quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

O nosso inescondível racismo: Policial algema homem negro a moto em movimento

A ação do policial militar foi apontada como ato de tortura. Polícia Militar de São Paulo abriu inquérito para investigar o policial.

 (crédito: Reprodução/Instagram)

Um vídeo que circulou, nas redes sociais, na terça-feira (30/11), mostra um policial militar em uma moto em movimento puxando um homem negro algemado. O caso foi registrado por um motorista que trafegava na Avenida Professor Luís Inácio de Anhaia Melo, Zona Leste de São Pulo, no momento do fato. Pelo vídeo, é possível ver que o policial acelera a motocicleta em alguns momentos, obrigando o homem a correr.

No entanto, o homem que fez o vídeo parece comemorar o ato de justiçamento, que remete às torturas do tempo de escravidão. "Olha o cara algemou e está andando igual escravo.Vai roubar mais agora?"

O coordenador do MTST e da Frente Povo sem medo, Guilherme Boulos, afirmou, em seu perfil de rede social, que o episódio gravado se trata dee um caso explícito de tortura. "Brasil, mais de 300 anos de escravidão. Tortura a sangue frio praticao por um PM de SP. Inaceitável."

A vereadora de Belo Horizonte Macaé Evaristo (PT) destacou, em seu perfil nas redes, que o policial cometeu um ato de racismo e tortura. "A violência do Estado, especialmente das forças policiais dono Brasil elimina direitos humanos. De forma criminosa, trata a população negra como escravizados", escreveu.

A Polícia Militar de São Paulo divulgou nota em que informa que será aberta uma investigação para apurar a conduta do policial. Veja a nota na íntegra.

A Polícia Militar, imediatamente após tomar ciência das imagens, determinou a instauração de um inquérito policial militar para apuração da conduta do referido policial e o seu afastamento do serviço operacional. A Polícia Militar repudia tal ato e reafirma o seu compromisso de proteger as pessoas, combater o crime e respeitar as leis, sendo implacável contra pontuais desvios de conduta.

Márcia Maria Cruz, originalmente, para o Estado de Minas, em 01/12/2021 15:02

Senado aprova André Mendonça como novo ministro do STF por 47 a 32

André Mendonça é o novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) na vaga do ministro aposentado Marco Aurélio Mello. 

Sua indicação ao cargo foi aprovada por 47 votos a 32 durante votação no plenário do Senado na noite desta quarta-feira (1/12), 105 dias depois de ter sido indicado pelo presidente Jair Bolsonaro.

André Mendonça em sabatina no Senado (Marcos Oliveira/Agência Senado)

É a segunda vez que o Senado aprova uma escolha do atual mandatário. Antes de Mendonça, havia sido referendado em 2020 o ministro Nunes Marques, que substituiu Celso de Mello. O ex-advogado-geral da União e ex-ministro da Justiça percorreu um longo caminho de quase quatro meses para ter seu nome votado, devido à resistência do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça, (CCJ) em pautar sua sabatina.

A aprovação do nome de Mendonça pode ser considerada uma vitória do presidente Jair Bolsonaro, embora o Palácio do Planalto, devido à demora do Senado de apreciar o nome do ex-ministro, tenha abandonado o candidato à própria sorte. As dificuldades de Mendonça começaram quando Bolsonaro insistiu em ter alguém "terrivelmente evangélico" no cargo para atender parte de seu eleitorado, quando a escolha de um nome para a Corte jamais deveria estar condicionada ao seu credo religioso.

O que faltou ao governo, como ficou claro durante os 105 dias nos quais Mendonça percorreu sozinho os gabinetes de senadores em busca de aprovação, foi articulação política por parte do Palácio do Planalto. Na história recente da República, nenhuma indicação do presidente da República para o Supremo demorou tanto para ser examinada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado quanto a do advogado André Mendonça.

As razões para isso são várias, e vão desde a própria intenção do presidente Jair Bolsonaro de indicar um nome identificado com as pautas conservadoras com as quais se apresenta ao seu eleitorado até uma manifesta atuação estratégica do presidente da CCJ, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que relutava em pautar indicação de Mendonça. Todas elas, no entanto, têm um ponto em comum: são uma evidência da falta de articulação política do atual governo.

A resistência ao nome de Mendonça foi a mais visível aos olhos da multidão. Mas não foi incomum. No auge da popularidade, o então presidente Lula quis nomear seu ministro da Justiça, Tarso Genro, para o STF. Na ocasião, as antenas do Planalto plotaram uma resistência sólida ao nome do petista. Mais hábil que Bolsonaro, Lula simplesmente desistiu da indicação e poupou-se do desgaste.

Sabatina na CCJ

A primeira etapa para a indicação do ex-ministro André Mendonça para uma vaga no STF foi cumprida durante 5 horas. Antes da votação no plenário, por 18 votos a 9, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou seu nome para ser submetido a votação em Plenário. Os senadores seguiram o parecer da senadora Eliziane Gama (PDT-ES), relatora da indicação, e antecipado pela Conjur.

Durante sua sabatina na CCJ, o ex-ministro André Mendonça reafirmou seu compromisso com a democracia e o estado de direito. "A democracia é uma conquista da humanidade. Não há espaço para retrocesso, e o STF é o guardião desses direitos e direitos fundamentais", disse.

"Assumo o compromisso com a Justiça e com o aperfeiçoamento do Estado democrático de Direito. Reafirmo meu compromisso irrestrito com a imparcialidade. Darei tratamento igualitário a todas as partes", completou.

O indicado ao STF também se manifestou sobre a prisão em segunda instância, mas se esquivou de uma resposta mais contundente. "Entendo que a questão está submetida ao Congresso Nacional, cabendo a este deliberar sobre o tema, devendo o STF revistar o assunto apenas após eventual pronunciamento modificativo por parte do Poder Legislativo sobre a matéria e caso o Judiciário seja indagado a fazê-lo", afirmou. Em outras ocasiões, ele já se manifestou favorável à prisão em segunda instância.

O próprio Mendonça fez questão de trazer à tona a questão de sua confissão religiosa, que acabou tomando vulto por causa das manifestações seguidas do presidente Bolsonaro, que insistiu em indicar alguém, segundo ele, "terrivelmente evangélico".

"A Constituição é e deve ser o fundamento para qualquer decisão por parte de um ministro do Supremo. Como tenho dito para mim mesmo: na vida, a Bíblia; no Supremo, a Constituição", afirmou. "Ainda que eu seja genuinamente evangélico, entendo não haver espaço para manifestação pública religiosa durante as sessões do Supremo Tribunal Federal", afirmou.

O ex-AGU lembrou que entre 2016 e 2018, atuou na CGU, onde teve oportunidade de coordenar as equipes de negociação dos acordos de leniência instituídos pela lei 12.186 de 2013 e assim aprimorar a efetividade da recuperação de ativos no Brasil. Nesse período, segundo ele, CGU e AGU firmaram acordos com diversas empresas, inclusive incluídas na "lava jato".

Em outro momento, Mendonça disse acreditar que delação premiada não é elemento de prova. "Eu não posso basear uma convicção com base em uma delação. Delação não é acusação. Dito isso, eu entendo que o combate à corrupção tem que ser feito respeitando-se direitos e garantias individuais. Os fins não justificam os meios, nós precisamos respeitar a política", afirmou Mendonça aos senadores.

"Todo mundo aqui é contra corrupção, lógico. Mas acho que há mais consensos que podemos estabelecer. Não se pode criminalizar a política. Eu aprendi nos meus estudos em Salamanca primeiro que a corrupção é um problema complexo, e o direito sancionador não é um elemento determinante para resolver esse problema", acrescentou.

Ele também argumentou que não utilizou a Lei de Segurança Nacional (LSN) na condição de ministro de Estado para perseguir ninguém e, sim, para responder a ofensas ao presidente da República. "Em boa hora, o Congresso aprovou o texto que revogou a Lei de Segurança Nacional", disse o ministro, afirmando que era sua função, como ministro da Justiça, utilizar a LSN por ofensas ao presidente, sem intenção de perseguir ninguém. "Reafirmo a preservação de direitos e garantias fundamentais. Juiz não é acusado e acusador não é juiz", salientou.

"Sentindo-se o presidente da República ofendido em sua honra por determinado fato, o que significa a análise individual de a pessoa por si própria sentir-se subjetivamente ofendida em sua honra, devia o ministro da Justiça instar a Polícia Federal para apurar o caso sob pena de não o fazendo incidir em crime de prevaricação", completou.

Questões polêmicas

Mendonça também afirmou que "há espaço para posse e porte de arma" no Brasil. Ele, porém, evitou falar sobre a legalidade dos decretos de Jair Bolsonaro sobre o tema. "Há espaço para posse e porte de armas. A questão que deve ser discutida é quais são os limites. Não posso me manifestar sobre o tratamento que foi dado pelos decretos, mas a segurança pública deve ser um objetivo a ser alcançado por todos nós. O principal debate deve ser no Legislativo, mas há um espaço para a regulação", salientou.

Disse, ainda, que não será submisso ao presidente Bolsonaro, embora o mandatário tenha sido responsável pela sua indicação. "Há uma diferença entre ser ministro do governo e ministro do STF", pontuou.

O senador Fabiano Contarato (Rede Sustentabilidade-ES) foi um dos únicos que questionou mais duramente o ex-ministro, ao lembrar diversas ações controversas de Mendonça quando ocupou o ministério da Justiça e a AGU, como assinar pedido de Habeas Corpus do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, quando este afrontou o STF dizendo que era preciso prender os integrantes da Corte.

E também indagou a opinião do indicado sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mendonça tergiversou e disse apenas que não compactua com discriminação, sem responder diretamente se votaria contra ou a favor em um eventual julgamento sobre a questão. Mas disse que defende o direito constitucional de união de pessoas do mesmo sexo.

Demora e fraqueza

O intervalo entre a indicação de Mendonça e a sabatina no Senado foi o maior da história recente da República. Bolsonaro encaminhou o nome do ex-AGU em 12 de julho, depois de passar uma semana insultando o Judiciário e o Senado, disparando ofensas e ataques ao STF, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e à CPI da Covid.

A demora fez com que os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) acionassem o Supremo para obrigar Alcolumbre a marcar a sabatina. No início de outubro, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu que a questão era interna corporis, e que não cabia ao Judiciário interferir no funcionamento de outro Poder da República.

Nas últimas semanas, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, passou a ser cobrado pela omissão de Alcolumbre, principalmente por parlamentares e líderes evangélicos. Na última quarta, Alcolumbre finalmente anunciou que agendaria a sabatina.

Nota de Fux

No início da noite, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, divulgou nota e adiantou que pretende dar posse a Mendonça ainda este ano. "Manifesto satisfação ímpar pela aprovação de André Mendonça porque sei dos seus méritos para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. Além disso, em função da atuação na Advocacia Geral da União, domina os temas e procedimentos da Suprema Corte, que volta a ficar mais forte com sua composição completa. Pretendo dar posse ao novo ministro ainda neste ano", afirma o magistrado.

Severino Goes, originalmente, para o Consultor Jurídico, em 01.12.21

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

As muitas faces de um escândalo

Câmara e Senado se uniram para manter o ‘orçamento secreto’ e afrontar o Supremo com desassombro poucas vezes visto na história recente

 O Congresso mostrou que está disposto a tudo, inclusive a descumprir nada menos que uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), para seguir com a apropriação de uma expressiva parcela do Orçamento da União por meio das emendas de relator-geral – tecnicamente conhecidas como emendas RP-9 – sem qualquer tipo de fiscalização institucional. O único controle, por assim dizer, sobre o manejo de cerca de R$ 16 bilhões em emendas RP-9 no ano que vem, assim como foi em 2020 e 2021, será o conchavo entre quem libera, quem distribui e quem recebe essa dinheirama, uma concertação de bastidor orientada por qualquer coisa, menos pelo interesse público e pelo respeito à Constituição. É o patrimonialismo escancarado.

Na segunda-feira passada, deputados e senadores aprovaram uma resolução conjunta que não apenas institucionaliza o desvirtuamento das emendas RP-9, como sustenta o sigilo sobre a origem e o destino dos bilionários recursos liberados por meio dessa rubrica orçamentária. Na Câmara dos Deputados, a resolução antirrepublicana foi aprovada por folgada maioria: 268 votos favoráveis e 31 contrários. No Senado, a oposição ao texto foi maior, mas insuficiente para fazer prevalecer a decência: 34 senadores votaram a favor da resolução e 32, contra.

O resultado é fruto do esforço pessoal dos presidentes de ambas as Casas Legislativas. Tanto Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, como Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado, manobraram para que o mistério que ronda a liberação das emendas RP-9 permanecesse ao abrigo do escrutínio público. A resolução aprovada prevê que o relator “poderá” dar publicidade aos valores e aos “patronos” dos recursos, mas, obviamente, o tempo verbal não foi escolhido por acaso.

Poucas vezes na história recente do País o STF foi afrontado com tamanho desassombro por outro Poder. No dia 10 de novembro, a Corte ordenou que o governo federal suspendesse imediatamente o pagamento das emendas de relator e que o Congresso desse “ampla publicidade” às liberações realizadas até aquele momento. O STF não fez nada além de reafirmar o princípio da publicidade dos atos da administração pública inscrito na Constituição. A ministra Rosa Weber foi direta ao afirmar que “o regramento pertinente às emendas de relator distancia-se dos ideais republicanos”. Noutros tempos, menos confusos, um “lembrete” desses nem sequer teria que ser feito ao presidente da República e aos presidentes das duas Casas Legislativas.

Mas são tempos estranhos. Tão estranhos que Rodrigo Pacheco, ao defender a astuciosa resolução, chegou a afirmar que “as emendas de relator vão salvar muita gente no Brasil”. Faltou explicar ao distinto público a quem ele se referia.

A bem da verdade, não há nada de ilegal ou imoral na concepção originária da emenda RP-9: é uma rubrica de natureza eminentemente técnica, por meio da qual o relator-geral corrige erros e omissões no Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) encaminhado pelo Poder Executivo. Com a adulteração do propósito da RP-9 para atender a interesses paroquiais, fisiológicos e eleitoreiros, longe dos controles democráticos, atropelam-se a Constituição e os valores republicanos. 

A resolução aprovada pelo Congresso no dia 29 passado estabelece que as emendas de relator não se prestam mais apenas à correção de erros ou omissões na lei orçamentária, mas podem ser usadas para distribuição de recursos do Orçamento da União de acordo com as vontades do Congresso, que assim usurpa uma prerrogativa que é, eminentemente, do Poder Executivo.

A raiz do mau uso das emendas RP-9, portanto, é a absoluta falta de governo no Brasil. O interesse primordial do presidente Jair Bolsonaro não é governar o País, mas sim ser reeleito. Com qual propósito, só ele sabe. Bolsonaro é um ergofóbico incapaz técnica e moralmente de governar. Não surpreende que, a despeito de todos os sérios problemas que estão sobre sua mesa à espera de solução, o presidente encontre tempo para passar horas acenando para motoristas na beira de uma estrada ou para dirigir ônibus pelas avenidas de Brasília. Enquanto isso, o Congresso toma conta do Orçamento e dos destinos do País, desde que estes não colidam com os interesses particulares dos parlamentares.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 01.12.21

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Atlas: Lula amplia vantagem e Moro vai a terceiro lugar, tirando voto de Doria, Bolsonaro e Ciro

Pesquisa da Atlas Político mostra que ex-presidente amplia vantagens sobre adversários com 42,8% de intenções para 2022 e venceria a todos no segundo turno. Ex-juiz alcança 13,7% das intenções. Bolsonaro mantém vice liderança (31,5%) e Doria fica na lanterna

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-juiz Sergio Moro.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ampliou sua vantagem sobre os adversário na corrida eleitoral de 2022, conforme pesquisa do Atlas Político divulgada nesta terça-feira. Se a eleição fosse hoje, Lula teria 42,8% das intenções de votos, contra 31,5% de Jair Bolsonaro (sem partido), reforçando sua liderança. A entrada do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro (Podemos) na disputa bagunçou a chamada terceira via, dividindo a preferência dos eleitores antipetistas. Moro assumiu a terceira posição, com 13,7% dos votos, tirando uma parcela de votos de Bolsonaro, mas também de Ciro Gomes (PDT) ―na quarta posição com 6,1% dos votos―, e especialmente de João Doria (PSDB).

Doria, confirmado candidato tucano após as prévias deste final de semana, foi o candidato que mais perdeu com a chegada do ex-juiz. “O eleitorado de Moro é uma base antipetista, apoiador da Lava Jato, que vê o ex-juiz como herói e busca um candidato mais ao centro”, diz o cientista político Andrei Roman, CEO do Atlas. “Esse resultado reflete o momento de Doria, que já estava com dificuldade de decolar e teve prévias conturbadas com seu partido rachado”, diz.

Aprovação ao Governo Bolsonaro cai para 19%, nível mais baixo desde que chegou ao Planalto

Doria venceu as prévias do partido finalizadas no dia 27 de novembro. Ganhou por uma diferença pequena de votos ―53,99% contra 44,66% do governador gaúcho Eduardo Leite. Enquanto Doria tem a tarefa de reconstituir relações internas e convencer seus próprios pares de que ele é uma opção viável, Moro avança como a novidade numa terceira via. “É a primeira vez que um candidato [da terceira via] vai acima dos 10 pontos desde janeiro”, destaca Roman. A Atlas vem testando os nomes de possíveis candidatos que se opõem a Lula e Bolsonaro desde o início do ano. O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o governador gaúcho Eduardo Leite e o próprio Moro já havia entrado nas pesquisas anteriores, mas nunca havia ultrapassado a barreira dos dois dígitos.

O levantamento on-line feito com 4.401 pessoas entre os dias 27 e 29 de novembro, perguntou como seria a eleição em um cenário sem Moro, para entender o impacto da chegada do ex-juiz nos candidatos. Apenas Lula mantém sua posição inalterada. Bolsonaro saltaria para 34,3% das intenções de voto ― uma diferença de quase 3 pontos percentuais (p.p.); enquanto Ciro iria para 8,5% (+2,4 p.p.); e Doria subiria para 5,7% (+4 p.p.)

“Até então, Bolsonaro não tinha competição”, afirma Roman. O presidente vinha perdendo espaço na corrida eleitoral para sua própria atuação no Governo. A aprovação de Bolsonaro alcançou seu índice mais baixo desde o início de 2019: 65,3% dos brasileiros rejeitam seu Governo. Somente 19% aprovam o seu Governo, a pior marca desde o início da sua gestão, conforme mostra a pesquisa Atlas, divulgada nesta segunda, dia 29.

Segundo turno

Em um cenário de segundo turno, a pesquisa mostra que Lula vence de todos os candidatos: com 50,5% das intenções de voto numa disputa contra Bolsonaro; 46,4% dos votos contra Moro; 42,3% contra Ciro; e 47,2% contra Doria. O número de eleitores que declaram voto em branco, nulo ou que não sabem em quem votar ainda é alto nos cenários em que Lula disputa com Moro, Ciro e Doria, o que mostra que o eleitor ainda está em dúvida. Numa disputa entre Lula e Bolsonaro, somente 13,5% dos eleitores não se posicionam. Esse número sobe, de acordo com o candidato: 24,4% mostram indecisão num confronto entre Lula e Moro, e 37,4% no caso de uma disputa entre Lula e Doria.-

Já no caso de uma disputa entre Bolsonaro e os demais candidatos no segundo turno, o atual presidente perde de todos, menos de João Doria, com quem teve com empate técnico.

O desempenho de Moro mostra um recall positivo do ex-ministro, que saiu de cena em 2019 e seguiu para uma consultoria nos Estados Unidos. Houve sempre uma expectativa se ele abraçaria uma campanha eleitoral, o que se confirmou no dia 10 de novembro em sua filiação ao Podemos, quando se perfilou pré-candidato para liderar a terceira via.

Mas seu avanço na pesquisa expõe também os erros de campanha do pedestista Ciro Gomes, que tem como marqueteiro João Santana. Ciro assumiu uma postura de confronto com o PT em busca de votos no bolsonarismo. A pesquisa do Atlas revela uma falha nesse cálculo, uma vez que votos dele se mostram voláteis e migram para Moro.

Perfil dos eleitores

A pesquisa mostra que 7% dos eleitores que afirmaram terem votado em Bolsonaro na eleição passada agora têm intenção de votar em Lula. O petista também está atraindo 40% daqueles que declararam terem votado em branco ou nulo e 48% dos que não compareceram na eleição de 2018 ― quando 42 milhões de eleitores escolheram não votar em nenhum dos candidatos. Esse público poderia ter mudado o rumo da eleição passada, uma vez que Bolsonaro teve 57,7 milhões de votos Fernando Haddad (PT), 47 milhões.

Moro também está atraindo uma parcela importante de ex-bolsonaristas: 18% daqueles que votaram no atual presidente em 2018 dizem que agora vão votar nele. O ex-juiz também é a aposta de 29% de eleitores que votaram branco e nulo e 22% que não compareceram na eleição passada. O eleitor de Moro é bastante equilibrado no quesito gênero e escolaridade. O ex-juiz tem a preferência de pessoas com mais de 35 anos e dos mais ricos: 30% dos eleitores com renda acima de 10.000 reais têm intenção de votar no ex-juiz.

O petista é um candidato forte entre as mulheres (49% das eleitoras afirmam votar em Lula), a maioria do público com ensino fundamental (45%) e médio (46%). Também os moradores da região Nordeste (51%). Bolsonaro tem 30% dos eleitores nordestinos e Moro, 7%. Lula continua na preferência do eleitor com renda de até 2.000 reais (56%) ― um reflexo do programa sociais, como o Bolsa Família, encerrado na atual gestão com a criação do Auxílio Brasil. Apesar de ser um político veterano, Lula atrai um público jovem: 46% dos eleitores de 16 a 24 anos têm intenção de votar no ex-presidente.

Já Bolsonaro tem a preferência dos eleitores homens (39%), bem divididos entre aqueles com ensino fundamental, médio e superior. O presidente ganha destaque entre 37% de moradores das regiões Sudeste e 35% do Centro-Oeste. A maioria de seus eleitores têm renda entre 2.000 e 3.000 reais (40%), são evangélicos (47%) e têm mais de 35 anos. Bolsonaro mantém um público fiel: 65% daqueles que votaram no presidente na última eleição pretendem repetir o voto.

REGIANE OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em - 30 NOV 2021 - 15:25 BRT

Ômicron: dados ainda são insuficientes, mas variante tem potencial gigantesco de disseminação, diz virologista

Baixa vigilância sobre variantes na América Latina vira ameaça ao mundo

Após Alfa, Beta, Gama e Delta, ômicron entra na lista das variantes de preocupação do coronavírus mantida pela OMS (Getty Images)

O presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), Flávio da Fonseca, diz que os dados disponíveis até o momento sobre a variante ômicron ainda são insuficientes para prever o impacto que terá, mas aponta que ela tem "potencial de disseminação gigantesco".

"Embora os dados ainda sejam fragmentados, está claro que ela (ômicron) tem potencial de disseminação gigantesco — pelo número alto de mutações e pela rapidez com que já se disseminou", disse em entrevista à BBC News Brasil o virologista, que também é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A variante ômicron do coronavírus, detectada na África do Sul, acendeu o alerta entre autoridades de saúde de todo o mundo nos últimos dias - o que gerou medidas restritivas principalmente relativas a viagens com origem em países do sul da África. As ações foram condenadas pelo governo da África do Sul, que as considera injustificadas (leia mais abaixo).

A quantidade e a variedade de mutações na ômicron, algumas delas inéditas, vêm sendo apontadas como motivos de preocupação por cientistas. A nova variante tem uma longa lista de alterações genéticas — 50 no total. Destas, 32 estão na proteína spike (ou espícula) do vírus — a parte que conecta o microorganismo à célula humana para iniciar a infecção.

Ômicron pode ter efeito como o da delta no Brasil?

Antes de sabermos da existência da ômicron, outra variante levou países da Europa e de outras regiões a registrarem novas ondas de infecções: a delta.


É cedo para prever, diz Fonseca. É que a resposta para esta pergunta depende principalmente de dois pontos que ainda não estão claros: dados sobre como as mutações verificadas na variante afetam ou não a eficácia das vacinas e informações sobre o comportamento da variante em países com cobertura vacinal maior que a verificada no sul da África.

"Neste momento, é difícil dizer se a ômicron teria um impacto mínimo na nossa sociedade como a delta teve", diz Fonseca.

"Na delta, com nossa cobertura vacinal crescendo rápida e adequadamente, e com o fato de que tivemos segunda onda muito intensa com um vírus que também apresentava muitas mutações (gama), isso em conjunto explica o impacto que a variante teve no Brasil quando comparado à Europa."

Em seguida, no entanto, ele alerta que a ômicron apresenta uma "constelação de mutações que vai muito além das existentes na gama ou na delta".

É por isso que cientistas buscam agora entender se as vacinas atualmente em uso são capazes de dar a mesma proteção em relação à ômicron.

Fonseca diz que essa resposta, por sua vez, ajudará a entender o possível impacto da variante no Brasil. Além desse fator, ele reforça que os pesquisadores estão atentos ao comportamento dessa variante em regiões com maior cobertura vacinal do que o sul da África, como alguns países da Europa, para buscar mais elementos para tentar prever impactos em território brasileiro.

Presidente da África do Sul condenou as proibições de viagens decretadas contra seu país e seus vizinhos devido à ômicron (Getty Images)

Diversos países já conseguiram detectar casos da variante, como Reino Unido, Alemanha, Itália, Austrália, República Tcheca, Israel, Bélgica, Honk Kong, Botsuana, além da África do Sul.

No Brasil, ainda não houve divulgação oficial de casos da nova variante.

O governo brasileiro anunciou, na noite de sexta-feira (26/11), o fechamento de voos vindos de seis países do sul da África.

EUA, Canadá, União Europeia e Reino Unido estão entre os que anunciaram uma sequência de restrições a viagens e voos vindos de locais em que já há casos confirmados de infecção desse novo tipo de coronavírus.

Depois do anúncio dessas medidas, o presidente da África do Sul condenou as proibições de viagens decretadas contra seu país e seus vizinhos devido à ômicron.

Cyril Ramaphosa disse estar "profundamente desapontado" com as medidas, que ele descreveu como injustificadas, e pediu que as proibições fossem suspensas com urgência.

A ômicron foi classificada como uma "variante de preocupação" pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e informou que evidências preliminares sugerem que essa variante oferece um risco maior de reinfecção de covid-19 do que suas antecessoras.

A médica sul-africana que primeiro identificou a nova variante ômicron do coronavírus, Angelique Coetzee, diz que os pacientes infectados até o momento mostram "sintomas extremamente leves" — mas mais tempo ainda é necessário para avaliar o efeito em pessoas vulneráveis.

Questionada se os países em que a variante foi identificada estão em pânico desnecessariamente, Coetzee diz que, neste momento, avalia que sim.

"Os casos já devem estar circulando nos países sem serem notados. Então, nesse momento, eu diria que com certeza [o pânico é desnecessário]. Em duas semanas, talvez nossa avaliação mude."

Laís Alegretti - @laisalegretti, de Londres para a  BBC News Brasil, em 30 novembro 2021, 11:21 -03

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Moro diz que está conversando com outros partidos para apresentar um 'projeto de Brasil'

No discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidosNo discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. 

O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidos | Foto Divulgação

Sergio Moro continua requisitado pelo mercado financeiro. Mais do que nunca candidato, gravou no fim de semana, em São Paulo, um vídeo de 40 minutos que será exibido no dia 7 no evento Money Week, da EQI Investimentos.

Nele, Moro anuncia que está conversando com outros partidos políticos para apresentar um "projeto de Brasil" em 2022.

O ex-juiz também mostrou-se enquadrado num novo figurino. E não está se falando do terno, camisa social e gravata preta de seus tempos de magistratura — ele estava de paletó azul marinho e camisa social azul clara. Mas da nítida preocupação com a diversificação dos temas: falou por cerca de dez minutos sobre a importância do meio ambiente.

Moro também reafirma seu compromisso de combater a corrupção, deixa claro que é a favor do livre mercado e defende a venda de estatais. Diz Moro:

— Quero deixar claro que sou a favor das privatizações. O que precisamos avaliar é o modelo. Para não transformar eventualmente um monopólio público em um monopólio privado.

Prudentemente, não antecipa se é favorável a desestatizar o Banco do Brasil e a Petrobras, dois sonhos dourados do mercado financeiro.

No mais, diz aquilo a Faria Lima gosta de ouvir. Reforçou que chamou Afonso Celso Pastore para elaborar o seu plano econômico, que tem preocupação com a responsabilidade fiscal, que a iniciativa privada é mais eficiente que o estado e que ainda o país não venceu o desafio da educação.

Lauro Jardim n'O Globo online, às 17:25 de 29/11/2021 

Variante ômicron representa risco global muito alto, diz OMS

Apesar de incertezas sobre transmissibilidade e gravidade, Organização Mundial da Saúde alerta que nova cepa tem mutações preocupantes e pode ter "consequências graves". Variante já chegou a mais de dez países.

A nova variante ômicron do coronavírus, detectada inicialmente no sul da África e potencialmente mais contagiosa, representa um risco global muito alto, afirmou a Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta segunda-feira (29/11).

A agência da ONU afirmou que a ômicron provavelmente vai se espalhar internacionalmente e pode ter "consequências graves" em algumas áreas. A entidade pediu que países acelerem a vacinação de grupos vulneráveis e tenham "planos de mitigação" para o caso de uma alta nas infecções.

Embora ainda haja incertezas em relação ao quão contagiosa e perigosa seja a ômicron, a OMS ressaltou que a nova cepa tem um número sem precedentes de mutações da proteína spike (ou proteína S) do coronavírus, "algumas das quais são preocupantes por seu potencial impacto na trajetória da pandemia".

"O risco global geral relacionado à nova variante é avaliado como muito alto", afirmou a OMS, alertando para possíveis novas ondas de covid-19 impulsionadas pela ômicron.

A presença de mutações múltiplas da proteína spike sugere que a ômicron pode ter uma alta probabilidade de fuga imunológica da proteção por meio de anticorpos e ser mais transmissível, apontou.

A agência ressaltou, no entanto, que são necessários mais estudos sobre o potencial de a nova variante escapar da imunidade induzida tanto por vacinas quanto por infecções anteriores e que ainda não foram registradas mortes ligadas à cepa.

Variante se espalha pelo mundo

A variante foi detectada inicialmente em amostras coletadas em 11 de novembro em Botsuana e em 14 de novembro na África do Sul. Ela foi reportada pela primeira vez à OMS no dia 24 de novembro pela África do Sul, onde somente 24% da população foi completamente vacinada contra a covid-19 e as infecções vêm aumentando acentuadamente.

"Uma alta dos casos, independentemente de uma mudança na gravidade [da doença], pode significar demandas esmagadoras para sistemas de saúde e pode levar a um aumento da morbidade e da mortalidade. O impacto em populações vulneráveis poderia ser significativo, particularmente em países com baixa cobertura vacinal", alertou a agência da ONU.

Após ser reportada pela África do Sul, a variante ômicron já chegou a mais de dez países, entre eles os europeus Alemanha, Bélgica, Itália, Holanda, Dinamarca, República Tcheca, Reino Unido e Portugal. A Áustria e a França analisam casos suspeitos. O Canadá confirmou duas infecções no domingo. Israel e Austrália também tem um caso confirmado cada.

A Anvisa comunicou neste domingo que um brasileiro que passou pela África do Sul está com covid-19, mas ainda não está claro se a infecção dele é com a ômicron.

Países tentam se blindar

A nova variante levou vários países a anunciar restrições de viagens. O Brasil, o Reino Unido, os Estados Unidos e vários países da Europa impuseram restrições para viagens com origem na África do Sul e países vizinhos.

Nesta segunda-feira, embora ainda não tenha detectado nenhuma infecção pela ômicron, o Japão se juntou a Israel e anunciou o fechamento de suas fronteiras para todos os estrangeiros.

"Estamos adotando esse passo como uma precaução emergencial para evitar o pior caso possível no Japão", anunciou o primeiro-ministro, Fumio Kishida, acrescentando que a proibição entra em vigor nesta terça. "Trata-se de uma medida temporária e excepcional que estamos adotando por segurança até que haja informações mais claras sobre a variante ômicron."

No comunicado emitido nesta segunda, a OMS reiterou que países deveriam adotar "uma abordagem baseada nos riscos para ajustar suas medidas de viagens internacionais" e pediu cautela em relação a proibições de viagens.

"Com a variante ômicron agora detectada em várias regiões do mundo, adotar proibições de viagem mirando a África afronta a solidariedade global", disse a diretora regional da OMS Matshidiso Moeti.

O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, apelou a países de todo o mundo para que encerrem logo as restrições a viajantes vindos do sul do continente africano. Ele disse que se trata de uma medida discriminatória, para a qual não há justificativa científica. O chefe de Estado afirmou que o bloqueio apenas prejudica ainda mais a economia e dificulta a capacidade de resposta perante a pandemia de covid-19.

O governo do Reino Unido convocou uma reunião de emergência para esta segunda-feira entre ministros da Saúde dos países que integram o G7, grupo das sete economias mais desenvolvidas do mundo, para debate sobre a variante ômicron.

Deutsche Welle Brasil, em 29.11.21

Escolha de Doria impõe ‘divã’ ao PSDB para curar feridas e ganhar fôlego como terceira via em 2022

Governador paulista é tido como pouco “palatável” e não poupou confrontos na campanha para ser lançado candidato à presidência pelo partido. Com a vitória, terá de refazer laços ao mesmo tempo em que prepara ataques a Lula e Bolsonaro

Ao centro, o governador paulista João Doria comemora vitória nas prévias do PSDB, ao lado do presidente da sigla, Bruno Araújo, e de Eduardo Leite, principal adversário na disputa. (Evaristo Sá / Agencia France Press - AFP)

O maior adversário de João Doria nunca esteve exatamente entre seus pares, por mais que não lhe faltem desafetos dentro e fora de seu partido. O tucano, agora na versão presidenciável, terá que trabalhar o temperamento egocentrado para juntar os cacos que ele ajudou a espalhar dentro do PSDB. A despeito da bem-sucedida campanha de vacinação que encampou desde o início da pandemia de coronavírus e de números razoavelmente positivos da economia estadual, Doria, com vitória apertada nas prévias, terá a tarefa de reconstituir relações internas que serão encaradas numa espécie de divã pré-eleitoral pelas lideranças de seu partido.

O governador de São Paulo precisará alinhar as expectativas e interesses pessoais ao mesmo tempo em que a sua candidatura se depara com o desafio de virar naturalmente uma terceira via. A interlocutores, logo depois do resultado de que fora vitorioso nas prévias, deu a entender que a busca por apoio dentro do partido deve andar de mãos dadas à desconstrução das imagens do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do atual mandatário, Jair Bolsonaro. Mais que isso, Doria entende que o momento é de atrair para sua campanha nomes que disputam com ele furar a bolha do petismo e do bolsonarismo. Sergio Moro será procurado para uma conversa com Doria na próxima semana, ainda que o ex-juiz já tenha se colocado em campo, com viagem marcada para o Nordeste em janeiro, numa extensão da agenda camuflada de candidato que assumiu há pouco mais de um mês.

O desempenho apertado de Doria nas prévias é atribuído por pessoas próximas à dificuldade que ele encontrou para estabelecer novos aliados ou recompor antigas amizades, que, com o tempo, tornaram-se adversários muito além do fogo amigo. Dois deles ajudaram a colocar lama na areia movediça com que o paulista se deparou ao longo do processo para escolha do presidenciável do partido. Depois do fiasco da primeira eleição, no domingo passado, os ex-governadores de Minas Gerais, Aécio Neves, e de São Paulo, Geraldo Alckmin, reforçaram nos últimos dias o que parece ser uma revisitada política do café com leite, àquela que, durante a Velha República, mostrou a briga entre oligarquias paulista e mineira pelo poder nacional.

Agora numa versão exclusivamente tucana, os ex-governadores tiveram influência direta na forma como Doria atuou desde o início do ano, uma vez que procuraram fazer refluir o poder de Doria no partido e, assim, tentar recuperar o espaço que ambos perderam por diferentes motivos: Aécio foi flagrado pedindo propina de 2 milhões de reais para um empresário, enquanto Alckmin foi responsável pelo pior desempenho do PSDB numa eleição presidencial, em 2018, quando ficou em quarto lugar com cerca de 5% dos votos.

Tanto Aécio quanto Alckmin trabalharam nos bastidores a favor do principal adversário de Doria nas prévias, o governador gaúcho Eduardo Leite. Aécio fez jantares com lideranças, em Brasília e Minas, no intuito de atrair simpatizantes. Seus aliados foram a campo. “Estamos fechados com o Leite”, disse o presidente do diretório do PSDB em Minas, que em fevereiro deste ano reuniu 14 parlamentares em um almoço em torno de Leite, em Porto Alegre. Alckmin, padrinho político de Doria, também formou um time contra seu afilhado. Márcio França (PSB), outro ex-governador de São Paulo, aliou-se a Alckmin nas críticas a Doria. “Há tempos que o Doria não governa o Estado, deixou para o Rodrigo (Garcia, atual vice). O projeto do Doria sempre foi chegar a presidente, mas não consegue uma eleição tranquila nem no seu próprio partido.”

Enquanto isso, o governador de São Paulo procurava personificar-se como uma figura central do PSDB, aumentando dia após dia fissuras num partido que anda distante da polarização para 2022 que se avizinha entre o PT de Lula e Jair Bolsonaro, prestes a ingressar no PL. Diante da estatura política ou eleitoral dos adversários, Doria buscou apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que o recebeu em um jantar regado a água com gás em seu apartamento em Higienópolis. FHC gravou um vídeo de apoio ao governador paulista, não sem antes lembrar que Doria precisaria controlar o temperamento intempestivo para que o partido não se tornasse uma armadilha de suas próprias intenções eleitorais.

O tucano ainda enfrentou a prévia com especulações de uma debandada em massa de correligionários do PSDB. Aécio e Alckmin estariam à frente do movimento dissidente na sigla a partir da vitória de Doria nas prévias. Doria precisou dar garantias de espaço aos aliados num eventual Governo, ainda que as pesquisas de intenção de voto não parecem animadoras em ninho tucano, o que tem feito com que parlamentares avaliem um realinhamento de rota. Levantamento do EL PAÍS divulgado um dia após o fiasco da primeira tentativa de eleição, domingo passado, mostrou que pelo menos 13 dos 33 deputados tucanos pensam em deixar a legenda a partir de abril, quando é aberta a janela partidária, para possivelmente ingressar em partidos do Centrão.

Estudiosos da política nacional falam da importância em estabelecer uma relação partidária sem trincas. “Há uma ideologia em torno do petismo e do bolsonarismo, o que o PSDB perdeu em grande medida ao longo dos últimos anos, e isso não é de responsabilidade do Doria. Mas ele terá que rezar na cartilha e buscar apoio de grupos ligados a figuras com as quais estabeleceu uma relação fratricida”, reitera o analista político Rubens Figueiredo.

Ao mesmo tempo em que suava a camisa polo para ganhar apoio nas prévias, seu entourage trabalhou para aplacar o fogo amigo com o discurso da excelência em gestão, o mesmo que o levou à Prefeitura de São Paulo, em 2016, mas que perdeu simpatizantes com o tempo. Doria precisava de musculatura, principalmente contra Eduardo Leite, que, além de exibir o physique du rôle em suas redes sociais, também alardeava uma política de resultados no Rio Grande do Sul, onde sanou dívidas e colocou em dia o pagamento de servidores públicos. A luta contra a pandemia do coronavírus tornou-se bandeira de Doria para tentar fazer dele o único governador responsável por produzir e distribuir vacina para boa parte dos primeiros brasileiros que conseguiram se imunizar. Nem por isso, deixou de avançar sinais. Um trabalho da Agência Lupa, de verificação de dados, mostrou que a redução no número de mortes por covid-19 em São Paulo ocorreu por causa do represamento de dados, e não por políticas de prevenção.

Se é alvo de fogo amigo por conta de suas decisões, o papel de João Doria na campanha de vacinação contra a covid-19 aparece desde já como sua provável principal plataforma eleitoral. Na contramão do Governo federal, que chegou a negar a necessidade de vacina e pregou contra os protocolos de segurança contra a doença, o Governo de São Paulo atuou fortemente para introduzir o imunizante não só no mercado paulista, mas em todo o território. Quando havia cerca de 20% da população vacinada com a primeira dose, a CoronaVac —produzida em parceria entre a chinesa Sinovac e Instituto Butantan, era responsável por quase a totalidade de imunização naquele período.

O empenho do governador rendeu elogios de opositores. No entanto, uma informação vinda à tona na semana passada mostrou que os próprios tucanos tentaram adiar o início da vacinação pelo Governo de São Paulo. Eduardo Leite admitiu ter conversado com Doria a pedido do Governo federal para adiar o início da campanha, sob pretexto de que se fazia necessária uma mobilização nacional. Doria não recuou e no dia ‘7 de janeiro, num evento acompanhado ao vivo pelas emissoras de TV, o Governo de São Paulo deu o pontapé inicial à campanha que ajudou a diminuir os números da doença.

Mesmo orientado a evitar confrontos, o governador continuava comprando briga com personagens importantes do partido pela disputa ao poder. Autoproclamado “um líder confiável, e não palatável”, como repetiu algumas vezes nas últimas semanas, reconhece a dificuldade de interlocução com parte da legenda. Um tucano do alto escalão disse ao EL PAÍS que será necessário colocar o partido numa terapia em grupo para aplacar os traumas.

Dentro do PSDB, o perfil centralizador criou um ambiente indigesto, e restou ao governador correr ele próprio atrás do prejuízo nos últimos meses enquanto nadava contra uma corrente interna. Doria viajou a 21 Estados, reuniu-se com lideranças locais, cobrou lealdade e prometeu empenho para unir o partido. Ligava ele mesmo para cerca de 30 correligionários por dia.

Corrida por votos

A campanha de Doria acompanhou de perto o humor dos filiados. Um núcleo usou um programa de internet que rastreava declarações públicas na imprensa ou posts em redes sociais de vereadores, deputados, senadores, presidentes de diretórios e várias outras faixas de filiados. Telas de TV com a preferência do eleitor foram espalhadas no bunker do tucano. Em azul, mostravam a preferência por Doria, enquanto bolinhas vermelhas indicavam apoio a Leite. Em alguns casos, ao longo das prévias, as bolas mudaram de cor, indicando migração no apoio de uma candidatura para a outra. “Nosso monitoramento mostra desde o início do processo a vantagem do João (Doria). A vitória dele não seria surpresa”, diz Daniel Braga, responsável pelo marketing digital da campanha de Doria.

As estatísticas apontadas no programa de rastreamento indicavam que a briga interna com Eduardo Leite não seria fácil. O humor oscilava, ora a favor de Doria, ora positivamente para o gaúcho. “O João (Doria) fez questão de conversar pessoalmente com muita gente”, diz Marco Vinholi, coordenador de campanha do governador paulista

A agenda de Doria era definida com base na coleta dessas informações, as quais balizavam o mapa de viagens do governador-candidato. Foi num desses encontros, ocorrido no sertão da Paraíba, que Doria discorreu sobre o progresso nos Emirados Árabes. E perguntou: “Alguém aqui já foi a Dubai?”. A sala foi tomada por risadas. Assim que o vídeo viralizou, Doria disse que a pergunta estava inserida num contexto. “Ele é assim, e vai continuar sendo. Doria às vezes parece viver não só fora do ninho tucano, mas em outra dimensão mesmo”, diz um deputado estadual tucano.

A disputa por votos provocou insinuações de que a tesouraria do PSDB havia entrado no jogo. Aliado de Aécio, o deputado estadual Gustavo Valadares (PSDB-MG) publicou no Twitter a informação de que o tesoureiro nacional do partido, César Gontijo, esteve em Belo Horizonte para “pressionar prefeitos que tiveram acesso ao fundo eleitoral em 2020 e cobrando apoio a Doria”. Gontijo não foi encontrado para comentar.

O Estado de São Paulo, embora represente 62% de todos os mais de 1 milhão de filiados registrados no partido (apenas 29.300 votaram), não oferece ainda uma estrada totalmente pavimentada para Doria. O imbróglio no berço tucano acontece justamente com Alckmin no centro do debate. O ex-governador tem intenção de ter seu nome aprovado pelo partido para disputar o Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo paulista, ano que vem. Doria, no entanto, trabalhou para que seu vice, Rodrigo Garcia, deixasse o DEM e, ao ingressar no PSDB, assumisse a corrida à sua sucessão. Na disputa, Doria saiu ganhando e o PSDB confirmou a candidatura de Garcia.

Ao tirar Alckmin da eleição paulista, pelo menos dentro do PSDB, Doria condensou ainda mais os problemas internos. Alckmin tem dito a lideranças que poderá deixar o partido para disputar o posto que já ocupou, ao mesmo tempo em que mantém conversas informais sobre a possibilidade de ser vice na chapa encabeçada por Lula, o que a direção do PSDB tenta evitar. Para isso, dependeria de um realinhamento político pouco provável entre o padrinho e o afilhado. Um ex-secretário do governo paulista hoje influente na Assembleia Legislativa faz um diagnóstico sobre os embaraços impostos ao PSDB nesse processo. “O Alckmin não tem interesse em disputar uma vaga no Congresso, e as conversas no sentido de uma aliança com o PT ainda estão no campo da especulação. Se ele decidir concorrer ao Governo de SP por outro partido, o PSDB perde em força justamente no seu berço político”, diz.

Daqui em diante, Doria seguirá em duas frentes. Além de manter as viagens para angariar o apoio de quem esteve ao lado de Leite, pretende se colocar no espaço ainda esvaziado da terceira via. Para isso, manterá principalmente o embate com Bolsonaro. Assim tem sido nos últimos meses, inclusive com disposição para uma coreografia saltitante no alto de um carro de som numa das manifestações anti-Bolsonaro. Também abraçou publicamente e nas redes sociais os apelidos de “calcinha apertada e coxinha”, como se comum fosse um governante ser tratado dessa maneira até pelo presidente da República. “Ele vai fazer campanha de calça apertada e vai continuar sendo chato”, diz um aliado, lembrando a peça publicitária levada ao ar em que Doria é tido como chato pois cobraria excelência no que faz.

Os tucanos justificaram as prévias como um processo democrático, mas que ao longo do tempo foi contaminada por tentativas dos próprios candidatos de ganhar voto a qualquer preço. Primeiro a tomar um revés foi o próprio Doria. A comissão das prévias do PSDB excluiu o direito ao voto de 92 prefeitos e vice-prefeitos paulistas tidos como próximos de Doria, mas que tiveram filiações contestadas por terem sido feitas foram do prazo limite. Em seguida, foi a vez da campanha do gaúcho ser atingida, enquanto tentava assegurar os votos de outros 34 nomes, que também acabaram foram da eleição pelo mesmo motivo.

Até mesmo o aplicativo de internet que serviria como instrumento de votação foi colocado à prova, criando embaraços para todo o PSDB, enquanto Doria procurava outra saída para a votação. O clima esquentou quando, um dia antes da eleição, um vereador de uma cidade no interior de São Paulo gravou um vídeo mostrando que ele havia conseguido se registrar em nome de um outro filiado escolhido aleatoriamente.

Dias atrás, Doria atacou fortemente o orçamento secreto do Governo Bolsonaro. “Quem manda no orçamento do Governo é o presidente da Câmara. E a gente nunca fez isso na história política do Brasil, exceto agora no Governo Bolsonaro”, disse Doria. O governador, no entanto, também decidiu abrir os cofres e aumentou os repasses de verbas políticas para atender a pedidos de parlamentares. O volume de recursos, considerado inédito entre os políticos, beneficia não só seus aliados na Assembleia Legislativa, mas até mesmo deputados federais. O vínculo de cada parlamentar com as liberações, feitas com recursos públicos, não é divulgado ao público pela gestão tucana. O valor é quase seis vezes o liberado pelo Governo com essa finalidade em todo o ano de 2020 —de aproximadamente 182,9 milhões de reais.

Doria deve permanecer à frente do Palácio dos Bandeirantes até abril do ano que vem, quando terá de deixar o cargo. Até lá, deve manter a rotina frenética de reuniões, visitas, inaugurações e viagens, no papel de governador. Também não abandonará a dieta magra em carboidratos e as aulas de musculação, assim como os polivitamínicos, já apelidados de Vita|D (de Doria, claro), os mesmos que ele distribui para assessores e secretários. O governador de São Paulo entra na corrida à sucessão presidencial com fôlego para uma disputa de 100 metros rasos. Tem pela frente, no entanto, uma corrida quilométrica de obstáculos.

FLÁVIO FREIRE, de São Paulo para o EL PAÍS, em 28 NOV 2021 - 12:24 BRT

Aprovação ao Governo Bolsonaro cai para 19%, nível mais baixo desde que chegou ao Planalto

Pesquisa Atlas mostra que aprovação à figura do presidente também chegou ao índice mais baixo: 29,3% dos brasileiros aprovam seu desempenho. Corrupção, inflação e desemprego são as maiores 

O presidente Jair Bolsonaro durante entrevista coletiva em viagem a Dubai, em 15 de novembro- (AFP)

A aprovação do presidente Jair Bolsonaro alcançou seu índice mais baixo desde o início de seu Governo: 29,3% dos brasileiros aprovam seu desempenho na presidência, enquanto 65,3% o rejeitam, conforme mostra a pesquisa Atlas, realizada pelo AtlasIntel e divulgada nesta segunda-feira. O levantamento também aponta que para 59,7% da população a gestão do mandatário é ruim ou péssima, enquanto 19% a classificam como ótima ou boa. A queda ocorre em meio à crise econômica que atinge o país: 59% dos entrevistados apontaram questões como corrupção, desemprego, inflação, desigualdade social e pobreza como alguns dos principais problemas do Brasil.

A desidratação da popularidade de Bolsonaro já aparecia nas sondagens anteriores, com queda na avaliação positiva do Governo de 36%, em agosto, para 32%, em setembro, para agora não chegar numericamente aos 30%. Já a alta da rejeição evolui de forma menos intensa, passando de 62%, em agosto, para 64% na consulta de setembro —e agora 65%. O levantamento atual ouviu dos 4.921 pessoas de forma on-line, via convites randomizados, entre os dias 23 e 26 de novembro. A margem de erro é de um ponto percentual, para mais ou para menos, e índice de confiança é de 95%.

A primeira pesquisa de popularidade publicada após a conclusão da CPI da Pandemia no Senado —cujo relatório final pede o indiciamento de Bolsonaro por crime contra a humanidade, além de delitos como incitação e propagação da pandemia— aponta um enfraquecimento do núcleo de apoiadores fiéis do bolsonarismo que sempre serviu de flutuador para o Governo em meios às crises que pressagiavam naufrágios. “Esse recorde de impopularidade deveria preocupar o presidente, porque sua aprovação caiu abaixo do que, por muito tempo, considerávamos um piso (30%)”, comenta o cientista político Andrei Roman, CEO do AtlasIntel. Ele destaca que o cenário aponta um fenômeno sustentado, “mais estrutural”, de queda de aprovação, ao lembrar que o presidente só havia despertado proporcional rejeição de forma temporária, quando o noticiário dava conta de escândalos políticos e de corrupção, como o esquema das rachadinhas (que consiste em contratar funcionários fantasmas pelos gabinetes e reter parte de seus salários) no qual sua família é investigada. “Também acontecia quando havia queda de ministros ou de nomes fortes do Governo, mas essa impopularidade agora se dá na ausência de qualquer crise desse tipo”, avalia Roman.

Para o pesquisador, os números indicam que o chamado “núcleo duro do bolsonarismo” não está imune à inflação galopante —os juros já subiram de 2% em janeiro para 7,75% no início de novembro—, ao aumento de preço de mercadorias, como a gasolina, que superou os sete reais, e ao desemprego. Mais de 13 milhões de brasileiros estão sem trabalho (13,2% no último trimestre) e 25 milhões trabalham por conta própria (desde o motorista do Uber ao entregador de comida). A renda do trabalhador despencou 10% no último ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Abaixo da corrupção, citada por 21,4% dos participantes da pesquisa Atlas, aparecem a pobreza e desigualdade social, escolhidas por 19,3% dos respondentes como “o maior problema do Brasil hoje em dia”. Nas pesquisas realizadas em 2020, o indicador “corrupção”, impulsionou a eleição de Bolsonaro em 2018 com a promessa de combatê-la, era citado por 40% das pessoas como o principal problema do país. “A população passou a enxergar a economia como um tema mais importante e 46% acreditam que os preços subiram fora de controle nos últimos seis meses. Essa é uma preocupação que penetra todos os segmentos da sociedade. Enquanto Bolsonaro não controlar a inflação, melhorar os índices de desemprego e gerar crescimento econômico, continuará perdendo apoio”, diz Roman. O cientista político pondera, no entanto, que como o presidente apostou suas fichas no auxílio emergencial distribuído durante a pandemia para chegar a outro eleitorado, tem chance de melhorar sua imagem com a “população que reage a estímulos econômicos”.

A pesquisa Atlas mostra que os desafios econômicos do país devem ser destaque nos debates políticos e eleitorais do ano que vem. “Todos os candidatos terão que demonstrar credibilidade para enfrentar esse cenário. As pessoas acreditavam que, se não com o final, pelo menos com o controle da pandemia a economia poderia melhorar, mas esse horizonte nunca chega.”

Bolsonaro x Moro

A popularidade de Bolsonaro piora no momento em que o xadrez para as eleições de 2022 se movimenta. Enquanto a aprovação de Bolsonaro cai, aumenta a do seu ex-ministro da Justiça —e hoje desafeto— Sergio Moro, recém-filiado ao Podemos e potencial candidato. A pesquisa Atlas aponta que a imagem positiva do ex-magistrado chegou a 30% (era de 25% em setembro), enquanto sua imagem negativa, que chegou a ser de 63% em março deste ano, diminuiu para 55%. “São processos que se retroalimentam”, diz o CEO do AtlasIntel. 

“Na medida em que o Governo enfrenta problemas de diversos tipos, desde gestão incompetente em várias áreas e uma atuação internacional onde fica cada vez mais claro que o Brasil está isolado, Sergio Moro vem se firmando como alternativa ao Bolsonaro dentro do núcleo antipetista da população.”

Quem também teve uma leve melhora de imagem segundo a pesquisa foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: de 46% em setembro para 48%. De acordo com Ronan, isso pode se explicar pela visita do ex-presidente à Europa e o contraste com o tipo de diálogos que Bolsonaro mantêm com líderes globais. O petista discursou no Parlamento Europeu, no dia 15 de novembro, e aproveitou para esboçar uma proposta para a eleição do ano que vem, citando medidas contra a pobreza. Segundo Ronan, a imagem de Lula vem melhorando desde que foram anuladas, em abril, as condenações da Lava Jato que pesavam sobre ele. “44,9% da população é contra a prisão de Lula, mas o mesmíssimo percentual é a favor disso, mesmo depois do processo, e parece quase impossível reverter a opinião desse segundo grupo”, destaca o cientista político, lembrando que os afetos movidos pela figura do ex-presidente também serão uma das dinâmicas mais importantes de 2022.

JOANA OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em  29 NOV 2021 - 06:35 BRT

Os brasileiros que sobrevivem com comida de porco e água suja: 'Um balde para seis tomarem banho'

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

Comunidade da Muvuca, em Maceió, convive ao mesmo tempo com a escassez de alimentos e com a quase total falta d'água (Crédito: Josué Seixas)

Williams Tavares, de 19 anos, interrompe o telefonema com a reportagem para ajudar uma mulher e uma criança a transportar água para dentro da comunidade Muvuca, no Vergel do Lago, uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas. Ele retorna à ligação ofegante.

"Aqui, tudo é precário. Se em alguns dias falta o dinheiro até mesmo para comprar o pão ou a mistura, o que dá para fazer quando falta a água de beber ou de tomar banho?", diz Páscoa, como o morador da comunidade é conhecido.

Há 3,6 mil barracos na Muvuca, diz ele. Em alguns, vivem sete pessoas "espremidas". A BBC News Brasil esteve ali em visita intermediada pelo projeto Consultório na Rua, de acolhimento a pessoas vulneráveis, promovido pela Prefeitura de Maceió.

Era uma tarde, e a comunidade estava em silêncio, com muitos animais e moscas por entre as casas, bicicletas e motos paradas.

Só as mulheres estavam presentes. Os homens saem de casa antes das 7h da manhã para trabalhar. Eles são, em sua maioria, carroceiros e marisqueiros. A maioria volta no fim da tarde.

Não há saneamento básico, e apenas duas torneiras abastecem todas as famílias. Uma das moradoras contou que faz as necessidades fisiológicas em uma sacola, que é descartada na lagoa ou num descampado, hábito comum na região.

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

"Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa", conta Páscoa.

Apesar da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, o preço dos barracos foi inflacionado pela pandemia. Há 12 anos, Alexsandra* pagou R$ 5 mil no dela. Agora, alguns já valem mais de R$ 30 mil.

"As coisas apertaram quando essa pandemia chegou. Meu marido é carroceiro, eu sou dona de casa. Ele vive trabalhando, eu fico aqui ajeitando uma coisa, ajeitando outra", conta ela.

Sem saneamento ou serviços públicos, lixo da comunidade fica jogado e serve de alimento aos porcos. (Josué Seixas).

Água suja

Na casa de Alexsandra, a água chega bem fraquinha. Seu marido, Marivaldo, foi um dos moradores que ajudaram a cavar um buraco a 200 metros da Muvuca, onde fica o "cano-mestre" de água da região.

Graças a doações, os moradores conseguiram interligá-lo a cinco barracos, que daí distribuem a água para os vizinhos.

"Passamos semanas, até um mês, sem água, que não é limpa. É suja. Nós ficamos com dor de barriga, e muita gente fica doente. (Mas) serve para a gente beber, cozinhar e tomar banho. Usamos baldes. Tem dia que um balde serve para cinco, seis pessoas tomarem banho."

Na Muvuca, a distribuição de água é responsabilidade da BRK Ambiental, empresa privada que assumiu os serviços de saneamento na região metropolitana de Maceió em julho deste ano.

A companhia reconhece a falta de uma rede local e explica que "os ramais existentes na localidade e utilizados pela população não fazem parte da rede pública, foram construídos no passado como uma solução informal, não regularizada no município".

A mãe de criança de cinco anos presa há 100 dias por furto de água

A concessionária diz que ainda avalia, junto aos órgãos competentes, como atuará em áreas não regularizadas pelo poder público, mas estima que, até 2027, deve universalizar o acesso à água em toda a Região Metropolitana de Maceió, com investimento de R$ 2,6 bilhões.

Outra moradora, Marleide, de 44 anos, conta que uma forma de contornar a falta de água é pagar a alguém para buscar no Rio do Remédio, que se encontra com a lagoa ali perto. "E nem sempre está boa para beber, viu?"

Marleide ajuda a cuidar da sogra, a ex-marisqueira Maria, de 56 anos, conhecida como Vaninha, que ficou cega por conta da diabetes e passa a maior parte do tempo deitada na cama.

Ela depende da família para ter água para o banho e se sustentar, porque o dinheiro da aposentadoria não tem sido suficiente para comprar comida e remédios.

Há 3,6 mil barracos na comunidade Muvuca, diz ele (Josué Seixas)

'Somos esquecidos'

Páscoa vive em um barraco com a avó e a irmã mais nova. Por não serem marisqueiros ou carroceiros e trabalharem com outras coisas, estão em condições um pouco melhores que a maioria dos moradores da Muvuca.

Antes, quando a família dividia o mesmo espaço entre sete pessoas, ele pedia dinheiro nos sinais de trânsito. Atrasou os estudos por conta disso — hoje, está no segundo ano do ensino médio, e quer cursar Direito.

"Eu fiz um curso de almoxarife, tento fazer bicos, faço um curso técnico de assistente administrativo e quero passar numa faculdade. Dá pra contar numa mão quem tem carteira fichada [emprego CLT] aqui na Muvuca", diz.

"Aqui é a gente pela gente. A Muvuca fica mais afastada de tudo. Não tem médico, remédio, exame, nada. Eu mesmo já fui para uma UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] em cima de uma carroça", conta.

Alexsandra, que estava por perto, completa: "Nós somos esquecidos''.

Como fome vivida no útero e na infância prejudica o corpo por décadas

Páscoa faz a interlocução com os demais moradores da Muvuca e ajuda a coletar água (Crédito: Josué Seixas)

Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em economia regional, diz que, em comunidades como a Muvuca, a pobreza estrutural se soma à dependência de políticas públicas.

"O fenômeno da pobreza não é recente. Podemos dizer que houve uma queda até 2015, mas o processo [de empobrecimento] vem se acentuando desde então."

De acordo com o Ministério da Cidadania, Alagoas tem 689 mil famílias inscritas no CadÚnico de programas sociais federais, das quais 425 mil recebiam o Bolsa Família.

No ano passado, o auxílio emergencial cobriu 1,2 milhão de pessoas no Estado, com um valor que variava entre R$ 600 e R$ 1,2 mil. No segundo semestre, caiu pela metade e, na parcela mais recente, foi fornecido a 717 mil pessoas no Estado, com valores entre R$ 150 e R$ 370.

Como pobreza agrava tragédia 'invisível' de acidentes com queimaduras no Brasil

Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, Alagoas teve mais 38,6 mil pessoas empurradas à pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 89 por mês. O número total chega a quase 1,2 milhão de pessoas, o que corresponde a 35% da população do Estado.

A crise que o país atravessa se revela ainda pior em Alagoas, que tem a quarta maior taxa de desemprego do Brasil (18,8%), acima da média nacional (13,7%), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de agosto.

"Qualquer aumento de desemprego e inflação dificulta muita coisa para essas pessoas. Quando a renda média cai, as pessoas passam necessidade", explica Carvalho.

Amanda, de 25 anos, está grávida e, enquanto segura uma filha, observa outro filho ao seu lado. Na geladeira, tinha só um refrigerante, um saco de banana, um pouco de água e mais dois pacotes de leite em pó.

Eram 15h, e ela ainda esperaria mais três no mínimo até que o marido chegar do trabalho com o pão e uma mistura — ou nada. Ela conta que se pegou chorando ao encarar a geladeira que anos atrás já esteve cheia.

A pandemia foi uma época diferente para Amanda, de 25 anos, e sua família. No começo, por ter dois filhos, recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 1,2 mil e conseguia assim pagar as contas. Beneficiada pelo Bolsa Família por conta dos filhos, Amanda também disse não saber o que seria dela com o fim do benefício.

"Todo dia é assim a luta da gente. Tem dia que Deus manda [comida], tem dia que não manda. Aumentou o preço de tudo, e já estão falando que o gás vai aumentar de novo. Meu Deus do céu, onde a gente vai parar?", diz.

*Os sobrenomes da maioria dos entrevistados foram omitidos para evitar sua exposição.

Josué Seixas, de Maceió (AL) para a BBC News Brasil, em 28 novembro 2021.

Brasil é país com menor rejeição à vacina na América Latina, diz Banco Mundial

Os dados indicam que as repetidas declarações do presidente Jair Bolsonaro que lançam dúvidas sobre a segurança e a eficácia da imunização não encontraram aderência na população brasileira, mesmo entre seus apoiadores.

Enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%

É o que concluiu uma pesquisa feita em parceria pelo Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a partir de ligações telefônicas periódicas a domicílios de 24 países da América Latina. Os dados da segunda fase do levantamento foram apresentados nesta segunda-feira (29/11) em Washington.

Segundo o estudo, enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%. De outro lado, enquanto na média, 51% dos latino-americanos já estão imunizados contra a covid-19, no Brasil, o percentual ultrapassa os 80%.             

No gráfico, em inglês, produzido pelo Banco Mundial, a barra em azul representa o percentual de população vacinada em cada país, em amarelo, a taxa de quem ainda não tomou as duas doses, mas pretende se imunizar, e, em vermelho, a de quem recusa vacina

Bolsonaro é o único líder do G-20 a afirmar não ter se vacinado. O presidente já afirmou, sem qualquer evidência científica, que quem tomasse vacina da Pfizer poderia "virar jacaré", associou o imunizante a desenvolvimento da AIDS e sugeriu que a Coronavac, produzida pelo Butantan em parceria com a China, causava "morte, invalidez, anomalia".

Apesar disso, atualmente o Brasil já supera os americanos e alguns países europeus em cobertura vacinal, graças a forte adesão da população.

Especialistas em saúde pública atribuem o fenômeno à cultura de imunização alimentada por anos em campanhas massivas de vacinação promovidas pelo Sistema Único de Saúde - e em que a figura central era o Zé Gotinha.

Além disso, o fato de o programa de transferência de renda Bolsa Família e as escolas e creches públicas requererem a vacinação para garantir o benefício e as vagas também geram engajamento da população.

Para os estudiosos, no entanto, é preciso estar atento aos possíveis efeitos de longo-prazo de declarações de autoridades contra vacinas. A cobertura vacinal no Brasil vem registrando queda desde 2011 e uma das causas pode ser justamente a hesitação vacinal.

De acordo com o estudo do Banco Mundial, áreas rurais e pobres são hoje as mais afetadas por sentimentos antivacina na América Latina. "Entre os não vacinados, mais da metade afirma que sua indisposição deriva da falta de confiança e uma preocupação com a eficácia da vacina. A hesitação vacinal é particularmente alta entre as famílias rurais e indivíduos com níveis de escolaridade mais baixos. A população do Caribe apresenta os níveis mais altos de hesitação vacinal", afirmam os pesquisadores no relatório.

O Haiti é o país com a menor taxa de vacinação contra o novo coronavírus (menos de 1%) e com a maior proporção de pessoas que dizem se recusar a tomar o imunizante (quase 60%). O Haiti também foi a última nação das Américas a receber doses para iniciar a campanha de imunização, que segue a passos lentos.

Atrás dos haitianos, habitantes de Jamaica e Santa Lúcia são os que mais recusam vacina, com 50% e 43%, respectivamente.

Pesquisa do Banco Mundial sugere que declarações de Bolsonaro que desqualificam imunizantes contra covid-19 não encontraram aderência nem mesmo entre os eleitores do presidente

Saúde melhorou, educação nem tanto

O relatório aponta ainda que o acesso à saúde no continente melhorou e já retornou a níveis pré-pandêmicos.

Enquanto 48% da população latina, em média, buscou atendimento médico emergencial há pouco tempo, percentual semelhante (47%) afirmou ter ido ao médico recentemente por razões preventivas, o que, segundo os autores do estudo, revela que os serviços públicos e privados de saúde já não estão mais sobrecarregados pela pandemia como aconteceu no pico da contaminação na região.

O mesmo, no entanto, não aconteceu em relação ao acesso à educação.

Mais de um ano após o início da pandemia, apenas 23% das crianças em idade escolar na região frequentavam aulas presenciais. No Brasil, o percentual ficou em torno de 40%. A qualidade da educação oferecida à distância e a falta de conexão à internet segura e de qualidade de parte da população geram preocupação sobre o futuro de crianças e adolescentes.

"Menor envolvimento em atividades de aprendizagem e baixo comparecimento face a face representam riscos significativos para os resultados de aprendizagem das crianças e para a acumulação de capital humano. Estimativas recentes revelam que os alunos na região perderam entre 12 e 18 meses de escolaridade. Aqueles de baixo nível socioeconômico foram particularmente afetados, o que sugere efeitos negativos duradouros sobre a mobilidade social e a desigualdade", diz o relatório da pesquisa.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington para a BBC News Brasil em Washington, em 29 novembro 2021, 14:26 -03

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O protesto de ex-escravos no Maranhão que acabou em massacre

Pouco conhecido, episódio ocorrido no Maranhão em 1889 e chamado de "massacre de 17 de novembro" foi motivado pelo receio de que o fim da monarquia e o novo regime republicano significariam a volta da escravidão.

Era ainda bastante precária a comunicação naquele novembro de 1889. Tanto que as notícias de que o Brasil deixava de ser uma monarquia e passava a ser uma república chegaram a São Luís, no Maranhão, apenas na edição de 17 de novembro de 1889 do jornal republicano O Globo — dois dias depois do fato ocorrido no Rio, então capital do país.

Apesar dessa lentidão no fluxo de informações, há algo em comum com os dias atuais: boatos infundados rivalizavam com as notícias verdadeiras e, por vezes, meios de comunicação e jornalistas eram os alvos da ira.

Foi nesse contexto que uma pouco conhecida rebelião ocorreu: entre 2 mil e 3 mil negros, chamados pela imprensa da época de "libertos", "ex-escravos" e "cidadãos de 13 de maio" — em alusão à data da Lei Áurea, proclamada no ano anterior — foram até a praça em frente à sede do jornal, um veículo republicano.

Era um protesto contra a República recém-proclamada e pela volta da monarquia extinta. Mas o que esses militantes queriam, na verdade, era garantir seus direitos. Estavam movidos por uma fake news: a de que o novo regime os "reescravizaria". Na lógica do boato, a explicação estava em dois pontos: fora a monarquia que havia decretado a lei libertadora; e a República tinha na sua base a elite ruralista, ou seja, justamente os escravocratas.

Armados com fuzis, 12 soldados foram destacados para proteger a praça, o jornal, a cidade. E não pestanejaram: dispararam contra a multidão. Oficialmente, foram quatro mortos e dezenas de feridos. Mas historiadores acreditam que o número possa ser ainda maior.

"O massacre de 17 de novembro foi o desfecho violento de um grande protesto de gente negra contra as notícias da proclamação da República", explica o sociólogo Matheus Gato, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e República no Brasil.

"Essas pessoas imaginaram que a mudança de regime podia levar a retrocessos no tocante ao direito de liberdade que muitas delas haviam conquistado pouco tempo antes", acrescenta.

Contribuiu para a confusão o ambiente de profunda desorganização institucional. Conforme conta Gato, as notícias da proclamação no Maranhão foram, naquele momento, veiculadas apenas pelo jornal O Globo — nenhuma instituição oficial havia se posicionado a respeito.

Em artigo publicado no livro História do Maranhão: Novos Estudos, o historiador Luiz Alberto Ferreira afirma que foram mais de 400 os feridos, muito deles com gravidade. E argumenta que os soldados atiraram "para matar", considerando que relatórios da Santa Casa, feitos na época, indicam que muitos "foram alvejados na parte superior do corpo".

O historiador chama o acontecimento de fuzilamento e de massacre.

Assassinato de memórias

A despeito do número relativamente pequeno de mortos, o sociólogo Gato concorda com a definição de massacre porque, além da intenção de matar, a ideia de massacre não seria apenas baseada na "quantidade de vítimas", mas também da maneira como as memórias são assassinadas.

No caso do episódio, eram homens que estavam dispostos a dar suas vidas pelo medo de serem escravos novamente. A ideia de massacre, para o sociólogo, resume então "todo o conjunto de violências e humilhações", a base da "formação do racismo estrutural brasileiro".

Outra evidência encontrada nas pesquisas realizadas por Gato diz respeito ao alto número de amputações realizadas dentre os alvejados que foram atendidos no hospital logo após o incidente. Também se somam aos relatos casos de tortura contra aqueles que acabaram detidos por incitarem a confusão.

O historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador vinculado a Universidade de Estrasburgo, na França, avalia que o episódio tem esse potencial para romper o lugar-comum de que o episódio da proclamação da República foi assistido passivamente pela população brasileira.

"Tem uma importância crucial no entendimento da formação da sociedade moderna por evidenciar esses conflitos em torno da questão política e da disputa de diferentes agentes desse processo político", diz Reis. "Revela muito sobre nossa formação enquanto país e as disparidades existentes entre as regiões, dado que não foi unânime a nossa proclamação da República."

Na opinião dele, na análise do episódio não está em discussão "simplesmente a defesa da monarquia ou da república", mas principalmente a participação popular.

Apagamento histórico

Gato explica que o episódio do massacre de 17 de novembro é pouco conhecido da historiografia porque "houve uma tentativa de banalizar e silenciar o lugar desses revoltosos no período de mudança de regime político".

Ele mesmo conta que se deparou com os relatos pela primeira vez em obras de ficção, como em textos do escritor maranhense Raul Astolfo Marques (1876-1918).

Instigado pelas narrativas, decidiu buscar o contraponto nos jornais da época. "Eu pensei que [essas histórias] se tratassem de ficção. Mas, para minha surpresa, descobri que, sim, o episódio havia mesmo acontecido."

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deutsche Welle, em 17.11.21

Há 125 anos, Canudos escancarou dificuldades do Brasil rural

Milhares de sertanejos, seguidores de Antônio Conselheiro e suas promessas messiânicas, acabaram dizimados pelo Exército. Mais de um século depois, vulnerabilidades da população rural persistem, apontam historiadores.

Foi um chacoalhão e tanto na República, ainda bastante jovem. Entre 1896 e 1897, entraram em conflito armado o Exército brasileiro e a comunidade liderada pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia. A Guerra de Canudos teve sua primeira batalha há exatos 125 anos, em 24 de novembro de 1896.

"Canudos foi o primeiro grande movimento social de contestação da ordem republicana, que provocou derrotas humilhantes para as autoridades brasileiras", define o historiador Paulo César Garcez Marins, pesquisador do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).

"Foi uma demonstração de quanto a população sertaneja, distante das grandes cidades do litoral, poderia forjar uma experiência política e social de grande envergadura, capaz de afrontar o sistema político e também as redes de poder locais e regionais."

Em um contexto de seca, latifúndios improdutivos e muito desemprego, milhares de sertanejos não pestanejaram em seguir Antônio Conselheiro, cujas pregações mesclavam religião e crítica social e se apoiavam na crença de uma salvação milagrosa. Logo, os rumores passaram a ser de que o grupo se preparava para atacar cidades vizinhas e teria um ousado plano de depor o governo republicano e reinstaurar a monarquia no Brasil. E o Exército brasileiro não conseguiu conter os revoltosos facilmente — ao contrário, amargou algumas derrotas.

"Canudos é, e já era para seus contemporâneos, um espanto e uma evidência da força do povo sertanejo, que tentava construir uma outra experiência urbana, econômica, social e política, que escapasse dos quadros tradicionais do mandonismo político das elites regionais do que hoje chamamos Nordeste", analisa Marins.

"O fato de ter, inclusive, derrotado três vezes as tropas enviadas para sua subjugação, colocara a própria autoridade nacional, e o Exército brasileiro, em questão, o que sinalizava a fragilidade institucional do novo regime republicano e também sua brutalidade, dado o elevadíssimo número de mortes e execuções no momento em que finalmente se venceu."

A guerra terminaria apenas em outubro de 1897, na quarta incursão dos militares em Canudos — no total, foram mobilizados 12 mil soldados. O saldo final foi o vilarejo incendiado e quase toda a população executada — estima-se que tenham sido 25 mil mortos. Conselheiro, o líder, havia morrido um mês antes, provavelmente em razão de ferimentos decorrentes da explosão de uma granada.

Revelação das mazelas rurais brasileiras

Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), "Canudos foi uma revelação", e aí reside sua importância histórica.

"De um lado revelava-se uma população, uma paisagem e as duras condições de vida e de trabalho, marcadas pela pobreza extrema, a opressão, a violência e a exploração intensiva da mão de obra pelos grandes proprietários rurais", analisa.

"De outro, o desconhecimento, a indiferença, o preconceito e a discriminação de autoridades civis e militares e da elite cultural e econômica sobre a realidade social do Brasil em sua primeira década de regime republicano", pontua. "A ausência e a manipulação de poderes e de serviços públicos colocou em evidência o caráter oligárquico e autoritário dos governos republicanos, em escala nacional, regional e local."

Antônio Conselheiro morreu pouco antes do fim da guerra, que deixou um saldo estimado em 25 mil vítimasFoto: Flávio de Barros/Public Domain

Na época, o discurso oficial era de que os revoltosos representavam um risco para o regime republicano e a própria ordem econômica e social da nação. À medida que o Exército sofria derrotas em Canudos e percebia-se uma dificuldade de extinguir o movimento, ressentimentos foram acumulados. O objetivo passou a ser um só: "a aniquilação material, social e política" do grupo — nas palavras de Martinez.

Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie, o historiador Gabriel Leite Neres avalia que Canudos, embora tenha sido uma guerra relativamente curta, "representou as contradições e tensões de um Brasil em processo de construção".

"Foi a primeira convulsão social histórica que demonstrou os abismos do período", acrescenta. "A crise de partes da sociedade devido às políticas realizadas pelo regime oligárquico apresentou não um Brasil, mas sim brasis divididos espacialmente."

Sedimentada pelo tempo, a guerra ganhou uma compreensão historiográfica contemporânea —  passou a ser vista dentro de um contexto de insurreições rurais que ocorreram ao longo de toda a segunda metade do século 19.

"É um fato sempre lembrado e muito referido pelo que trouxe ao Brasil e ao mundo naquele momento: a espoliação das populações rurais, a privação que esta sempre enfrentaram na garantia de suas posses, roçados e criações, a exclusão de direitos básicos de cidadania, a começar pela assistência social, direitos trabalhistas e autonomia política", diz Martinez.

Para o historiador, atualmente "Canudos reaparece sempre como o retrato de uma situação que perdurou no tempo e no espaço, lembrando o quanto essa população rural sofreu e sofre nos dias de hoje com a violência social e estatal, as migrações forçadas, as más condições de vida e de trabalho, o desamparo governamental e a exploração de suas fragilidades e necessidades pela manipulação política, ideológica e eleitoral".

Consciência social

Nesse sentido, a revolta simboliza também uma maneira — ainda que originalmente caracterizada como uma seita — de conscientização social. E, conforme atenta o historiador, as privações e vulnerabilidades da população pobre rural não mudaram muito nesses 125 anos, a despeito da modernização da economia agroindustrial.

"[Na verdade, esta] apenas reitera e aprofunda o cenário trágico de pobreza, de violação de direitos e de cidadania", enumera Martinez.

Para Marins, vale ressaltar que a "rápida mobilização" dos que atenderam ao chamado de Conselheiro proporcionaram um movimento de crescimento "rápido e eficaz, ainda hoje sem paralelo no país".

Traços do que motivou Canudos seguiram reverberando em episódios de lá para cá, como a marcha da Coluna Prestes, o cangaço, as Ligas Camponesas e, mais recentemente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deustsche Welle, há 23 horas.