sinal de R$ 81,038,28 e uma parcela de R$ 18.961,72 – não há mais detalhes da maneira como foram pagos.

Presidente reage a questionamentos

Abordado por repórteres nesta terça-feira, 30, o presidente reagiu com irritação a perguntas sobre as compras de imóveis pelo clã, apontadas inicialmente em reportagem do UOL. “Qual é o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel? Eu não sei o que está escrito na matéria... Qual é o problema?”, questionou, impaciente, após evento promovido pela União Nacional do Comércio e dos Serviços (Unecs) em Brasília.

Os nomes do deputado Eduardo Bolsonaro, do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro, entre outros familiares, são encontrados em documentos de imóveis pagos em dinheiro vivo.

Os nomes do deputado Eduardo Bolsonaro, do presidente Jair Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro, entre outros familiares, são encontrados em documentos de imóveis pagos em dinheiro vivo. 

Wilson Tosta para O Estado de S. Paulo, em 01.09.22

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Os negócios da família Bolsonaro

Se pretende ser visto pelo eleitor como campeão da luta contra a corrupção, Bolsonaro tem de explicar ao País de onde veio o dinheiro vivo com o qual ele e a família compraram 51 imóveis

Em 2018, Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo combater a corrupção. Agora, tenta a reeleição com a mesma tática. Coloca-se como o candidato antipetista, cuja missão é impedir a volta da corrupção do PT. De fato, o partido de Lula da Silva tem muito a explicar ao País e, principalmente, a dizer sobre o que fará de diferente para não acontecer de novo tudo o que se viu nas gestões petistas. No entanto, enquanto não esclarecer as muitas questões obscuras envolvendo o patrimônio e as finanças de sua família, Bolsonaro não tem moral para cobrar transparência ou lisura de Lula. É literalmente o roto falando do esfarrapado.

No debate na Band, Bolsonaro chamou Lula de ex-presidiário. O líder petista esteve preso em razão de uma condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do triplex do Guarujá. Lula foi solto depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar que o juiz da primeira instância Sérgio Moro, além de ter atuado de forma parcial no caso, era incompetente para julgar a causa. Encaminhado depois à Justiça Federal de Brasília, o processo foi arquivado em razão do decurso do prazo prescricional.

Ou seja, os benefícios de uma empreiteira, entregues na modalidade de reforma de um imóvel na praia e reconhecidos numa delação, suscitaram a prisão de Lula, prisão esta que Bolsonaro faz questão de relembrar na campanha eleitoral. A ironia – ou a incrível desfaçatez – é que Jair Bolsonaro e sua família não têm problemas apenas com um único imóvel na praia. Levantamento realizado pelo site UOL, a partir de dados públicos, revelou que, desde os anos 90, o presidente, seus irmãos e seus filhos negociaram nada menos que 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante pago em dinheiro vivo equivale a R$ 25,6 milhões.

Não é crime comprar imóveis usando dinheiro vivo, mas é muito estranho esse peculiar padrão de comportamento ao longo de tanto tempo, envolvendo quantias tão grandes. Além disso, há duas circunstâncias agravantes. Durante o período, Jair Bolsonaro sempre ocupou cargos políticos, recebendo seu salário em conta bancária. A princípio, não havia por que movimentar tanto dinheiro vivo.

Em segundo lugar, existem fundadas suspeitas de que, nos gabinetes parlamentares de Jair Bolsonaro e de seus filhos, foi corrente a prática da “rachadinha”, um sistema de apropriação pelo parlamentar dos salários de seus assessores. Revelado pelo Estadão, o assunto veio à tona depois das eleições de 2018, quando o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro investigava Flávio Bolsonaro por condutas suspeitas em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Um dos principais investigados era Fabrício Queiroz, amigo de Jair Bolsonaro e homem de confiança da família. Em 2020, Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Depois de muitas idas e vindas processuais – o filho mais velho do presidente obteve o foro privilegiado no caso –, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a denúncia.

Ao longo desses anos, as suspeitas de rachadinha e lavagem de dinheiro envolvendo a família Bolsonaro só ganharam novos indícios, em especial dois fatos: os cheques de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro e a movimentação atípica de dinheiro vivo na loja de chocolate de Flávio no Rio de Janeiro. No entanto, Jair Bolsonaro nunca explicou essas suspeitas. Sempre que questionado, respondeu agredindo, ironizando ou simplesmente encerrando a entrevista.

Não é possível que, neste ano, Jair Bolsonaro peça o voto do eleitor falando em combate à corrupção do PT sem antes explicar essa combinação de dinheiro vivo na compra de imóveis, movimentações bancárias suspeitas e indícios de rachadinha nos gabinetes parlamentares. Não basta imitar Lula e dizer que a Justiça encerrou o processo contra seu filho ou se dizer perseguido pela imprensa que o questiona. É preciso explicar de onde veio tanto dinheiro vivo para comprar os numerosos imóveis da família.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31.08.22

Patrimonialismo eleitoral

Financiamento público aos partidos drena recursos de políticas públicas e degrada a representação democrática

Historicamente, as eleições no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Agora, conforme apurou o Estadão, os gastos em 2022 devem igualar ou até ultrapassar os de 2014, a disputa mais cara até então, com uma diferença: em 2014 a maior parte foi bancada por empresas; agora, será com dinheiro público.

A boa notícia, por sinalizar o engajamento dos cidadãos, é que as doações de pessoas físicas devem atingir um recorde. A péssima notícia é que os R$ 165 milhões arrecadados nos dez primeiros dias de campanha, que durará 45, são só uma fração irrisória dos R$ 6 bilhões em recursos públicos dos Fundos Eleitoral e Partidário.

Partidos políticos são entidades privadas, que devem ser sustentadas com dinheiro privado doado por seus simpatizantes.

Nos últimos anos houve avanços. Em 2015, a Suprema Corte proibiu a doação de empresas, que, afinal, não votam nem têm direitos políticos. A vinculação das campanhas aos interesses empresariais era uma distorção do processo político e abriu margem a casos vultosos de corrupção.

Mas não se corrige uma distorção com outra. Como mecanismo provisório, até que os partidos reorganizassem seu financiamento, o Fundo Eleitoral, criado em 2017, até poderia ser defensável. Mas desde então ele saltou de R$ 1,7 bilhão, em 2018, para quase R$ 5 bilhões, em 2022. Some-se a isso a escalada do Fundo Partidário, que, entre 1995 e 2018, descontada a inflação, cresceu 9.766%. 

Enquanto o financiamento aos partidos cresce, os investimentos em saúde, educação ou infraestrutura se contraem. Mas, mais do que drenar recursos do Tesouro, o financiamento aos partidos empobrece a representatividade democrática. A subvenção é injusta, por obrigar os cidadãos a custear legendas com as quais não raro discordam, e é corrosiva, por habituar os políticos a aliciar eleitores nas eleições e, depois, lhes darem as costas, entregando-se a administrar feudos controlados por poucos caciques.

Segundo a Transparência Partidária, entre 2008 e 2018, o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de ínfimos 24%. Não surpreende que o número de filiados esteja em queda.

Para piorar, como disse o diretor da Transparência Brasil, Manoel Galdino, “o Fundo Eleitoral ficou maior sem aumentar a transparência e a fiscalização”, ampliando a margem para candidaturas “laranjas”, gastos fictícios e enriquecimento ilícito.

Tudo isso contribui para a quantidade aberrante de legendas amorfas, que atuam exclusivamente como um balcão de negócios. A credibilidade dos partidos e do Legislativo entre a população diminui, abrindo margem a aventureiros populistas.

É difícil imaginar um mecanismo mais apto a perpetuar a crise de representatividade, que só se aprofundou desde 2013, do que o financiamento público aos partidos. O seu fim é crucial para que as legendas se obriguem a criar conteúdos programáticos aptos a cativar os corações e mentes dos cidadãos. Se, ao contrário, ele continuar a crescer, a distância entre os eleitores e os representantes eleitos também aumentará.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31.08.22

Família Bolsonaro compra imóvel com dinheiro vivo, mas não tem prática de guardar valores em casa

Declarações de bens e renda da família Bolsonaro entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que o presidente e seus filhos não têm o costume de guardar dinheiro vivo em casa. 

De 1998 até as eleições deste ano, apenas o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) informou à Corte ter guardado R$ 20 mil em espécie por ao menos oito anos.

A postura informada pela família ao TSE é diferente daquela adotada para fazer negócios imobiliários. Como revelou o portal UOL, o presidente Jair Bolsonaro (PL), duas ex-mulheres - Rogéria e Ana Cristina - e os três filhos mais velhos compraram 51 casas, apartamentos, salas comerciais e lotes de R$ 18,9 milhões, em valores corrigidos, com dinheiro vivo.

‘Qual é o problema?’ pergunta Bolsonaro sobre compra de imóveis com dinheiro ‘vivo’

O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da Republica Jair Bolsonaro, declarou ter R$ 20 mil em espécie guardados em casa  Foto: Dida Sampaio/Estadão

O TSE registra o patrimônio de candidatos a cada eleição. O Estadão identificou que Jair Bolsonaro e seus filhos Flávio e Eduardo nunca informaram ter dinheiro vivo em casa. A ex-mulher do presidente, Rogéria Bolsonaro, se candidatou a vereadora em 2020 e no ano 2000. Também não declarou valores em espécie à Corte Eleitoral.

Carlos Bolsonaro informou ter R$ 20 mil em espécie nas eleições de 2012, 2016 e 2020, quando concorreu ao cargo de vereador no Rio. Nas quatro declarações aparece: “Dinheiro em espécie guardado em casa”.

Na terça-feira, 30, após ser questionado sobre a compra de imóveis com dinheiro vivo, Bolsonaro minimizou: “Qual é o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel, eu não sei o que está escrito na matéria... Qual é o problema?”, afirmou. O presidente e candidato à reeleição pelo PL também frisou que não se importaria com possíveis investigações. “Então tudo bem. Investiga, meu Deus do céu.”

Fazer pagamentos com dinheiro vivo ou andar com valores em espécie não é proibido no Brasil. Existem, no entanto, iniciativas para coibir a prática, muitas vezes usada para lavagem de dinheiro. Em agosto no ano passado, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a proposta para proibir transações com dinheiro em espécie em quatro formas distintas: operações acima de R$ 10 mil, pagamento de boletos acima de R$ 5 mil reais; circulação acima de R$ 100 mil (ressalvado o transporte por empresas de valores), e posse acima de R$ 300 mil, salvo em situações específicas. Até agora, porém, o presidente da comissão, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não nomeou um senador para ser o relator.

Rachadinha

As compras de 25 dos imóveis viraram objeto de investigações do Ministério Público do Rio e do Distrito Federal, de acordo com a apuração do UOL. Esse numero abrange aquisições e vendas dos filhos e das ex-mulheres do presidente - não necessariamente com dinheiro vivo.

Entre as apurações abertas está o caso das rachadinhas (desvio de salário de assessores) do senador Flávio Bolsonaro. Em maio, o Tribunal de Justiça do Rio aceitou o pedido do Ministério Público e rejeitou a denúncia por peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro oferecida contra ele. No entanto, com a decisão, o MP diz que poderá recomeçar as investigações, com a coleta de novas provas, com base no primeiro relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Esse documento apontou movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em uma conta no nome de um ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. A movimentação atípica que deu origem à investigação sobre as rachadinhas foi revelada pelo Estadão.

Como também mostrou o Estadão, em março do ano passado, transações com imóveis foram alvos privilegiados do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) nas investigações envolvendo o parlamentar. Promotores suspeitavam que o filho Zero Um do presidente usava transações imobiliárias para lavar dinheiro ilegal repassado pelos funcionários “fantasmas”.

Julia Affonso para o Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 31.08.22

Morre Mikhail Gorbachev: 5 razões pelas quais a União Soviética entrou em colapso

Mikhail Gorbachev morreu nesta terça-feira (30/08), aos 91 anos, em Moscou. O russo foi o último líder da União Soviética (URSS) antes de sua dissolução.

A União Soviética chegou ao fim em dezembro de 1991

Gorbachev renunciou formalmente ao cargo de liderança da URSS em 25 de dezembro de 1991. No dia seguinte, em 26 de dezembro, o Parlamento do país — o Soviete Supremo — reconheceu formalmente a independência de 15 novos Estados, encerrando assim a existência da União Soviética.

Ele havia chegado ao poder em 1985, aos 54 anos. Iniciou uma série de reformas para dar um novo fôlego ao país, que estava estagnado.

Muitos argumentam que essas reformas, conhecidas como Perestroika (reconstrução e reestruturação) e Glasnost (abertura e liberdade de expressão), provocaram o fim do bloco soviético. Outros dizem que não havia salvação para a União Soviética, dada sua estrutura rígida.

Neste texto, a BBC examina as razões subjacentes a um colapso que teve efeitos profundos sobre como a Rússia hoje enxerga a si mesma e interage com o resto do mundo.

Nos últimos anos da União Soviética, as necessidades básicas eram escassas e as filas nas lojas eram comuns (Getty Images)

1. Economia

Uma economia em colapso era o maior de todos os problemas da União Soviética. O país tinha uma economia planificada, ao contrário da economia de mercado da maioria dos outros países.

Na URSS, o Estado decidia quanto iria produzir em cada setor (quantos carros ou pares de sapatos ou pães, por exemplo).

Também decidia o quanto desses produtos cada cidadão precisava, quanto tudo deveria custar e quanto deveria ser pago às pessoas.

A teoria era que esse sistema seria eficiente e justo, mas na realidade ele teve dificuldades para funcionar.

A oferta sempre ficou atrás da demanda, e o dinheiro não rendia na mão da população.

Muitas pessoas na União Soviética não eram exatamente pobres, mas simplesmente não conseguiam comprar itens básicos porque nunca havia dinheiro suficiente.

Para comprar um carro, era preciso ficar anos na lista de espera. Para comprar um casaco ou um par de botas de inverno, muitas vezes era preciso ficar por horas na frente das lojas.

Na União Soviética, as pessoas não falavam em comprar algo (kupit), mas em conseguir (dostat).

O que piorou a situação foram os gastos com a exploração espacial e a corrida armamentista entre a União Soviética e os Estados Unidos, que começou no final dos anos 1950.

A URSS foi o primeiro país do mundo a colocar um homem em órbita e possuía um arsenal de armas nucleares e mísseis balísticos altamente avançados, mas produzir tudo isso custou muito caro ao país.

A União Soviética dependia de seus recursos naturais, como petróleo e gás, para pagar por essa corrida, mas, no início da década de 1980, os preços do petróleo despencaram, atingindo duramente a economia já debilitada do bloco.

A política da Perestroika de Gorbachev introduziu alguns princípios de mercado, mas a gigantesca economia soviética era pesada demais para ser reformada rapidamente.

Os bens de consumo permaneceram escassos, e a inflação disparou.

Em 1990, as autoridades introduziram uma reforma monetária que eliminou as poupanças, por mais parcas que fossem, de milhões de pessoas.

A frustração com o governo cresceu.

Por que isso importa hoje?

A escassez de bens de consumo teve um efeito duradouro no pensamento da população depois da queda do bloco soviético.

Mesmo agora — uma geração depois —, o medo de ficar sem produtos básicos ainda persiste.

Esse é um temor poderoso que pode ser facilmente manipulado durante as campanhas eleitorais.

Mikhail Gorbachev foi muito festejado internacionalmente, mas tornou-se impopular em casa (Getty Images)

2. Ideologia

A política de Glasnost de Gorbachev visava permitir maior liberdade de expressão em um país que passou décadas sob um regime opressor, onde as pessoas tinham muito medo de dizer o que pensavam, fazer perguntas ou reclamar.

Gorbachev começou a abrir arquivos históricos que mostravam a verdadeira escala da repressão sob Joseph Stalin (líder soviético entre 1924 e 1953), que resultou na morte de milhões de pessoas.

Ele encorajou um debate sobre o futuro da União Soviética e suas estruturas de poder, sobre como elas deveriam ser reformadas para seguir em frente.

O político até contemplou a ideia de um sistema multipartidário, desafiando o domínio do Partido Comunista.

Em vez de apenas ajustar a ideia soviética, essas revelações levaram muitos na URSS a acreditar que o sistema governado pelo Partido Comunista — onde todos os funcionários do governo eram nomeados ou eleitos por meio de eleições não contestadas — era ineficaz, repressivo e aberto à corrupção.

O governo de Gorbachev tentou apressadamente introduzir alguns elementos de liberdade e justiça no processo eleitoral, mas era tarde demais.

Por que isso importa hoje?

O atual presidente da Rússia, Vladimir Putin, percebeu desde cedo a importância da ideia de uma nação forte, especialmente para um governo que não é totalmente transparente e democrático.

Ele utilizou um ideário de várias épocas do passado russo e soviético para promover um sentimento nacional de reverência ao seu governo: a riqueza e o glamour da Rússia Imperial, o heroísmo e o sacrifício da vitória na Segunda Guerra Mundial sob Stalin e a calma estabilidade dos anos 1970. A era soviética é ecleticamente misturada para inspirar orgulho e patriotismo, deixando em segundo plano os numerosos problemas da Rússia atual.

Sentimento nacionalista cresceu em toda União Soviética à medida que pessoas nas repúblicas fora da Rússia, como Ucrânia, descobriram sobre opressões do passado (Getty Images)

3. Nacionalismo

A União Soviética era um estado multinacional, sucessor do Império Russo.

Consistia em 15 repúblicas, cada uma teoricamente igual em seus direitos como nações irmãs.

Na realidade, a Rússia era de longe a maior e mais poderosa, e a língua e a cultura russas dominavam muitas áreas.

A Glasnost alertou muitas pessoas em outras repúblicas sobre a opressão étnica do passado, incluindo a fome ucraniana na década de 1930, a aquisição dos Estados Bálticos e da Ucrânia ocidental sob o pacto de amizade entre nazistas e soviéticos, além das deportações forçadas de vários grupos étnicos durante a Segunda Guerra Mundial.

Esses e muitos outros eventos trouxeram um surto de nacionalismo e demandas por libertação do bloco.

A ideia da União Soviética como uma família feliz de nações foi fatalmente minada e as tentativas precipitadas de reformá-la, oferecendo mais autonomia às repúblicas, foram vistas como atrasadas.

Por que isso importa hoje?

A tensão entre a Rússia, lutando para manter seu papel central e esfera de influência, e muitos países que faziam parte do bloco socialista permanece.

As relações tensas entre Moscou e os Estados Bálticos, a Geórgia e, mais recentemente, a Ucrânia (com trágicas consequências), continuam a moldar a paisagem geopolítica da Europa.

Mikhail Gorbachev, retratado aqui com o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1985, costumava ser creditado pelo fim da Guerra Fria (Getty Images)

4. Perdendo corações e mentes

Durante anos, o povo soviético foi informado de que o Ocidente estava "apodrecendo" e seu povo estava sofrendo com a pobreza e degradação sob governos capitalistas.

Essa ideia foi cada vez mais questionada a partir do final dos anos 1980, quando as viagens ao exterior e o contato direto com estrangeiros aumentaram.

Os cidadãos soviéticos puderam ver que em muitos outros países havia um padrão de vida melhor, mais liberdade individual e estado de bem-estar.

A população também conseguiu ver o que suas autoridades tentaram esconder durante anos, com a proibição de viagens internacionais, de estações de rádio estrangeiras (como o Serviço Mundial da BBC) e qualquer literatura e filmes estrangeiros.

Gorbachev foi creditado por encerrar a Guerra Fria e impedir a ameaça de um confronto nuclear ao melhorar as relações com o Ocidente, mas um resultado não intencional dessa estratégia foi que o povo soviético percebeu como a vida no país era precária em comparação com outros lugares.

Gorbachev tornou-se cada vez mais popular no exterior, enquanto enfrentava cada vez mais críticas em casa.

Por que isso é importante hoje?

O governo russo se tornou adepto da manipulação de informações divulgadas pela mídia em seu benefício.

Para evitar comparações desfavoráveis ​​com o resto do mundo, a Rússia é frequentemente apresentada como uma nação única, cultural e historicamente — uma espécie de "guerreiro solitário, cercado por malfeitores".

Realizações científicas, vitória na Segunda Guerra Mundial e herança cultural são continuamente usados ​​em narrativas da mídia para transmitir uma mensagem de excepcionalismo nacional e desviar a atenção dos problemas diários.

Mikhail Gorbachev, visto aqui levantando uma taça em 26 de dezembro de 1991 em sua festa de despedida, era um líder enérgico, mas indeciso (Getty Images)

5. Liderança

Gorbachev sabia que uma mudança radical era necessária para impedir uma maior deterioração da economia soviética e da moral pública, mas sua visão de como conseguir isso talvez carecesse de clareza.

Com o fim da Guerra Fria, ele se tornou um herói para o mundo exterior, mas em casa foi criticado por reformadores que achavam que ele não estava tomando a iniciativa. Também virou alvo de conservadores que o acusavam de ir longe demais.

Como resultado, ele perdeu ambos os campos.

Os conservadores lançaram um golpe de Estado fracassado em agosto de 1991 para tentar remover Gorbachev do poder.

Em vez de salvar a URSS, a tentativa malfadada precipitou seu fim. Menos de três dias depois, os líderes do golpe tentaram fugir do país, e Gorbachev voltou ao poder, mas por um breve período.

Boris Yeltsin na Rússia e líderes locais no restante da URSS vieram à baila.

Nos meses seguintes, muitas das repúblicas realizaram seus referendos de independência e, em dezembro, o destino final da URSS foi selado.

Por que isso é importante hoje?

Vladimir Putin é um dos governantes mais antigos da Rússia.

Um dos segredos de sua longevidade é colocar o país em primeiro lugar, ou pelo menos parecer fazê-lo.

Enquanto Mikhail Gorbachev foi criticado por desistir unilateralmente de muitas das posições de força duramente conquistadas pela União Soviética, como a retirada às pressas das tropas soviéticas da Alemanha Oriental, Vladimir Putin luta com unhas e dentes pelo que acredita serem interesses russos.

Putin havia sido oficial da KGB (serviço secreto soviético) na Alemanha Oriental quando o Muro de Berlim caiu, em 1989, e testemunhou em primeira mão o caos da retirada soviética.

Trinta anos depois, ele se opõe categoricamente à aproximação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), como demonstra a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022 e a decorrente guerra.

Kateryna Khinkulova e Olga Ivshina, da BBC Rússia, em 30.08.22 (Esta reportagem foi originalmente publicada pela BBC News Brasil em 26 de dezembro de 2021 e atualizada em 30 de agosto de 2022)

Transplante fecal é recomendado no Reino Unido para tratar infecções intestinais

O Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados (Nice, na sigla em inglês) do Reino Unido acaba de recomendar o transplante de fezes como tratamento contra infecções intestinais.

A bactéria Clostridium difficile costuma resistir aos antibióticos disponíveis (Getty Images)

Por ora, o método está indicado para quem teve dois ou mais quadros provocados pela bactéria Clostridium difficile, um micro-organismo que não é facilmente derrotado pelos antibióticos disponíveis atualmente.

Essa bactéria também pode causar uma infecção quando ocorre um desequilíbrio da microbiota intestinal — o conjunto de seres microscópicos que habitam o sistema digestivo e são muito importantes para nossa saúde.

E um dos fatores que gera esse desbalanço intestinal vantajoso para a C. difficile é justamente o uso de antibióticos.

Em resumo, o transplante fecal consiste em transferir para o organismo de um paciente as bactérias intestinais "do bem" que são encontradas nas fezes de um doador saudável.

O transplante pode acontecer por meio de uma endoscopia (em que os equipamentos e a amostra bacteriana são introduzidos pelo nariz ou pela boca), pela colonoscopia (quando o processo se inicia pelo ânus) ou por meio de pílulas preparadas em laboratório.

Ensaios clínicos publicados nos últimos anos mostram que essa terapia contra a C. difficile é mais eficaz e barata em comparação com os antibióticos, aos quais essa "superbactéria" pode se tornar resistente.

Por ora, o transplante fecal ainda é encarado como um método experimental no Brasil, usado apenas quando as outras opções terapêuticas não funcionaram como o esperado.

Sintomas comuns de uma infecção causada pelo C. difficile

Diarreia

Febre

Perda de apetite

Náusea

Dor de estômago

O Nice estima que entre 450 e 500 pessoas poderiam receber os transplantes fecais na Inglaterra, economizando milhares de libras ao reduzir a prescrição de antibióticos.

Um estudo feito em 2018 no Brasil estimou que, nas regiões Sul e Sudeste, são detectados por dia três casos de infecção por C. difficile a cada mil pacientes hospitalizados.

Mark Chapman, diretor de tecnologia médica do Nice, disse que "o uso deste tratamento também ajudará a reduzir a dependência de antibióticos".

"E isso, por sua vez, permite diminuir os riscos de resistência antimicrobiana", declarou.

Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62736711, em 31.08.22

terça-feira, 30 de agosto de 2022

O primeiro debate, segundo Tom Cavalcanti

Como diziam os antigos romanos, ridendo castigat mores. O Millor traduziu propositadamente assim: é rindo que se castiga os mouros.

Gorbachev, último presidente da União Soviética, morre aos 91 anos


O pai da 'perestroika' morreu em Moscou após uma "doença longa e grave"

Mikhail Gorbachev em uma imagem de arquivo de 1984. (Bryn Colton, Getty Imagaes)

Mikhail Sergeyevich Gorbachev (Stavropol, 2 de março de 1931), o último líder soviético, morreu aos 91 anos. O primeiro e último presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e pai da perestroika morreu após "uma doença grave e prolongada", conforme confirmado pelo Hospital Clínico Central de Moscou. Gorbachev, que chegou ao poder como chefe da URSS em 1985, recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1990.

Gorbachev, que assumiu o poder à frente da URSS como secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética em 1985, empreendeu então duas enormes reformas, glástnost (transparência, em russo) e perestroika (reestruturação) com o objetivo de acabar com a com a opacidade do regime soviético e a abertura da economia ao mercado, respectivamente. Por seu trabalho, ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1990.

Após a tentativa de golpe de agosto de 1991 , perpetrada pela liderança da KGB e do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), sua posição política foi bastante enfraquecida. Ele renunciou em dezembro daquele ano e dissolveu o comitê central. Um dia depois, em 25 de dezembro , a União Soviética deixou de existir.

Referência histórica do século 20, Gorbachev passou seus últimos anos de vida afastado por motivos de saúde. Segundo a agência de notícias Tass, ele foi hospitalizado no início da pandemia e permaneceu sob constante supervisão médica desde então. Fontes próximas à família informaram que ele será enterrado no cemitério Novodevichy, em Moscou, ao lado de sua esposa, Raisa Gorbachova, que morreu em 1999.

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 30.08.22, às 17h58


Um debate muito útil

O debate entre os candidatos a presidente escancarou a baixa estatura moral de Lula e Bolsonaro; felizmente, mostrou também que a eleição não se limita aos líderes nas pesquisas

O debate entre os candidatos a presidente na TV Band, na noite de anteontem, escancarou uma realidade há muito denunciada neste espaço: como são ruins os dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto.

De forma incontestável, o petista Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro foram os piores no primeiro embate na televisão. O País entendeu perfeitamente por que os dois precisam tanto do cercadinho da polarização: sem propostas para os problemas do País e sem respostas para as acusações que pesam contra ambos, Lula e Bolsonaro limitaram-se a mentir e trocar acusações. Graças a essa miséria, os demais candidatos, com destaque para Ciro Gomes e Simone Tebet, pareciam estadistas.

O debate demonstrou a exata dimensão de Lula e Bolsonaro nesta eleição. Eles podem ser bastante conhecidos e contar com o apoio das respectivas militâncias, mas na realidade têm se mostrado nanicos em ideias e campeões de desrespeito ao voto e à inteligência do eleitor.

Sobre sua trajetória penal, o candidato petista distorceu uma vez mais a realidade. Tendo deixado a prisão e se tornado elegível em razão de nulidades processuais causadas por erros do Ministério Público e da Justiça, postulou o reconhecimento de uma inocência que nunca houve. Lula disse ter sido inocentado até pela ONU. Faltou só citar o Tribunal do Santo Ofício. E tudo isso quando foi questionado sobre a inegável corrupção do PT e o rombo das estatais. 

É realmente assustador. Depois de tudo o que foi revelado, depois dos bilhões de reais desviados, Lula é incapaz de reconhecer o problema e de dizer o que fará de diferente para evitar, em um eventual futuro governo, a reedição dos escândalos de corrupção que marcaram para sempre as gestões petistas.

Ao longo do debate, viu-se que Lula não mudou nada. Não pediu desculpas ao País pelo desastre econômico causado pelo PT, tampouco pelo mensalão e pelo petrolão. Repetiu a cantilena petista de que é perseguido injustamente e de que Dilma Rousseff sofreu um golpe.

O País também viu que Jair Bolsonaro não mudou nada. Foi grosseiro com as mulheres, lavou as mãos sobre a articulação política de sua base que resultou no escandaloso orçamento secreto, deu desculpas esfarrapadas sobre a decretação de sigilo de 100 anos até para informações triviais de sua administração, não esclareceu as denúncias de corrupção envolvendo a compra da vacina Covaxin, negou o vergonhoso escândalo do Ministério da Educação e, no geral, reafirmou seu profundo desconhecimento sobre os problemas nacionais. Isso ficou particularmente claro no bloco final, concedido ao candidato para dizer o que pretende fazer se for eleito: quando tomou a palavra, usou-a para falar exclusivamente dos riscos representados pela esquerda na América Latina. A mensagem foi cristalina: o candidato à reeleição não tem rigorosamente nada a propor ao eleitor.

Apesar dessa miséria, o debate não foi em vão. Ficou evidente que há outros candidatos à Presidência da República sérios, com propostas e com experiência. É absolutamente falsa a ideia de que o eleitor neste ano terá de decidir apenas entre Lula e Bolsonaro. O voto não é uma escolha, sob coação, entre dois destinos infelizes. É um exercício consciente e maduro de liberdade.

Em meio ao tumulto protagonizado por Lula e Bolsonaro, Ciro Gomes, por exemplo, encontrou maneiras de expor suas ideias e, de quebra, mostrar as contradições do PT. O candidato do PDT deixou claro que a pretensão de hegemonia de Lula sobre todo o campo da esquerda é antidemocrática, ainda mais quando o PT não quer real debate de ideias e propostas: exige um cheque em branco do eleitor para seu demiurgo.

Outra candidata que se destacou foi Simone Tebet. A senadora do MDB enfrentou com altivez os arreganhos desrespeitosos de Bolsonaro e rebateu com segurança as fabulações de Lula, apresentando-se ao País como alternativa racional e pacífica.

Se o alarido do debate teve alguma utilidade, foi a de mostrar que o País, se quiser, pode deixar de ser prisioneiro do passado corrupto e incompetente do lulopetismo e do presente indecoroso e reacionário do bolsonarismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 30.08.22

Simone Tebet e Soraya Thronicke não ameaçam liderança de Lula e Bolsonaro, mas deixam ambos nervosos

As fragilidades dos favoritos reabrem a expectativa de uma terceira via, mas, a esta altura, Ciro Gomes se debate para se manter à tona

A candidata presidencial Simone Tebet durante participação do debate entre os candidatos na Band  Foto: André Penner/AP - 28/08/2022

A eleição presidencial ganhou ritmo e novos protagonistas, com Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil) subindo ao palco com Ciro Gomes (PDT) para disputar holofotes e a atenção e os votos de moderados, indecisos e arrependidos. O show não é mais exclusividade de Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

Debates e entrevistas tiram os candidatos favoritos da zona de conforto e desbotam as imagens coloridas e favoráveis de suas propagandas eleitorais, dando uma chance preciosa ao “segundo pelotão” das pesquisas: a de se tornarem conhecidos. A partir daí, depende deles.

Morna no Jornal Nacional da TV Globo, Simone Tebet esquentou no debate do pool liderado pelas TVs Bandeirantes e Cultura. Firme, contundente e corajosa, avisou para Bolsonaro que “não tem medo” dele e não caiu na lábia de Lula, chamado de “encantador de serpentes” por Ciro. Atacou a misoginia de um e a corrupção atribuída ao outro.

Numa dobradinha que não pareceu combinada, mas fazia sentido, Soraya Thronicke ilustrou as falas de Tebet com cores vivas, vibrantes, e ambas se tornaram a surpresa da noite, cresceram ao longo do debate e geraram frases marcantes. Tebet: “Candidato Bolsonaro, por que tanta raiva das mulheres?” Thronicke: “Tchutchuca com homens, tigrão com mulheres”.

Nada poderia ser pior para um candidato que precisa crescer e foca no eleitorado feminino e nos evangélicos e evangélicas. Um eleitor desses dois segmentos, se está em dúvida, não apenas recua da aproximação com Bolsonaro como pode desviar para Tebet. E Thronicke tem algo mais: é bolsonarista arrependida, fala a uma ampla faixa de eleitores que votaram no “mito”, mas se desiludiram.

O JN foi ruim para Bolsonaro e bom para Lula. O primeiro debate foi péssimo para ambos e deve ter consequência, dificultando o crescimento já lento e gradual de um e a vitória em primeiro turno do outro. As vísceras do governo Bolsonaro estão à mostra, o fantasma da corrupção volta com tudo para assombrar Lula.

A campanha bolsonarista acha que o chefe foi mal, mas Lula sofreu o maior dano. Por quê? Porque, na opinião dos assessores, Bolsonaro já apanha há anos por conta de pandemia e misoginia, mas nunca mais se falou da corrupção na era PT. Isso, segundo eles, volta com força e tira Lula do prumo nos debates.

As fragilidades dos favoritos reabrem a expectativa de uma terceira via, mas, a esta altura, Ciro se debate para se manter à tona e a dupla Tebet-Thronicke tem mais fôlego para bagunçar o coreto de Lula e Bolsonaro do que para chegar ao segundo turno. O que, aliás, não é pouco.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente em 30.08.22.

Chile convoca embaixador do Brasil após fala de Bolsonaro

Em debate, presidente acusou líder chileno de "tocar fogo em metrôs" durante os protestos de 2019. Governo em Santiago diz que declaração é gravíssima e afeta relação bilateral: "Desinformação corrói a democracia."

Ex-líder estudantil, Gabriel Boric assumiu a presidência do Chile em março (Foto: ORF)

O governo do Chile convocou nesta segunda-feira (29/08) o embaixador do Brasil em Santiago, Paulo Soares Pacheco, em protesto contra uma declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o líder chileno, Gabriel Boric, na véspera.

Durante o primeiro debate televisivo entre os candidatos à Presidência no domingo, Bolsonaro acusou Boric de incendiar metrôs durante os protestos de 2019 no Chile.

A fala veio durante as considerações finais do presidente no debate, que foi organizado pelo jornal Folha de S. Paulo, o portal UOL e as emissoras Bandeirantes e Cultura. Assim como seus adversários, Bolsonaro tinha dois minutos para fazer suas últimas declarações.

Em vez de promover suas propostas de governo, o candidato à reeleição usou o tempo para listar alguns líderes latino-americanos que teriam ligações com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas de intenção de voto ao Planalto.

"Quem o ex-presidiário apoiou no passado? Apoiou o [Hugo] Chávez, apoiou o [Nicolás] Maduro", disse Bolsonaro. "Lula apoiou o presidente do Chile também. O mesmo que praticava atos de tocar fogo em metrôs lá no Chile. Para onde está indo o nosso Chile?"

A declaração provocou repúdio no governo chileno, que negou as acusações contra Boric e enviou uma citação ao embaixador brasileiro, informou o jornal chileno La Tercera. Na diplomacia, convocar um embaixador para esclarecimentos é um jeito simbólico de demonstrar descontentamento.

"A desinformação corrói a democracia"

"Quero declarar diante das afirmações do presidente Bolsonaro do Brasil, ontem em um debate eleitoral, em que ele acusou diretamente o presidente Gabriel Boric de ter queimado o metrô: como governo, consideramos tais declarações gravíssimas, obviamente são absolutamente falsas", disse a ministra chilena das Relações Exteriores, Antonia Urrejola, citada pelo jornal.

Ela acrescentou que o governo em Santiago lamenta que, "em um contexto eleitoral, se aproveitem e polarizem as relações bilaterais através da desinformação e das notícias falsas".

"A desinformação e as notícias falsas corroem a democracia, mas também nesse caso corroem a relação bilateral. Estamos absolutamente convencidos de que essa não é a forma de fazer política", completou Urrejola.

Em comunicado à imprensa, o Ministério das Relações Exteriores do Chile disse ainda que as declarações de Bolsonaro "são inaceitáveis e não condizem com o tratamento respeitoso que se devem os chefes de Estado, nem com as relações fraternas entre dois países latino-americanos".

Apesar de tudo, a ministra ressaltou que "a relação com o Brasil, um povo irmão, com uma história comum, com desafios comuns, deve continuar se fortalecendo, e esperamos continuar enfrentando os desafios como povos irmãos que somos, para além dessas declarações".

Hostilidades de Bolsonaro

Segundo o La Tercera, a reação do governo chileno veio após conversas entre Urrejola e o presidente Boric a fim de encontrar uma saída que lhes permitisse confrontar as declarações de Bolsonaro, especialmente em meio à relação tensa entre os dois países desde a posse do chefe de Estado chileno, um ex-líder estudantil de esquerda, em março.

Segundo o governo do Chile, a hostilidade de Bolsonaro vai além de suas declarações polêmicas. Mais de cinco meses após Santiago ter indicado o nome de Sebastián Depolo para embaixador no Brasil, a proposta ainda não foi respondida pelo governo brasileiro. O gesto, segundo o La Tercera, foi interpretado a nível diplomático como uma recusa do líder brasileiro.

Assim, a mais recente acusação de Bolsonaro contra Boric foi considerada pelo governo chileno uma nova afronta ao país, e tanto a chanceler quanto o presidente entenderam que era preciso "elevar o tom" e dar um sinal mais concreto, escreveu o jornal.

Não é a primeira vez que Bolsonaro ataca o governo do Chile, usando o país como exemplo para criticar governos vizinhos de esquerda. Em 18 de agosto, durante um ato de campanha no interior de São Paulo, ele proferiu uma fala semelhante: "Olha para onde estão indo esses países. Olha o nosso Chile para onde está indo. Vocês querem isso para o Brasil?"

Publicado originalmente em https://www.dw.com/pt-br/chile-convoca-embaixador-do-brasil-ap%C3%B3s-fala-de-bolsonaro/a-62965319 / Deutsche Welle Brasil, em 29.08.22. ek (ots)

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Debate marca bom início de campanha para Simone Tebet; Bolsonaro perde a mão, e Lula falha

Campanha começa enfraquecendo o apelo para o voto útil no ex ou no atual presidente, dando condições para que os candidatos do pelotão de baixo comecem a subir nas pesquisas; entrevistas no Jornal Nacional e o inicio da propaganda eleitoral contribuem para isso.

A senadora Simone Tebet (MDB) participa do debate promovido na TV Bandeirantes (Band) em parceria com a TV Cultura, UOL e Folha; a emedebista se destacou na defesa das mulheres. Foto: Thiago Queiroz/Estadão

Bolsonaro e Lula fizeram suspense durante toda a semana sobre ir ou não ao debate deste domingo. Talvez tenham se arrependido depois de uma noite ruim. Sorte dos outros candidatos, especialmente Simone Tebet, que tiveram uma ótima chance de aparecer. Quem não tinha nada a perder foi justamente quem aproveitou melhor o debate.

Bolsonaro até começou bem, pressionando Lula sobre corrupção. Era uma bola cantada, mas Lula não bateu de volta com a mesma intensidade. Preferiu enfatizar os feitos de seu governo, e não mencionou acusações contra o atual presidente. Mas Bolsonaro perdeu a mão ao atacar a jornalista Vera Magalhães. Tentou consertar perguntando a Ciro Gomes sobre políticas para mulheres, e tudo que conseguiu foi manter o foco no tema que é seu calcanhar de Aquiles.

A senadora Simone Tebet (MDB) participa do debate promovido na TV Bandeirantes (Band) em parceria com a TV Cultura, UOL e Folha; a emedebista se destacou na defesa das mulheres. Foto: Thiago Queiroz/Estadão

Lula também não foi bem, por razões diferentes. Foi uma noite sem brilho, com respostas prontas e sem muita assertividade. Seu melhor momento, quando falou a Soraya Thronicke sobre a vida dos mais pobres nos anos de PT, veio muito tarde e passou rápido. Outros candidatos mostraram mais eloquência e aproveitaram melhor as oportunidades para confrontar Bolsonaro.

A campanha começa, portanto, enfraquecendo o apelo do voto útil em Lula e Bolsonaro, e dando condições para que os candidatos do pelotão de baixo comecem a subir nas pesquisas. Não apenas o debate, mas também as entrevistas do Jornal Nacional e o início da propaganda eleitoral contribuem para isso, ao apresentar candidatos desconhecidos ao eleitorado.

Embora Bolsonaro tenha ido mal, talvez o crescimento de Simone e Ciro se dê mais às custas de Lula do que do atual presidente porque o eleitorado de Bolsonaro parece mais firme. Nesse sentido, é possível que as pesquisas comecem a mostrar um estreitamento maior entre Lula e Bolsonaro no início de setembro.

Mas a campanha de Lula, apelando com força para a mensagem de combate à desigualdade e atenção aos mais pobres, continua bem posicionada. Por ora, um eventual crescimento de Simone e Ciro serviria apenas para diminuir a expectativa de decisão em primeiro turno, e não para mudar o quadro como um todo, em que Lula segue como favorito à vitória.

Silvio Cascione, o autor deste artigo, é Mestre em ciência política pela UNB e diretor da consultoria Eurasia Group. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.08.22