sábado, 25 de junho de 2022

Pesquisa Datafolha: Quase 30% dos eleitores admitem mudar voto para presidente até outubro

Índice dos eleitores que cogitam trocar de candidato chega a 34% entre as mulheres; pesquisa mostra que a maioria só conhece Lula, Bolsonaro e Ciro Gomes; 77% não sabem quem é Simone Tebet


Lula, Bolsonaro, Ciro, Simone, Janones e Bivar são seis dos principais pré-candidatos à Presidência em 2022. 

A mais recente pesquisa eleitoral divulgada pelo instituto Datafolha aponta que 70% dos brasileiros estão decididos sobre o voto para presidente no primeiro turno, marcado para 2 de outubro. Os demais, quase 30%, admitem trocar de candidato nestes cerca de cem dias que antecedem a eleição. Entre as mulheres, o índice de indecisos é de 34%. Já entre os homens, 24% afirmam que podem mudar o voto para o Palácio do Planalto.

Entre o eleitorado mais jovem, da faixa dos 16 aos 24 anos, chega a 39% o percentual dos afirmam que a escolha para o Planalto ainda pode mudar. O mesmo índice cai para 32% entre as pessoas de 25 a 34 anos; para 28% dos 35 aos 44 anos; para 25% dos 45 aos 49 e para 27% entre os brasileiros de 60 anos ou mais ouvidos pelo Datafolha.

Os primeiros dados da pesquisa, que no primeiro turno apontam vantagem de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de 19 pontos sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), com 47% a 28%, foram divulgados nesta quinta-feira, 23.

Agregador calcula cenário mais provável da corrida eleitoral com metodologia própria; gráfico mostra todas as pesquisas divulgadas nos últimos seis meses, inclusive a mais recente, do instituto Datafolha

Se considerada a renda familiar mensal dos eleitores consultados, o percentual de indecisos é de exatos 30% entre quem vive com até dois salários mínimos e também entre os que vivem com dois a cinco salários. E cai para 26% entre os eleitores com renda familiar de cinco salários ou mais, inclusive os que afirmam ter renda superior a 10 salários.

Desconhecimento dos pré-candidatos

Dos 2.556 brasileiros que responderam à pesquisa do Datafolha, 2% disseram não conhecer Lula. Já Bolsonaro é desconhecido para 4%. E Ciro Gomes (PDT), que está em terceiro lugar nos mais recentes levantamentos, não é conhecido por 14% dos entrevistados.

Os pré-candidatos que disputam a quarta colocação na preferência do eleitorado são desconhecidos da maioria, de acordo com a pesquisa. O índice dos que dizem não conhecer a senadora Simone Tebet (MDB-MS) é de 77%; o do deputado federal André Janones (Avante-MG) é de 75%; o do deputado federal Luciano Bivar (União Brasil-PE) é de 81%; e mesmo o nome do ex-ministro General Santos Cruz (Podemos) é desconhecido por 84%.

O ex-deputado José Maria Eymael (DC) é desconhecido por 67% dos consultados. Vera Lúcia (PSTU), que como Eymael já foi candidata ao Planalto, é desconhecida por 79%.

Luiz Felipe d’Ávila (Novo), Pablo Marçal (Pros), Leonardo Péricles (UP), e Sofia Manzano (PCB), que também integram a lista de pré-candidatos à Presidência, não são conhecidos por 81% a 93% dos brasileiros ouvidos pelo Datafolha. A pesquisa foi feita nos dias 22 e 23 de junho.

O Estado de S. Paulo, em 24.06.22

Uma oportunidade a mais

Candidatos como Tebet e Ciro cumprem papel fundamental: dão chance a que o debate se qualifique e o centro político se mostre mais progressista. Marco Aurélio Nogueira n'O Estado de S; Paulo hoje.

Há duas maneiras de avaliar a candidatura presidencial de Simone Tebet (MDB), apresentada semanas atrás por uma coligação entre seu partido, o PSDB e o Cidadania.

A primeira é negativa. Seus adversários são, em parte, ativistas de uma das duas candidaturas postas desde o ano passado, Lula e Bolsonaro, para quem o ideal é que não se mexa no quadro atual, que já estaria favoravelmente definido para eles. Outra parte é composta por céticos radicais, para quem Simone chegou tarde demais e não tem fôlego para competir com os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas eleitorais. É um ceticismo que se combina com a descrença no potencial de crescimento de Simone e com alguma dúvida sobre sua capacidade de pensar o País e propor soluções para o combate às suas mazelas.

Ao lado dessa rejeição, argumenta-se que Simone – assim como Ciro Gomes – impede que a eleição seja resolvida no primeiro turno, o que seria fundamental para a completa deslegitimação de Bolsonaro e a desmontagem de seus planos golpistas.

Nesse argumento, dorme um ceticismo pragmático, que não desmerece Simone, mas a vê como um fator de perturbação daquilo que é tido como estratégico: a derrota do autoritarismo. A ideia seria concentrar esforços para um desfecho logo na primeira rodada eleitoral, em outubro. Dado que o fundamental é derrotar o autoritarismo, não valeria a pena cogitar do fortalecimento de polos alternativos, que poderiam promover uma perigosa dispersão de votos e reforçar o polo bolsonarista, como aconteceu em 2018.

Esse ceticismo pragmático tem uma lógica respeitável, deve ser considerado com atenção. Afinal, não temos hoje uma disputa eleitoral simples, na qual o representante do autoritarismo esteja preliminarmente derrotado, tantos são os desacertos e os crimes cometidos por seu governo. Uma caneta na mão pode muito. E o perigo mora atrás da porta. Não devemos perder de vista o que há de risco de ruptura democrática no País. A candidatura Lula-Alckmin precisa ganhar mais musculatura, e Bolsonaro precisa continuar a ser constrangido a partir de múltiplas frentes.

Numa disputa polarizada como a que se desenha em 2022, a tendência é de uma forte magnetização dos polos, que tenderiam não só a atrair o eleitorado, como, sobretudo, a pautar o debate eleitoral, fazendo-o se concentrar na destruição recíproca dos adversários, mediante a utilização intensiva de recursos de marketing, ataques, denúncias e acusações do pior tipo. A dinâmica da disputa leva os polos a se agarrarem no contraste entre eles, fechando-se para temas substantivos. A decorrência é que não haveria debate político, ou ele ficaria dramaticamente empobrecido, com o que a incerteza sobre o futuro se ampliaria. Como e com quem governará o vitorioso? Que Brasil ele carrega no peito e na cabeça? O que promete fazer para reerguer o País? Suas promessas são factíveis, realistas, viáveis? Com qual programa econômico e com quais políticas públicas enfrentará os problemas nacionais? Como projetará o lugar do Brasil no sistema internacional?

Sem uma discussão eleitoral consistente e de qualidade, tudo ficará no campo das incógnitas. Nada saberemos sobre política econômica, reforma social, política, cultural, educacional, sanitária. O que mais se necessita em disputas polarizadas é de vozes alternativas, que furem os bloqueios derivados da polarização e forcem os polos a se posicionarem.

Candidatos como Simone Tebet e Ciro Gomes – cada qual a seu modo – cumprem um papel fundamental: representam uma oportunidade a mais para que o debate público se qualifique e o centro político se mostre mais progressista.

Isso não significa, evidentemente, que Simone e Ciro conseguirão crescer vitoriosamente. Ambos têm problemas de afirmação. Ciro é conhecido pelo destempero, Simone tem o tempo como adversário. Ciro está mais adiantado na formulação programática, Simone ainda não apresentou propostas consistentes. Terá de trabalhar dobrado para conquistar terreno.

A seu favor, Simone conta com baixa rejeição e com uma imagem positiva como parlamentar, ativa integrante da bancada feminina e da CPI da pandemia. Nas entrevistas que vem concedendo desde a sua indicação, demonstra conhecer o País e deixa claro que sabe discutir temas complexos com serenidade e tolerância, sem ocultar a indignação com a fome, a miséria, a exclusão, o desmatamento, o maltrato aos indígenas, o descaso governamental. Passa a impressão de que dispõe de garra, coragem e energia para olhar nos olhos do Brasil profundo, decifrá-lo e ajudar a reconstruí-lo. Pode não bastar para fazê-la crescer, mas é um trunfo e tanto. Se conseguir, por exemplo, deslocar Bolsonaro e passar para o segundo turno, a democracia ganhará alento.

Ainda temos cem longos dias pela frente antes de outubro. É um tempo estreito quando está em marcha uma dinâmica eleitoral com forte viés de cristalização. Mas hoje, no mundo complexo e acelerado em que vivemos, o tempo já não se dobra aos ponteiros do relógio, escapa deles e sempre se abre para surpresas desconcertantes.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor Titular de Teoria Política na Universidade Estadual de São Paulo / UNESP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.06.22


As afinidades entre PT e Centrão

Ataque à Lei das Estatais, que impede o loteamento político de cargos, une partidos que, embora estejam em lados ideológicos opostos, se identificam na hostilidade à boa governança

A deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, subiu à tribuna da Câmara para atacar a Lei das Estatais justamente naquilo que a torna fundamental para a moralidade pública e a boa governança: o veto à nomeação de políticos para a direção dessas empresas. Não por acaso, a causa de Gleisi é a mesma do Centrão, também ansioso por restaurar a possibilidade de lotear cargos nas estatais – em particular na Petrobras.

O PT, na imortal definição de Anthony Garotinho, é o “partido da boquinha”, característica que, malgrado as diferenças ideológicas aparentes, o torna tão parecido com os partidos do Centrão, desde sempre movido por sinecuras e prebendas. A diferença é que os petistas avançam sobre cargos para aparelhar o Estado e fazê-lo trabalhar para seu projeto de poder, enquanto o Centrão se contenta com o acesso a benesses pecuniárias e eleitorais. Para o País, não faz diferença: em ambos os casos, dilapida-se a administração pública em favor de interesses particulares.

O alvo preferencial do PT e do Centrão é obviamente a Petrobras, tratada, tanto por Lula da Silva quanto pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, como o demônio. Essa turma não gostou nem um pouco da Lei das Estatais porque esta estabeleceu que a Petrobras deveria ser administrada por profissionais do ramo do petróleo, e não do ramo da pilhagem.

Em seu discurso na Câmara, Gleisi Hoffmann disse, ora vejam, que a Lei das Estatais “criminaliza a política”. Ora, não foi a Lei das Estatais que criminalizou a política, e sim os partidos que tomaram a Petrobras de assalto durante o mandarinato lulopetista. A Lei das Estatais é justamente uma resposta civilizada à barbárie do petrolão e do descarado uso político da Petrobras para fins eleitorais, que quase arruinaram a empresa.

O alvo do PT e do Centrão são os artigos 16 e 17 da Lei 13.303/2016. O artigo 17 exige experiência profissional de executivos e veda a ocupação de cargos por ministros, dirigentes partidários, sindicalistas e detentores de mandato no Legislativo, além de pessoas com conflito de interesses. Para o PT, impor parâmetros mínimos para a escolha de diretores e conselheiros de estatais é uma atitude discriminatória – mesmo depois que anos de administrações petistas levaram a Petrobras a reconhecer uma baixa contábil de R$ 6,2 bilhões por corrupção e a consumir R$ 100 bilhões segurando reajustes de combustíveis.

O artigo 16, por sua vez, sujeitou o administrador de empresas públicas às normas de governança do setor privado. Ao incorporá-lo ao estatuto, a Petrobras deixou explícito que membros do Conselho de Administração e da diretoria respondem, individual e solidariamente, pelos atos que praticarem e pelos prejuízos que deles decorrerem. Isso significa que os executivos podem ter de pagar o custo de uma gestão temerária com o próprio bolso. Não por acaso, tornou-se um dos dispositivos mais eficazes para impedir o saque das estatais: é muito fácil torrar dinheiro dos outros quando há garantia de impunidade. Por esse motivo, os três últimos presidentes da Petrobras escolhidos por Jair Bolsonaro, quando pressionados a adotarem uma política intervencionista em nome de sua reeleição, preferiram a demissão.

A Lei das Estatais é um marco na história do País. Representou o resgate da moralidade das empresas públicas e trouxe resultados inegáveis – 2015 foi o último ano em que o conjunto de estatais federais registrou prejuízo. Empresas lucrativas geram impostos que podem ser usados para melhorar a vida da população, aumentar investimentos e impulsionar o crescimento. Companhias mal administradas, ao contrário, disputam o escasso espaço fiscal do Orçamento por aportes para sobreviver. A realidade dos fatos, porém, não importa para quem só pensa em arrumar um discurso eleitoral minimamente convincente, como Bolsonaro; para quem quer lotear o aparato do Estado entre os amigos, como o PT; ou para quem só pensa em garantir nacos de poder independentemente de quem esteja na Presidência a partir de 2023, como o Centrão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.06.22

A despudorada ‘bolsa-eleição’

Com o improviso irresponsável de sempre, Bolsonaro se dispõe a driblar as leis eleitorais e os limites fiscais, torrando bilhões de que não dispõe, na esperança de somar pontos nas pesquisas

No desespero para tirar sua candidatura da estagnação, o presidente Jair Bolsonaro está disposto a torrar bilhões do Orçamento e driblar regras eleitorais e limites fiscais para impulsionar sua campanha. Sem qualquer estudo prévio, de olho apenas nas pesquisas e a menos de 100 dias da disputa presidencial, o Executivo pretende aumentar o valor mínimo do Auxílio Brasil dos atuais R$ 400 para R$ 600, dobrar o Auxílio-Gás, hoje em R$ 53, e criar um vale de mil reais mensais para caminhoneiros autônomos. Ainda não há cálculo sobre o custo das medidas, mas as primeiras estimativas apontam para R$ 50 bilhões até o fim deste ano.

Tudo se dará por meio de mais uma alteração na Constituição. Para tentar reduzir – sem sucesso – os preços dos combustíveis, o governo havia conseguido impor uma perda de mais de R$ 100 bilhões aos Estados, ao fixar, sem compensação, um teto de 17% a 18% para o ICMS de bens essenciais. Não satisfeito, apostou em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para indenizar, com quase R$ 30 bilhões, aqueles Estados que aceitassem reduzir a zero o ICMS sobre o diesel e o gás de cozinha. É bem provável que o Executivo finalmente tenha se dado conta de que nenhum governador aceitaria saltar nesse abismo; assim, encontrou outro fim para um dinheiro que não tem.

Com a fome atingindo milhões de pessoas e o avanço implacável da inflação – o IPCA-15 acumula alta de 12,04% em 12 meses até junho –, evidentemente é papel do governo ajudar as famílias mais vulneráveis a sobreviver. A questão é a forma como isso deve ser feito, e Bolsonaro não poderia ter escolhido caminho pior. Devastando as bases do Bolsa Família e eliminando todas as suas contrapartidas, como a exigência de presença escolar e o cumprimento do calendário vacinal, o Executivo colocou em seu lugar um programa de viés eleitoral e que trata desiguais da mesma forma, o oposto do que preconizam as melhores políticas públicas. Sua malfadada cria, o Auxílio Brasil, desconsidera a quantidade e a idade dos filhos e incentiva que pessoas que dividem a mesma casa se cadastrem como se morassem separadas para receber R$ 800.

Insistindo na existência de “invisíveis”, o governo optou por jogar no lixo todo o legado de 21 anos de dados do Cadastro Único para Programas Sociais, mas nem assim conseguiu zerar a fila de beneficiários à espera de serem contemplados – já são 2,78 milhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E para criar o voucher para caminhoneiros e não ser vítima das mesmas greves que irresponsavelmente incentivou em 2018, Bolsonaro está disposto a atropelar o teto de gastos e todas as restrições da Lei das Eleições, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias. E, se preciso for, usará a guerra na Ucrânia como desculpa esfarrapada para lançar mão de um decreto para declarar estado de emergência ou de calamidade.

Nem se disfarça mais que tudo se pauta pelo horizonte de outubro. Todas as benesses terão validade até dezembro, deixando claro que se trata não de uma política séria, mas de uma descarada exploração política dos brasileiros mais necessitados. Na mais recente pesquisa Datafolha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 47% das intenções de voto, ante 28% de Bolsonaro, mas a vantagem do petista se amplia entre aqueles que ganham até dois salários mínimos. Este grupo, que representa pouco mais da metade da população, não esconde preferir Lula (56%) a Bolsonaro (22%), e 60% de seus membros dizem que não votariam no presidente de jeito nenhum. O motivo é óbvio: a inflação atinge todos, mas prejudica, sobretudo, os mais pobres. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, sabe disso. Em entrevista ao jornal Valor, admitiu que o avanço dos preços é o maior problema da campanha de Bolsonaro, mas negou que o governo esteja fazendo estelionato eleitoral. Questionado sobre as chances de recuperação da candidatura do chefe, disse que o jogo das eleições “ainda não começou”, algo que deve ser encarado quase como uma ameaça. Se tal partida ainda nem se iniciou na avaliação do governo, nem se imagina o custo que a bolsa-eleição terá quando ela tiver fim.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.06.22

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Gabeira: o combustível da insensatez

Desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

O desejo de conquistar eleitores produziu um psicodrama político em busca de soluções para conter o preço da gasolina. Tudo indica que os atores reconhecem seu fracasso, mas se esforçam para mostrar que deram tudo para evitar a derrota.

Talvez, lá atrás, tenha havido uma modesta saída, a formação de um fundo com os dividendos do governo, sócio majoritário da Petrobras, destinado a suavizar o aumento dos preços, determinado pela conjuntura internacional. Agora, é tarde, e as tentativas de última hora parecem cenas de um teatro do absurdo.

Durante duas semanas, o Congresso Nacional se dedicou a aprovar uma redução de ICMS para baixar os preços. Todos sabiam que eles estavam defasados e que, no primeiro movimento de atualização, a Petrobras neutralizaria com um novo aumento qualquer variação de ICMS. Resultado: Congresso funcionando custa dinheiro, Estados com menos recursos para educação, saúde e segurança, e, em termos de preço na bomba, resultado nulo.

No fim de semana, Bolsonaro levantou a hipótese mais fantástica: uma CPI da Petrobras. No seu discurso, intimidava os sócios minoritários com um prejuízo de R$ 30 bilhões, como se alguma CPI mágica pudesse produzir perdas para os minoritários sem atingir o sócio majoritário, que é o Estado.

Bolsonaro anunciava orgulhosamente um movimento para atingir o próprio governo que dirige – algo inédito.

Alguns analistas acharam que a oposição também apoiaria o governo para atingir a Petrobras. Felizmente, isso não aconteceu. Seria algo mais extraordinário ainda: governo e oposição juntos tentando liquidar uma empresa pública.

As tentativas não param por aí. Líderes reunidos tentam aumentar o imposto de exportação para estimular o refino no interior do País. Mas e as refinarias que faltam? Será que brotariam de agora até o momento das eleições? Pergunta inútil porque, na verdade, o resultado não interessa, mas apenas o movimento, a encenação que transmite ao eleitor a falsa ideia de que seu desejo será satisfeito.

Por mais que o governo se lance contra dirigentes que ele próprio indicou para a Petrobras, por mais que se crie a confusão, será muito difícil de escapar do desgaste provocado pela gravidade da crise econômica, da qual o preço do combustível é apenas um importante componente.

Interessante observar como nos debatemos neste labirinto no momento em que a Colômbia troca de governo e o presidente eleito, Gustavo Petro, se dispõe exatamente a reduzir a dependência de combustíveis fósseis e caminhar para uma economia de baixo carbono.

E a Colômbia é logo ali: de Tabatinga (AM) a Leticia basta andar alguns metros. As preocupações, no entanto, distam milhares de quilômetros.

Seria, é claro, inadmissível não tratar do preço dos combustíveis neste momento. Todos os governos o fizeram. Mas o ideal é que isso fosse discutido com base técnica e com uma visão realista. Talvez por esse caminho se atenuasse o impacto no bolso de todos, principalmente os mais vulneráveis. Mas, num ano de eleição, além deste necessário movimento imediato, é preciso olhar para a frente.

Não podemos continuar agindo como se a gasolina fosse um combustível eterno. Nem acreditar que as estradas rodoviárias são as únicas que podem escoar produtos.

Está mais do que na hora de combinar esforços fundamentados para reduzir os preços, mas também as medidas de transição para um futuro de baixo carbono, em sintonia com os esforços para viabilizar a vida humana no planeta.

Limitar-se a neutralizar o preço da gasolina, com recursos limitados, é uma batalha de Sísifo. Hoje, o preço está alto porque há uma guerra; amanhã, se terminar a guerra, o preço pode aumentar porque crescerá o otimismo econômico. Sem contar com o fato de que bilhões de dólares estão sendo investidos numa economia menos poluente e qualquer estímulo ao uso do petróleo servirá, também, para neutralizar o que se gastou até agora.

Verdade é que a guerra embaralhou um pouco as tentativas de progresso. Há um impulso para produzir mais petróleo fora da Rússia; e a redução do gás que os alemães importavam os faz retroceder ao consumo de carvão.

Mas a janela que se abriu com governos voltados para o futuro, como é o caso do Chile e o da Colômbia, pode indicar uma etapa na América Latina.

No caso colombiano, o esforço de realizar a transição para a economia de baixo carbono pode abrir possibilidades de cooperação continental.

Sem contar o fato de que, ao lado da questão energética, um outro tema nos aproxima não só dos colombianos, como de outros vizinhos: a Amazônia, com seus grandes desafios de preservação, sustentabilidade e segurança, diante do poderio do crime organizado.

Tanto a economia de transição para o baixo carbono como o desenvolvimento sustentável da Amazônia são grandes avenidas de oportunidade. Temas bem maiores do que um único e, até o momento, inútil esforço para baixar o preço do petróleo.

O desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas tão estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo,  em 24.06.22


Bolsonaro quer controlar as eleições

Ministérios da Defesa e da Justiça reivindicam autoridade para fiscalizar eleições, atribuição exclusiva da Justiça Eleitoral; ingerência desse tipo é motivo para impeachment

É absolutamente inaceitável a campanha de Jair Bolsonaro contra as eleições. Ele não apenas difunde inverdades contra o processo eleitoral, como vai colocando as instituições, uma a uma, a serviço do seu intento de difamação das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral. Antes, envolveu o Ministério da Defesa. Agora, incluiu o Ministério da Justiça e a Polícia Federal.

Segundo a Constituição, as eleições são assunto da Justiça Eleitoral. Tal é a importância para o regime democrático dessa exclusividade de competência que o texto constitucional traz uma disposição drástica: “São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança”. Ou seja, a Justiça Eleitoral tem a última palavra, salvo em caso de matéria constitucional, a cargo do Supremo Tribunal Federal (STF).

No entanto, Jair Bolsonaro quer ter a última palavra sobre as eleições. Quer ditar não apenas as regras do sistema de votação – competência do Congresso –, como também o resultado eleitoral – definido pelo eleitor nas urnas e contabilizado pela Justiça Eleitoral. Em seu intento antidemocrático, vale-se da disseminação da desconfiança, numa tática escandalosamente golpista.

As Forças Armadas sempre colaboraram com a Justiça Eleitoral, tanto na logística e segurança das eleições como em questões técnicas. Por exemplo, o desenvolvimento da urna eletrônica contou com o auxílio de militares. No entanto, até o governo de Jair Bolsonaro, era impensável – uma vez que rigorosamente inconstitucional – que as Forças Armadas fizessem demandas públicas sobre a Justiça Eleitoral. Ou, como Jair Bolsonaro aventou em maio, pudessem realizar uma contabilidade paralela dos votos.

Em vez da colaboração cordial com a Justiça Eleitoral, o governo de Jair Bolsonaro deseja impor uma dinâmica de confronto entre Ministério da Defesa e TSE. Convidadas, as Forças Armadas não quiseram participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. Na reunião da Comissão de Transparência do TSE, o representante do Ministério da Defesa nem sequer abriu a câmera. No entanto, o titular da pasta, general Paulo Sérgio Nogueira, enviou no dia 20 de junho um inusitado e inconstitucional ofício ao TSE comunicando que encaminhará técnicos militares para atuarem como representantes das Forças Armadas na fiscalização das urnas eletrônicas. Não cabe às Forças Armadas fiscalizar eleições, como também não lhes cabe fiscalizar o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo. Não é demais lembrar que o Código Penal e a Lei do Impeachment definem como crime ações de ingerência no processo eleitoral.

Para piorar, o governo Bolsonaro envolveu o Ministério da Justiça e a Polícia Federal na sua campanha contra as eleições, conforme revelou o jornal O Globo. No dia 17, o ministro da Justiça, Anderson Torres, comunicou ao TSE que participará, por meio da Polícia Federal, de todas as etapas de fiscalização e auditoria das urnas eletrônicas e de “sistemas e programas computacionais eleitorais”. Mais uma vez, o bolsonarismo tenta inaugurar uma relação de conflito onde até agora havia colaboração harmoniosa. A Polícia Federal sempre auxiliou a Justiça Eleitoral nos testes de segurança das urnas e dos softwares empregados. No ano passado, uma investigação da Polícia Federal concluiu que, desde a implantação das urnas eletrônicas, não houve ocorrência de fraude.

O ofício de Anderson Torres é ilegal e inconstitucional. Não está entre as atribuições do Ministério da Justiça confrontar o TSE, tampouco realizar auditoria independente das eleições, como se estivesse acima da Justiça Eleitoral. Certamente, Jair Bolsonaro tem todo o interesse em controlar o sistema eleitoral, por meio da pasta da Justiça ou da Defesa. Mas, como é lógico, em países democráticos, as eleições não ficam a cargo do Executivo.

Os limites foram ultrapassados por Bolsonaro há muito tempo. Ministério Público, Legislativo e Judiciário não podem se omitir na defesa da Constituição e das eleições.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.06.22

Hackers russos atacaram 42 países desde início da guerra

Segundo relatório da Microsoft, ataques miraram 128 organizações, e principais alvos foram computadores de governos da Otan e aliados de Kiev. Quase 30% das invasões cibernéticas foram bem-sucedidas.

Desde o início da guerra na Ucrânia, hackers russos lançaram ataques cibernéticos contra 42 países que apoiam os ucranianos, como Estados Unidos, Polônia e as nações bálticas, revelou nesta quarta-feira (22/06) um relatório divulgado pela gigante de tecnologia Microsoft. Ao todo, 128 organizações foram atacadas.

De acordo com a empresa sediada no estado americano de Washington, os hackers tiveram como alvo principalmente computadores governamentais de países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os Estados Unidos são o país mais afetado pelas tentativas de ataques cibernéticos.

A Microsoft não divulgou a lista completa dos 42 países afetados, mas indicou alguns, como os EUA, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia e Turquia.

Segundo o presidente da Microsoft, Brad Smith, as agências de inteligência russas aumentaram as tentativas de invasão de redes e atividades de espionagem contra países aliados da Ucrânia, desde o início da guerra, em 24 de fevereiro.

Ataques bem-sucedidos em quase um terço das tentativas

Metade das organizações visadas pelos hackers russos são agências governamentais. Os ataques também incluem think tanks, ONGs, empresas de serviços de tecnologias de informação, empresas de energia e outros fornecedores importantes de infraestrutura, destaca a Microsoft.

De todas as tentativas de ataque identificadas pela Microsoft desde o início da guerra, 29% foram bem-sucedidas, e em alguns casos os hackers obtiveram informações confidenciais das organizações visadas.

Segundo a empresa criadora do Windows, a estratégia russa no campo cibernético no âmbito da invasão da Ucrânia está sustentada em três pilares: ataques cibernéticos destrutivos contra países vizinhos, invasão de redes e espionagem fora do território ucraniano, e operações digitais para ganhar influência em todo o mundo.

O relatório também indicou que, no início da guerra, a Rússia realizou ataques cibernéticos contra a infraestrutura digital do governo da Ucrânia. Kiev conseguiu, porém, impedir esses ataques graças principalmente a medidas de precaução. Uma semana antes da invasão, a Ucrânia deixou de armazenar seus dados localmente em servidores nos prédios governamentais e optou por salvá-los na nuvem.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 23.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/hackers-russos-atacaram-42-pa%C3%ADses-desde-in%C3%ADcio-da-guerra-na-ucr%C3%A2nia/a-62228862) cn/lf (AP, DPA, Lusa, ots)

Caso Milton Ribeiro é expressão genuína do bolsonarismo

Corrupção e nepotismo estão presentes em todas as esferas do bolsonarismo, inclusive no círculo íntimo do presidente. Prisão do ex-ministro só surpreende por ser a primeira. Bolsonaro e aliados pensam estar acima da lei.

Investigado por suspeita de corrupção passiva e tráfico de influência, Ribeiro foi preso pela PFFoto: Isac Nobrega/Planalto Presidencia/dpa/picture alliance

O bolsonarismo baseia sua legitimidade em narrativas que nada têm a ver com a realidade.

Há a alegação de que o bolsonarismo combate o comunismo. Qualquer pessoa com sentido político se questiona: que comunismo? Não há nenhum forte movimento comunista ou socialista no Brasil. O PT é um partido social-democrata, que não quer eliminar o capitalismo, mas restringir seus excessos negativos.

A segunda narrativa afirma que o bolsonarismo defende os valores cristãos. Aqui resta apenas a pergunta: a quais valores pregados por Cristo eles se referem? O direito ao porte de armas? O direito à tortura? O direito de ofender e ameaçar quem tem uma opinião diferente? Ou o direito de destruir o meio ambiente, ou seja, a criação de Deus?

O terceiro pilar do movimento foi, desde o início, a história de que eles estavam combatendo a corrupção. Bolsonaro e seus apologistas alegavam que não havia corrupção no seu governo. Essa era talvez a alegação mais atrevida, porque ela contradizia tão evidentemente a realidade. Já era possível se dar conta disso muito antes da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que é investigado por suspeita de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.

Também não foi nenhuma surpresa Ribeiro ser um pastor evangélico e estar envolvido em negócios ilícitos do Ministério da Educação com outros pastores evangélicos. As grandes igrejas evangélicas – todas apoiadoras de Bolsonaro – são um refúgio de falsidade e manipulação. Elas apoiam Bolsonaro porque ele lhes garante privilégios como isenção de impostos, por exemplo. Não surpreende o fato de terem sido registradas dezenas de visitas dos pastores que foram presos agora ao Palácio do Planalto.

Primeira prisão tardia

A prisão de Ribeiro é surpreendente apenas devido ao fato de a Polícia Federal (PF) não ter batido à porta de um ministro de Bolsonaro muito antes – do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por exemplo. O general foi responsável pelo caos na crise da covid-19 e pelos escândalos de corrupção na compra de vacinas contra o coronavírus. Com Pazuello, a promessa de uma atuação técnica dos militares no governo foi de vitrine à vidraça. Ao menos sete militares que estavam no comando de cargos-chave da Saúde foram citados na CPI da Pandemia por suposto envolvimento em irregularidades.

Quando Bolsonaro fala de seu governo "livre de corrupção", ele parece sempre se esquecer de seus filhos, que cumprem tarefas dentro do governo. Os três mais velhos estavam e estão na mira do Ministério Público, e agora o mais novo também é investigado. Embora Bolsonaro enfatize que seus filhos devem responder por seus próprios erros, ele mandou trocar a Superintendência da PF no Rio de Janeiro devido às investigações contra eles.

Em agosto de 2021, o governo até decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. Essa medida se somava a outras ações adotadas por Bolsonaro para reduzir a transparência pública. Só faz isso um governo que tem algo a esconder, e não um que combate a corrupção.

A interferência de Bolsonaro na PF levou à renúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Até sua renúncia, os bolsonaristas consideravam Moro um herói na luta contra a corrupção. Desde então, ele passou a ser um "traidor". O bolsonarismo nunca foi sobre a luta contra a corrupção, mas um projeto nepotista de poder e de destruição do Estado. Uma pediatra bolsonarista me disse há pouco tempo que Moro tinha simplesmente muita ambição.

Com a mesma facilidade, bolsonaristas defendem o casamento com o Centrão – a personificação de corrupção, desvio de recursos públicos e, principalmente, estagnação política. Fica claro que o bolsonarismo é um movimento sem princípios. Quem proclama mudar o sistema político corrupto do Brasil, mas em seguida abraça Fernando Collor e deixa passar um monte de emendas secretas para garantir a reeleição de deputados do Centrão, trai os próprios eleitores.

Irregularidades por todos os lados

Casos de nepotismo e irregularidades pautam este governo. Um outro exemplo? O caso Queiroguinha. O filho do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, atuou em processos destinados à liberação de recursos públicos do Ministério da Saúde. Queiroga agora pode ser investigado por suspeita de improbidade administrativa e infração à legislação eleitoral.

Há, além de tudo isso, o aumento dos gastos com o cartão corporativo do presidente às vésperas da eleição, que atingiram o valor de R$ 1,2 milhão por mês. Desde 2019, ano do início do governo Bolsonaro, as faturas mensais têm ficado cada vez mais altas. Isso parece um uso responsável do dinheiro dos contribuintes, ou já é peculato?

O bolsonarismo, cujo lema é lei e ordem, é um movimento que acredita estar acima da lei. Isso começa pelos garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia, que justificam suas atividades literalmente afirmando que o presidente permitiu e, até mesmo, exigiu. (Bolsonaro mostrou a eles como se faz, quando em 2010 foi pego pescando em uma área de proteção e recebeu do Ibama uma multa de mais de R$ 10 mil. A reação do presidente foi exonerar o servidor que lhe tinha multado e nunca pagou a multa.)

A coisa toda continua com tipos como Daniel Silveira, que simplesmente ignora o STF e desrespeita a lei sem precisar realmente prestar contas por isso. E termina no gabinete e no clã Bolsonaro, que parece achar ser imune à Justiça por o presidente ter colocado em posições decisivas do aparelho de segurança pessoas de sua confiança.

Espera-se que o caso Milton Ribeiro mude essa postura. Senão há de fato que se temer que Bolsonaro e seu movimento não reconheçam sua derrota nas eleições em outubro. Eles simplesmente não se sentem sujeitos às regras.

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.Philipp Lichterbeck Colunista e correspondente da DW Brasil.@Lichterbeck_Rio. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. (Publicado originalmente em https://www.dw.com/pt-br/caso-milton-ribeiro-%C3%A9-express%C3%A3o-genu%C3%ADna-do-bolsonarismo/a-62238201 - 23.06.22).

"Fomos enganados", dizem militares russos detidos na Ucrânia

Russos capturados aguardam eventual troca por soldados ucranianos. Em entrevista à DW, eles contam sobre como foram parar no front, suas impressões da guerra, as condições na prisão e as esperanças de voltar para casa.

Num centro de detenção na Ucrânia, o segundo andar é reservado aos presos de guerra russos. Eles são mantidos separados dos demais "para sua própria proteção", segundo consta.

Após uma solicitação jornalística ao Serviço Penal Nacional ucraniano, a DW recebeu permissão para conversar com os detentos, como primeira representante da mídia, sob a condição de não revelar sua localização exata nem mostrar seus rostos, por motivos de segurança.

As filmagens no local foram exclusivas e só foi possível falar com os russos que não sejam acusados de crimes de guerra nem estejam respondendo por nenhuma ação judicial. Para entrevistá-los, seria necessária uma autorização adicional dos investigadores ou da Promotoria Pública.

"Fomos enganados"

Numa das celas estão sete homens de diversas idades. A visita de jornalistas não os surpreende: segundo eles, representantes das Nações Unidas ou da Cruz Vermelha passam por lá todas as semanas.

Durante a entrevista, funcionários do presídio acompanharam a equipe de reportagem, que pôde escolher seus interlocutores. Os quatro prisioneiros que concordaram em ser entrevistados afirmaram ser soldados profissionais e nada ter a esconder.

"Sinceramente: nós fomos enganados", comenta Roman, da cidade de Vyborg. "De início nos disseram que íamos cuidar de coisas humanitárias. Mas eu fui imediatamente jogado no front." Em combates na região de Kharkiv ele foi ferido, o exército ucraniano o levou consigo e lhe prestou cuidados médicos.

Artyom, em contrapartida, frisa que participou por vontade própria da "operação militar especial" – na terminologia adotada oficialmente por Vladimir Putin – contra a Ucrânia. Atendendo a um anúncio na internet, ele foi mobilizado para a província de Donetsk, sob controle de separatistas pró-russos.

Em poucos dias aprendeu a dirigir um tanque blindado T-72, sendo então enviado em direção a Zaporíjia. No entanto seu veículo foi destruído e ele, capturado pelo ucraniano Batalhão Azov. Lá recebeu comida e cigarros, "fascistas, não vi nenhum", comenta.

Indagado por que foi para a Ucrânia, Artyom explica: "Na televisão contam que supostamente lutamos por uma boa causa, mas na verdade não é nada disso. Meus olhos só se abriram aqui." Ele considera o exército russo "saqueadores e assassinos".

Condições de cárcere são aparentemente brandas, com saídas e acesso a livros (Foto: Anna Fil/DW)

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo"

A cela dos russos está equipada com móveis antigos, é estreita, mas limpa. Pratos de plástico estão sobre a mesa comum, cada um tem o seu. As colheres e garfos, contudo, são de metal. Segundo os guardas, para os presos normais também os talheres são de plástico, mas com os de guerra é mais fácil, eles não são agressivos e só estão esperando por uma troca de prisioneiros.

Um detento ucraniano serve o almoço, sob observação de um vigia. Borscht e pirão de trigo-sarraceno são servidos através de aberturas nas portas de cada cela. O desjejum foi angu de milho com carne. Segundo o cardápio pendurado no corredor, são servidas três refeições por dia. Além disso, os internos podem passear e diariamente tomar banho.

As mentiras que viralizaram sobre a guerra na Ucrânia

Numa outra cela encontram-se três jovens, por volta dos 20 anos de idade. Na mesa ao lado das camas está uma pilha de livros. Eles dizem gostar de ler histórias policiais e romances. Dmitri, de 20 anos, diz não ter sabido que em 24 de fevereiro iria de Belgorod, na Rússia, para a Ucrânia.

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo. Só quando já estávamos em território ucraniano e vimos letreiros e bandeiras, é que entendemos. Eu perguntei ao comandante o que a gente estava fazendo ali, e a resposta foi que não era para fazer perguntas inúteis." Quando, em 27 de fevereiro, seu tanque foi bombardeado, próximo a Pryluky, na região de Chernihiv, Dmitri se rendeu aos ucranianos.

"Vocês não têm nada que fazer aqui!"

Durante a entrevista com ele e dois outros, estavam presentes um vigia, um psicólogo da instituição penal e outros prisioneiros de guerra. A impressão pessoal dos jornalistas foi que a presença dos funcionários não influenciava a narrativa dos entrevistados, nem sua vontade de falar. Os vigias não ficavam escutando: mantiveram a distância e não fizeram qualquer pressão.

Com Oleg, da Carélia, a DW conversou a dois, numa sala separada. Ele contou que prorrogara em março seu contrato com as Forças Armadas russas. "Eu acreditei nas notícias na TV de que a gente viria para ajudar, de que aqui havia nacionalistas matando e torturando seu próprio povo."

Mas quando as tropas russas entraram na região de Kharkiv, ele não viu um único nacionalista: "Quando chegamos nos lugarejos, as pessoas nos diziam, bem diretamente: 'Vão embora! Vocês não têm nada que fazer aqui!'"

Quando Oleg assinou o contrato, lhe prometeram um treinamento, mas também que ele não seria mobilizado para o front avançado. Após três dias, contudo, foi enviado para o cerco à metrópole de Kharkiv.

Sua esquadra tentou retornar à Rússia, diz ele, mas os comandantes proibiram. Contudo o contato com o comando se rompeu, e pouco mais tarde a unidade foi capturada pelo exército ucraniano.

Entrevistados se dizem todos soldados profissionais (Foto: Anna Fil/DW)

Pode-se confiar nos prisioneiros de guerra?

Todos os prisioneiros russos com que a DW conseguiu falar afirmam lamentar ter participado da invasão, e que não atiraram em residentes pacíficos de lugarejos e cidades. Até agora os investigadores ucranianos não apresentaram provas de que eles tenham cometido crimes de guerra, e eles já se submeteram a exame com um detetor de mentiras.

Os funcionários do presídio contam que só perante o detetor de mentiras o soldado russo Vadim Shishimarin, que também ficou detido no local, confessou ter atirado e matado um civil na região de Sumy. Em 23 de maio, um tribunal ucraniano o condenou à prisão perpétua, no primeiro processo contra um prisioneiro de guerra russo no país.

Na conversa com a DW, nenhum dos detentos se queixou de más condições de prisão ou de tratamento desumano. "Todo dia nos perguntam se precisamos de alguma coisa. Se é possível, nos dão. A comida é equilibrada", relata Roman.

Segundo o Ministério da Justiça da Ucrânia, cada prisioneiro custa por mês cerca de 3 mil grívnias (95 euros ou R$ 517), em alimentos, roupas, artigos de higiene, além de água e eletricidade. A estes se acrescentam medicamentos e equipamento médico, além de custos com pessoal.

A vice-ministra da Justiça Olena Vysotska assegurou à DW que esses gastos são justificados, já que as condições de prisão devem obedecer a Convenção de Genebra. Além disso, precisa-se de prisioneiros de guerra vivos e saudáveis para trocar com os ucranianos capturados pela Rússia.

Maus tratos contra militares ucranianos e russos

Segundo a diretora da comissão da Organização das Nações Unidas para os direitos humanos na Ucrânia, Matilda Bogner, em geral as condições de cárcere para os presos de guerra russos observadores são satisfatórias. Porém observadores da ONU receberam informações de que soldados foram maltratados e torturados após a captura.

Há também indicações de que militares ucranianos presos na Rùssia e nos territórios sob controle russo seriam torturados logo após sua captura. "Faltam alimentos e higiene, o tratamento por parte dos guardas é bruto", explica Bogner. A ONU insta ambos os lados a tratarem com humanidade seus prisioneiros de guerra e a investigarem imediata e eficazmente todos os supostos casos de tortura e maus tratos.

Não há dados oficiais sobre quantos soldados russos estão detidos na Ucrânia: seu número muda constantemente, devido às trocas regulares. "A esperança é a última que morre", consola-se Dmitri, que também espera ser trocado. Depois de três meses, o rapaz de 20 anos só quer voltar para casa, e não pretende nunca mais servir o Exército.

Anna Fil para a Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 22.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/fomos-enganados-dizem-militares-russos-detidos-na-ucr%C3%A2nia/a-62222574)

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Waack: Bolsonaro entrou em modo desespero e Lula não indica se entendeu o que vem em 2023

Neste momento político da corrida eleitoral os horizontes dos dois líderes se distanciaram bastante. O de Lula já está em 2023. O de Bolsonaro se reduziu aos próximos 101 dias (2 de outubro é a data do primeiro turno).

Waack: 'Os horizontes dos dois líderes se distanciaram bastante neste momento político da corrida eleitoral' Foto: Werther Santana/Estadão e Anderson Riedel/PR

O presidente se envolveu numa custosa operação política de curtíssimo prazo para o tamanho do objetivo, que é baixar na marra o preço dos combustíveis. Até aqui não conseguiu, nem colocou de pé a ajuda para quem não tem como pagar gás e diesel. Sendo a mesma coisa as políticas de governo e a eleitoral, nenhuma está funcionando.

Tampouco estão ajudando “imponderáveis” para a campanha dele, como a prisão do ex-ministro da Educação, por quem disse que poria a cara no fogo. Ao eleitorado cativo pouco importa, pois populistas como Bolsonaro não dependem de coerência entre palavras e ações. Em situações adversas desse tipo, tornam-se “traídos” – mas é uma “vitimização” que não acrescenta votos.

Visivelmente confortável na liderança das pesquisas, Lula não indica em público se tem noção exata do desastre político – para um chefe de Executivo – que herdaria de Bolsonaro. Pode até parecer “confortável” para um agrupamento político como o PT o recente assalto ensaiado pelo Centrão às instâncias que protegem estatais de interferências políticas, mas a questão é mais abrangente.

Não se trata simplesmente de colocar a Petrobras de joelhos e voltar a lotear as diretorias de estatais, algo que o PT e seus aliados (como o MDB) praticaram com os conhecidos resultados. A volta triunfante do clientelismo vem acompanhada agora de instrumentos inéditos de poder por parte do Legislativo.

Em termos brutais, se o “mensalão” de uns 20 anos atrás foi ferramenta para assegurar maiorias, esse instrumento hoje nem sequer existe. As emendas do relator permitem às lideranças parlamentares administrar seu próprio “mensalão” de forma perfeitamente legal.

Lula está enganado se pensa que se entender com o Centrão é questão de habilidade política. Teria de lidar em 2023 com uma massa relativamente atomizada de parlamentares sem dispor de espaço fiscal ou ferramentas para exercer controle – teria os votos para não ser impichado, mas não as maiorias para implementar qualquer matéria de longo alcance.

E isto tudo é só a política. Estão se adensando os sinais de uma recessão em algumas das principais economias lá fora, com inevitáveis consequências para o Brasil. Vencendo, Lula assume num momento global de contração e não de expansão, como aconteceu em seu primeiro mandato. Se entendeu o que vem em 2023, ainda não foi ao microfone avisar a todos nós a bordo: “brace for impact”.

William Waack, o autor deste artigo,  é Jornalista e apresentador do programa WW, da CNNN. Publicado originalmente n´O Estado de S. Paulo, em 23.06.22

Mais uma lorota petista

Trocando um adjetivo aqui, um verbo acolá, ‘novas’ diretrizes para programa de governo do PT, supostamente como aceno ao centro, seguem mesma lógica do atraso de sua versão anterior

O primeiro rascunho do plano de governo do PT deu o que falar. Para quem se arvora em líder de uma formidável coalizão em defesa da democracia e contra o autoritarismo, Lula da Silva constrangeu até líderes de partidos aliados ao impor sua agenda na elaboração do documento. Os eleitores moderados, grupo que o petista precisa conquistar, necessariamente, para se eleger presidente pela terceira vez, viram naquelas diretrizes programáticas o velho PT que há alguns anos vinham rejeitando. Algo precisava mudar.

Pois o PT, para evitar “novos atritos” com partidos coligados e com esses potenciais eleitores mais ao centro do espectro político, propôs uma nova versão das tais diretrizes. Substituindo um adjetivo aqui e um verbo acolá, às vezes nem isso, é tudo mais do mesmo. O documento vendido aos incautos como “recuo” não passa de mais uma lorota petista.

Tome-se, por exemplo, um dos temas que mais repercutiram negativamente quando da divulgação da primeira versão dessa espécie de pré-programa de governo: a reforma trabalhista. O termo “revogação” foi suprimido da nova versão. Mas isso não quer dizer, em absoluto, que os avanços para o mercado de trabalho trazidos pela aprovação da reforma durante o governo do presidente Michel Temer não estejam ameaçados caso Lula seja eleito em outubro. A equipe que coordena a pré-campanha do petista fala agora em propor “uma extensa proteção social”, com atenção especial a autônomos e trabalhadores que usam aplicativos, “revogando os marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma e restabelecendo o acesso gratuito à Justiça do Trabalho”, diz novo trecho do documento.

Qualquer pessoa alfabetizada lê o que vai acima e entende que, sim, o partido proporá mudanças na legislação trabalhista de modo a restaurar, no todo ou em parte, o arcaico arcabouço legal vigente até a sanção da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Afinal, não se sabe, e o documento não diz, o que o PT considera como “marcos regressivos” da reforma trabalhista – mas intui-se, a julgar pelos raivosos discursos lulopetistas, que sobraria pouca coisa da modernização das relações de trabalho.

A revogação do teto de gastos é outro ponto sensível para o País que foi mantido nas diretrizes programáticas do PT. O partido tem o direito de defender a agenda que bem entender, até rematados retrocessos, como o fim do teto de gastos sem indicar uma nova âncora fiscal, e submetê-la a escrutínio público. Só não é honesto dizer que recuou ou moderou seu discurso quando, a bem da verdade, o que houve foi uma manipulação de meia dúzia de palavras.

Em que pese a inclusão de um tópico no documento condenando ataques à imprensa e a jornalistas – a rigor, uma obviedade para qualquer um que se apresente como democrata –, a pauta da “regulação dos meios de comunicação”, um eufemismo para o controle estatal do jornalismo profissional e independente, segue entre as diretrizes programáticas do PT. Mas, agora, singelamente chamada de “democratização dos meios de comunicação”.

Permanece também o plano de “abrasileirar” os preços dos combustíveis, o que é uma forma adocicada de defender a intervenção do governo na política de preços da Petrobras. Aqui, Lula e o presidente Jair Bolsonaro andam de braços dados.

Assim, com alterações mais ou menos acentuadas no que concerne à linguagem, mas não ao espírito, o plano petista para governar o Brasil segue repleto de propostas perigosas, como o alto intervencionismo estatal na economia, o descontrole dos gastos públicos e a revogação da reforma trabalhista. Se aplicada, essa plataforma eleitoral não só não tem o condão de apresentar soluções duradouras para os atuais problemas do País, como pode criar outros, tão graves que nem sequer podem ser mensurados neste momento.

Mas pode vir coisa ainda pior por aí, caso Lula seja eleito. Afinal, para o chefão petista, “é melhor colocar menos propostas no papel e executar mais”. Conhecendo o histórico do PT, isso soa menos como promessa e mais como ameaça.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.06.22

A putrefação do governo Bolsonaro

Escândalo do MEC não é de longe o único indício de podridão num governo que pouco faz no combate à roubalheira e muito se empenha em manietar órgãos de fiscalização e controle

A operação policial que prendeu preventivamente o pastor e ex-ministro da Educação Milton Ribeiro deve ter surpreendido só alguns bolsonaristas que ainda acreditam no discurso do presidente Jair Bolsonaro segundo o qual não existe corrupção em seu governo. Já a maioria dos brasileiros sabe muito bem, e há tempos, que algo não cheira bem na Presidência de Jair Bolsonaro.

O papel de Milton Ribeiro no escândalo do Ministério da Educação, que envolve a ação de pastores evangélicos que atuavam como lobistas, ainda está por ser inteiramente esclarecido. Mas são muitos os indícios de que malfeitos cabeludos foram cometidos no MEC sob as bênçãos de Milton Ribeiro e sob as barbas de Jair Bolsonaro. 

Os pastores lobistas, que não tinham função pública e, conforme revelou o Estadão, pediam propina em troca de acesso de prefeitos a recursos do Ministério, estiveram nada menos que 35 vezes no Palácio do Planalto. Havia uma evidente proximidade. Diante da abundância de evidências, a Justiça autorizou a deflagração de uma operação para investigar indícios de crimes de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência no MEC.

Mas o caso do MEC não é nem de longe o único indício de podridão no governo Bolsonaro. Há pouco tempo, o País ficou estupefato ao tomar conhecimento, na CPI da Pandemia, que o Ministério da Saúde foi envolvido em negócios esquisitos com vacinas e medicamentos. Em outro caso, um ministro do Meio Ambiente foi demitido por suspeita de ligação com um esquema de exportação de madeira ilegal. Mas o estado da arte do cupinzeiro bolsonarista é o orçamento secreto – esquema de distribuição obscura de recursos públicos a aliados para obras e compras eleitoreiras, naturalmente superfaturadas.

Considerando a notória opacidade do governo Bolsonaro, que viola sistematicamente as leis de transparência da administração pública, é muito provável que esses casos sejam apenas alguns entre tantos que ainda não se deram a conhecer. Não fosse o trabalho da imprensa, tão vilipendiada por Bolsonaro, o País não saberia da missa a metade.

Hoje, está claro que só acredita na pureza do governo quem ainda dá crédito às garantias de Bolsonaro. É bom lembrar que, quando estourou o escândalo do MEC, o presidente foi às redes sociais para jurar que o então ministro Milton Ribeiro era inocente. “Eu boto minha cara no fogo pelo Milton. Minha cara toda no fogo pelo Milton”, desafiou Bolsonaro. Ontem, chamuscado pela prisão do ex-ministro, o presidente jogou o pastor na fogueira: “Ele que responda pelos atos dele”.

Fiel a seu estilo pusilânime, e obviamente ciente do prejuízo eleitoral que o escândalo pode lhe causar, Bolsonaro tratou de fugir da responsabilidade: “Eu tenho 23 ministros, mais uma centena de secretários, mais de 20 mil cargos comissionados. Se alguém faz algo de errado, pô, vai botar a culpa em mim?”. Bolsonaro pode até não ter tido participação direta no caso, mas é muito estranho que seu governo tenha determinado sigilo de 100 anos sobre as dezenas de visitas dos pastores lobistas ao Palácio do Planalto.

É esse apego ao segredo que gera um ambiente extremamente propício para a corrupção, pois há certeza da proteção oficial, garantida também pelo aparelhamento dos órgãos de fiscalização e controle. Não é por outro motivo que o Brasil caiu da sexta para a décima posição, entre países da América Latina, no Índice de Combate à Corrupção mensurado pela Americas Society/Council of the Americas em parceria com a empresa Control Risks. Segundo o estudo, recentemente divulgado, “Bolsonaro procurou consolidar o controle sobre os órgãos que investigam supostos casos de corrupção envolvendo seus aliados”.

Desse modo, com Bolsonaro na Presidência, o Estado brasileiro ficou menos independente para prevenir, detectar e punir a corrupção no âmbito federal. Desrespeitar a Lei de Acesso à Informação, encabrestar a Procuradoria-Geral da República e desvirtuar os órgãos de fiscalização e controle, como faz o governo, têm consequências. É preparar o terreno para a roubalheira. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.06.22

O ataque dos cupins da República

Por imperativos eleitoreiros, Bolsonaro e seus aliados intensificam investida contra leis e dispositivos que dificultam a pilhagem do Estado e a destruição das contas públicas

O presidente Jair Bolsonaro e seus aliados no Congresso intensificaram sua ofensiva contra o conjunto de leis e dispositivos que dificultam a pilhagem do Estado e a destruição das contas públicas. Para os propósitos eleitoreiros dos bolsonaristas, essa cidadela republicana, responsável pela estabilidade da economia e pela redução da corrupção, tem de ser arruinada. O motivo é óbvio: onde há regras que limitam gastos públicos e que impõem boa governança em estatais, há pouco espaço para gastança populista e para o aparelhamento corrupto de empresas que devem servir ao País, e não ao grupo que está temporariamente no poder.

O alvo mais recente dessa ofensiva é a Lei das Estatais, um dos maiores marcos aprovados pelo Legislativo dos últimos anos. Meses após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o Congresso conseguiu elaborar um conjunto de normas que representaram o resgate da moralidade e estabeleceram padrões civilizados de governança nas empresas públicas. O texto, sancionado em junho de 2016, consolidou princípios de transparência, eficiência e boa gestão para as empresas públicas e sociedades de economia mista. A lei estabeleceu regras para a escolha de diretores e conselheiros, proibiu a indicação de dirigentes partidários, ministros, sindicalistas e parlamentares e passou a exigir comprovação de experiência prévia dos candidatos a cargos executivos.

Muito se fala sobre a elaboração de políticas públicas baseadas em evidências e na necessidade de avaliação constante de seus resultados. No caso das estatais, talvez não haja prova maior do sucesso dessa legislação do que os balanços financeiros. A Petrobras, principal vítima do intervencionismo estatal nos governos petistas, conseguiu rapidamente reverter uma trajetória de perdas bilionárias e obteve lucros expressivos. Surpreendentemente, isso se tornou um problema para a classe política e tem servido como desculpa para questionar a jovem Lei das Estatais. 

Bolsonaro, por exemplo, acusou a Petrobras de registrar um lucro “absurdo” e sugeriu que o comando da empresa atua contra o País. Por isso, quer colocar na direção da Petrobras um obediente apaniguado, embora esse indicado não tenha experiência na área de petróleo, como exige a Lei das Estatais. Ato contínuo, o presidente da Câmara, Arthur Lira, sugeriu ao Executivo que envie uma Medida Provisória, com força de lei desde a data de sua publicação, para alterar a Lei das Estatais.

Bolsonaro elegeu a Petrobras como inimiga do País com o objetivo de mobilizar sua base e, principalmente, desviar o foco do fracasso de seu governo. Para o Centrão, no entanto, trata-se de uma imperdível oportunidade para retomar o poder que o grupo tinha nas empresas públicas. Descoberto nos governos petistas, o petrolão contou com a participação direta de partidos como o PP de Lira. O presidente da Câmara afirmou que a mudança na lei seria uma forma a assegurar “maior sinergia entre as estatais e o governo do momento”, o que é a senha para a submissão das empresas aos interesses políticos do governo, o exato oposto do que preconiza a Lei das Estatais.

Assim como o teto do ICMS para bens essenciais, mudar a Lei das Estatais não derrubará os preços dos combustíveis, mas aumentará as chances de a Petrobras voltar a ser saqueada pelo governo de turno e seus aliados. Essa estratégia diversionista começa a ficar repetitiva – elevar os benefícios do Auxílio Brasil para vulneráveis foi a desculpa para destruir o teto de gastos e violar a Lei de Responsabilidade Fiscal, dar calote nos precatórios da União, garantir recursos para o fundo eleitoral e manter o pagamento integral das emendas de relator. Destruir os pilares macroeconômicos teve resultados imediatos na bolsa, nos juros e no valor da moeda, mas também para a população, ampliando a corrosão do poder de compra das famílias. A intervenção na Petrobras também terá efeitos trágicos – e já se sabe quais são eles. Se não for impedido, o governo Bolsonaro deixará como legado a destruição do aparato de proteção do Estado contra os cupins da República. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 22.06.22

sábado, 18 de junho de 2022

Bolsonaro, Lira e a política do grito

Ataques violentos do governo e seus aliados aos executivos da Petrobras não têm outro objetivo senão o de fazer da estatal o bode expiatório da inflação

A virulenta reação do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados no Congresso ao reajuste dos combustíveis anunciado pela Petrobras é despropositada sob qualquer aspecto que se observe – menos, é claro, o eleitoral.

Há 99 dias segurando os preços da gasolina, mesmo diante da forte alta no mercado internacional, a companhia anunciou um aumento de 5,2%. Para o diesel, congelado há 39 dias, o reajuste foi de 14,2%. Nos dois casos, os índices foram inferiores ao necessário para alinhar os preços internos aos praticados no exterior.

Do ponto de vista da estatal, era a coisa certa a fazer, pois, por determinação estatutária e legal, a empresa não pode deliberadamente represar seus preços se isso significar perdas aos acionistas – entre os quais, recorde-se, está a União, que é majoritária. Ademais, o adiamento do reajuste poderia levar a desabastecimento, uma vez que cerca de um terço do diesel consumido no Brasil é importado – e, por razões óbvias, os importadores se recusam a comprar combustível para vendê-lo com prejuízo no mercado interno.

Nenhum desses argumentos racionais, contudo, impediu a ofensiva de Bolsonaro e do presidente da Câmara, Arthur Lira, contra a Petrobras. O mais recente ataque começou na quinta-feira, quando o governo pressionou o Conselho de Administração a não aprovar o reajuste. Nesse mesmo dia, Bolsonaro disse que um aumento logo após a aprovação do teto do ICMS pelo Congresso – elaborado e aprovado a toque de caixa por irresistível pressão bolsonarista, a despeito dos imensos danos que causará aos Estados – não teria justificativa a não ser um “interesse político” para atingir o governo. 

Ontem, numa interferência absolutamente descabida, Arthur Lira admitiu ter telefonado para o presidente da Petrobras, José Mauro Ferreira Coelho, para advogar contra o reajuste. Além disso, o presidente da Câmara cobrou a renúncia imediata de Ferreira Coelho: “Saia daí, saia já! Esse lugar não é seu. É do Brasil”, escreveu Lira no Twitter. O diversionismo chegou a ponto de incluir a ameaça de instauração de uma CPI para investigar os conselheiros e executivos da Petrobras – que, em um processo quase kafkiano, estão sendo acusados de fazer precisamente o trabalho para o qual foram contratados.

Na narrativa mambembe que o governo tenta emplacar, o motivo do mais novo aumento dos combustíveis seria uma “retaliação” de Ferreira Coelho e de membros do Conselho de Administração da Petrobras contra a decisão de Bolsonaro de substituí-los. No mundo real, contudo, as commodities minerais e agrícolas continuam a ser influenciadas pela guerra entre Rússia e Ucrânia, e o aumento dos preços dos combustíveis era mais do que previsível. Ademais, já se sabia que o teto para o ICMS seria meramente paliativo e provavelmente inútil, anulado à medida que novos reajustes fossem anunciados.

Nenhuma dessas considerações refreou o ímpeto demagógico de Bolsonaro e Arthur Lira, concentrados exclusivamente nas eleições de outubro. Pouco importa se isso significar a ruína da Petrobras, exatamente como aconteceu no desastroso governo de Dilma Rousseff, que, igualmente por imperativos eleitorais, impôs controle de preços sobre os combustíveis, causando rombo de mais de R$ 100 bilhões à estatal.

Em sua cruzada para segurar os preços dos combustíveis na esperança de conter a inflação, que ameaça lhe tirar a reeleição, Bolsonaro já demitiu três presidentes da Petrobras, trocou o ministro das Minas e Energia, mobilizou mundos e (principalmente) fundos para aprovar o teto do ICMS sobre combustíveis e agora quer uma CPI para intimidar os executivos da estatal.

Tudo isso tem sido em vão – e assim continuará a ser, salvo se forem alterados os estatutos e as leis criados justamente para impedir que a Petrobras volte a servir a um projeto de poder, como nos tempos do PT. Afinal, é improvável que algum executivo ou conselheiro da Petrobras em seu juízo perfeito se arrisque a ter problemas na Justiça por permitir que a empresa se dobre aos interesses de Bolsonaro e de seus sócios, causando prejuízo aos acionistas e ao País.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.06.22

Amazônia se tornou uma terra sem lei, apontam especialistas

Para entrevistados, assassinato de Phillips e Pereira expõe ausência do Estado na região. Discurso e ações do governo Bolsonaro teriam agravado desmonte da fiscalização e estariam por trás de clima de "liberou geral"

Na avaliação do delegado da PF Alexandre Saraiva, 99% da madeira que sai da Amazônia hoje é ilegalFoto: Getty Images/AFP/R. Alves

O desaparecimento e a revelação posterior dos assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari expuseram ao mundo a realidade de que a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta, é hoje uma terra sem lei, apontam especialistas ouvidos pela DW Brasil.

"As regras que valem ali são as do crime organizado", atesta o delegado da Polícia Federal (PF) Alexandre Saraiva. "Ali atuam organizações criminosas com apoio dos políticos locais, estaduais, e tentáculos até nas altas esferas do governo brasileiro."

Saraiva conhece bem a região. O delegado atuou em diferentes estados da Amazônia por dez anos, entre 2011 e 2021, quando deixou a chefia da Superintendência da PF no Amazonas. Ele foi responsável por comandar a maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil. Em dezembro de 2020, a operação Handroanthus confiscou 226 mil metros cúbicos de toras na divisa do Amazonas com o Pará.

O resultado expressivo da ação não rendeu elogios, mas represálias do governo federal. Após o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter se deslocado à região para prestar apoio aos madeireiros, o delegado apresentou notícia-crime contra Salles no Supremo Tribunal Federal (STF).

Saraiva foi exonerado e afastado da Amazônia. Atualmente, ele está alocado em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Para o delegado da PF, as ações e discursos do governo sinalizam uma conivência com a atuação de grupos criminosos na região.

"Nós tínhamos o Sistema de Documento de Origem Florestal (SISDOF), que monitorava o trânsito da madeira nativa pelo Brasil, e era público. Em maio do ano passado, foi retirado do ar e nunca mais voltou. É a mesma coisa que tirar da PM a possibilidade de consultar o site do Detran para ver se um carro é furtado ou não. Medidas como esta mostram que não existe nenhuma intenção de combater o crime na Amazônia", afirma Saraiva.

O fim da "indústria da multa"

Após prometer acabar com a "indústria da multa" durante a campanha eleitoral, Bolsonaro desautorizou publicamente ações de combate ao crime ambiental na Amazônia.

Em abril de 2019, primeiro ano de seu governo, o presidente desautorizou uma operação do Ibama em andamento contra o roubo de madeira dentro da Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia.

"Não é para queimar nada", afirmou Bolsonaro, em referência à destruição de maquinário das atividades criminosas conduzidas por agentes do órgão. A medida, que tem previsão legal, foi repetidamente criticada pelo presidente.

Naquele mesmo ano, Bolsonaro insinuou que poderia repreender agentes que aplicassem esse tipo de pena contra infratores, durante encontro com garimpeiros.

"Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso no estado lá?", questionou o presidente. "Se me derem as informações, eu tenho como…", disse, sem completar a frase.

Clima de "liberou geral" na Amazônia

É recorrente ouvir de agentes da fiscalização ambiental que os discursos do presidente da República criaram um clima de "liberou geral" na Amazônia.

"Às vezes, estamos 200 km dentro da mata e tem gente lá dizendo que não deveríamos estar lá porque o presidente falou que iria acabar com a fiscalização", relata Wallace Lopes, diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional).

Na avaliação de Lopes, que é servidor do Ibama desde 2009, o discurso antiambiental do governo é um dos principais motivos para a escalada do desmatamento na Amazônia desde 2019.

"O que o presidente fala não muda a lei, mas as pessoas que estão dentro da floresta não entendem dessa forma. Quando o presidente critica a atuação do Ibama dentro de um garimpo, as pessoas lá dentro sentem que têm apoio do presidente para praticar atividades irregulares. É um incentivo", diz.

Desmatamento e desmonte da fiscalização

Na última sexta-feira (10/06), enquanto Bolsonaro defendia o combate ao desmatamento em seu governo, na Cúpula das Américas, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciou mais um recorde de desmatamento na Amazônia. Nos cinco primeiros meses do ano, uma área de 2.867 km² foi devastada na Amazônia. É o maior valor da série histórica, iniciada em 2016.

As dificuldades impostas em um território coberto por densa floresta tropical tornam a fiscalização da área uma tarefa árdua por essência. Por sua vez, o déficit de pessoal e recursos nos órgãos de fiscalização ambiental é um problema que antecede o governo atual e dificulta ainda mais o combate ao crime na região. O corte de verba sob Bolsonaro reforçou o desmonte da fiscalização ambiental.

Em 2020, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) contava com menos de 50% do efetivo previsto para o órgão. A situação também se observa no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e é ocasionada pela falta de reposição para as aposentadorias.

Neste ano, foi realizado um concurso, e cerca de 550 pessoas aguardam convocação. Todavia, desse total, apenas 90 serão alocados na área de fiscalização, mas não apenas na Amazônia, que receberá apenas uma parte desse efetivo.O Ibama teve seu maior efetivo de funcionários em 2012, quando o Brasil registrou o índice de desmatamento mais baixo da série histórica, apresentando queda de 84% na comparação com 2004 — ano em que foi implementado o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia.

Protesto em Brasília cobra informações sobre o paradeiro do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo, desaparecidos em região remota da AmazôniaProtesto em Brasília cobra informações sobre o paradeiro do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo, desaparecidos em região remota da Amazônia

Protesto em Brasília cobra informações sobre o paradeiro de Dom Phillips e Bruno Araújo, desaparecidos em região remota da AmazôniaFoto: Eraldo Peres/AP Photo/picture alliance

Vale do Javari desprotegido

Enquanto essas autarquias foram enfraquecidas, o crime organizado atingiu uma complexidade sem precedentes na Amazônia. É o que se observa na Terra Indígena Vale do Javari, local onde Dom Phillips e Bruno Pereira foram assassinados.

A segunda maior reserva indígena do Brasil se localiza na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, onde cartéis brasileiros e colombianos disputam o controle do acesso ao Rio Amazonas, por onde a cocaína produzida na região é escoada para o mercado europeu.

Nesse contexto, atividades ilegais de extração de madeira, garimpo e caça se associam ao narcotráfico transnacional. O cenário representa enorme risco à fauna e flora locais, aos agentes de fiscalização e, sobretudo, para os cerca de 6 mil indígenas que vivem na região.

O Vale do Javari tem a maior concentração de povos isolados do mundo. São 19 etnias, dentre 26 que habitam a terra indígena. Em 2018, o Ibama fechou o único escritório que mantinha na região, na cidade de Tabatinga (AM), onde dois servidores fixos eram responsáveis por fiscalizar toda a área de 85 mil km² — extensão territorial próxima à de Portugal.

"Este e outros escritórios acabaram fechando pela impossibilidade de mantê-los com poucos servidores, do ponto de vista da segurança dessas pessoas. Mas a causa real é a ineficiência pública, porque se houvesse mais concursos e melhores condições de segurança para os fiscais nessa região, é onde deveriam estar", afirma Wallace Lopes.

O fechamento da unidade tem relação direta com um episódio ocorrido no município de Humaitá (AM), meses antes. Em outubro de 2017, garimpeiros destruíram bases do Ibama e do ICMBio no local, em represália a uma operação do Ibama que apreendeu balsas do garimpo ilegal no Rio Madeira.

Amazônia ainda "tem jeito"?

O cenário de expansão e fortalecimento dos grupos criminosos que atuam na Amazônia pode gerar a impressão de que o Estado não tem mais condições de recuperar esse território. Essa tese, no entanto, é enfaticamente refutada pelos especialistas ouvidos pela DW Brasil.

"A palavra-chave na Amazônia é rastreabilidade", comenta o delegado da PF Alexandre Saraiva. Ele cita o exemplo da operação Korubo, planejada pelo indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Pereira, que levou à destruição de 60 balsas do garimpo ilegal no Vale do Javari, em 2019.

"Hoje, a tecnologia de satélites disponível nos permite ter acesso a imagens do dia anterior. Antes, a busca realizada por aviões afugentava os criminosos, que se precaviam. É possível destruir uma balsa no dia seguinte a ela ter aparecido", diz Saraiva, que destaca a existência de outras tecnologias para o rastreio da origem de mercadorias extraídas ilegalmente, como ouro e madeira.

Militares na Amazônia

Entre 2019 e 2021, o governo federal submeteu o Ibama e o ICMBio ao comando do Exército, por meio do Conselho Nacional da Amazônia, chefiado pelo vice-presidente Hamilton Mourão.

As três intervenções realizadas pelas Forças Armadas na Amazônia nesse período foram ineficazes no combate ao desmatamento e consumiram R$ 550 milhões dos cofres públicos. Em apenas um mês, a Operação Verde Brasil 2 teve um gasto equivalente ao orçamento anual do Ibama para fiscalização.

"Se esses R$550 milhões tivessem sido investidos no Ibama, para realização de concurso público, reposição dos quadros e investimento dentro da instituição, a gente entregaria em menos de dois anos o desmatamento abaixo dos 5.000 km² por ano, que foi o recorde obtido em 2012", afirma Wallace Lopes.

O diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente reporta que os militares trouxeram uma defasagem para a atuação dos órgãos de fiscalização ambiental, que se baseavam no trabalho de inteligência e uso de tecnologia.

"Eles trouxeram formas de fiscalização que não utilizávamos há 15 anos", diz. "Por exemplo, estávamos fiscalizando estradas para tentar pegar caminhões de madeira. Isso significa que a madeira estava sendo extraída em algum lugar. Eu quero saber onde ela está sendo cortada e impedir que essa área seja desmatada, em vez de ficar na BR-163 esperando para pegar um caminhão", detalha.

Alexandre Saraiva, da PF, critica ainda a frágil atuação das Forças Armadas no policiamento das regiões de fronteira. "A doutrina que prevalece ainda é a do inimigo externo, quando, na verdade, existe um inimigo muito mais poderoso nas barbas das Forças Armadas. Temos verdadeiros heróis na PF, no Ibama, na Funai, mas só o Exército e a Marinha têm estrutura operacional para confrontar essas organizações criminosas", avalia.

Responsabilidade internacional

Ambos os especialistas ouvidos pela DW Brasil ressaltam que a fiscalização constitui um remédio imediato para problemas com causas estruturais. A geração de alternativas econômicas para os povos da floresta é um dos pontos mais enfatizados, uma vez que dificuldades econômicas empurram a população local para atividades criminosas.

Outro aspecto ressaltado é a responsabilidade dos países europeus na implementação de protocolos mais rígidos para fiscalizar a origem dos produtos comercializados a partir da região. Uma vez que os criminosos utilizam fazendas e garimpos legais para "lavar" a produção ilegal, os meios utilizados atualmente para certificar as commodities exportadas pelo Brasil são considerados insuficientes.

É o caso do certificado FSC (Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, em português), selo verde mais conhecido no mundo hoje. A empresa responsável não cobre todas as etapas da produção, especialmente as do transporte e do depósito, justamente as mais sensíveis.

"Isso só serve para o consumidor europeu dormir mais tranquilo, porque não adianta nada", afirma o delegado da PF. "É urgente que a Europa mude o regulamento 995/2010, que trata da importação de madeira, porque é extremamente permissivo para práticas ilegais."

Área desmatada com toras empilhadas na AmazôniaÁrea desmatada com toras empilhadas na Amazônia

Madeira: principal vetor do desmatamento

Embora o cultivo de soja e gado costumem ser tratados como os principais vetores do desmatamento na Amazônia, Saraiva destaca que o comércio de madeira é o principal motor de destruição da floresta.

"É a madeira que financia o resto. Depois, vem o gado? Vem. Vem a soja? Vem. Pode chegar depois até um shopping center, não importa, a floresta já vai estar no chão. Como estratégia de Estado, devemos atacar o que dá dinheiro imediato para a organização criminosa, que é justamente a madeira", afirma.

Na avaliação do delegado, 99% da madeira que sai da Amazônia hoje é ilegal, dada a dificuldade de competir com a produção irregular, baseada em mão de obra análoga à escravidão e furto de energia da rede elétrica.

"Para mudar esse cenário, precisamos do apoio da comunidade internacional. Nós, como humanidade, repudiamos os CFCs [clorofluorcarbonetos] para defender a camada de ozônio. É preciso que agora nós repudiemos a madeira vinda da Amazônia, como forma de salvar a floresta", defende.

João Pedro Soares, o autor desta matéria, é correspondente da Deutsche Welle no Rio de Janeiro. Publicado originalmente em https://www.dw.com/pt-br/amaz%C3%B4nia-se-tornou-uma-terra-sem-lei-apontam-especialistas/a-62121755, 16.06.22.

Jornalistas são 'categoria sob ataque' no Brasil, diz presidente de associação de correspondentes

O Brasil abriga cerca de 60 jornalistas estrangeiros, que fazem coberturas sobre o país para o exterior, de acordo com os cálculos feitos por entidades que reúnem profissionais da área.

Dom Phillips pretendia entrevistar fazendeiros e garimpeiros em seu livro sobre a Amazônia, de acordo com a esposa do britânico (Arquivo Pessoal)

Naturalmente, diante das últimas notícias envolvendo o assassinato do colega britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, muitos dizem estar "em choque e consternados".

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Para o jornalista italiano Carlo Cauti, que trabalha no país desde 2012 e é o atual presidente da Associação dos Correspondentes Estrangeiros de São Paulo (ACE), as notícias envolvendo Phillips e Pereira tiveram "um impacto muito pesado e muito ruim" na comunidade de profissionais de imprensa de outros países.

"No começo, quando surgiram as primeiras informações sobre o desaparecimento, a gente torcia para que eles tivessem se perdido na floresta e logo fossem encontrados", conta.

"Com o passar do tempo, muitos correspondentes começaram a achar que o pior tinha realmente acontecido", completa.

Jornalistas ameaçados

Cauti, que trabalhava para revistas e agências de notícias da Itália e hoje é editor da Exame, avalia que, entre jornalistas estrangeiros, "o Brasil nunca foi considerado um lugar tranquilo de trabalhar, especialmente em algumas regiões da Amazônia".

Ele também aponta que a repercussão internacional do caso, especialmente na mídia do Reino Unido, vai impactar a forma como os correspondentes atuam no país.

"O Brasil não é um Iraque ou um Afeganistão, mas nunca foi visto como um lugar tranquilo para jornalistas", reforça.

Para sustentar esse ponto de vista, ele lembra da quantidade de profissionais da imprensa brasileiros que são assassinados todos os anos no país.

"Quantos jornalistas morreram e nem viraram notícia? Geralmente, eles trabalham em veículos locais de pequenas cidades e são a única fonte de informação independente", observa.

"Daí eles fazem alguma cobertura que desagrada um mandatário local, ou um cacique político, e acabam mortos."

"O Brasil registra um total de 60 mil homicídios por ano. Muitos jornalistas acabam mortos e Dom Phillips foi um deles. Ele fazia parte de uma categoria inteira que está sob ataque", complementa.

O relatório Ameaças que Silenciam, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) calcula que, entre 2016 e 2020, 14 jornalistas foram assassinados no Brasil.

Isso coloca o país no décimo lugar do ranking de nações com mais assassinatos entre profissionais da imprensa, atrás de México (61 mortos), Afeganistão (51), Síria (34), Iêmen (24), Iraque (23), Paquistão (23), Índia (22), Somália (18) e Filipinas (16).

Além do risco à vida, repórteres e editores que trabalham no Brasil também estão expostos a ameaças e agressões: segundo um levantamento da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), foram registrados 145 casos de violência não letal com profissionais da área somente em 2021.

Os tipos de ataques mais comuns são ofensas (53 casos), agressões (34), intimidações (26), ameaças (12) e atentados (8).

Brasil é o décimo país que mais registrou assassinatos de jornalistas entre 2016 e 2020 (Getty Images)

Para Cauti, existem formas de evitar que novos episódios como o de Dom Phillips aconteçam.

"A primeira coisa que precisa ser feita pelas autoridades é garantir uma punição exemplar aos responsáveis por essa barbárie".

O presidente da ACE considera ser difícil garantir totalmente a segurança dos profissionais de imprensa em todo o país.

"Não é factível pensar em 100% de segurança em áreas tão remotas, onde não existe qualquer possibilidade de contar com policiamento por motivos financeiros, logísticos ou legais", analisa.

"Mas se um caso desses recebe uma punição exemplar, isso se transforma num sinal claro de que algo assim não pode acontecer nunca mais no país", diz.

Choque e consternação

Além da ACE, de São Paulo, existe uma segunda entidade representativa dos jornalistas internacionais que atuam no país: a Associação dos Correspondentes de Imprensa Estrangeira no Brasil (ACIE), sediada no Rio de Janeiro.

Nas redes sociais, o grupo se manifestou logo após os anúncios de quarta-feira (15/6), quando a Polícia Federal confirmou que suspeitos confessaram o assassinato de Phillips e Pereira.

No texto divulgado, os responsáveis pela ACIE afirmam que "toda a comunidade de correspondentes estrangeiros no Brasil se encontra em choque e consternada".

"Embora ainda estejamos aguardando as confirmações definitivas, essa é uma matéria que nunca gostaríamos de escrever. Dom foi da diretoria da ACIE por 4 anos e era amigo pessoal de muitos de nossos associados. Bruno era uma referência para qualquer jornalista internacional que fosse a trabalho para a região do Vale do Javari, no Estado do Amazonas. Os dois eram profissionais muito experientes, competentes e com uma paixão em comum: a floresta amazônica e a defesa dos povos indígenas."

Foto publicada nas redes sociais de uma reunião da ACIE em 2015 com a participação de Dom Phillips

Nas redes sociais, a ACIE publicou uma foto de uma reunião da associação de 2015, com a participação de Dom Phillips (ao fundo, de camiseta verde) (Divulgação / ACIE)

A nota ainda diz que os profissionais de imprensa estrangeiros estão "muito apreensivos e cobram providências urgentes das autoridades competentes".

"Pedimos, com muita veemência, que a justiça seja feita."

"Também expressamos nossa indignação diante do crescente aumento da violência contra jornalistas em todas as regiões do Brasil. A liberdade de expressão e de imprensa são garantias constitucionais e devem ser respeitadas no país", finaliza o texto.

Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61827473 (BBC News Brasil, em 16.06.22).