segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Os brasileiros que sobrevivem com comida de porco e água suja: 'Um balde para seis tomarem banho'

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

Comunidade da Muvuca, em Maceió, convive ao mesmo tempo com a escassez de alimentos e com a quase total falta d'água (Crédito: Josué Seixas)

Williams Tavares, de 19 anos, interrompe o telefonema com a reportagem para ajudar uma mulher e uma criança a transportar água para dentro da comunidade Muvuca, no Vergel do Lago, uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas. Ele retorna à ligação ofegante.

"Aqui, tudo é precário. Se em alguns dias falta o dinheiro até mesmo para comprar o pão ou a mistura, o que dá para fazer quando falta a água de beber ou de tomar banho?", diz Páscoa, como o morador da comunidade é conhecido.

Há 3,6 mil barracos na Muvuca, diz ele. Em alguns, vivem sete pessoas "espremidas". A BBC News Brasil esteve ali em visita intermediada pelo projeto Consultório na Rua, de acolhimento a pessoas vulneráveis, promovido pela Prefeitura de Maceió.

Era uma tarde, e a comunidade estava em silêncio, com muitos animais e moscas por entre as casas, bicicletas e motos paradas.

Só as mulheres estavam presentes. Os homens saem de casa antes das 7h da manhã para trabalhar. Eles são, em sua maioria, carroceiros e marisqueiros. A maioria volta no fim da tarde.

Não há saneamento básico, e apenas duas torneiras abastecem todas as famílias. Uma das moradoras contou que faz as necessidades fisiológicas em uma sacola, que é descartada na lagoa ou num descampado, hábito comum na região.

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

"Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa", conta Páscoa.

Apesar da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, o preço dos barracos foi inflacionado pela pandemia. Há 12 anos, Alexsandra* pagou R$ 5 mil no dela. Agora, alguns já valem mais de R$ 30 mil.

"As coisas apertaram quando essa pandemia chegou. Meu marido é carroceiro, eu sou dona de casa. Ele vive trabalhando, eu fico aqui ajeitando uma coisa, ajeitando outra", conta ela.

Sem saneamento ou serviços públicos, lixo da comunidade fica jogado e serve de alimento aos porcos. (Josué Seixas).

Água suja

Na casa de Alexsandra, a água chega bem fraquinha. Seu marido, Marivaldo, foi um dos moradores que ajudaram a cavar um buraco a 200 metros da Muvuca, onde fica o "cano-mestre" de água da região.

Graças a doações, os moradores conseguiram interligá-lo a cinco barracos, que daí distribuem a água para os vizinhos.

"Passamos semanas, até um mês, sem água, que não é limpa. É suja. Nós ficamos com dor de barriga, e muita gente fica doente. (Mas) serve para a gente beber, cozinhar e tomar banho. Usamos baldes. Tem dia que um balde serve para cinco, seis pessoas tomarem banho."

Na Muvuca, a distribuição de água é responsabilidade da BRK Ambiental, empresa privada que assumiu os serviços de saneamento na região metropolitana de Maceió em julho deste ano.

A companhia reconhece a falta de uma rede local e explica que "os ramais existentes na localidade e utilizados pela população não fazem parte da rede pública, foram construídos no passado como uma solução informal, não regularizada no município".

A mãe de criança de cinco anos presa há 100 dias por furto de água

A concessionária diz que ainda avalia, junto aos órgãos competentes, como atuará em áreas não regularizadas pelo poder público, mas estima que, até 2027, deve universalizar o acesso à água em toda a Região Metropolitana de Maceió, com investimento de R$ 2,6 bilhões.

Outra moradora, Marleide, de 44 anos, conta que uma forma de contornar a falta de água é pagar a alguém para buscar no Rio do Remédio, que se encontra com a lagoa ali perto. "E nem sempre está boa para beber, viu?"

Marleide ajuda a cuidar da sogra, a ex-marisqueira Maria, de 56 anos, conhecida como Vaninha, que ficou cega por conta da diabetes e passa a maior parte do tempo deitada na cama.

Ela depende da família para ter água para o banho e se sustentar, porque o dinheiro da aposentadoria não tem sido suficiente para comprar comida e remédios.

Há 3,6 mil barracos na comunidade Muvuca, diz ele (Josué Seixas)

'Somos esquecidos'

Páscoa vive em um barraco com a avó e a irmã mais nova. Por não serem marisqueiros ou carroceiros e trabalharem com outras coisas, estão em condições um pouco melhores que a maioria dos moradores da Muvuca.

Antes, quando a família dividia o mesmo espaço entre sete pessoas, ele pedia dinheiro nos sinais de trânsito. Atrasou os estudos por conta disso — hoje, está no segundo ano do ensino médio, e quer cursar Direito.

"Eu fiz um curso de almoxarife, tento fazer bicos, faço um curso técnico de assistente administrativo e quero passar numa faculdade. Dá pra contar numa mão quem tem carteira fichada [emprego CLT] aqui na Muvuca", diz.

"Aqui é a gente pela gente. A Muvuca fica mais afastada de tudo. Não tem médico, remédio, exame, nada. Eu mesmo já fui para uma UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] em cima de uma carroça", conta.

Alexsandra, que estava por perto, completa: "Nós somos esquecidos''.

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Páscoa faz a interlocução com os demais moradores da Muvuca e ajuda a coletar água (Crédito: Josué Seixas)

Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em economia regional, diz que, em comunidades como a Muvuca, a pobreza estrutural se soma à dependência de políticas públicas.

"O fenômeno da pobreza não é recente. Podemos dizer que houve uma queda até 2015, mas o processo [de empobrecimento] vem se acentuando desde então."

De acordo com o Ministério da Cidadania, Alagoas tem 689 mil famílias inscritas no CadÚnico de programas sociais federais, das quais 425 mil recebiam o Bolsa Família.

No ano passado, o auxílio emergencial cobriu 1,2 milhão de pessoas no Estado, com um valor que variava entre R$ 600 e R$ 1,2 mil. No segundo semestre, caiu pela metade e, na parcela mais recente, foi fornecido a 717 mil pessoas no Estado, com valores entre R$ 150 e R$ 370.

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Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, Alagoas teve mais 38,6 mil pessoas empurradas à pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 89 por mês. O número total chega a quase 1,2 milhão de pessoas, o que corresponde a 35% da população do Estado.

A crise que o país atravessa se revela ainda pior em Alagoas, que tem a quarta maior taxa de desemprego do Brasil (18,8%), acima da média nacional (13,7%), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de agosto.

"Qualquer aumento de desemprego e inflação dificulta muita coisa para essas pessoas. Quando a renda média cai, as pessoas passam necessidade", explica Carvalho.

Amanda, de 25 anos, está grávida e, enquanto segura uma filha, observa outro filho ao seu lado. Na geladeira, tinha só um refrigerante, um saco de banana, um pouco de água e mais dois pacotes de leite em pó.

Eram 15h, e ela ainda esperaria mais três no mínimo até que o marido chegar do trabalho com o pão e uma mistura — ou nada. Ela conta que se pegou chorando ao encarar a geladeira que anos atrás já esteve cheia.

A pandemia foi uma época diferente para Amanda, de 25 anos, e sua família. No começo, por ter dois filhos, recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 1,2 mil e conseguia assim pagar as contas. Beneficiada pelo Bolsa Família por conta dos filhos, Amanda também disse não saber o que seria dela com o fim do benefício.

"Todo dia é assim a luta da gente. Tem dia que Deus manda [comida], tem dia que não manda. Aumentou o preço de tudo, e já estão falando que o gás vai aumentar de novo. Meu Deus do céu, onde a gente vai parar?", diz.

*Os sobrenomes da maioria dos entrevistados foram omitidos para evitar sua exposição.

Josué Seixas, de Maceió (AL) para a BBC News Brasil, em 28 novembro 2021.

Brasil é país com menor rejeição à vacina na América Latina, diz Banco Mundial

Os dados indicam que as repetidas declarações do presidente Jair Bolsonaro que lançam dúvidas sobre a segurança e a eficácia da imunização não encontraram aderência na população brasileira, mesmo entre seus apoiadores.

Enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%

É o que concluiu uma pesquisa feita em parceria pelo Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a partir de ligações telefônicas periódicas a domicílios de 24 países da América Latina. Os dados da segunda fase do levantamento foram apresentados nesta segunda-feira (29/11) em Washington.

Segundo o estudo, enquanto a taxa média de hesitação vacinal na América Latina está em torno de 8%, no Brasil, ela é menos do que a metade, cerca de 3%. De outro lado, enquanto na média, 51% dos latino-americanos já estão imunizados contra a covid-19, no Brasil, o percentual ultrapassa os 80%.             

No gráfico, em inglês, produzido pelo Banco Mundial, a barra em azul representa o percentual de população vacinada em cada país, em amarelo, a taxa de quem ainda não tomou as duas doses, mas pretende se imunizar, e, em vermelho, a de quem recusa vacina

Bolsonaro é o único líder do G-20 a afirmar não ter se vacinado. O presidente já afirmou, sem qualquer evidência científica, que quem tomasse vacina da Pfizer poderia "virar jacaré", associou o imunizante a desenvolvimento da AIDS e sugeriu que a Coronavac, produzida pelo Butantan em parceria com a China, causava "morte, invalidez, anomalia".

Apesar disso, atualmente o Brasil já supera os americanos e alguns países europeus em cobertura vacinal, graças a forte adesão da população.

Especialistas em saúde pública atribuem o fenômeno à cultura de imunização alimentada por anos em campanhas massivas de vacinação promovidas pelo Sistema Único de Saúde - e em que a figura central era o Zé Gotinha.

Além disso, o fato de o programa de transferência de renda Bolsa Família e as escolas e creches públicas requererem a vacinação para garantir o benefício e as vagas também geram engajamento da população.

Para os estudiosos, no entanto, é preciso estar atento aos possíveis efeitos de longo-prazo de declarações de autoridades contra vacinas. A cobertura vacinal no Brasil vem registrando queda desde 2011 e uma das causas pode ser justamente a hesitação vacinal.

De acordo com o estudo do Banco Mundial, áreas rurais e pobres são hoje as mais afetadas por sentimentos antivacina na América Latina. "Entre os não vacinados, mais da metade afirma que sua indisposição deriva da falta de confiança e uma preocupação com a eficácia da vacina. A hesitação vacinal é particularmente alta entre as famílias rurais e indivíduos com níveis de escolaridade mais baixos. A população do Caribe apresenta os níveis mais altos de hesitação vacinal", afirmam os pesquisadores no relatório.

O Haiti é o país com a menor taxa de vacinação contra o novo coronavírus (menos de 1%) e com a maior proporção de pessoas que dizem se recusar a tomar o imunizante (quase 60%). O Haiti também foi a última nação das Américas a receber doses para iniciar a campanha de imunização, que segue a passos lentos.

Atrás dos haitianos, habitantes de Jamaica e Santa Lúcia são os que mais recusam vacina, com 50% e 43%, respectivamente.

Pesquisa do Banco Mundial sugere que declarações de Bolsonaro que desqualificam imunizantes contra covid-19 não encontraram aderência nem mesmo entre os eleitores do presidente

Saúde melhorou, educação nem tanto

O relatório aponta ainda que o acesso à saúde no continente melhorou e já retornou a níveis pré-pandêmicos.

Enquanto 48% da população latina, em média, buscou atendimento médico emergencial há pouco tempo, percentual semelhante (47%) afirmou ter ido ao médico recentemente por razões preventivas, o que, segundo os autores do estudo, revela que os serviços públicos e privados de saúde já não estão mais sobrecarregados pela pandemia como aconteceu no pico da contaminação na região.

O mesmo, no entanto, não aconteceu em relação ao acesso à educação.

Mais de um ano após o início da pandemia, apenas 23% das crianças em idade escolar na região frequentavam aulas presenciais. No Brasil, o percentual ficou em torno de 40%. A qualidade da educação oferecida à distância e a falta de conexão à internet segura e de qualidade de parte da população geram preocupação sobre o futuro de crianças e adolescentes.

"Menor envolvimento em atividades de aprendizagem e baixo comparecimento face a face representam riscos significativos para os resultados de aprendizagem das crianças e para a acumulação de capital humano. Estimativas recentes revelam que os alunos na região perderam entre 12 e 18 meses de escolaridade. Aqueles de baixo nível socioeconômico foram particularmente afetados, o que sugere efeitos negativos duradouros sobre a mobilidade social e a desigualdade", diz o relatório da pesquisa.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington para a BBC News Brasil em Washington, em 29 novembro 2021, 14:26 -03

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O protesto de ex-escravos no Maranhão que acabou em massacre

Pouco conhecido, episódio ocorrido no Maranhão em 1889 e chamado de "massacre de 17 de novembro" foi motivado pelo receio de que o fim da monarquia e o novo regime republicano significariam a volta da escravidão.

Era ainda bastante precária a comunicação naquele novembro de 1889. Tanto que as notícias de que o Brasil deixava de ser uma monarquia e passava a ser uma república chegaram a São Luís, no Maranhão, apenas na edição de 17 de novembro de 1889 do jornal republicano O Globo — dois dias depois do fato ocorrido no Rio, então capital do país.

Apesar dessa lentidão no fluxo de informações, há algo em comum com os dias atuais: boatos infundados rivalizavam com as notícias verdadeiras e, por vezes, meios de comunicação e jornalistas eram os alvos da ira.

Foi nesse contexto que uma pouco conhecida rebelião ocorreu: entre 2 mil e 3 mil negros, chamados pela imprensa da época de "libertos", "ex-escravos" e "cidadãos de 13 de maio" — em alusão à data da Lei Áurea, proclamada no ano anterior — foram até a praça em frente à sede do jornal, um veículo republicano.

Era um protesto contra a República recém-proclamada e pela volta da monarquia extinta. Mas o que esses militantes queriam, na verdade, era garantir seus direitos. Estavam movidos por uma fake news: a de que o novo regime os "reescravizaria". Na lógica do boato, a explicação estava em dois pontos: fora a monarquia que havia decretado a lei libertadora; e a República tinha na sua base a elite ruralista, ou seja, justamente os escravocratas.

Armados com fuzis, 12 soldados foram destacados para proteger a praça, o jornal, a cidade. E não pestanejaram: dispararam contra a multidão. Oficialmente, foram quatro mortos e dezenas de feridos. Mas historiadores acreditam que o número possa ser ainda maior.

"O massacre de 17 de novembro foi o desfecho violento de um grande protesto de gente negra contra as notícias da proclamação da República", explica o sociólogo Matheus Gato, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de O Massacre dos Libertos: Sobre Raça e República no Brasil.

"Essas pessoas imaginaram que a mudança de regime podia levar a retrocessos no tocante ao direito de liberdade que muitas delas haviam conquistado pouco tempo antes", acrescenta.

Contribuiu para a confusão o ambiente de profunda desorganização institucional. Conforme conta Gato, as notícias da proclamação no Maranhão foram, naquele momento, veiculadas apenas pelo jornal O Globo — nenhuma instituição oficial havia se posicionado a respeito.

Em artigo publicado no livro História do Maranhão: Novos Estudos, o historiador Luiz Alberto Ferreira afirma que foram mais de 400 os feridos, muito deles com gravidade. E argumenta que os soldados atiraram "para matar", considerando que relatórios da Santa Casa, feitos na época, indicam que muitos "foram alvejados na parte superior do corpo".

O historiador chama o acontecimento de fuzilamento e de massacre.

Assassinato de memórias

A despeito do número relativamente pequeno de mortos, o sociólogo Gato concorda com a definição de massacre porque, além da intenção de matar, a ideia de massacre não seria apenas baseada na "quantidade de vítimas", mas também da maneira como as memórias são assassinadas.

No caso do episódio, eram homens que estavam dispostos a dar suas vidas pelo medo de serem escravos novamente. A ideia de massacre, para o sociólogo, resume então "todo o conjunto de violências e humilhações", a base da "formação do racismo estrutural brasileiro".

Outra evidência encontrada nas pesquisas realizadas por Gato diz respeito ao alto número de amputações realizadas dentre os alvejados que foram atendidos no hospital logo após o incidente. Também se somam aos relatos casos de tortura contra aqueles que acabaram detidos por incitarem a confusão.

O historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador vinculado a Universidade de Estrasburgo, na França, avalia que o episódio tem esse potencial para romper o lugar-comum de que o episódio da proclamação da República foi assistido passivamente pela população brasileira.

"Tem uma importância crucial no entendimento da formação da sociedade moderna por evidenciar esses conflitos em torno da questão política e da disputa de diferentes agentes desse processo político", diz Reis. "Revela muito sobre nossa formação enquanto país e as disparidades existentes entre as regiões, dado que não foi unânime a nossa proclamação da República."

Na opinião dele, na análise do episódio não está em discussão "simplesmente a defesa da monarquia ou da república", mas principalmente a participação popular.

Apagamento histórico

Gato explica que o episódio do massacre de 17 de novembro é pouco conhecido da historiografia porque "houve uma tentativa de banalizar e silenciar o lugar desses revoltosos no período de mudança de regime político".

Ele mesmo conta que se deparou com os relatos pela primeira vez em obras de ficção, como em textos do escritor maranhense Raul Astolfo Marques (1876-1918).

Instigado pelas narrativas, decidiu buscar o contraponto nos jornais da época. "Eu pensei que [essas histórias] se tratassem de ficção. Mas, para minha surpresa, descobri que, sim, o episódio havia mesmo acontecido."

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deutsche Welle, em 17.11.21

Há 125 anos, Canudos escancarou dificuldades do Brasil rural

Milhares de sertanejos, seguidores de Antônio Conselheiro e suas promessas messiânicas, acabaram dizimados pelo Exército. Mais de um século depois, vulnerabilidades da população rural persistem, apontam historiadores.

Foi um chacoalhão e tanto na República, ainda bastante jovem. Entre 1896 e 1897, entraram em conflito armado o Exército brasileiro e a comunidade liderada pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia. A Guerra de Canudos teve sua primeira batalha há exatos 125 anos, em 24 de novembro de 1896.

"Canudos foi o primeiro grande movimento social de contestação da ordem republicana, que provocou derrotas humilhantes para as autoridades brasileiras", define o historiador Paulo César Garcez Marins, pesquisador do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).

"Foi uma demonstração de quanto a população sertaneja, distante das grandes cidades do litoral, poderia forjar uma experiência política e social de grande envergadura, capaz de afrontar o sistema político e também as redes de poder locais e regionais."

Em um contexto de seca, latifúndios improdutivos e muito desemprego, milhares de sertanejos não pestanejaram em seguir Antônio Conselheiro, cujas pregações mesclavam religião e crítica social e se apoiavam na crença de uma salvação milagrosa. Logo, os rumores passaram a ser de que o grupo se preparava para atacar cidades vizinhas e teria um ousado plano de depor o governo republicano e reinstaurar a monarquia no Brasil. E o Exército brasileiro não conseguiu conter os revoltosos facilmente — ao contrário, amargou algumas derrotas.

"Canudos é, e já era para seus contemporâneos, um espanto e uma evidência da força do povo sertanejo, que tentava construir uma outra experiência urbana, econômica, social e política, que escapasse dos quadros tradicionais do mandonismo político das elites regionais do que hoje chamamos Nordeste", analisa Marins.

"O fato de ter, inclusive, derrotado três vezes as tropas enviadas para sua subjugação, colocara a própria autoridade nacional, e o Exército brasileiro, em questão, o que sinalizava a fragilidade institucional do novo regime republicano e também sua brutalidade, dado o elevadíssimo número de mortes e execuções no momento em que finalmente se venceu."

A guerra terminaria apenas em outubro de 1897, na quarta incursão dos militares em Canudos — no total, foram mobilizados 12 mil soldados. O saldo final foi o vilarejo incendiado e quase toda a população executada — estima-se que tenham sido 25 mil mortos. Conselheiro, o líder, havia morrido um mês antes, provavelmente em razão de ferimentos decorrentes da explosão de uma granada.

Revelação das mazelas rurais brasileiras

Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), "Canudos foi uma revelação", e aí reside sua importância histórica.

"De um lado revelava-se uma população, uma paisagem e as duras condições de vida e de trabalho, marcadas pela pobreza extrema, a opressão, a violência e a exploração intensiva da mão de obra pelos grandes proprietários rurais", analisa.

"De outro, o desconhecimento, a indiferença, o preconceito e a discriminação de autoridades civis e militares e da elite cultural e econômica sobre a realidade social do Brasil em sua primeira década de regime republicano", pontua. "A ausência e a manipulação de poderes e de serviços públicos colocou em evidência o caráter oligárquico e autoritário dos governos republicanos, em escala nacional, regional e local."

Antônio Conselheiro morreu pouco antes do fim da guerra, que deixou um saldo estimado em 25 mil vítimasFoto: Flávio de Barros/Public Domain

Na época, o discurso oficial era de que os revoltosos representavam um risco para o regime republicano e a própria ordem econômica e social da nação. À medida que o Exército sofria derrotas em Canudos e percebia-se uma dificuldade de extinguir o movimento, ressentimentos foram acumulados. O objetivo passou a ser um só: "a aniquilação material, social e política" do grupo — nas palavras de Martinez.

Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie, o historiador Gabriel Leite Neres avalia que Canudos, embora tenha sido uma guerra relativamente curta, "representou as contradições e tensões de um Brasil em processo de construção".

"Foi a primeira convulsão social histórica que demonstrou os abismos do período", acrescenta. "A crise de partes da sociedade devido às políticas realizadas pelo regime oligárquico apresentou não um Brasil, mas sim brasis divididos espacialmente."

Sedimentada pelo tempo, a guerra ganhou uma compreensão historiográfica contemporânea —  passou a ser vista dentro de um contexto de insurreições rurais que ocorreram ao longo de toda a segunda metade do século 19.

"É um fato sempre lembrado e muito referido pelo que trouxe ao Brasil e ao mundo naquele momento: a espoliação das populações rurais, a privação que esta sempre enfrentaram na garantia de suas posses, roçados e criações, a exclusão de direitos básicos de cidadania, a começar pela assistência social, direitos trabalhistas e autonomia política", diz Martinez.

Para o historiador, atualmente "Canudos reaparece sempre como o retrato de uma situação que perdurou no tempo e no espaço, lembrando o quanto essa população rural sofreu e sofre nos dias de hoje com a violência social e estatal, as migrações forçadas, as más condições de vida e de trabalho, o desamparo governamental e a exploração de suas fragilidades e necessidades pela manipulação política, ideológica e eleitoral".

Consciência social

Nesse sentido, a revolta simboliza também uma maneira — ainda que originalmente caracterizada como uma seita — de conscientização social. E, conforme atenta o historiador, as privações e vulnerabilidades da população pobre rural não mudaram muito nesses 125 anos, a despeito da modernização da economia agroindustrial.

"[Na verdade, esta] apenas reitera e aprofunda o cenário trágico de pobreza, de violação de direitos e de cidadania", enumera Martinez.

Para Marins, vale ressaltar que a "rápida mobilização" dos que atenderam ao chamado de Conselheiro proporcionaram um movimento de crescimento "rápido e eficaz, ainda hoje sem paralelo no país".

Traços do que motivou Canudos seguiram reverberando em episódios de lá para cá, como a marcha da Coluna Prestes, o cangaço, as Ligas Camponesas e, mais recentemente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Edison Veiga Repórter @edisonveiga para a Deustsche Welle, há 23 horas.

Medina: A nova Lei de Improbidade Administrativa e os processos em curso

Em texto anterior desta coluna, afirmamos que a nova tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, por força do artigo 5º, caput, XL, da Constituição, cumulado com o artigo 1º, §4º, da Lei 8.429/1992 (na redação da Lei 14.230/2021), aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu. Observamos, também, que essa solução se encontra em conformidade com os princípios que vinham sendo firmados na jurisprudência, em relação a temas análogos.

As ações a serem ajuizadas, relacionadas a fatos praticados anteriormente, devem observar as soluções previstas no novo regime legal.

Em se tratando de ações em curso, há de se considerar o que preveem disposições como o artigo 493 do Código de Processo Civil [1]. Assim, antes de proferir sentença, incumbe ao juiz observar as disposições da lei reformada, mesmo que de ofício, intimando as partes para se manifestarem a respeito (cf. artigo 10 do Código de Processo Civil e também parágrafo único do artigo 493 do mesmo código).

Várias hipóteses podem ocorrer. Algumas delas:

O Ministério Público poderá manifestar-se no sentido de que não há interesse no prosseguimento da ação, pois o ato, antes considerado ímprobo, como tal não pode ser considerado, à luz do novo contexto normativo. Se o ato não puder ser caracterizado como ímprobo, a ação será incabível, faltando interesse processual em seu prosseguimento. A perda superveniente de interesse processual conduzirá à prolação de decisão fundada no artigo 485, caput, VI, 2ª parte do Código de Processo Civil, que extinguirá o processo sem resolução do mérito.

Poderá haver situações, eventualmente, em que o Ministério Público acabe por restringir o objeto da ação, podando-o para acomodá-la à nova tipologia normativa dos atos de improbidade. Nesse caso, poderá haver extinção parcial do feito (cf. parágrafo único do artigo 354 do Código de Processo Civil).

Não se pode descartar, ainda, a possibilidade de se requerer a conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública, nos termos do §16 do artigo 17 da lei reformada [2]. Por exemplo, pode-se entender que não cabem as sanções por improbidade administrativa (que se assenta no §4º do artigo 37 da Constituição Federal), mas tem lugar a condenação por indenização (com base no §5º do artigo 37 da Constituição), e que, embora não seja cabível ação de improbidade, tem lugar a ação civil pública com propósito ressarcitório [3].

Nos casos em que a ação tenha sido ajuizada pela Fazenda Pública, será necessário observar a regra de transição prevista no artigo 3º da Lei 14.230/2021. No novo regime legal, a Fazenda Pública não ostenta legitimidade ativa para ação de improbidade administrativa, restrita pelo texto do artigo 17, caput, da Lei 8.429/1992 ao Ministério Público [4]. Nos casos em que a Fazenda Pública tenha promovido a ação, o Ministério Público deve manifestar-se dentro do prazo de um ano da publicação da reforma (que se deu em 25/10/2021) sobre a existência de interesse no prosseguimento do processo, que, nesse período, ficará suspenso. Findo o prazo sem manifestação do Ministério Público, o processo será extinto sem resolução de mérito [5].

Essas soluções, segundo pensamos, são aplicáveis nos casos em que o feito ainda tramita em primeiro grau de jurisdição, antes da prolação da sentença, com base no artigo 493 do Código de Processo Civil, como antes se observou. Mas semelhante solução deve ser observada também quando o caso tramitar em sede recursal. Isso é textualmente previsto pelo artigo 3º, caput, in fine, da Lei 14.230/2021, quanto à possibilidade de o Ministério Público prosseguir com a ação ajuizada pela Fazenda Pública [6]. No entanto, ocorrendo quaisquer das hipóteses suscitadas acima, dentre outras que emergirão da incidência do novo regime, não se poderá julgar o recurso antes de se verificar, por exemplo, se o pedido se fundou em mera culpa (e não em dolo, como exige a nova lei) do agente público, situação em que a ação de improbidade é descabida.

Caso isso seja detectado por ocasião do julgamento do recurso, o Tribunal deverá observar o que prevê o artigo 933 do Código de Processo Civil [7] (além do artigo 493 do código, antes mencionado).

Segundo pensamos, essa postura deverá ser adotada pelo órgão jurisdicional em qualquer grau de jurisdição, inclusive nos tribunais superiores, como já se faz notar em alguns casos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça [8].

Além das situações aqui referidas, outras podem ocorrer, de acordo com as peculiaridades de cada caso. Procuramos apontar, no presente texto, aquelas que, em princípio, tendem a ser as mais comuns.

Outro problema também merece análise cuidadosa: o que fazer nos casos em que há decisão transitada em julgado? Também aqui muitas hipóteses podem ocorrer. Pode-se estar diante de cumprimento de sentença ou de sentença cuja execução já se concluiu; de casos em que há prazo para ajuizamento de ação rescisória (para aqueles que entendem ser esse o meio processual a ser utilizado para se alegar a retroatividade da nova lei) e decisões transitadas em julgado há mais de dois anos (prazo previsto no artigo 975 do Código de Processo Civil para o ajuizamento da ação rescisória). Seria admissível ação revisional, ou, ainda, bastaria peticionar nos autos em que proferida a decisão transitada em julgado, requerendo ao órgão jurisdicional a aplicação do novo regime?

Esses e outros aspectos serão objeto de outro texto, na sequência, nesta coluna.

[1] "Artigo 493 — Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir". A respeito desse e de outros dispositivos processuais, cf. o que escrevemos em Código de Processo Civil Comentado (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021) e em Curso de Direito Processual Civil Moderno (5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), passim (mais informações a respeito aqui).

[2] "Artigo 17 — [...] § 16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985".

[3] Sobre o tema, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (6ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), em comentário aos referidos dispositivos constitucionais (mais informações aqui).

[4] "Artigo 17 — A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei".

[5]: "Artigo 3º — No prazo de um ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso. § 1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no art. 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). § 2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito".

[6] Cf. nota precedente.

[7] "Artigo 933 - Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de cinco dias. § 1º. Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente. § 2º. Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores".

[8] Exemplo: "[...]. Trata-se, na origem, de ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. A Lei n. 14.230/2021 trouxe mudanças significativas procedimentais e materiais. Entre essas alterações, o legislador destacou a natureza sancionatória da Lei de Improbidade, o que implica a aplicação das garantias correlatas, inclusive, retroação do tratamento mais favorável ao réu, como pode acontecer em relação à prescrição: [...]. Ante o exposto, com base no artigo 10 do CPC, intimem-se as partes para se manifestarem sobre a eventual aplicação retroativa da Lei de Improbidade, em especial, as mudanças no que se refere ao aspecto sancionador e prescricional [...]" (STJ, REsp 1662044, relator ministro Og Fernandes, decisão monocrática, DJe 09/11/2021).

José Miguel Garcia Medina, o autor deste artigo, é Advogado e Professor. Publicado originalmente no Consulor Jurídico, em 24.11.21.

José Sarney: O milagre da vacina

A pandemia atingiu toda a Humanidade com um choque assustador. Sentimos que ela poderia desaparecer, ser varrida da face da Terra. As taxas de contaminação e mortalidade eram gigantescas.

A salvação estaria no desenvolvimento de vacinas e medicamentos. O prognóstico não era muito bom: todas as vacinas que haviam sido desenvolvidas até então tinham levado anos. A OMS coordenou as iniciativas e vários governos investiram somas consideráveis nas pesquisas.

Ainda nos primeiros dias surgiram e foram descartados medicamentos existentes e destinados a outras doenças. A cloroquina, um antigo e corrente remédio para alguns tipos de lúpus e artrite, pareceu ser útil, mas logo foi comprovado que não só era ineficaz como podia ser mortal. O mesmo aconteceu com vários outros.

O único caminho era o já trilhado há séculos: diminuir o contágio pelo isolamento dos contaminados. Mas quem eram eles? A doença pode ser silenciosa, o portador do vírus — logo definido como SARS-CoV-2, vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2, um novo integrante da mais mortal família de vírus, a dos coronavírus, responsável pela gripe comum e por algumas das maiores pandemias e epidemias da História — pode não desenvolver a doença, denominada Covid-19. Duas providências foram recomendadas pelos cientistas: a testagem de todos os que pudessem ter estado no local onde a pandemia já estivesse circulando ou ter tido contato com quem estivesse nesse caso, com a busca do círculo de propagação e seu isolamento completo, além do máximo de restrição a contatos interpessoais, com lockdown nas áreas acima de certo nível de risco. Assim, em maior ou menor grau, com maior ou menor sucesso — maior, quando as medidas eram mais efetivas —, foi feito isolamento em todo o planeta.

Os números de contaminados continuaram explodindo. O caso americano, em que o presidente negacionista fez propaganda da cloroquina e menosprezou a ciência, fazendo do país o com maior número de mortos do mundo, foi exemplar: os números despencaram com o novo presidente, que apoia as medidas científicas.

E a vacina chegou. Entre nós o governo de São Paulo se antecipou na produção das primeiras vacinas, disponibilizando-as em janeiro deste ano. O resto do País seguiu seus passos.

Infelizmente nem todos seguiram as orientações, e o Brasil chora hoje a perda de mais de 610 mil vítimas. É a maior catástrofe de nossa História. Todos tivemos parentes ou amigos entre os desaparecidos, todos temos que chorar o imenso desastre.

Mas a realidade agora é outra: a vacinação em massa funcionou. Os números de mortos despencaram. São Paulo alcançou 100% da população vacinada e 70% com o 1º ciclo vacinatório completo — sabemos que virão outros ciclos de vacinação, a guerra ainda não acabou. A maior parte dos Estados já teve dias sem morte por Covid. Em todo o País o número de mortes despencou.

A vacinação funciona. O milagre aconteceu: a Humanidade sobreviverá à pandemia. Graças a Deus!

José Sarney, Jornalista e Advogado, foi Governador do Maranhão e Presidente da República.

'Ou ia pra aula ou comia': como insegurança alimentar está prejudicando universitários brasileiros

Ao sair com sua bicicleta para fazer entregas de comida a serviço de um aplicativo, a universitária Franciele Rodrigues, 29 anos, "reza" para receber algum pagamento em dinheiro — e, com isso, ter ela mesma alguma quantia em mãos para garantir sua alimentação para os próximos dias.

Estudante de fonoaudiologia, Franciele Rodrigues diz que tem dificuldade para comer desde que entrou na universidade, em 2013 — mas situação piorou na pandemia (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Ela concilia a graduação em fonoaudiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) com bicos de entregadora na capital gaúcha porque, desde que deixou de viver com sua família na periferia de Porto Alegre e se tornou universitária, "o bicho pegou" na tentativa de atender sozinha suas demandas de estudo, moradia e sustento.

Tudo isso se reflete em uma situação que ela conta já durar anos: ela vem comendo pouco e mal, o que já gerou consequências para sua saúde.

"Entrar na faculdade representou deixar de trabalhar e deixar de ter cuidado com minha saúde. Quando saí da casa dos meus pais e entrei na universidade, foi a primeira vez que precisei racionar comida para ter por mais tempo e diminuir a qualidade da minha dieta para ter o que comer no dia seguinte", contou Franciele por telefone à BBC News Brasil, dizendo já ter passado alguns dias sem comer nada nessa trajetória, além de ter tido anemia.

"Durante a pandemia, piorou essa questão da alimentação. O preço das coisas aumentou muito."

Para complementar a renda, a universitária Franciele faz entregas de bicicleta (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Situações como a narrada por Franciele, de insegurança alimentar entre universitários, têm ganhado a atenção de pesquisadores no Brasil e no exterior.

Não há dados nacionais ou de diferentes anos que possam demonstrar um aumento recente na insegurança alimentar destes estudantes no Brasil, mas pesquisadores da área sugerem que a piora em indicadores econômicos, cortes orçamentários para as universidades e a pandemia podem ter agravado o problema. Este período trouxe como consequência, por exemplo, o fechamento de restaurantes universitários (RU).

Por isso, diversas instituições anunciaram estar coletando informações e realizando pesquisas com estudantes sobre a questão alimentar deles durante a pandemia, como na Universidade de São Paulo (USP) e nas universidade federais de Uberlândia (UFU), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do Acre (UFAC), Rio Grande do Norte (UFRN), Mato Grosso (UFMT) e Paraná (UFPR).

Algumas resultados já foram publicados. Um artigo científico de março mostrou que 84,5% de 84 estudantes morando no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) entrevistados online tinham algum nível de insegurança alimentar — definida por ao menos uma resposta afirmativa a perguntas como "nos últimos 3 meses, a comida acabou antes que você tivesse dinheiro para comprar mais?", "ficou sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?" ou "sentiu fome, mas não comeu porque não podia comprar comida suficiente?".

Já na dissertação de mestrado da nutricionista Natália Caldas Martins na Universidade de Fortaleza (Unifor), verificou-se que 84,3% de 428 universitários da rede pública da Bahia e do Ceará apresentaram algum grau de insegurança alimentar na pandemia — 35,7% leve, 23,6% moderado e 25% grave.

Estes universitários fazem parte de uma grande parcela da população brasileira em insegurança alimentar: eram 116,8 milhões de pessoas nessa situação no país em 2020, segundo estimou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. De acordo com a pesquisa, a parcela da população afetada cresceu significativamente nos últimos dois anos.

Café em falta e remédio para dormir e não sentir fome

Quando conversou com a BBC News Brasil, Franciele Rodrigues, que mora com o namorado, hoje desempregado, contou que a única proteína que eles tinha em casa naquela semana era ovo — e, mesmo assim, esse estava sendo racionado.

"Ontem, a gente comeu ovo meio-dia e de noite, só um arrozinho com feijão para ter (ovo) no almoço hoje", disse.

Na sua universidade, a UFCSPA, não há um restaurante universitário — a existência deles não é obrigatória por lei. Mas Franciele conta com bolsa alimentação de R$ 300 mensais, além de R$ 400 de auxílio-moradia.

Sem conseguir um emprego por conta da rotina de aulas e estudos e com aluguel e outras despesas a pagar, esse valor é insuficiente para se manter, ela diz.

"No primeiro mês de faculdade, fiquei sem dinheiro porque a bolsa demorou a sair. Teve dias que eu não comi. Ou ia pra aula, ou comia."

'A gente não sabe se vai sair dinheiro no aplicativo', diz estudante de fonoaudiologia sobre os motivos para racionar comida na semana (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Com a pandemia, o namorado, que trabalhava em um restaurante, perdeu o emprego. Sem as aulas presenciais, ela deixou de conseguir vender lanchinhos e sucos que vendia na faculdade, perdendo mais um bocado de renda. Em 2020, a universidade organizou a entrega de cestas básicas mensais para alunos com vulnerabilidades como ela, mas Franciele diz que neste ano deixou de receber a doação.

Hoje, até o café está faltando em casa, e as frutas são raridade. Por outro lado, ovos, salsichas e hambúrgueres congelados passaram a protagonizar as refeições.

"Pulamos o café da manhã. Costumamos almoçar e jantar", conta Franciele, dizendo já ter perdido uma disciplina quando as aulas eram presenciais, por não ter o que comer. "Hoje, vejo que a situação está horrível mesmo para quem não pega assistência estudantil."

Para a estudante de turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Juliana Castro, 21 anos, uma solução para conter a fome devido a refeições puladas tem sido dormir — às vezes através de remédios para isso. Durante sua trajetória universitária iniciada no segundo semestre de 2018, ela recebeu bolsas por alguns meses, não conseguiu empregos para complementar a renda e hoje conta estar endividada. Como essa situação financeira afeta diretamente sua alimentação, ela conta ter perdido quase 20kg nos últimos dois meses.

"Posso te dizer que o semestre passado eu passei acho que porque Deus quis. Eu não consegui ler texto, escrever então era fora de série", conta Juliana, que nasceu na pequena cidade de Palma (MG) e mora hoje em um alojamento da UFJF. "Não consigo me concentrar para fazer as coisas, fico com indisposição, cansaço. Já desmaiei por ficar sem comer. Fico com a barriga e a cabeça doendo de fome."

"Nos dias que eu não como nada, literalmente nada, eu só durmo. Às vezes eu tomo remédio para dormir, porque dormindo eu não sinto fome."

Desde o início da faculdade, a estudante teve a ajuda de amigos, que dividem com ela compras ou emprestam o dinheiro ou o cartão; e recebeu por algum tempo algumas bolsas, sempre com valores abaixo de um salário mínimo.

Juliana conta que durante dois anos recebeu uma bolsa vinculada ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), mas a vigência do benefício acabou. Ela também recebeu por alguns meses uma bolsa bancada por emendas parlamentares destinadas à Diretoria de Imagem Institucional da UFJF, precisando em contrapartida trabalhar em projetos de extensão. Entretanto, os pagamentos desta são irregulares.

Em nota, a UFJF afirmou que "dada a origem dos recursos — emenda parlamentar — o pagamento da bolsa dependia do envio de recursos financeiros pelo Congresso, o que não ocorreu de forma linear e seguindo prazos pré-estabelecidos".

A universidade afirmou que as bolsas pagas a alunos de graduação tinham até junho o valor de R$ 400, mas esses valores precisaram ser reduzidos para R$ 300 "em virtude das restrições orçamentárias às quais as universidades brasileiras foram submetidas".

Já a UFCSPA, onde estuda Franciele Rodrigues, afirmou em nota enviada à reportagem que está construindo um restaurante universitário, com previsão para abertura em 2022: "(…) cabe informar que a UFCSPA se tornou universidade federal em 2008, e desde então esta demanda (por um restaurante) tem sido apresentada pela comunidade universitária, demanda que está sendo encaminhada pela atual gestão."

"Salientamos a importância do PNAES que, mesmo com elevados cortes orçamentários, em conjunto com demais políticas públicas, tem sido um instrumento que colabora na segurança alimentar e na permanência estudantil no ensino superior", acrescentou a UFCSPA.

Origem pobre e saída da casa das famílias torna alguns universitários mais vulneráveis à insegurança alimentar (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado em 2010 e repassa verbas a instituições federais de ensino superior para que estas forneçam, conforme suas políticas internas, assistência aos universitários na moradia, alimentação, transporte, inclusão digital, entre outros.

Entretanto, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, diz que estas ações estão prejudicadas no contexto de "corte de mais de R$ 1 bilhão" no orçamento das universidades federais, citando dado da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre a diminuição de verbas entre 2020 e 2021.

A Andifes diz que os recursos para o PNAES já têm sido insuficientes nos últimos anos, e que idealmente deveriam chegar a R$ 1,5 bilhão. Entretanto, segundo levantamento da entidade, em 2021 houve a maior redução no orçamento para o programa nos últimos cinco anos: o valor executado diminuiu 15,78%, caindo de R$ 1 bilhão em 2020 para R$ 874 milhões em 2021.

Esses valores são nominais — ou seja, não consideram a variação da inflação. Portanto, a diminuição do orçamento é na realidade maior do que 15,78%.

Na outra ponta, isso se reflete na evasão dos estudantes, segundo a presidente da UNE.

"Uma vez que a crise econômica é muito maior agora, e mais estudantes e suas famílias perderam rendas, a verba destinada a esses programas e bolsas não acompanhou a necessidade. Ainda não temos dados sobre a evasão universitária no pós-pandemia, mas com certeza, eles devem se elevar", escreveu Brelaz à BBC News Brasil.

O Ministério da Educação não atendeu ao pedido de posicionamento da reportagem.

Estudante de Direito, Erisvan Bispo, 43 anos, sabe bem o que é o descompasso entre o valor das bolsas e as necessidades. Indígena, ele recebe a Bolsa Permanência no valor de R$ 900 e, no passado, recebia também auxílio moradia e alimentação.

A Bolsa Permanência foi criada em 2013 pelo governo federal. Trata-se de um auxílio financeiro destinado sobretudo a universitários indígenas e quilombolas em instituições federais.

Em 2019, Erisvan precisou optar por alguma das bolsas, pois uma regra da sua universidade, a Federal da Paraíba (UFPB), passou a vedar o acúmulo de auxílios estudantis com a Bolsa Permanência. Perto da sua casa em Mamanguape (PB) e no seu campus, não há restaurante universitário.

"Acompanhando o aumento do preço das coisas, você fica perplexo. Quando você pensa o quanto de dinheiro entra e o quanto tem que gastar, enlouquece", disse Erisvan à reportagem por telefone. "Direito é um curso que eu preciso me dedicar muito. Não é impossível estudar e trabalhar, mas para ficar com um coeficiente de rendimento alto, é difícil."

"Sem trabalho, eu dependo das políticas sociais."

O "preço das coisas", como disse o universitário, realmente tem subido consideravelmente na alimentação, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No acumulado dos últimos 12 meses, a inflação nos alimentos e bebidas, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ficou em 11,7%, conforme registrado em outubro. Entre os 10 alimentos que mais tiveram aumento estão o pimentão (85,37%), açúcar refinado (47,8%), mandioca (40,7%), filé mignon (38%) e tomate (31,99).

Em nota, o professor Alfredo Rangel, pró-reitor de Assistência e Promoção ao Estudante da UFPB, afirmou que a universidade conta hoje com quatro restaurantes universitários e pretende abrir mais uma unidade em Mamanguape no ano que vem.

Ele acrescentou que, embora a UFPB tenha recebido um orçamento menor para assistência estudantil, a universidade conseguiu manter o valor e o número de bolsas normalmente ofertadas.

Também com orçamento apertado, no seu caso para bancar aluguel, moradia, internet, transporte e comida, Erisvan diz ter cortado da alimentação itens que chama de "supérfluos", como iogurte, queijo, biscoito recheado, goma para tapioca e frutas.

"A única carne que consigo comer é hambúrguer, calabresa e salsicha, porque é barato", afirma Erisvan, acrescentando ter perdido peso por conta da combinação falta de renda e estresse por todo este cenário.

Em um futuro próximo, ele diz depositar esperança em oportunidades de estágio remunerado e, a longo prazo, nos frutos que sua carreira pode trazer.

"Às vezes, por conta dos cortes (na educação superior), sinto revolta. Mas também sou muito grato por estar na universidade. Eu não acordo reclamando, lamentando… Eu sei que estou passando dificuldades para ter uma melhoria de vida. Acredito que algo de bom vai acontecer depois que eu me formar, depois da carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)."

Vulnerabilidade da 'primeira geração'

Erisvan diz ter uma origem "paupérrima" e é o primeiro da família a ir para a universidade. Nascido em uma aldeia na serra do Ororubá, em Pernambuco, ele e a família migraram para São Paulo (SP) fugindo de conflitos por terra. Ele morou cerca de 30 anos na capital paulista e depois resolveu voltar a morar e estudar no Nordeste.

Assim como ele, Franciele Rodrigues e Juliana Castro também são da primeira geração de suas famílias a ir para a universidade.

Apesar de vir dos Estados Unidos, um dos maiores estudos já feitos sobre a insegurança alimentar nas universidades mostrou que estudantes de "primeira geração" — ou seja, cujos pais não tinham ensino superior —, aqueles com níveis socioeconômicos mais baixos, além de imigrantes e pessoas trans eram mais vulneráveis ao problema.

A pesquisa publicada em 2019, intitulada College and University Basic Needs Insecurity e realizada pelo Hope Center, entrevistou 86 mil estudantes em 123 universidades. Deste total, 45% foram considerados como sofrendo de insegurança alimentar nos 30 dias anteriores.

Franciele, assim como outros entrevistados, está na primeira geração da família a ir para a universidade (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

A nutricionista Tânia Aparecida de Araújo é uma das autores da pesquisa sobre a insegurança alimentar entre alunos vivendo no Conjunto Residencial da USP (Crusp) durante a pandemia. Ela diz que neste e em outros estudos realizados no Brasil, a baixa renda foi um dos fatores mais importantes para a insegurança alimentar dos universitários.

Dos alunos considerados em insegurança alimentar no Crusp, 92,6% tinham renda considerada insuficiente.

Para Araújo, é justamente a chegada de estudantes de baixa renda à universidade nas últimas décadas, movimento que ela atribui a políticas de inclusão dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), que impulsionou a insegurança alimentar nas universidades como tema de pesquisa.

"A gente tem agora mais pessoas de baixa renda entrando na universidade, o que é muito positivo, porque são ciclos de pobreza que podem ser quebrados. Mas antes, os universitários, principalmente de universidades públicas, eram de uma classe média branca. Agora, a gente realmente tem que dar atenção às políticas públicas para garantir, entre outras coisas, a segurança alimentar e nutricional desses estudantes", diz a pesquisadora, doutora em saúde pública pela USP.

A nutricionista aponta que, além da origem socioeconômica, os universitários ficam mais vulneráveis à insegurança alimentar à medida que deixam de ter redes de apoio como a alimentação e moradia na casa da família. Tendo que se virar sozinhos, muitos apelam às comidas ultraprocessadas como hambúrgueres e macarrão instantâneo porque são rápidas, práticas e baratas.

Ela também ressalta a importância dos restaurantes universitários mas diz que não deve-se esperar que eles contemplem integralmente todas as refeições dos alunos. Desejar comer em outros lugares além deles é legítimo — e em alguns casos necessário, como no caso de Juliana Castro, que teve problemas de intolerância a vários alimentos frequentes no cardápio do RU da sua universidade, como leite e carne de porco.

"A gente acha que a pessoa vulnerável tem que aceitar qualquer coisa, mas todo mundo tem direito de fazer suas escolhas alimentares. Por mais que tenha o restaurante universitário, é muito difícil você manter uma graduação fazendo todas as refeições, almoço e janta em um restaurante", diz Tânia Aparecida de Araújo, apontando para a importância das bolsas de auxílio, além dos RUs.

Para ela, os estudos têm se voltado para as universidades públicas justamente porque estas têm maior propensão a realizar pesquisas científicas — mas aponta que investigar a situação dos estudantes de faculdades particulares é também urgente, já que a presença de alunos de baixa renda nestas é grande, além do forte comprometimento financeiro que as mensalidades e financiamentos representam para eles.

Bruna Brelaz, da UNE, também aponta para diferenças entre os tipos de instituição. Enquanto as universidades federais contam o PNAES e a Bolsa Permanência, mesmo que aplicados de forma insuficiente na sua avaliação, as estaduais têm políticas e ações variando de acordo com a unidade federativa.

"Na nossa opinião, é preciso leis, decretos também estaduais, para garantir a manutenção desses direitos, além da regulamentação e constante fiscalização para as devidas condições de disponibilização deles", diz a presidente da UNE.

"Já nas universidades privadas, temos como realidade a falta de regulamentação, que dessa forma, não garante refeições com preço acessível, por exemplo", acrescenta. "Se alguma universidade privada institui esses restaurantes para estudantes ou vale alimentação é por iniciativa própria, mas sem haver uma regulamentação ou levantamento oficial."

Mariana Alvim -@marianaalvim, de S. Paulo para a BBC News Brasil em 23.11.21

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

4 momentos que contam a história da destruição das ferrovias no Brasil

Em 15 anos, o Brasil tinha perdido 8 mil km de ferrovias, que se estendiam naquele momento por cerca de 30 mil km do território nacional.

Desde então, o tamanho da malha ferroviária patina no mesmo patamar. Atualmente, de acordo com o os dados do Anuário Estatístico de Transportes, tem 29,8 mil km.

Desde o auge, no início do século 20, malha ferroviária perdeu 8 mil km (CRÉDITO,BIBLIOTECA NACIONAL)

"Ponta de areia ponto final / Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto, ao mar / Caminho de ferro mandaram arrancar."

Lançada em 1975, a canção Ponta de Areia, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é um lamento do fim da Estrada de Ferro Bahia Minas, que ligava os 582 km entre Araçuaí (MG) e o distrito de Ponta de Areia (BA).

A BBC News Brasil perguntou a especialistas em história e engenharia ferroviária o porquê - sintetizado, a seguir, em quatro momentos.

Trecho da São Paulo Railway Company na Serra do Mar: desde o início, ferrovias operaram sob regime de concessão (CRÉDITO,FRÉDÉRIC MANUEL/BIBLIOTECA NACIONAL)

A crise do café

O café é elemento central nos primeiros capítulos da história das ferrovias no Brasil - tanto na ascensão quanto na decadência, como explica Eduardo Romero de Oliveira, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

É a razão para a construção das primeiras estradas de ferro no século 19: a primeira delas, a Estrada de Ferro Mauá, que começou a operar em 1854, levava em suas locomotivas a vapor a commodity do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada fluminense, que, de lá, seguia de barco até a cidade do Rio. Nessa época, o café representava quase 50% das exportações brasileiras.

A malha ferroviária foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes movidos por tração animal, como as charretes puxadas por cavalos.

"Durante muito tempo, as ferrovias foram praticamente a única via de transporte de cargas e pessoas no país", destaca Oliveira, um dos pesquisadores do projeto Memória Ferroviária.

E foi nesse contexto que a malha chegou a quase 30 mil km de extensão na década de 1920, quando veio o baque da crise de 29. O crash da bolsa nos Estados Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a grande depressão que se seguiu tiveram impacto direto sobre o Brasil.

Em um curto espaço de tempo, as exportações da mercadoria despencaram, assim como os preços. As ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão, passaram a transportar cada vez menos carga e viram sua rentabilidade despencar.

Tem início, nesse momento, um período lento de decadência que culminaria na estatização das estradas de ferro mais de duas décadas depois.

Antigo Largo do Rosário, em São Paulo: antes dos trens, transporte era feito por tração animal (CRÉDITO,GUILHERME GAENSLY/BIBLIOTECA NACIONAL)


JK e o nascimento da indústria automobilística

Antes, contudo, outros dois fatores importantes entram em cena: o crescimento das cidades e a popularização do automóvel.

O país vive uma grande transformação depois de 1940. Até então baseada quase exclusivamente na agricultura, a economia brasileira se volta cada vez mais para a indústria. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, então empresas estatais, são fundadas nessa época, em 1940 e 1942, respectivamente, no último período do governo de Getúlio Vargas, a ditadura do Estado Novo.

Essa mudança na matriz de crescimento, por sua vez, catalisa um processo de migração das populações de áreas rurais para as cidades. As capitais ganham uma nova escala, vão inchando, um processo que tem como efeito colateral a diminuição da demanda por trens de passageiros em alguns trechos menores, entre cidades próximas.

"As fábricas estão nas cidades", pontua Oliveira.

A política de industrialização continua com o presidente Juscelino Kubitschek, que assume em 1956 e elege a indústria automobilística como catalisador de seu plano de desenvolvimento.

O Plano de Metas de JK, que ganhou o slogan "50 anos em 5", é frequentemente apontado como o início do chamado "rodoviarismo" no Brasil. Um movimento cheio de nuanças e explicado por uma combinação de fatores, diz o professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Hostílio Xavier Ratton Neto.

Um deles é a própria natureza da indústria automotiva, que tem uma cadeia de produção longa, com efeito multiplicador na economia, e emprega uma mão de obra qualificada que até então não existia no país.

"É nessa época que se cria a classe do operário especializado, com maior poder aquisitivo", afirma.

Em paralelo, a construção das rodovias era menos custosa que as estradas de ferro e o petróleo usado para produzir combustível ainda era muito barato.

No pano de fundo, a Guerra Fria estreitava as relações entre Brasil e Estados Unidos. Na tentativa de barrar a expansão da influência da União Soviética no continente, os americanos firmaram acordos de cooperação técnica e de financiamento para investimentos com diversos países da América Latina.

Assim, ainda em 1956 foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), sob o comando do Capitão de Mar e Guerra Lúcio Meira.

O Brasil, que até então só montava veículos, passaria a fabricar carros, caminhões e jipes, tendo como principal polo a região do ABC paulista. São desse período dois modelos que fizeram história no país: o Fusca e a Kombi, ambos da linha de montagem da Volkswagen em São Bernardo do Campo.

Com a produção de veículos nacionais, multiplicaram-se os quilômetros de rodovias. Só nos cinco anos de gestão JK, a malha rodoviária federal pavimentada foi multiplicada por três, de 2,9 mil km para 9,5 mil km.

As ferrovias, por sua vez, entravam os anos 1950 sucateadas.

Além da redução da demanda de carga e passageiros, um outro fator contribuiu para o "estado bastante acentuado de degradação física das estradas de ferro": "Muitas concessões já estavam no final, próximo da devolução, e não havia cláusula nos contratos que obrigassem as concessionárias a fazer investimentos ou devolver as ferrovias no estado em que as pegaram", diz Ratton Neto, que tem larga experiência no planejamento, construção, operação e gestão de sistemas de transporte metroviário e ferroviário.

É nesse contexto que, em 1957, surge a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estatal que passou a administrar as ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas privadas.

Inicialmente, diz o historiador Welber Luiz dos Santos, do Núcleo de Estudos Oeste de Minas da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, a intenção não era "destruir" as ferrovias.

"Os primeiros relatórios da empresa demonstram que o projeto era de modernização e unificação administrativa para facilitar a integração entre os diferentes meios de transporte", afirma o pesquisador.

"Os investimentos rodoviários do Plano de Metas de JK não eram uma ameaça ao sistema ferroviário", avalia.

Malha ferroviária brasileira. Entre 1854 e 1985 - em km.  .


A extinção das linhas de passageiros

Os projetos de recuperação e melhoria, contudo, incluíam a desativação de uma série de linhas e "ramais" (jargão do setor para os trechos secundários) considerados deficitários.

A lógica, diz o historiador Eduardo Romero de Oliveira, é que o mundo de meados do século 20 era completamente diferente daquele que, muitas décadas antes, havia norteado a construção de parte das ferrovias.

"Houve uma mudança no negócio", diz o professor da Unesp. "As estradas de ferro da música do Milton Nascimento eram de outra época, para pensar o transporte de café, de açúcar, em um período em que nem a legislação trabalhista existia."

O químico Ralph Mennucci Giesbrecht, um "fanático por ferrovias" que há mais de duas décadas pesquisa sobre elas, especialmente sobre as estações, coleciona diversas histórias desse período turbulento.

"Nos anos 60 e 70 sumiram praticamente todas as ferrovias menores, aquelas consideradas deficitárias", diz ele, autor do livro O Desmanche das Ferrovias Paulistas.

Os conflitos aparecem em histórias como a da desativação do trecho entre as cidades paulistas de São Pedro e Piracicaba, concluída em 1966. O prefeito de São Pedro na época chegou a enviar um telegrama incisivo ao governador, Laudo Natel, questionando o critério da baixa rentabilidade usado para justificar a extinção do ramal.

"Déficit, se não levarmos em conta o bem coletivo, também dá a polícia, dão as escolas e todas as repartições mantidas pelo Estado. O déficit do ramal é muito relativo, pois, não levando em conta o movimento das estações de Barão de Rezende, Costa Pinto, Recreio e Paraisolândia, a estação de São Pedro despachou este ano mais de 40.000 toneladas de cana. Finalizando, aqui deixo minha desilusão por tudo e por todos", dizia a mensagem, conforme reportagem do jornal O Estado de S.Paulo de 30 de outubro de 1966 encontrada por Giesbrecht.

Aos poucos, as linhas de passageiros foram desaparecendo, permanecendo, em alguns casos, aquelas que cruzavam as regiões metropolitanas das grandes cidades, usadas até hoje.

Com o avanço da indústria automobilística e a entrada do avião em cena, as ferrovias entraram em crise, em maior ou menor medida, em todo o ocidente. Nos países em que foram mantidas para transporte de passageiros, o serviço, na maioria dos casos, passou às mãos do Estado.

É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos. A estatal Amtrak foi fundada em 1971 e faz até hoje a gestão das linhas de passageiros no país. Também são estatais a alemã Deutsche Bahn, a espanhola Renfe e a francesa Société Nationale des Chemins de fer Français (SNCF).

Trecho da Estrada de Ferro D. Pedro II, rebatizada posteriormente de Central do Brasil (Crédito da foto: Biblioteca Nacional).

A estagnação e o corredor de commodities

Do lado do transporte ferroviário de carga, parte dos investimentos vislumbrados no período JK não saíram do papel, diz o historiador Welber Santos.

Em sua visão, a ditadura militar mudou o foco da política de transportes, que passou a ser mais voltada para as rodovias, com a aposta em grandes obras de engenharia, como a ponte Rio-Niterói, e alguns investimentos questionáveis, como a Transamazônica, que nunca foi concluída.

A Ferrovia do Aço, ele diz, um dos projetos ferroviários que chegou a sair do papel nesse período, começou a ser construída em 1973 com a promessa de ser entregue em mil dias, mas só foi inaugurada em 1992, e com um porte muito mais modesto do que o projeto inicial.

Para Ratton Neto, da Coppe/UFRJ, um dos principais obstáculos à realização dos investimentos necessários à malha ferroviária do país naquela época foi a crise do petróleo de 1973 e o período turbulento que se seguiu.

"Depois daquele choque na economia mundial, o Brasil, que até então tinha acesso fácil a crédito, passou a ser visto como país de alto risco. A partir daí, teve início uma crise que impediu que os planos nacionais de desenvolvimento pudessem ter sequência. Deixamos de planejar para apagar incêndio praticamente até os anos 90", diz ele.

Nos anos 1990, em um contexto de baixo crescimento econômico, inflação elevada e alto nível de endividamento público, a RFFSA é liquidada e as ferrovias são novamente concedidas à iniciativa privada, por meio do Plano Nacional de Desestatização (PND).

A partir daí, elas passam a funcionar majoritariamente como corredores de transporte de commodities para exportação, diz o professor da Coppe/UFRJ.

Hoje, quase metade da malha, 14 mil km, está nas mãos da Rumo Logística, empresa do grupo Cosan. Outros 2 mil km são administrados pela Vale. Cerca de 75% da produção de transporte ferroviário é minério de ferro. "Outros 10% ou 12% são soja", estima Ratton Neto.

Como os contratos de concessão não preveem a realização de investimentos e melhorias, boa parte da malha segue como foi construída no segundo império, com a chamada bitola métrica, ultrapassada, bem mais estreita que a bitola internacional, hoje usada como padrão.

O modelo atual de exploração das ferrovias, na avaliação do especialista, subaproveita o potencial do país e deixa o Brasil refém das rodovias - consequentemente, mais suscetível a greves de caminhoneiros como a de 2018, que gerou caos e desabastecimento.

As estradas de ferro poderiam ser mais utilizadas para transporte de bens industriais, ele exemplifica, de bobinas de ferro e cimento a automóveis, inclusive em trechos curtos, nos moldes das "short lines" dos Estados Unidos.

"Também poderiam ser usadas para transportar contêineres, uma tendência nova e muito rentável", acrescenta.

Um entrave para o planejamento de novas linhas, contudo, é o apagão de dados sobre a movimentação interna de cargas. O Brasil não sabe, no detalhe, o que é transportado e de onde para onde. Iniciativas como o Plano Nacional de Contagem de Tráfego ainda não geram dados robustos nesse sentido, diz o professor

A outra é o próprio modelo de concessão, em que as concessionárias têm controle tanto sobre as vias quanto sobre os trens. Assim, essas empresas acabam tendo o monopólio do transporte ferroviário e, em última instância, decidem o que trafega ou não pelos trilhos.

"As ligações hoje atendem aos interesses dos próprios concessionários."

Os novos projetos anunciados recentemente pelo governo, na avaliação do professor, não chegam a quebrar a lógica das ferrovias como corredor de commodities. Em setembro, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, anunciou a autorização para construção, pela iniciativa privada, de 10 novas ferrovias, com investimentos da ordem de R$ 50 bilhões.

Em paralelo, ele chama atenção também para o projeto da Ferrogrão, que deve ligar o Mato Grosso ao Pará em cerca de 933 km com a proposta de facilitar o escoamento de grãos pela região Norte do país.

Na tentativa de tirar a ferrovia do papel, o governo sinalizou que disponibilizará para a futura concessionária até R$ 2,2 bilhões em recursos da União. O dinheiro, contudo, viria da outorga que será paga pela Vale para renovar a concessão de duas das ferrovias que administra hoje, a Estrada de Ferro Carajás e a Estrada de Ferro Vitória-Minas.

"Os recursos da outorga que poderiam ser usados para geração de benefícios econômicos e sociais nesse caso acabariam captados pelo próprio setor privado."

Camilla Veras Mota - @cavmota, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 12.11.21

Porandubas Políticas

 Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com um "causo" da Paraíba.

Cancelo chuvas

A seca era medonha. A Paraíba em desespero, o governador aflito. Um dia, caiu uma chuva fininha no município de Monteiro. Inácio Feitosa, o prefeito, correu ao telégrafo:

"Governador José Américo: chuvas torrenciais cobriram todo município de Monteiro. População exultante: Saudações, Feitosa".

Os comerciantes da cidade, quando souberam do telegrama, ficaram desesperados. O município não ia mais receber ajuda. Ainda mais porque a mensagem era falsa e apressada. Feitosa correu de novo ao telégrafo:

"Governador José Américo: cancelo chuvas. População continua aflita. Feitosa, prefeito".

Santos Cruz

Do general Santos Cruz em comunicação assertiva para este analista político: "vou apoiar Sergio Moro. Saúde".

Bolsonaro no PL

A entrada de Jair Bolsonaro no PL, partido de Valdemar da Costa Neto, amarra o tronco do governo ao centrão. Trata-se de uma jogada combinada com o PP de Arthur Lira, o outro partido que integra o centrão. Significa a escolha da velha política como paredão de sustentação do governo. Vai atrair alguns deputados e perder outros. Por velha política, entende-se: ficar no poder seja qual for o presidente. Se outro candidato - Lula ou um da terceira via - se viabilizar e demonstrar ter chances em outubro de 2022 será uma correria em direção à sigla do favorito. A conferir.

O vice

Comenta-se que o general Hamilton Mourão, o vice-presidente, seria descartado do cargo na eleição de 2022. Bolsonaro estaria pensando em um nome político, de um dos partidos do centrão. Nesse caso, especula-se que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, teria se cacifado com o leilão da 5-G, e, assim, estaria apto a ser o candidato a vice de Bolsonaro. Sairia do PSD de Kassab para ingressar no PP de Lira. Assim, Bolsonaro contentaria todo o centrão: ele no PL e um vice do PP. Faria deixaria livre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Simonetti Marinho, que sairia como candidato a senador pelo RN. E Mourão? Candidato a senador pelo RS ou mesmo RJ.

- A tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão proibidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis. Dostoievski.

O PSD de Kassab

Gilberto Kassab é um dos mais eficientes articuladores da política nacional. Está comendo pelas beiradas, ou seja, filiando quadros importantes dos Estados. Seu candidato a presidente será o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Que saiu do DEM para o PSD. Pacheco terá como objetivo inicial fechar Minas Gerais em torno do seu nome. Minas é o segundo maior colégio eleitoral do país. Pacheco faz boa figura: simpático, moderado, fluente, educado. Não será surpresa se mostrar crescimento.

Moro

Sergio Moro precisa ganhar flexibilidade, aquele jeitão de falar o que a imprensa gosta de ouvir, ampliar o circuito de amizades na política, expor-se mais no espaço da visibilidade. Parece acanhado, com dificuldade de se comunicar com seus públicos.

Ciro

Ciro Gomes colocou um cabresto do PDT. Ou o partido volta atrás com os votos de apoio à PEC dos Precatórios ou cairá fora como candidato. Logo mais, veremos. Pareceu que o candidato queria um pretexto para pular fora da candidatura.

Lula

Este analista ainda não se convenceu que Lula quer ser candidato. Como não surgiu outro capaz de enfrentar Bolsonaro, seu nome subiu às alturas. Com o perfil resgatado, prestígio alto, vida tranquila, enfrentaria de bom grado uma campanha que tende a lembrar todos os malfeitos do PT? Diz-se que torce para surgir um nome do arco da esquerda ou centro-esquerda para que ele possa orientar o PT a apoiá-lo.

O vai-e-vem

Os números que se apresentam sobre o desempenho do país na esfera da economia são como uma gangorra. Ora, fala-se de crescimento de até 7,5% do PIB. Outras vezes, esse número chega próximo do zero. E lá vem mais: se somarmos o resultado primário dos Estados e municípios, estatais e governo central para termos o resultado do setor público passamos de um déficit primário de R$ 636 bilhões ( - 11,7% do PIB) nos nove primeiros meses para um superavit de R$ 14,2 bilhões(0,22% do PIB) este ano, ou seja, uma melhora de R$ 650 bilhões, apesar dos gastos extras com Covid este ano.

Não se iludam

Não se iludam uns e outros. Se a equação BO+BA+CO+CA (Bolso, Barriga, Coração, Cabeça) for bem equacionada, Bolsonaro ganhará mais um mandato. Ou seja, se as massas carentes tiverem o seu dinheirinho pingando ao final de cada mês, o capitão fará um gol de placa. O que interessa para essa massa de votantes é geladeira cheia e barriga satisfeita. O instinto de sobrevivência falará mais alto. O dinheiro que seria para pagar precatórios pode reeleger Bolsonaro. A recíproca é verdadeira. Barriga vazia queimará a possibilidade. E nem água vai faltar. Chove em quase todo o país, com tendência a acabar com a crise hídrica.

Um ponto fora da curva

Diz-se que Bolsonaro significa no mapa político um ponto fora da curva. Seu estilo pra lá de grotesco, infelizmente, começa a ser banalizado e fixado no vocabulário da política. E assim deixa de ser um ponto fora da curva. Se assim for, o futuro estará cheio de nuvens pesadas.

O Brasil

O prestígio do Brasil está ao rés do chão. Quebrado, esfacelado. E o cara não está nem aí....Barack Obama faz um discurso em que clama para que o Brasil, ao lado da China, Rússia, EUA e outros países, lidere a campanha pelo ambiente saudável. Bolsonaro ouviu daqui. Entrou por um ouvido, saiu pelo outro.

Governadores

Os governadores aproveitarão o tempo que lhes resta na atual gestão para fazer o obreirismo de pequenas coisas. É tempo de fazer política. É tempo de correr o Estado. É tempo de atrair as massas. É tempo de pão e circo.

É breve a vida

Tomo a liberdade de fazer uma reflexão sobre a vida. Valho-me de Sêneca com seu puxão de orelhas: "somos gerados para uma curta existência. A vida é breve e a arte é longa. Está errado. Não dispomos de pouco tempo, mas desperdiçamos muito. A vida é longa o bastante e nos foi generosamente concedida para a execução de ações as mais importantes, caso toda ela seja bem aplicada. Porém, quando se dilui no luxo e na preguiça, quando não é despendida em nada de bom, somente então, compelidos pela necessidade derradeira, aquela que não havíamos percebido passar, sentimos que já passou".

O tempo corre

A vida passa e não percebemos o quanto ela avançou. De repente, damo-nos conta de que o tempo que gastamos foi usado de maneira fútil, sem percebermos que nossos dias finais chegam rapidamente, trazidos pela cegueira de darmos valor à coisas que desperdiçam nossa atenção, guiados pelo voluntarismo que nos aproxima da materialidade cheia de magia da vida material. É a preocupação exagerada com a estética, é a discussão radical que não faz crescer a pessoa, é o pingo de azeite que mancha nossa gravata, a ponto de consumirmos um bom tempo para deixá-la limpa e sem mancha.

Oportunistas

A vida só é mesmo sentida e percebida diante dos grandes riscos que enfrentamos, do medo que avança ante o desconhecido e que ameaça consumir nossas energias, do perigo a que somos levados quando nosso corpo tem dificuldades de administrar as intempéries do tempo. Resta resistir aos contratempos que aparecem, quando menos se espera, e que servem como massa de manobra de certa categoria de protagonistas, como os individualistas, os populistas, os demagogos, os negacionistas, os obscuros, os oportunistas.

Fecho a Coluna com Gilberto Gil

Amigas e amigos de todo o Brasil. Cantemos com Gilberto Gil:

Andar com fé

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Que a fé 'tá na mulher

A fé 'tá na cobra coral

Oh oh

Num pedaço de pão

A fé 'tá na maré

Na lâmina de um punhal

Oh oh

Na luz, na escuridão

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá olêlê

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Oh menina

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

A fé 'tá na manhã

A fé 'tá no anoitecer

Oh oh

No calor do verão

A fé 'tá viva e sã

A fé também 'tá prá morrer

Oh oh

Triste na solidão

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Oh menina

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá

Oh oh

A pé ou de avião

Mesmo a quem não tem fé

A fé costuma acompanhar

Oh oh

Pelo sim, pelo não

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olêlê

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (olêlê, vamos lá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (costuma, costuma a fé não costuma faiá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (costuma, costuma a fé não costuma faiá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (olêlala)

Andá com fé eu vou que a fé não costuma faiá

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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