terça-feira, 7 de setembro de 2021

Bolsonarismo dobra a aposta na ousadia, desta vez com um novo elemento: as armas

Caçadores e colecionadores, parte da base do presidente, têm registro de 409.000 armas. Autor de atentado contra o STF em 2020 tinha uma, apreendida antes de ele jogar carro no Ministério da Justiça

Apoiadores de Jair Bolsonaro fazem gesto de arma com as mãos em manifestação de apoio ao presidente, em julho de 2019. (PAULO WHITAKER / REUTERS)

Com apoio de um séquito cego e fiel, o presidente Jair Bolsonaro segue dobrando suas apostas na má condução do país. Em uma de suas jogadas mais ousadas, ele protocolou o pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em 23 de agosto. Feito depois que o ministro incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news, o pedido foi prontamente rejeitado pelo Senado. Agora, o presidente segue incitando seguidores contra a corte, que precisou tomar providências para evitar riscos em 7 de setembro, quando estão previstas manifestações de apoio a Bolsonaro e contra o STF por todo o país.

No Palácio, governistas, militares da ativa e da reserva analisam mais de 100 decisões dos ministros da Suprema Corte, tomadas entre 2019 a 2021 para os pressionar. Ao chamar os ministros para “falar com o povo” no dia 7 de setembro e dizer que “não somos três Poderes, somos dois”, Bolsonaro estica novamente a corda, numa tensão que já é quase palpável. E há mais um elemento nessa receita: armas.

Os discursos de agitadores de Bolsonaro, chamando ações do Supremo de “ditadura da Toga” ecoam nas ações de seus seguidores, como o advogado Luiz Antonio Iurkiewiecz, que em novembro de 2020 viajou de Santa Catarina a Brasília, armado, para atacar o STF. Ele errou o prédio e jogou o carro contra o Ministério da Justiça, mas a investigação do Ministério Público mostra que Iurkiewiecz “pretendia promover um atentado contra o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de protestar contra o que considera “uma ditadura do Judiciário” e “mostrar a ruptura institucional”.

Falha atrás de falha

Documentos aos quais o EL PAÍS teve acesso com exclusividade mostram que o atentado poderia ter tido consequências mais graves, já que o autor do crime percorreu mais de 1.500 km entre Lajes (SC) e Anápolis (GO), armado com uma espingarda Boito, calibre 12. Ele foi preso em flagrante em Goiás após uma denúncia de que um homem ostentava uma arma em frente a um hotel. A arma era legalizada (SIGMA 1207058), e só ficou apreendida porque o advogado não tinha autorização para transitar com a espingarda.

Pagou fiança, foi solto no mesmo dia e seguiu seu plano de ir até Brasília cometer um atentado contra o Supremo. Sem a arma, ele apelou para o plano B: jogou o carro contra o Palácio da Justiça. O estrago só não foi pior porque o homem errou o cálculo e o carro caiu no espelho d’água de Brasília. Na perícia do carro, alugado e com um adesivo de apoio a Jair Bolsonaro, foram encontrados também uma espada e um porrete.

Atiradores com pouca fiscalização

No celular periciado foi possível ver que o advogado participava de alguns grupos pró-armas, como “Muda Brasil CAC Sul” e “Muda Brasil - Armas”. Mas, apesar disso, nenhuma busca ou apreensão foi solicitada em endereços ligados ao investigado para saber, por exemplo, se ele tinha outras armas. Os CACs, grupo do qual Iurkiewiecz era parte e que é formado por caçadores, atiradores e colecionadores, são a categoria mais beneficiada por decretos que aumentaram o acesso a armas e munições na era Bolsonaro. Hoje há mais CACs armados no Brasil do que militares. Atualmente, o registro do grupo é superior a 409.000; enquanto os militares somam quase 335.000.

A quantidade se aproxima do efetivo das polícias militares nos Estados brasileiros, que registram 416.000, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Além da radicalização do discurso contra outros poderes da República e de um incentivo por parte do presidente para o uso de armas de fogo para fins políticos, hoje nós temos milhares de armas a mais nas mãos de civis e sinais mais fortes de cooptação de forças federais pelo presidente”, explica Bruno Langeani, advogado e gerente da área de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz.

Para ele, este caso não pode ser analisado apenas como um carro jogado contra o Palácio da Justiça. É preciso se aprofundar e investigar ameaças reais que podem, ao contrário desta, “dar certo”. “Se alguém que fazia ameaças públicas na internet, participava de vários grupos de CACs e apoiadores do presidente e que publicou posts durante toda a viagem até Brasília, foi desarmado e preso a poucos quilômetros de Brasília e, mesmo assim, conseguiu realizar o atentado, isso nos traz sérias dúvidas sobre a capacidade dos órgãos de inteligência de prevenir ameaças deste tipo”, analisa.

Inicialmente Iurkiewiecz ficou preso em Brasília, depois foi transferido para uma clínica psiquiátrica e recebeu autorização para aguardar o julgamento em casa. Um laudo mostrou que ele estava com o “juízo crítico reduzido”, o que, alegadamente pode ter afetado parcialmente seu entendimento. A análise foi anexada ao processo sobre “tentativa de prática de atentado por inconformismo político”, no âmbito da Lei de Segurança Nacional. Revogada recentemente em partes, a LSN foi muito usada contra adversários políticos de Bolsonaro.

Apesar de o caso deixar claro o risco do acesso a armas por pessoas com “juízo crítico reduzido”, especialmente em um contexto de acirramento de ameaças democráticas, órgãos de inteligência do Governo, como ABIN e PF, não conseguiram se antecipar a esta ameaça. Na investigação, câmeras de monitoramento do Ministério mostram que Iurkiewiecz esteve no prédio dias antes do crime, segundo a PF, para analisar as condições de segurança.

Este “juízo crítico reduzido”, bem como o fato de Luiz ter sido preso em 2016 com munições ilegais, não impediu que ele conseguisse registrar uma nova arma junto ao Exército, em setembro de 2020, dois meses antes do atentado. Questionado sobre como uma pessoa com antecedentes criminais conseguiu ter acesso a uma nova arma, o Exército disse que não é possível responder dentro do período solicitado —data de publicação— mas que responderá assim que possível.

No início de setembro, o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), se reuniu com a Polícia Rodoviária Federal e o presidente da Associação Pró Armas para reclamar de abordagem a atiradores. O deputado não gostou da ação de oficiais contra CACs que portavam armas em seus carros, que, ficou claro, é importante. Ao fim da reunião, Eduardo disse no Twitter que a “PRF em breve editará um manual para orientar seus policiais sobre abordagem a CACs”.

Radicais no limite

Durante uma live no início de agosto, o presidente Bolsonaro disse que “a hora dele vai chegar”, acusando o ministro do STF Alexandre de Moraes de atuar “fora das quatro linhas da Constituição”. O entorno bolsonarista tem inflado tais ataques nas redes. Ameaças ao ministro e ao Supremo se acirram com o 7 de setembro. Há alguns dias, um comandante da PM de São Paulo foi afastado do cargo após convocar manifestação contra o STF. No domingo (5) um usuário do Twitter identificado como Cássio Rodrigues Costa Souza, ex-PM em Minas Gerais, disse: “Morra, careca, filho da puta. Terça-feira vamos te matar e toda a sua família, seu vagabundo, advogadinho de merda do PCC. Sou policial militar e nós, militares, te eliminaremos”. O perfil foi apagado, mas deixou o alerta vermelho ligado.

Langeani lembra que Bolsonaro liberou tantas armas mais potentes a CACs e policiais, que mesmo entre as armas de porte, que podem ser carregadas e escondidas com mais facilidade, há armas que ameaçam os níveis de blindagem dos veículos das autoridades públicas. “Estamos falando de veículos de congressistas, ministros do STF. Mas, no limite, como este caso mostra, nem mesmo o Executivo Federal está a salvo”, alerta.

Uma pesquisa do Instituto Atlas Intelligence divulgada nesta segunda-feira mostrou que 30% dos policiais militares entrevistados pretendem ir “com certeza” aos protestos a favor de Jair Bolsonaro e contra o Supremo Tribunal Federal. Somada a pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que dá conta de que apoio a teses extremistas aumentou 29% entre policiais militares, é preciso redobrar a atenção.

Para o ex-corregedor da Polícia Militar do Rio de Janeiro e coronel da reserva Wanderby Medeiros, desde o ataque de Luiz Antonio Iurkiewiecz ao Ministério da Justiça no ano passado, a polarização subiu alguns degraus, “em grande parte motivada pela elevação de tom do próprio presidente da República, que, em mais de um momento, foi expresso quanto à possibilidade de quebra da normalidade democrática”. Apesar de não acreditar que as polícias estão envolvidas nos atos como corporação, ele reitera que punir eventuais abusos “é um dever que se impõe aos seus superiores, que inclusive podem estar incursos na prática de crime militar em não o fazendo”.

Mais uma movimentação da ala bolsonarista pode ter impacto nesse sentido. Em 2019 o presidente sancionou projeto de lei que prevê o fim da prisão disciplinar para bombeiros e policiais militares. Apesar de especialistas divergirem sobre isso —há quem julgue inconstitucional— há PMs que hoje só punem certos desvios com advertência e repreensão. Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou que apenas oito governadores pretendem de fato tomar alguma providência e punir PMs por adesão aos protestos desta terça-feira. A instrumentalização das polícias é um risco iminente à democracia que há muito vem sendo tratado sem a devida importância. Às vésperas de um dia D como o desta terça-feira, essa falta deixa uma janela aberta para um desfecho preocupante.

CECÍLIA OLLIVEIRA, do Rio De Janeiro para o EL PAÍS, em  06 SET 2021 - 19:18 

Presidente diz que não vai cumprir decisões tomadas por Moraes

PSDB diz que se reunirá para discutir impeachment de Bolsonaro. Ao discursar na Esplanada dos Ministérios, presidente falou em “ultimato” ao se referir ao presidente do STF, Luiz Fux. O ex-assessor da família Bolsonaro Fabrício Queiroz é festejado em protesto no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a crise sanitária segue com tendência de queda. O país se aproxima de 584.000 mortes por covid-19; siga

“Ou o chefe desse Poder [Luiz Fux] enquadra o seu [ministro] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”, discursou Jair Bolsonaro para um mar de apoiadores na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em referência ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O presidente discursava ao lado de alguns ministros, como Braga Netto, da Defesa, Onyx Lorenzoni, do Trabalho, e Damares Alves, dos Direitos Humanos. O tom usado pelo mandatário levou o PSDB a anunciar que discutirá nesta quarta-feira sua posição sobre o impeachment de Bolsonaro. Horas depois, Bolsonaro repetiu o discurso para a plateia da avenida Paulista, acrescentando apenas o nome do ministro do STF Alexandre de Moraes, que ele não tinha mencionado na capital federal, e críticas sobre o sistema eleitoral brasileiro.

O 7 de Setembro nem havia começado quando os apoiadores do presidente conseguiram forçar a entrada na Esplanada dos Ministérios. Ao contrário do que estava planejado pela Polícia Militar do Distrito Federal, caminhões, entre outros veículos, circularam pelas vias do centro de Brasília, após os manifestantes romperem a primeira barreira estabelecida pela PM. 

Os atos desta terça são vistos no exterior como “insurreição” que coloca em perigo a democracia do Brasil e ex-presidentes e políticos de 26 países assinaram uma carta em alerta à situação. Enquanto isso, a crise sanitária segue com tendência de queda enquanto avança a vacinação. O Brasil registrou mais 9.154 casos e 182 mortes por covid-19 nesta segunda. 

Com isso, soma 20,89 milhões de infectados e 583.810 óbitos desde o começo da pandemia. Os dados são do Ministério da Saúde e são impactados pelas equipes reduzidas nos laboratórios durante o fim de semana. A média móvel de mortes por covid-19 no país segue em queda, com cerca de 600 registros diários.

MDB se une ao coro dos críticos a Bolsonaro: "Parece tentar desviar dos problemas reais"

"É lamentável o presidente da República usar o Dia da Independência para afrontar os outros Poderes. Parece tentar se desviar dos problemas reais: inflação de alimentos, combustíveis, crise fiscal, hídrica, desemprego e baixo crescimento", diz em nota o MDB. O partido diz respeitar "divergências programáticas", "mas se aferra à Constituição que determina a independência harmônica entre os poderes. Contra isso, o próprio texto constitucional tem seus remédios em defesa da democracia, que é sinônimo da vontade do povo", completa a nota.

Camilo Santana: "Ameaças de tom golpista tentam demonstrar força, mas só revelam a fraqueza e o desequilíbrio de quem as faz"

O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), também repercutiu os atos com pauta antidemocrática e em apoio ao presidente Bolsonaro nesta terça-feira. "Essas ameaças de tom golpista tentam demonstrar força mas, ao contrário, só revelam a fraqueza e o desequilíbrio de quem as faz. Mostram desprezo às leis e à Constituição. Tentam provocar o caos para tirar o foco dos reais problemas do país e da total incapacidade de resolvê-los", afirmou o petista pelo Twitter.

Em São Paulo, Bolsonaro diz abertamente que não cumprirá decisões do Supremo tomadas por Alexandre de Moraes

Ao iniciar seu segundo discurso do dia, desta vez em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro falou sobre a pandemia de covid-19 e, mais uma vez, criticou as autoridades estaduais e municipais que adotaram medidas restritivas para tentar frear o contágio do coronavírus. "Tinha de esperar um pouco mais para que a população fosse se conscientizando do que é um regime ditatorial. Pior do que o vírus foram as ações de alguns governadores e prefeitos", afirmou. 

Depois, adotou o tom já usado pela manhã, em Brasília, e voltou a criticar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), citando nominalmente, pela primeira vez, Alexandre de Moraes, magistrado que tem adotado decisões contrárias aos aliados do presidente. Segundo ele, Moraes "açoita a democracia" e "desrespeita a Constituição". 

"Ou Alexandre de Moraes se enquadra ou ele pede para sair!", repetiu Bolsonaro, sob gritos de apoios da multidão e foi ainda mais categórico do que na capital do país: "As ordens de Alexandre de Moraes, esse presidente não obedecerá mais". 

Diante de apoiadores pedindo "liberdade", o presidente disse que defende a democracia, mas que não pode aceitar participar de uma "eleição que não oferece qualquer segurança". Sem mencionar nominalmente o ministro Luís Roberto Barroso, disse ainda que o sistema eleitoral não pode ser definido por uma única pessoa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). "Não posso mais participar de uma farsa patrocinada pelo presidente do TSE", acrescentou, fazendo alusão ao voto impresso, uma das pautas dos atos deste 7 de Setembro. 

Dória: "Bolsonaro afronta a Constituição, desafia a democracia e empareda a Suprema Corte brasileira"

O governador de São Paulo, João Doria, defendeu nesta terça o impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Ele diz que não integra a Executiva nacional do PSDB e, portanto, não vai participar da reunião marcada para esta quarta para discutir a questão, mas defendeu que os tucanos marquem oposição ao presidente e se coloquem favoráveis ao impedimento. "A nossa posição é pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Eu até hoje nunca havia feito uma manfestação pró-impechment, quero deixar claro. Me mantive na neutralidade, entendendo que até aqui os fatos deveriam ser avaliados e julgados pelo Congresso Nacional. Mas depois do que assisti hoje e ouvi em Brasília, sem sequer estar ouvindo o que pronunciará aqui o presidente Jair Bolsonaro, ele afronta a Constituição, desafia a democracia e empareda a Suprema Corte brasileira", declarou em entrevista coletiva na capital paulista. 

Eduardo Leite: "Foi um erro colocar Bolsonaro no poder. Está cada vez mais claro que é um erro mantê-lo lá".

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, diz que foi um erro colocar Bolsonaro no poder. "Está cada vez mais claro que é um erro mantê-lo lá", postou no Twitter. "Inflação, desemprego, apagão de energia, desmatamento da Amazônia, pandemia… Esses deveriam ser os inimigos do PR do Brasil, e não outros brasileiros. Mas Bolsonaro se engana: nossas cores e nosso país não têm dono. Iremos defender os brasileiros e a democracia que ele ataca", afirma o tucano. Leite apoiou o presidente nas últimas eleições gerais e agora seu nome é cotado como um dos pré-candidatos ao Planalto. Seu partido, o PSDB,  informou nesta terça que discutirá a abertura de impeachment contra Bolsonaro.

EL PAÍS, em 07.09.2021

Em protestos, Bolsonaro faz ameaça golpista ao STF

Enfraquecido, presidente comparece a atos em Brasília e São Paulo convocados para mobilizar ala mais radical de seus apoiadores. Ele repete ameaças ao Supremo e diz que "só Deus me tira de Brasília".

Bolsonaro em Brasília, durante evento com apoiadores

O presidente Jair Bolsonaro discursou nesta terça-feira, feriado de 7 de Setembro, em atos pró-governo, quando voltou a expressar falas em tom golpista, fazer ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e criticar o sistema eleitoral do país.

Em São Paulo, diante de apoiadores aglomerados na Avenida Paulista, o presidente renovou seus ataques ao STF, que recentemente prendeu vários de seus aliados e tem tomado algumas iniciativas para impedir que o governo tumultue as eleições de 2022.

Bolsonaro chegou a mencionar pelo nome o ministro Alexandre de Moraes, seu desafeto na Corte e responsável por inquéritos que afetam bolsonaristas. "Ou esse ministro se enquadra ou ele pede pra sair", afirmou. "Não vamos admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a violar nossa democracia."

Após ter rejeitada pelo Congresso sua proposta de reforma do sistema eleitoral, o presidente voltou a questionar a idoneidade e a segurança das eleições, apesar de ainda não apresentar evidências que comprovem suas acusações.

"Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança", disse. "Não é uma pessoa do Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável." Bolsonaro é crítico das urnas eletrônicas e defende o voto impresso auditável, apesar de o TSE ter assegurado que as urnas já são auditáveis.

No fim do discurso, Bolsonaro ainda repetiu uma frase que havia dito há poucos dias, sobre seu futuro em Brasília: "[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", declarou. "Só Deus me tira de Brasília." 

Segundo a Polícia Militar, o ato na Paulista reuniu 125 mil pessoas. Uma manifestação simultânea organizada por grupos de oposição a Bolsonaro no Vale do Anhangabaú, o chamado Grito dos Excluídos, contou com 15 mil pessoas. 

Horas antes, o presidente já havia feito ameaças ao Supremo em um primeiro discurso no protesto de Brasília, também parte de uma convocação nacional organizada por ele e aliados.

"Ou o chefe do Poder [Judiciário] enquadra o seu, ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos", disse Bolsonaro, em recado direto ao presidente do STF, Luiz Fux. "Quem age fora dela [Constituição] ou se enquadra, ou pede para sair", completou Bolsonaro, no ato que reuniu apoiadores na capital federal.

"Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil", discursou.

No momento, Bolsonaro enfrenta uma queda constante de aprovação, economia em crise, pandemia, o fantasma de um apagão energético, insatisfação crescente entre o empresariado e denúncias de corrupção.

"[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", diz Bolsonaro em São Paulo

Tentativa de demonstrar força

A convocação dos atos deste feriado é encarada como uma tentativa de Bolsonaro de demonstrar alguma força nesse momento de perda de influência e como uma forma de intimidar o STF. Os atos vêm sendo divulgados há semanas pelo presidente, também como uma forma de agitar a ala extremista de sua base.

O foco das falas foi especialmente dirigido aos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso – este também presidente do TSE –, que são com frequência tratados como inimigos pelo presidente e sua base.

Moraes é responsável por diversos inquéritos que afetam bolsonaristas e determinou a prisão de aliados do presidente, como o deputado Daniel Silveira e o presidente do PTB, Roberto Jefferson, que incitaram violência contra ministros do Supremo.

Já Barroso, na condição de presidente do TSE, se opõe à adoção do voto impresso, uma bandeira bolsonarista, encarada como uma forma de minar a confiança no processo eleitoral e tumultuar as eleições de 2022, que se desenham extremamente desfavoráveis para Bolsonaro, segundo pesquisas.

Bolsonaro também tem um longo histórico de falas a favor de um golpe de Estado no Brasil, e desde que tomou posse tem protagonizado embates tanto com o Judiciário quanto com o Congresso.

Atos de 7 de Setembro

O discurso do presidente não foi transmitido ao vivo por canais de TV ou redes sociais devido a dificuldades técnicas no sinal da região. Algumas filmagens conseguiram captar apenas alguns trechos da fala do presidente, que estava cercado de apoiadores que seguravam placas e faixas pedindo um golpe militar e a dissolução do STF e do Congresso.

Em Brasília, imagens da manifestação mostraram um comparecimento mais considerável que nos esvaziados protestos bolsonaristas dos últimos meses, mas observadores políticos apontaram que o número de manifestantes foi menor do que o esperado. Filmagens aéreas mostraram vários espaços vazios ao longo da Esplanada. Era também possível ver junto aos canteiros diversos ônibus e caminhões que transportaram manifestantes.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, houve registro de episódios de violência em Brasília. Pelo menos duas pessoas na Esplanada dos Ministérios que participavam dos atos com filmagens foram apontadas como "infiltradas" por manifestantes da base radical do presidente e agredidas com empurrões e socos.

Em São Paulo, simultaneamente à manifestação na Paulista, ocorria um ato organizado pela oposição, o Grito dos Excluídos, que reuniu milhares de pessoas no Vale do Anhangabaú, região central da cidade. A manifestação é organizada tradicionalmente em 7 de setembro por partidos da esquerda, encabeçados por PT, Psol e PSB, e por centrais sindicais.

Um dos organizadores do evento, o coordenador da Central de Movimentos Populares, Raimundo Bonfim, disse que, pela primeira vez em 27 anos, a manutenção da democracia é o tema central do Grito dos Excluídos, em vez de desemprego, fome e exclusão social.

Segurança reforçada

O Supremo Tribunal Federal, um dos alvos favoritos de críticas dos bolsonaristas, reforçou a segurança do seu prédio para desestimular potenciais atos de depredação ou invasão.

Em várias redes bolsonaristas, seguidores mais fanáticos do presidente têm encarando os protestos do feriado como uma oportunidade de insurreição similar a que ocorreu em 6 de janeiro nos EUA, quando uma turba de apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden, ou como uma chance de estimular as Forças Armadas a aderirem ao movimento.

Influenciadores bolsonaristas já estimularam atos violentos no passado que acabaram não se materializando ou que não geraram o efeito desejado. Dessa forma, analistas apontam que os atos podem se limitar a servir para mais uma vez agitar a base extremista do governo e alimentar a tensão permanente com outros Poderes.

Antes de participar do ato com apoiadores, Bolsonaro acompanhou a cerimônia de hasteamento da bandeira ao lado de 16 ministros e do ex-presidente e senador Fernando Collor, nos jardins do Palácio da Alvorada.

Também participaram o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), e o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que está no centro de um escândalo envolvendo suspeitas de compra superfaturada de vacinas e favorecimento de empresas.

Em meio ao clima de tensão entre os Poderes estimulado por Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, não participaram da cerimônia de hasteamento da bandeira.

Mais cedo, Pacheco publicou em suas redes sociais uma mensagem sobre a "absoluta defesa do Estado Democrático de Direito".

"Ao tempo em que se celebra o Dia da Independência, expressão forte da liberdade nacional, não deixemos de compreender a nossa mais evidente dependência de algo que deve unir o Brasil: a absoluta defesa do Estado Democrático de Direito", escreveu o senador, que recentemente freou uma investida de Bolsonaro contra o Judiciário ao engavetar um pedido de impeachment apresentado pelo presidente contra o ministro Alexandre de Moraes.

Deutsche Welle Brasil, em 07.09.2021

Carta a Bolsonaro neste Sete de Setembro

Você sabe que sua massa de estimação está descolada do Brasil real; não estamos em 2018

Chegou o seu dia, Bolsonaro. O dia que você preparou com afinco, dia D e hora H, como diria um coronel que você arrastou para a lama consigo. Sabemos palavra por palavra o seu discurso de hoje no caminhão de som da avenida Paulista: vai falar que o STF não te deixa governar, ameaçar sair das "quatro linhas da Constituição", pregar o voto impresso, exaltar militares que te seguem, desacreditar as pesquisas blá-blá-blá...

Sua audiência aplaudirá efusivamente, erguendo faixas intervencionistas e, quiçá, cometendo atos de covardia em algum canto do país. Mas no fundo você sente que sua massa de estimação já está descolada do Brasil real. Não estamos mais em 2018. Lá suas pregações confluíam com um desejo de mudança, com um feroz sentimento de antipolítica. Agora o problema é você. É o preço da gasolina, do gás, do feijão. O morticínio da pandemia, o desemprego, enfim, os feitos desumanos do seu governo. Seu discurso prega para convertidos, mas está alheio às preocupações do povo.

Você está com medo, Jair. Também, pudera: Carluxo sentindo o cheiro da cadeia, CPI fechando o cerco e até o 04 pode entrar na dança. Nas suas palavras de ameaça vejo um homem desesperado, mal resolvido, acuado pelo turbilhão dos fatos. Você não vê alternativa a não ser dobrar a aposta, fugir para a frente. É assim que você lida com seus medos desde Eldorado Paulista ou, depois, tentando explodir quartéis.

Getúlio, quando acuado por forças golpistas em 1954, deu sua vida à nação e adiou o golpe militar por uma década. Brizola, vendo a mesma marcha em 1961, entrincheirou-se no Sul e deu início à Campanha da Legalidade. Jango, três anos depois, mesmo sitiado, promoveu o Comício da Central do Brasil e manteve-se fiel aos interesses do povo até o final. Tiveram todos grandeza histórica. Mas grandeza é uma palavra que você desconhece.

Prefere deixar o país refém de suas alucinações e tentar jogar-nos a todos no mesmo abismo em que você se encontra. Tudo para salvar a própria pele e a dos seus. Você não tem ideais, não tem projeto, é movido apenas pelos ressentimentos que acumulou ao longo da vida e por um instinto animalesco de sobrevivência.

Nada indica que vá dar certo, não importa quantas pessoas você coloque hoje em Brasília e na avenida Paulista. Sua única chance é que instituições que têm muito a perder —ao contrário de você— embarquem numa aventura suicida. Convenhamos, Jair, é improvável, até porque neste caso ao vencedor não sobrariam nem mesmo as batatas. Apenas um país ingovernável, sem credibilidade e com terra arrasada. Mesmo assim você foi para o tudo ou nada. Vejamos o que este dia 7 reserva ao Brasil, mas para você pode ser o início do fim.

Guilherme Boulos, o autor deste artigo, é  Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.Publicado originalmente pela Folha de São Paulo, em 6.set.2021 às 18h21

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O mandato de Jair Bolsonaro está em perigo

As vacinas podem lhe custar o governo

As pedaladas que custaram o mandato a Dilma Rousseff tinham um algo de malandragem contábil, só. O rolo das vacinas tem muito mais que isso. Ainda faltam-lhe, contudo, as digitais de Jair Bolsonaro. Os irmãos Miranda denunciaram a picaretagem indiana durante uma conversa, e ele não fez nada. É forte, mas pode ser pouco.

Negacionismo só produz misérias. A "gripezinha" abalou a credibilidade do governo em tudo que tem a ver com uma pandemia que já matou mais de 500 mil brasileiros. O mandato de Jair Bolsonaro está em perigo. Na melhor das hipóteses (para ele) a reeleição torna-se um sonho perdido que milicianos não conseguirão reativar.

A Bolsonaro de nada adianta mobilizar pelotões contra a CPI, maltratar repórteres, ou falar para convertidos nas redes sociais. A compra de vacinas pelo governo brasileiro expôs um redemoinho de picaretagens. Um cabo da PM mineira diz que recebeu um pedido de pixuleco de US$ 1 para cada uma dos 400 milhões de doses da AstraZeneca.

Capilé de US$ 400 milhões num golpe semelhante é coisa que não existe, mas outras libélulas giravam em torno da AstraZeneca. A vacina do cabo custaria US$ 4,50 (com o pixuleco incluído). Na mesma época, um misterioso operador oferecia-se para privatizar imunizações, oferecendo a mesma vacina a um grupo de empresários por US$ 23,79 a unidade . A proposta foi detonada pelos bilionários que seriam mordidos. Isso com a AstraZeneca.

Já com a Covaxin indiana o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas, pergunta ao governo por que a unidade, negociada a US$ 10 em novembro do ano passado, foi contratada por US$ 15 em fevereiro.

Todos os laboratórios reiteram que nada tiveram a ver com essas ofertas. Tudo não passaria de conversa de atravessadores, mas em todos os casos (salvo no da oferta ao consórcio de empresários), na outra ponta havia servidores públicos habilitados a negociar.

A única vacina que não foi rondada pela turma do pixuleco foi a Coronavac. Aquela que, segundo ele, NÃO SERÁ COMPRADA (maiúsculas de Bolsonaro).

O capitão pode persistir no caminho do vitupério. Nele, a Covid era uma" gripezinha" e as vacinas poderiam transformar cidadãos em jacarés. Esse negacionismo já levou o país à ruína dos 500 mil mortos e mandou o governo às cordas. Recorrer aos militares nem pensar, pois eles já carregam o desastre do general Pazuello e dos coronéis que levou para o Ministério da Saúde.

O tamanho do problema sugere que seria conveniente nomear uma pessoa ou uma comissão independente para tratar dessa cavalariça, limpando-a. Nada a ver com notáveis terrivelmente seja lá o que for. Para fulanizar, apenas mostrando um perfil dessa pessoa, poderia entregar o caso ao ministro Marco Aurélio Mello, que acaba de deixar o Supremo Tribunal Federal.

Essa pessoa, ou comissão independente, investigaria o que acontece no Ministério da Saúde e no seu entorno, restringindo-se à questão do preço das vacinas. Terminado o serviço, entregaria a Bolsonaro uma bandeja com as cabeças dos envolvidos, bem como uma avaliação de seu papel nos episódios. Esse procedimento não tiraria das costas do capitão os 500 mil mortos da Covid nem os 14 milhões desempregados. No mínimo, aliviaria o país de um aspecto de sua conduta irracional.

Elio Gaspari, o autor deste artigo e também de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada", é Jornalista Profissional. Publicado na Folha de São Paulo,  em 6.jul.2021 às 23h15

Bolsonaro vai tentar dar um golpe de Estado

O presidente sairá vitorioso? Provavelmente não, mas é terrível termos chegado a este ponto

É fundamental que todos os democratas tenham clareza da iminência do golpe: visões do tipo “as instituições estão funcionando” (ainda alimentadas por alguns cientistas políticos) só nos aproximam de uma catástrofe. Bolsonaro vai tentar o golpe, e a prioridade agora é que seu plano dê errado.

Trata-se de um processo a ser concluído só em 2022, e uma data chave (mas não decisiva) é a manifestação programada para 7 de setembro, por “liberdade”, “intervenção militar”, “contra o STF”, “pelo voto impresso” e sabe-se mais o quê.

Trata-se de um evento provocador, e é importante que nós, democratas, não aceitemos provocações. Que gritem sozinhos. Segundo eles, é o “7 de setembro do povo”. E nós somos o quê? Acaso não fazemos parte desse povo, não temos direito de comemorar o Dia da Independência, nossa Festa Pátria?

Evidente que temos, e somos maioria. Mas evitemos provocações: tudo que querem é encontrar justificativas para fechar o regime.

​POR QUE E COMO O GOLPE SERÁ DADO?

Remeto aqui ao maior cientista político brasileiro, Wanderley Guilherme dos Santos, e a seu clássico livreto de 1962 “Quem Dará o Golpe no Brasil?”, premonitório do golpe de 1964. O trabalho hoje é bem mais simples, por óbvio, e não precisa ser realizado por um Wanderley, pode ser por mim mesmo.

Bolsonaro dará o golpe porque sempre foi autoritário e sabe que suas chances eleitorais são reduzidas. Vem adotando comportamento histérico e paranoico, denotando seu isolamento político.

Com o quadro de economia debilitada, desemprego, inflação e juros em alta, seca e crise energética à vista e pandemia de Covid-19 criminosamente gerida e ainda longe de um final, não é provável que Bolsonaro vença a eleição de 2022 (se houver).

Lula se impõe como virtual eleito, catapultado pela retomada de seus direitos políticos, pela memória de tempos melhores e pelo escancaramento do viés persecutório da Operação Lava Jato.

Como o caminho eleitoral lhe parece bloqueado, Bolsonaro terá que encontrar outros caminhos (segundo sua expressão recorrente) “fora das quatro linhas da Constituição” para seguir em seu projeto regressista, de retorno a um Brasil imaginário harmonioso, cristão, no qual comunistas estavam pendurados no pau de arara e mulheres, “pretos” e “bichas” aceitavam um lugar inferior na sociedade sem protestar.

Um projeto centrado numa figura “messiânica”, convencida de sua predestinação, que mobiliza camadas médias ressentidas com sua perda de status, elites arrivistas, setores retrógrados do agro e da mineração e parte dos mais precarizados da sociedade.

Parece fascismo, tem cheiro de fascismo, tem sabor de fascismo. E é fascismo mesmo.

Bolsonaro dará o golpe da seguinte forma: seu "modus operandi" de sempre é produzir caos, eleger novos inimigos e polarizar. Vai, desse modo, mantendo seus apoiadores mobilizados e crescentemente armados. Vão acossando ministros do Supremo Tribunal Federal, senadores, jornalistas, as esquerdas, movimentos indígenas, negros e feministas. Enquanto isso, seguem se armando.

Idealmente, Bolsonaro tentará evitar a eleição, produzindo caos como justificativa para uma “intervenção militar”.

Mais provavelmente, Bolsonaro conseguirá produzir algo mais concreto após sua derrota eleitoral. Alegará fraude, falta de confiança nas urnas eletrônicas, e é bem possível que resolva se encastelar no Palácio do Planalto.

Apoiadores produzirão motins de policiais militares nos estados, eventualmente insubordinações de setores de baixa patente das Forças Armadas, no limite invasões do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Tem tudo para dar errado: parece faltar base social. Mas o inferno está nos detalhes.

POR QUE O GOLPE PODE DAR CERTO?

Não há apoio popular majoritário para uma tentativa golpista. Não há maioria no Senado Federal (já da Câmara dos Deputados amorfa e conservadora pode-se esperar qualquer coisa), nem sustentação no Supremo Tribunal Federal ou entre os governadores de estado.

A grande mídia se coloca dessa vez claramente contrária a uma aventura desse tipo, bem como a Igreja Católica, boa parte do empresariado e mesmo os banqueiros. Tem tudo para dar errado.

Porém cabe mencionar que as instituições brasileiras estão despedaçadas e que o Estado vem sendo crescentemente ocupado por militares desde o golpe de 2016.

Ocorre também que Bolsonaro tem seus apoios: empresários aventureiros, parte do agro, associações de caminhoneiros, as cúpulas das igrejas evangélicas, clubes de tiro, paramilitares.

E o principal: contingentes importantes das polícias militares (que podem resolver responder diretamente a ele e não mais aos governadores) e possivelmente das Forças Armadas e da Polícia Federal parecem dispostos a seguir Bolsonaro em seu "putsch".

Quem detém as armas não é uma questão de pouca monta. Assim, se setores armados resolverem manter Bolsonaro no Planalto e ocupar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal após a derrota nas eleições, cabe perguntar quem vai retirar o golpista e seus apoiadores dos palácios.

Assim, dependemos mais uma vez dos chamados “militares legalistas”, ou seja, de uma parte do aparato repressivo do Estado que resolva garantir a posse do presidente eleito (supomos que será Lula).

Considerando a trajetória autoritária, intervencionista e demofóbica de nossas Forças Armadas, depender apenas delas não é o melhor cenário. Melhor não se fiar apenas nisso.

O QUE OS DEMOCRATAS DEVEM FAZER

É fundamental garantir a preservação física dos democratas e suas principais lideranças. Já passou da hora de redobrar cuidados nas manifestações oposicionistas (que têm que continuar ocorrendo), evitar provocações e reforçar a segurança de figuras como Lula.

Uma vitória retumbante do candidato opositor em 2022 será importante. Garantir a posse, ainda mais.

Não resta muito a fazer a não ser buscar uma “frente ampla”, procurando conversar com todos. Preservando, porém, o caráter de esquerda da candidatura e a agenda de retomada de direitos e da própria Constituição de 1988.

Um ambiente com tal nível de polarização como o brasileiro torna inviável qualquer pretensa “terceira via”.

Assim, se terão que engolir Lula, o “sapo barbudo”, mais uma vez, não há necessidade de que se ceda tudo nas negociações. Trata-se de um tênue caminho entre garantir a eleição, a posse e a governabilidade de um lado e manter uma agenda transformadora do outro.

De todo modo, um ano na conjuntura conflagrada brasileira equivale a um século. É arriscado fazer qualquer previsão, mas me arrisco aqui a mais uma para concluir.

Recentemente, Bolsonaro afirmou em evento evangélico visualizar três alternativas em seu futuro: “Estar preso, morto ou a vitória”.

Não há dúvida de que todos os democratas devem lutar pela derrota de Bolsonaro (de sua candidatura e de seu golpe) e desejar que se preserve bem e com saúde para quando finalmente for responsabilizado e preso por seus crimes.

Fabricio Pereira, o autor deste artigo, é Professor de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile). Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 5.set.2021 às 15h55.

Bolsonaro é o perdedor

Nenhuma imagem do feriado mudará o apoio da imensa maioria do país à democracia

O presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira/Folhapress

Paira no ar um frisson, de certa forma compartilhado por bolsonaristas e antibolsonaristas, sobre qual será a imagem de maior impacto no período de 7 a 12 de setembro —vale dizer, a foto com mais manifestantes, como se isso retratasse a maioria dos brasileiros.

Trata-se de um equívoco flagrante.

A ciência da pesquisa, como no levantamento conduzido pelo Datafolha em junho de 2020, mostra que a maioria esmagadora de 75% dos brasileiros é favorável à democracia —e que para 78% o regime militar foi uma ditadura da qual não há saudades.

Não importa o quão fanaticamente os bolsonaristas apoiem seu chefe e o quanto os opositores estejam menos mobilizados ainda em respeito à crise sanitária; nada muda o fato de que Jair Bolsonaro erra, mais uma vez, ao apoiar atos golpistas repudiados pela imensa maioria que não irá às ruas.

Repudiados também pelos setores organizados da sociedade que, a despeito de preferências e interesses heterogêneos, compreendem que só o ambiente de livre manifestação do pensamento e respeito ao Estado de Direito permite a apresentação de demandas e a busca por justiça e prosperidade.

Tal entendimento se espelha na representação política. Entre governadores, prefeitos e parlamentares inexiste massa crítica a encorajar ensaios de ruptura. A sustentação fisiológica ao governo no Congresso não faz mais do que levar adiante projetos econômicos e evitar o impeachment.

As instituições, ainda que imperfeitas, se encontram amadurecidas por mais de três décadas de democracia —o período mais longo de normalidade na história republicana— e consolidação dos freios e contrapesos a serem respeitados por todos os Poderes.

Está claro para todos que o alarido provocado por Bolsonaro deriva de sua incapacidade de governar e da perspectiva de ser mandado para casa pelos brasileiros em uma eleição livre e justa, como têm sido todos os pleitos realizados no país.

O mandatário usa a data nacional para uma demonstração de suposta força. Conta, não é novidade, com o apoio de parcela minoritária, mas ainda expressiva, do eleitorado. Mas só aprofundará seu fracasso ao insistir na arruaça e na truculência golpista.

Editorial da Folha de São Paulo, edição impressa, às 23h15, em 6.set.2021 editoriais@grupofolha.com.br

A Ordem do Dia*

A reação do empresariado brasileiro diante do governo Bolsonaro sugere que a política do medo funciona e explicita que o establishment carrega pouco custo em apoiar projetos que flertam com o autoritarismo

A reação do empresariado brasileiro diante do governo Bolsonaro sugere que a política do medo funciona. Os empresários têm medo de criticar um governo que ainda conta com mais de 20% de apoio popular e com o apoio dos partidos de centro – que garantem alguma governabilidade em troca de emendas orçamentárias e cargos. Uma crítica hoje pode ser um não amanhã. Além disso, a reação também explicita que o establishment carrega pouco custo em apoiar projetos que flertam com o autoritarismo e que corroem as instituições do país.

No dia 17 de julho de 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), anunciou que passaria a ser oposição ao governo de Dilma Rousseff. Desgastado com investigações na Lava Jato e com descontentamento popular crescente em relação ao governo, era dado início a um processo que culminaria no impeachment da presidente Dilma.

Em março de 2016, pulavam manifestos de empresários pedindo pelo impeachment da presidente. A Fiesp pendurou uma faixa em seu prédio na Avenida Paulista em São Paulo com o pedido de “Renúncia Já”. A CNI dizia que o cenário brasileiro era um “espetáculo deprimente”, pedindo “um basta”. 

Hoje é diferente. O empresariado brasileiro vem se pronunciando, como comentei na coluna de 13 de agosto, “Não tá no preço”. Mas, as manifestações parecem relativamente cautelosas. Não há “basta”, não existe um “tchau, querido” e nem pedidos de renúncia e impeachment. Os empresários se dizem a favor da democracia e da paz entre os Poderes.

Os empresários se mostram menos vocais e objetivos contra os descalabros do governo Bolsonaro do que com os erros cometidos pelos seus antecessores. De um lado, há empresários que parecem ainda simpatizar com o jeito autoritário do presidente. Há também os que podem não simpatizar, mas buscam pragmaticamente ficar do lado de quem permite a apropriação do Estado.

Há também, imagino, aqueles que têm medo. Se sentem intimidados pelo governo. Saem em defesa da democracia, mas ficam na retaguarda em falar abertamente que já basta um governo como este. O medo não é descabido. Nas últimas semanas, vimos, por exemplo, que a Caixa e o Banco do Brasil ameaçaram deixar a Febraban depois que a federação bem se manifestou em apoio da harmonia entre os Poderes. Um manifesto como este só existe e só impressiona quando as instituições estão, de fato, trêmulas.

O Brasil, e o establishment econômico, escolheu rejeitar mais governantes que cometeram crimes contra a economia, como foi o caso de Dilma e de Collor, ou presidentes que subiram ao poder depois de um impeachment, como foi o caso de Temer, do que um governo que atenta contra a vida e as instituições. E, mesmo quando se manifestam contra a derrocada democrática, o fazem de forma relativamente tímida. O descasamento entre benefícios individuais e custos coletivos fica evidente na atuação do establishment brasileiro.

Para alguém que nasceu no Brasil democrático, como eu, viver uma situação em que empresários redigem um documento se dizendo a favor da democracia é um pesadelo impensável. Eu cresci e vivi tomando a democracia como certa. Acabo de ouvir Bolsonaro falando “que se alguém quiser jogar fora dessas quatro linhas (da Constituição), nós mostraremos que poderemos fazer também”. Nunca achei que viveria no Brasil com um presidente que fala coisas do tipo. Mas, nunca achei também que veria tanta indiferença e medo por parte do povo e do establishment diante de ameaças como esta. O sentimento de retrocesso é enorme.

*O título da análise é o mesmo do livro de Éric Vuillard. No romance histórico, Vuillard conta como parte do empresariado alemão apoiou líderes nazistas mesmo os considerando vulgares e medíocres. 

Laura Karpuska, a autora deste artigo, é Professora do INSPER (SP), PHD em economia pela Universidade de Nova York (USA). Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 03.09.2021.

Cantanhede: Bolsonaro quer o 7/09 para dizer que o ‘povo’ está com ele, mas 2/3 são contra

No sábado, uma semana atrás, o presidente da Câmara, Arthur Lira, surpreendeu seus aliados no pequeno e pobre município de Lagoa da Canoa, em seu Estado, Alagoas, ao ligar para o presidente Jair Bolsonaro pelo celular, ser atendido e abrir a conversa pelo viva voz: “Olha aqui, é o nosso presidente!” Foi uma festa.

É assim que Bolsonaro governa, ou melhor, não governa. Faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez, que corrói as instituições, cria um clima de guerra – inclusive entre Câmara e Senado – e vai transformar o 7 de Setembro numa grande fake news, de defesa do nada e ataque à democracia, às instituições e à realidade.

Há os que, como Lira, se movem por interesses pessoais, políticos e eleitorais. Outros são os crentes, que tapam olhos, bocas, ouvidos – e narizes – para não enxergar e não entender o que está bem na sua cara. Caem em qualquer lorota e atacam quem tenta trazer luz e racionalidade ao País.

Eliane Cantanhêde: '(Bolsonaro) faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez'.  Foto: Marcos Correa/Presidência da República

O fato é que Jair Bolsonaro, que há pouco esfumaçou a Praça dos Três Poderes com tanques obsoletos e sem graça, tirou da população a festa e a alegria de saudar a Pátria, curtir o desfile militar e as manobras da Força Aérea para se concentrar numa única coisa: ele próprio.

Está prevista uma presença recorde em Brasília, Rio, São Paulo e várias capitais. Essa gigante massa de manobra será usada por Bolsonaro para mais uma fake news: a de que “o povo” está com ele. Segundo todas as pesquisas, porém, ele tem menos de um terço da população. Os outros dois terços observam, indiferentes ou perplexos, ou se desesperam, temendo que vá das palavras aos atos contra instituições, eleições e a democracia.

Tipos como Roberto Jefferson, Sérgio Reis, Ottoni de Paula, Daniel Silveira, Wellington Macedo, Zé Trovão e aquela outra que sumiu, depois de se fantasiar de Ku Klux Klan diante do Supremo, fazem da violência e do “quebro e arrebento” a sua bandeira. Esse é o seu lado, leitor?

Outros usam instrumentos da democracia como armas letais. A deputada Bia Kicis ameaça (sim, é uma ameaça) com um projeto para acabar com o TSE, a Justiça Eleitoral, que tem tantos serviços prestados. O deputado, ex-líder do governo e ex-major Vitor Hugo lança um projeto para tirar o comando dos governadores sobre as PMs e transferi-lo para Bolsonaro, transformando as polícias em milícias bolsonaristas, novamente a la Chávez.

E há os que transitam entre o incompreensível, o patético e a insanidade, como o negro Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, que, anteontem, levou ao delírio uma tal conferência conservadora (o Foro de São Paulo da extrema direita) ao chamar os movimentos negros de “afromimizentos, negrada vitimista, pretos com coleiras”. A escravidão, para ele, foi o maior barato.

Misturam-se a essa gente os ex-ministros Ricardo Salles, da destruição da Amazônia, e Ernesto Araújo, da implosão da política externa, além de Onyx Lorenzoni, que pula de ministério em ministério em nome de Deus, da família e da moral. Como o Taleban.

Arthur Lira faz o jogo e outros fazem gol contra, como Pedro Guimarães, da CEF, que transformou um traque numa bomba: um texto anódino da Fiesp e da Febraban, que seria nada, acabou fazendo emergir a resistência entre empresários, banqueiros, executivos e agronegócio. Instabilidade afeta desenvolvimento, investimentos e o futuro.

O mais triste é como um presidente que não governa, não tem programa, erra tudo na pandemia, não dá a mínima para a crise hídrica e só destrói, sem construir, consegue surrupiar a bandeira nacional, o verde e amarelo e a racionalidade de tantos inocentes úteis para atacar o Supremo, pilar da democracia, e endeusar a ele próprio, líder da desordem, do caos, da violência, da enganação.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da RádioJornal (PE) e do Tele-Jornal "Em Pauta", da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 05 de setembro de 2021 | 03h00

J.R. Guzzo: Golpe exige força – e o único que tem força, o Exército, não vai se meter nisso

É possível que as manifestações de rua deste Sete de Setembro, que têm sido a obsessão do mundo político brasileiro nas últimas semanas, acabem sendo uma coisa rala, muito abaixo do que esperam os admiradores do presidente Jair Bolsonaro – e abaixo, ao mesmo tempo, do que causa tanto pavor junto aos seus inimigos. Podem, ao contrário, reunir gente que não acaba mais e receberem a classificação de movimento de massa de primeira grandeza. Tanto num como no outro caso, não muda o verdadeiro problema que envenena a política brasileira no momento: o que fazer com o presidente da República, hoje e principalmente no futuro? É um nó de marinheiro – e daqueles difíceis de desmanchar.

J. R. Guzzo: 'Aconteça o que acontecer na rua no dia 7 de setembro, não vai haver golpe militar nenhum'.  Foto: Gabriela Biló/Estadão

As manifestações pró-Bolsonaro têm sido vistas pelo Supremo Tribunal Federal, pelas elites pensantes, pela mídia, pela oposição em peso, pelas classes intelectuais e até mesmo pelos banqueiros – imaginem aonde chegamos – como uma ameaça direta à democracia. O presidente, por este modo de ver as coisas, está querendo usar a rua (se conseguir mesmo encher a rua de gente) para desmoralizar as “instituições”, romper com as leis e dar um golpe de Estado. Mesmo que não seja quebrada nem uma vidraça, como vem sendo a regra nesse tipo de protesto público, os manifestantes vão com certeza falar o diabo – e isso, hoje em dia, é considerado infração gravíssima. (Grave a ponto de o STF, como medida de resistência aos golpistas, ter decretado ponto facultativo no dia 6 – uma bela “ponte” que vai render quatro dias seguidos de feriadão, do sábado à quarta-feira, dia 8.)

Vastas emoções, portanto – mas com pensamentos imperfeitos. Aconteça o que acontecer na rua no dia 7 de setembro, não vai haver golpe militar nenhum. O motivo disso é muito simples. Golpe militar tem de ser dado por militar, e o militar brasileiro não quer dar golpe – não quer, não pode, não tem planos para isso, não tem liderança, não tem recursos, não obedece a carro de som nem à barulheira em rede social. Golpe exige força – e o único que tem força, o Exército Brasileiro, não vai se meter nisso. Em compensação, os inimigos do presidente continuam com o mesmíssimo problema que têm agora: o risco de que ele permaneça no governo até o fim do mandato, coisa que acham intolerável – ou, muito pior ainda, que fique por quatro anos além disso, se for reeleito. Aí já seria o fim do mundo.

Teoricamente não deveria haver problema nenhum com nada disso. Se Bolsonaro é mesmo o pior presidente que o Brasil já teve em toda a sua história, e se ainda por cima é genocida, ladrão de vacina e culpado por todas as desgraças que o País tem hoje, ele vai ser derrotado por qualquer outro candidato nas eleições de 2022, não é mesmo? Que risco pode haver se o presidente é realmente o monstro que aparece todos os dias no noticiário? Os institutos que pesquisam “intenção de voto”, aliás, dizem que o grande nome da oposição, o ex-presidente Lula, já está com mais de 50% dos votos no papo; mais um pouco, na toada em que está indo, chega aos 100%. Como um desgraçado da vida como Bolsonaro poderia ganhar dele, ou de outro qualquer?

Acontece que não é assim, claro – ou ninguém acredita mesmo que esteja sendo assim. Na vida real da política o Datafolha é uma coisa e a eleição é outra; eleição, na prática, é voto na urna, e não no jornal ou nas notícias do horário nobre. O panorama visto de hoje, pelo estado de excitação nervosa extrema que foi montado em torno do presidente da República, dá a entender que existe a possibilidade real de Bolsonaro ganhar a eleição. E aí? Há cada vez mais gente, no Brasil que manda, dizendo que “não dá para esperar”. Como fica, então?

O Jornalista José Roberto Guzzo escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País. Publicado originalmente n'O Estado de São Pulo, em 06.09.2021.

Presidenciáveis já dão contornos à pré-campanha

Ritmo de viagens de pré-candidatos aumenta nos últimos 3 meses; Nordeste vira foco de Doria e Lula; Bolsonaro amplia giro pelo País

O presidente Jair Bolsonaro tira fotos com apoiadores em Tanhaçu (BA); o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em Caruaru (PE); e o ex-presidente Lula (PT) durante viagem a Fortaleza (CE). Foto: Marcos Correa/PR; Reprodução/Instagram/eduardoleite45; Ricardo Stuckert/Divulgação.

Num clima de acirramento político, os principais pré-candidatos à Presidência intensificaram o ritmo de viagens pelo País nos últimos três meses, a mais de um ano da eleição.

Respaldados pelo avanço da vacinação, os governadores tucanos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT) têm cumprido agendas típicas de pré-campanha como visitas a feiras populares e encontros com líderes culturais e religiosos, além de conversas reservadas com a classe política e outros setores da sociedade. Também em ritmo eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro passou a viajar mais – foram 12 Estados desde o início de junho.

Considerado a peça mais importante do tabuleiro eleitoral do Rio, o prefeito carioca Eduardo Paes (PSD) se encontrou com todos os citados, à exceção de Mandetta. No início de junho, almoçou com Lula no mesmo dia em que jantou com Pacheco, dando início à sequência de reuniões com os presidenciáveis. O senador já foi convidado para disputar o Planalto pelo PSD, mas, até agora, é o que menos tem se movimentado.

Com as prévias do PSDB marcadas para novembro, Doria e Leite mantêm uma rotina acelerada de encontros políticos. O governador paulista já esteve em oito Estados, enquanto o gaúcho visitou um a mais nos últimos três meses. Ao Estadão, Leite disse que as viagens têm servido para expandir os horizontes e compartilhar vivências e experiências. “Faço questão de visitar projetos sociais e conhecer a periferia das cidades”, afirmou.

Assim como Leite, Doria tem usado as viagens para trocar experiências com tucanos de outros Estados e se aproximar das demandas locais. O governador paulista citou problemas locais nos discursos que fez e “vendeu” bandeiras de sua gestão, como a Coronavac, a vacina do Butantan que o permitiu iniciar a imunização contra a covid-19 antes em São Paulo, e o programa Vale Gás, que oferece auxílio de R$ 300, em três parcelas, para a compra de três botijões.

Ao lado da prefeita de Caruaru (PE), Raquel Lyra (PSDB), Doria visitou no fim de agosto a famosa feira de artesanato da cidade, onde tomou café com aliados. No dia anterior participou de um encontro político em Natal no qual defendeu a retomada da ferrovia Transnordestina. “Cada região tem suas características, problemas e vocações. Tudo isso vamos incorporar na formulação de um projeto econômico e social denominado pacto pelo Brasil”, disse Doria, que tem agendadas viagens a outros seis Estados e ao Distrito Federal.

Lula encerrou no dia 27 um roteiro de 11 dias por seis dos nove Estados do Nordeste. O petista visitou uma comunidade indígena, um assentamento, unidades de saúde e o complexo portuário do Ceará, entre outras agendas. Por onde passou, Lula ainda assinou fichas de filiação ao PT e se encontrou com políticos de outros partidos, como os senadores Tasso Jereissati (PSDB) e Cid Gomes (PDT); o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB); e o ex-presidente do Senado Eunício Oliveira (MDB). O próximo destino deve ser Minas.

Terceiro colocado em 2018 e dono da mesma posição nas atuais pesquisas de intenção de voto, Ciro Gomes tem se dedicado mais a gravar vídeos e participar de debates remotos do que viajar pelo País. Segundo relatos publicados nas redes sociais, o ex-ministro esteve no Rio, em São Paulo e na Bahia.

Em queda nas pesquisas de popularidade e intenção de voto para 2022, o presidente Jair Bolsonaro ampliou suas viagens pelo País. Nos últimos três meses, foram 12 Estados visitados, sendo alguns deles mais de uma vez. Liderou também ao menos nove motociatas no período.

Antes de junho, o presidente já havia preparado uma rodada intensa de viagens. Em maio, o Estadão mostrou como Bolsonaro estava circulando por cidades dos grotões do País para inaugurar obras iniciadas em governos anteriores ou “reinaugurar” projetos que já estavam em funcionamento. A maioria se deu no Nordeste, região em que o presidente tem maior rejeição, segundo pesquisas.

Adriana Ferraz e Caio Sartori, O Estado de S.Paulo, em 06.09.2021

A democracia no mundo

Em 2020, deterioração da liberdade global foi inaudita, segundo a Freedom House

Não bastasse a mortandade de mais de 4 milhões de vidas e a devastação econômica, o vírus pressionou ainda mais a balança global em favor da tirania contra a democracia.

Segundo o relatório anual Liberdade no Mundo da Freedom House, 2020 foi o 15.º ano consecutivo de declínio na liberdade global. Em 2005, a organização identificava 89 países considerados “livres”; hoje são 82. Os países “não livres” passaram de 45 para 54. Menos de 20% da população mundial vive em um país livre. Mas a deterioração em 2020 foi inaudita: 3 em 4 pessoas vivem em um país que experimentou declínio. A “diferença democrática” – o número de países que melhoraram menos o de países que declinaram – foi a maior da série iniciada em 1995: 45.

Da Venezuela ao Camboja, os déspotas aproveitaram a crise sanitária para esmagar oponentes, enquanto o fechamento das fronteiras dificultou o apoio internacional a ativistas democratas. A pandemia deu a autocracias como China e Rússia a oportunidade de acusar a inferioridade “inerente” da democracia, ao mesmo tempo que ampliam sua influência internacional.

“A influência maligna do regime na China, a ditadura mais populosa do mundo, foi especialmente profunda em 2020”, seja pela campanha global de desinformação e censura, seja pela extensão transnacional dos abusos cometidos no país, como na demolição das liberdades e da autonomia de Hong Kong. Ao mesmo tempo, o regime comunista aumentou seu peso em instituições multilaterais como o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Os regimes democráticos adotaram recorrentemente medidas excessivas de vigilância e restrições discriminatórias à liberdade de movimento e reunião, enquanto ondas de desinformação – muitas vezes propagadas pelas próprias autoridades, como no Brasil – obliteraram a disseminação de informação confiável ao preço de incontáveis vidas.

A democracia mais populosa do mundo, a Índia, caiu do status de “livre” para “parcialmente livre”. O regime de Narendra Modi continuou a reprimir seus críticos e utilizou o combate à covid-19 como pretexto para deslocar milhões de migrantes domésticos, enquanto as hostes nacionalistas hindus culparam desproporcionalmente as comunidades muçulmanas pela disseminação do vírus, materializando essa hostilidade em surtos populares de violência.

A crise da democracia norte-americana atingiu seu apogeu com a invasão do Capitólio. Embora o presidente Joe Biden tenha iniciado seu mandato prometendo restaurar a unidade da Nação, nada indica que a chamada guerra civil cultural – seja entre os partidos Republicano e Democrata, seja, no interior de cada partido, entre extremistas e moderados – arrefecerá num futuro próximo. Isso dificultará ainda mais aos EUA resgatar sua credibilidade mundial e liderar uma coalização democrática.

A pandemia também serviu de pretexto para reprimir a onda de protestos populares que eclodiu em 2019 em nome de mais transparência e melhor governança. Se protestos bem-sucedidos no Chile ou Sudão levaram a aprimoramentos democráticos, os regimes despóticos aproveitaram a distração mundial para esmagar movimentos de resistência: quase duas dúzias de países que experimentaram grandes protestos em 2019 sofreram declínio nas liberdades em 2020.

O caso de Taiwan é exemplar tanto do vigor da democracia como das ameaças a ela. Valendo-se de sua experiência com a Sars e apostando em métodos científicos, o país foi extraordinariamente eficaz em combater o vírus sem agressões às liberdades civis. Mas Taiwan enfrenta a contínua hostilidade da China, a cada dia mais próxima de uma ofensiva militar.

“A liderança e a solidariedade global dos estados democráticos é urgentemente necessária”, conclui a Freedom House. “Os governos que compreendem o valor da democracia, incluindo a nova administração em Washington, têm a responsabilidade de se reunirem para entregar seus benefícios, combater seus adversários e apoiar seus defensores.” Empenhar-se nessa missão não é tarefa fácil, mas também não é uma opção: é questão de vida ou morte da liberdade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de setembro de 2021

O vírus do autoritarismo

Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo

Há um processo de erosão das instituições democráticas no Brasil? Nossa democracia está em risco? Ao fim e ao cabo, vai ter golpe? Para enfrentar essas perguntas cada vez mais presentes – das redes sociais à academia, da imprensa às salas de jantar –, a Fundação FHC e o Estado promoveram um debate com diversos cientistas políticos.

Como em todo bom debate, prevaleceu a dialética. E, como reza a boa dialética, as disputas foram travadas sobre uma base de consenso. O consenso é de que há uma crise global da democracia caracterizada pela ascensão dos populismos e tremendamente agravada no Brasil pelo autoritarismo desabrido do presidente da República. Os dissensos versaram sobre o grau de resiliência das instituições.

Há risco de ruptura? Carlos Pereira foi categórico: “Não”. O Judiciário vem dando “sinais coerentes e consistentes”. Contrastando com a cisão entre garantistas e punitivistas à época da Lava Jato, as ameaças de Jair Bolsonaro “unificaram o Supremo”. No Legislativo, as Comissões de Inquérito cumprem o papel de fiscalizar e constranger o presidente. A imprensa, como com todos os governos na redemocratização, dispara diuturnamente suas críticas. Nossa democracia é “incerta, vibrante e competitiva”, disse Pereira, “e isso lhe dá vitalidade”.

Jairo Nicolau falou em um “dilema” entre um “otimismo estrutural” e um “pessimismo conjuntural”. A crise de representatividade, as dificuldades de renovação partidária e o desgaste diário provocado por Bolsonaro evidenciam um “mal-estar”. Mas não há precedentes históricos para uma “quebra institucional” das democracias contemporâneas; as estruturas constitucionais brasileiras não permitem uma distorção tão extrema; e, embora haja um amplo contingente conservador na população, as evidências mostram que a extrema direita é só uma minoria, estridente, mas marginal. Eleitores conservadores que elegeram Bolsonaro não endossariam aventuras golpistas e podem migrar para um candidato competitivo de centro-direita.

Mas, mesmo que as estruturas políticas e civis sejam resistentes a rupturas, a “tensão máxima” a que estão submetidas turva o foco nos problemas reais da sociedade, aumentando “o custo de operação da democracia”, advertiu Magna Inácio. Alguns cidadãos se radicalizam, outros se distanciam, geram-se incentivos à “desmobilização dos mecanismos de controle”, e os corporativismos correm soltos. Mesmo não sendo um choque abrupto, essa degradação leva a uma democracia atrofiada e ineficiente para sanar distorções estruturais como a desigualdade social.

O tom mais pessimista do debate foi dado por Sergio Fausto. “A ideia de que as instituições estão rodando conforme a sua concepção original é uma cegueira.” O presidente da República anuncia que as eleições serão fraudadas a menos que ele vença; blinda seus crimes de responsabilidade traficando emendas parlamentares; e incita a população à luta armada. Uma coisa é a sociedade desconfiar das instituições e seus representantes, outra é “uma força política organizada querendo romper com o sistema, dizendo-o claramente, insuflando quartéis”.

Se o desfecho parece inconclusivo, não é pela fraqueza do debate, mas pela força de seu objeto. A democracia é por natureza dramática. “Otimismo” e “pessimismo” são simplificações convenientes para descrever emoções, mas inadequadas para orientar escolhas. A democracia não está nem pode estar predestinada a um futuro “ótimo” ou “péssimo”. A cada dia ela traz novas oportunidades de conflito, mas também de conciliação. O ônus dessa liberdade é uma espécie de risco permanente. Mas, pago o seu preço – a eterna vigilância –, o seu bônus são reservas inesgotáveis de energia cívica.

Como um organismo invadido por um vírus, a democracia brasileira pode adoecer – e mesmo morrer –, mas a Constituição deu boa compleição ao seu corpo (o Estado) e vigor aos seus órgãos (as instituições). Se cada cidadão agir conscienciosamente como um anticorpo, a democracia pode destruir o vírus do autoritarismo e emergir mais forte e imune às suas variantes.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de setembro de 2021

Ex-presidentes e políticos de 26 países fazem alerta sobre insurreição de Bolsonaro

Ex-presidentes, parlamentares e ministros assinam carta chamando a atenção sobre a intimidação promovida pelo mandatário brasileiro com a marcha marcada para esta terça-feira. Presidente fala em “paz e harmonia”, enquanto seguidores elevam provocações nas redes


Bolsonaro no Palácio do Planalto nesta quinta. ( EFE/ Joedson Alves)

Uma carta assinada por ex-presidentes, parlamentares e ministros de 26 países mostra que a preocupação com as manifestações deste 7 de setembro já ultrapassou as fronteiras do Brasil. Insufladas pelo presidente Jair Bolsonaro, as manifestações, que devem ocorrer principalmente em Brasília e São Paulo, são vistas como mais um gesto de “insurreição” que coloca em perigo a democracia do Brasil. “Neste momento, o presidente Bolsonaro e seus aliados — incluindo grupos supremacistas brancos, policiais militares e agentes oficiais de todos os níveis do Governo —estão preparando uma marcha nacional contra a Suprema Corte e o Congresso, gerando medo de um golpe contra a terceira maior democracia do mundo”, diz a carta, assinada por nomes como o ex-presidente da Colômbia, Ernesto Samper, o ex-presidente da Espanha, José Luis Zapatero, além dos ex-mandatários do Paraguai, Fernando Lugo, e do Equador, Rafael Correa.


“O presidente Bolsonaro aumentou a escalada de ataques às instituições democráticas do Brasil nas últimas semanas”, diz a carta assinada também por nomes com o Nobel da Paz argentino de 1980 Adolfo Esquivel, o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, e o filósofo Noam Chomski. O grupo cita o alerta de alguns membros do Congresso brasileiro sobre a tentativa de modelar este 7 de setembro para ser uma insurreição similar à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, no último 6 de janeiro, por seguidores do presidente derrotado Donald Trump.

A carta chega ao mesmo tempo em que o presidente Jair Bolsonaro publicou uma mensagem falando em “paz e harmonia” durante as manifestações insufladas por ele para esta terça. O recado do presidente chegou antes das 7 da manhã desta segunda, em meio às preocupações crescentes com a agressividade que possa vir a se instalar nas manifestações que estão mobilizando as redes bolsonaristas. “Na próxima terça-feira, comemoraremos o nosso 199° aniversário da independência do Brasil. Independência está associada à LIBERDADE. Assim sendo, também no escopo dos incisivos XV e XVI, do artigo 5° da nossa CF [Constituição Federal], a população brasileira tem o direito, caso queira, de ir às ruas e participar dessa nossa data magna EM PAZ e HARMONIA”.

A mensagem de Bolsonaro foi dada depois que seguidores do presidente soltaram vídeos entusiasmados, alguns interpretados como uma provocação para estabelecer conflitos, especialmente em Brasília, um dos pontos centrais do encontro. Neste domingo, o bolsonarista Jackson Vilar gravou um vídeo sugerindo que “o pau vai cantar em Brasília”, lembrando que indígenas estão acampados na capital para acompanhar o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF). “O povo da direita, tenho falado com alguns líderes aí, os caras tão acesos. Tá igual pólvora. Se riscar um pavio, se um índio desse se meter a besta, Brasília vai ‘desindializar’”, ironizou, falando em ‘derramamento de sangue’.

O vídeo provocou reações e Vilar gravou outro neste domingo para negar o que dissera antes. “Eu não falei que era para ir para Brasília para derramar sangue de indígena não”, disse Vilar, que admitiu “que os ânimos estão nervosos”. Outros seguidores replicam imagens de Bolsonaro a cavalo em vestes similares a de Dom Pedro I quando declarou independência do Brasil de Portugal, em 1822. Também Zé Trovão, o caminhoneiro que vem estimulando as manifestações contra o Supremo, gravou vídeo avisando que “o povo brasileiro” inicia neste dia 7 o movimento em prol da sua liberdade. “Começa no dia 7 mas só tem por fim quando houver o impeachment dos 11 ministros do STF e a contagem pública dos votos. Caso isso não ocorra o Brasil inteiro ficará parado o tempo que for necessário”, diz Trovão, que teve a prisão solicitada pela Procuradoria Geral da República, e acatada pelo ministro Alexandre de Moraes, no âmbito de uma investigação sobre a organização de manifestações violentas durante os atos do dia 7.

De camiseta e chapéu de cowboy, o caminhoneiro sugere no vídeo que os policiais federais não cumpram a medida de prisão determinada pelo ministro da Corte. “Cruze seus braços para que mostremos a força do povo brasileiro. Entregue a nós o trabalho que vocês se propuseram a fazer”, diz ele.

Há a expectativa sobre a participação de policiais militares que apoiam o presidente durante as marchas convocadas para esta terça. O papel dos PMs tem mobilizado os ministros da Corte e governadores, que prometem atuar para desarmar essa bomba relógio. A única certeza até o momento é que não há certeza de nada para o evento deste dia 7.

A tensão cresce enquanto a credibilidade do Governo evapora junto ao mercado financeiro. Nesta terça, a pesquisa Focus do Banco Central, que reúne as projeções de indicadores econômicos de mais de 100 instituições financeiras, aponta para uma revisão para baixo do PIB deste ano – de 5,22% para 5,15% — e de 2022 — de 2%, para 1,93%. A inflação também é outro indicador revisto, assim como o câmbio, ambos para cima. A projeção do Focus é de um IPCA de 7,58% para este ano, contra 7,27% na semana passada. O dólar, por sua vez, passou de 5,15 reais há uma semana para 5,17 reais.

As turbulências na política têm contaminado cada vez mais a economia, especialmente com as repercussões no exterior. Representantes diplomáticos da Europa e Estados Unidos ouvidos pelo EL PAÍS não escondem a intranquilidade com os ataques à democracia promovidos pelo Governo Bolsonaro e suas consequências para os assuntos mais importantes que o país deveria estar focando neste momento.

CARLA JIMÉNEZ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 06 SET 2021 - 08:40 BRT

sábado, 4 de setembro de 2021

Estabilidade e terceira via

Cumpre exigir dos presidenciáveis um só caminho do centro, em prol do Brasil

No início do mês passado foi publicado manifesto assinado por figuras importantes da nossa sociedade como intelectuais, economistas, empresários, banqueiros, líderes religiosos. Desse documento destaco: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”.

Em meados de agosto, o presidente da República enviou ao Senado Federal pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Em documento enviado ao presidente do Senado por ex-ministros da Justiça e da Defesa, propunha-se o arquivamento imediato do pedido como “caminho que evite constrangimento indevido e conduza ao apaziguamento dos ânimos e à reafirmação do respeito e da confiança no Poder Judiciário e no Estado de Direito”.

A Febraban, com apoio de 300 entidades, organizou manifesto a ser publicado pela Fiesp, que à última hora, constrangedoramente, recuou de dá-lo a público. Mas a Febraban e as demais entidades reafirmam esse texto, em nada agressivo ao governo, pois sua tônica é a defesa da democracia, como se pode ver no parágrafo a seguir.

“As entidades da sociedade civil que assinam este manifesto veem com grande preocupação a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas. O momento exige de todos serenidade, diálogo, pacificação política, estabilidade institucional.”

Setor fundamental da economia brasileira, que tem mantido as exportações e o crescimento do PIB nacional, o agronegócio, por intermédio de seis entidades, a começar pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), em posição firme, ao contrário da pusilanimidade da Fiesp, deu publicidade a documento incisivo acerca do instante movediço vivido no País. E enfatizou “sua preocupação com os atuais desafios à harmonia político-institucional e como consequência à estabilidade econômica e social em nosso país. As amplas cadeias produtivas que representamos precisam de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”.

A sociedade brasileira, que assistia atônita às representações diárias de irracionalidade do sr. presidente, muitas vezes verbalizadas de forma chula, percebeu os riscos da criação artificial de confrontos promovida pelo mandatário. Esses antagonismos deixaram de ser em face de partidos e de pessoas, e passaram a ser em vista de instituições da democracia, criando um clima de grande insegurança.

Os agentes econômicos dos mais diversos setores expressam agora o sentimento principal que preside o nosso cotidiano: a sociedade brasileira está cansada de guerras inventadas que sinalizam a necessidade falsa da adoção de medidas totalitárias, pois se quer, antes de tudo, estabilidade.

Por isso, a tônica das manifestações está na extrema preocupação com a escalada de tensões e hostilidades entre as autoridades públicas, clamando-se pelo apaziguamento dos ânimos, pelo diálogo, pela pacificação política.

A democracia deve defender a si mesma, para que a liberdade não seja usada para destruir a liberdade de todos. Numa democracia militante defende-se não incrementar conflitos, principalmente de modo artificial, confundindo maliciosamente a liberdade de expressão com a liberdade de agressão, como agora pretende Bolsonaro ao convocar para os atos de 7 de setembro.

Esses manifestos das forças econômicas proclamam: precisamos “de estabilidade, segurança jurídica, harmonia para poder trabalhar”. Ao mesmo tempo reafirmam seu compromisso com o Estado de Direito, declarando: “A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias”. É demonstração veemente de estarmos numa democracia militante, a tal ponto que a própria sociedade se apresenta como asseguradora da ordem constitucional.

Certamente não será a argumentação melíflua do presidente da Câmara dos Deputados aos ouvidos solícitos do presidente da Fiesp que vai desfazer a realidade tão bem desenhada no manifesto da Febraban, ou seja: o risco contínuo de instabilidade com Bolsonaro no poder.

A intensa preocupação atual dos agentes econômicos e o pavor dos desempregados mostram como é temível a reeleição de Bolsonaro. Impõe-se, então, pensar com maior determinação numa terceira via que responda a esses anseios de paz, de estabilidade e de visualização do futuro.

Os subscritores dos recentes manifestos em prol do Estado de Direito devem se pôr em campo para exigir que os presidenciáveis do centro, após a legítima apresentação de sua ambição de ocupar a Presidência, venham a encontrar, dentre eles, alguém que aglutine e constitua governo conjunto, em torno de um só nome, como se fez na eleição de 1985, quando Ulysses e Montoro abdicaram da condição natural de candidatos em favor de Tancredo, o qual teria, mais que eles, condição de compor diversos setores políticos a seu favor.

Há tempo, mas cumpre a todos se debruçarem nessa tarefa de exigir dos presidenciáveis a criação de um só caminho do centro democrático, em prol do Brasil.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 04.09.21

Lula, o PT e a segunda via

São eles os verdadeiros adversários a ser batidos, como tem sido há mais de 30 anos

Nunca se falou tanto numa terceira via eleitoral capaz de ultrapassar a polarização entre o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), provavelmente Lula da Silva, e o atual presidente, Jair Bolsonaro. Lula pela esquerda e Bolsonaro pela direita representariam caminhos deletérios para o futuro do País. Como afirmou Luís Stuhlberger, conhecido gestor de fundos de investimento, em entrevista a este periódico em 28 de março deste ano, “os empresários estão literalmente apavorados com a hipótese de ter de escolher num segundo turno entre Bolsonaro e Lula”.

A ideia de uma terceira via é boa. Falta apenas um detalhe: votos. Alguns atores políticos e analistas falam do assunto como se a alternativa, quando se materializar num nome, atrairá automaticamente os votos dos insatisfeitos com o PT e com Bolsonaro. Esse nome precisaria ser único, para não dispersar os votos desses insatisfeitos, de modo a colocar o candidato centrista no segundo turno. Então, qualquer que seja o adversário, Lula ou Bolsonaro, esse candidato se beneficiaria da rejeição a ambos e teria condições objetivas de vitória. Essa é a tese.

Seria assim se fosse assim. De todas as eleições desde a redemocratização, o segundo colocado no primeiro turno só teve menos votos do que todos os outros candidatos em 1989 e 2002. Em 1989, na eleição mais fragmentada da História recente, Lula obteve 16,7% dos votos contra 50,8% da soma de todos os outros candidatos menos Fernando Collor. E em 2002 José Serra recebeu 23,2% dos votos, contra 30,4% da soma dos outros candidatos menos Lula, principalmente Ciro Gomes e Anthony Garotinho. Tirando a primeira eleição, completamente diferente de todas as demais, será que podemos afirmar que se Ciro ou Garotinho tivessem renunciado um dos dois iria para o segundo turno? Pouco provável.

Portanto, o que a História recente nos mostra é que não existe terceira via eleitoralmente viável no Brasil. O que existe é uma segunda via contra o PT. Em todas as eleições pós-redemocratização, o PT chegou pelo menos em segundo lugar. Esse fato nos leva à conclusão de que não basta que um tertius se torne eleitoralmente viável a ponto de chegar ao segundo turno. É preciso que esse candidato seja capaz de vencer Lula no segundo turno, pois o PT estará lá, como sempre esteve. É neste ponto que a figura de Lula precisa ser mais bem analisada.

Lula foi a figura onipresente em todas as campanhas eleitorais desde 1989. Em 2018, mesmo preso, foi candidato (!) e conseguiu transferir seus votos para Fernando Haddad. Portanto, é somente natural que apareça bem colocado em qualquer sondagem eleitoral. Por exemplo, na última pesquisa patrocinada pela CNT, feita no início de julho, Lula aparecia com 28% das menções espontâneas de voto, contra 22% do atual presidente. Para quem está espantado, não custa lembrar que Lula, em pesquisa patrocinada pela mesma CNT em agosto de 2018, aparecia com 20% das intenções espontâneas de voto, mesmo sendo hóspede da carceragem da Polícia Federal em Curitiba desde abril daquele ano.

Não se deve menosprezar esse fenômeno. Se é difícil entender como um político periférico como Bolsonaro conseguiu eleger-se presidente da República, o mesmo espanto deveria aplicar-se ao fato de que, mesmo encarcerado, Lula tenha tido tamanha influência nas eleições de 2018. E esse fenômeno ganha ainda mais cores quando consideramos que nas eleições de 2016 o PT foi quase varrido do mapa eleitoral, ao perder 60% das prefeituras que detinha. Pode-se até questionar se o PT tem um futuro além de Lula, mas essa é uma questão, por enquanto, acadêmica. Na prática, Lula será, mais uma vez, o candidato do PT nas próximas eleições, e esse é o problema concreto dos outros candidatos.

Sendo assim, a alternância de poder deve ser construída tendo o PT em mente. E isso não se faz para uma eleição. Trata-se de uma construção. Lula perdeu três eleições presidenciais antes de vencer a primeira. Soube construir um posicionamento ao longo dos anos. Quem quiser fazer face a isso precisará construir uma agenda de oposição. O PSDB teve a chance de fazê-lo, mas jogou-a pela janela ao não defender a herança do governo Fernando Henrique Cardoso. Nem o próprio FHC a defendeu. O famoso “colete das estatais”, ostentado por Geraldo Alckmin na campanha de 2006, foi o ápice dessa vergonhosa retirada de campo.

Bolsonaro, ainda que tenha vencido as eleições também com o voto de protesto antiestablishment, entendeu igualmente que só existe chance eleitoral em nível nacional para quem confronta Lula e o PT construindo uma agenda alternativa com convicção. Para um aspirante ao Palácio do Planalto, bater em Bolsonaro é perda de tempo. Essa tática só faz sentido para Lula. Os verdadeiros adversários a ser batidos são Lula e o PT, como tem sido nos últimos mais de 30 anos.

O Brasil precisa de uma segunda via alternativa ao PT que não seja Bolsonaro. Caso os partidos que tentam construir uma “terceira via” não entendam isso, estarão pavimentando o caminho do atual presidente como essa alternativa e ficarão de fora do segundo turno em 2022.

Marcelo Guterman, o autor deste artigo, é engenheiro. Publicado originalmente n' O Estado de S.Paulo em 04 de setembro de 2021 | 03h00

Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa

Paralisia do programa habitacional é reflexo de um governo que não tem planos para o País

Um presidente da República não deveria assumir o poder com a predisposição de descontinuar políticas públicas implementadas por seus antecessores apenas por deles divergir no campo ideológico. O cargo exige altivez do governante de turno para analisar quais dessas políticas devem ser mantidas como estão, quais devem ser aprimoradas e, eventualmente, quais devem ser encerradas, sempre à luz do melhor interesse público.

A descontinuidade administrativa motivada por interesses mesquinhos provoca enormes prejuízos financeiros, retarda o desenvolvimento do País e, principalmente, deixa desamparados os cidadãos que mais precisam do Estado para terem supridas suas necessidades mais básicas. Moradia digna é uma delas.

A fim de substituir o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), fortemente vinculado aos governos do PT, o presidente Jair Bolsonaro decidiu criar um programa habitacional para chamar de seu, o Casa Verde e Amarela. É compreensível que um presidente queira deixar a própria marca, um traço que o diferencie dos demais. O então presidente Lula da Silva, quando lançou o MCMV, em 2009, também não partiu do zero. Dilma Rousseff, que expandiu o programa, também não.

A mera troca de nome de uma política habitacional, no entanto, de nada serve se não vier acompanhada por ajustes que devem ser feitos no modelo anterior e alterações visando à expansão do público atendido, meta primordial de uma política de financiamento habitacional voltada para a população de baixa renda em um país como o Brasil. De acordo com a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no País saltou de 5,657 milhões de moradias em 2016 para 5,877 milhões de moradias em 2019, ano da mais recente aferição. O problema deve ser tratado com muita seriedade. Uma política habitacional não pode se prestar a ser mero estandarte eleitoral.

Pouco mais de um ano após o lançamento, o programa Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa. Não há recursos previstos no Orçamento para execução das obras e expansão dos subsídios. Em 2021, faltando apenas quatro meses para o fim do ano, o governo federal entregou cerca de 20 mil unidades do antigo MCMV voltadas à faixa 1 do programa, que atende famílias com renda mensal de até R$ 1 mil. O número é muito abaixo da média mensal registrada desde o lançamento do programa, há 12 anos: 1,49 milhão de moradias, de acordo com a Controladoria-Geral da União. A apuração do Estado revelou que a conclusão das obras em andamento está ameaçada por falta de recursos. Novos projetos abarcados pelo programa repaginado, então, não passam de uma quimera nesta dramática quadra da história.

O governo federal argumenta que a entrega de novas moradias não será mais a única ação da política habitacional no âmbito federal. Fala-se em regularização de terrenos ocupados e reformas de habitações existentes. De fato, quando se fala em déficit habitacional, está-se falando não apenas de falta de moradia construída, mas de domicílios improvisados, cômodos utilizados por famílias inteiras, habitações em condições sub-humanas, etc. Porém, até o momento nenhuma moradia foi regularizada ou reformada.

A paralisia do programa Casa Verde e Amarela é mais um desdobramento de um governo que não tem um projeto para o Brasil. A própria incapacidade de Bolsonaro para diagnosticar os reais problemas do País, por óbvio, compromete a boa concepção de políticas públicas para resolvê-los, que dirá a execução. Desde seu lançamento, o programa habitacional de Bolsonaro tem sido criticado tanto pela falta de detalhamento, por ter sido feito de afogadilho para atingir objetivos estritamente eleitoreiros, como pela falta de empenho do governo para priorizar o programa. “É a falta de vontade política para botar dinheiro nesse assunto. É obra contratada, em andamento, e você tem que passar o pires como se estivesse pedindo um favor”, disse ao Estado José Carlos Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria de Construção (Cbic).

Em vez de inventar crises e criar políticas públicas de papel, Bolsonaro deveria trabalhar para valer a fim de garantir que os brasileiros tenham, no mínimo, a esperança de uma vida melhor.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de setembro de 2021 | 03h00


Reforma ruim e na hora errada

Tributação envolve questões múltiplas e complicadas. Paulo Guedes insiste em promover um arremedo de reforma. E na hora errada

Atolado em dívida, pressionado para gastar e com muita dificuldade para cumprir suas obrigações, o governo federal ainda poderá perder cerca de R$ 21,8 bilhões de receita, se a reforma do Imposto de Renda (IR) aprovada na Câmara for transformada em lei. Os senadores ainda poderão barrar ou modificar a proposta, evitando ou atenuando o desastre. Sancionado na forma atual, o projeto causará uma perda de arrecadação de R$ 41,1 bilhões à União, aos Estados e aos municípios. Para os governos subnacionais a sangria deverá chegar a R$ 19,3 bilhões. Os cálculos foram solicitados ao economista Sérgio Gobetti pelo Comitê Nacional de Secretários Estaduais da Fazenda.

Numa votação apressada e baseada em acordos coordenados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), deputados aprovaram um texto qualificado como “projeto secreto” pelo tributarista Luiz Bichara, citado pelo Estado. O documento final apresentado pelo relator, Celso Sabino (PSDB-PA), nem sequer foi protocolado. Não houve tempo para análise e mais uma vez funcionou o famigerado rolo compressor.

O atropelo na votação de um texto mal conhecido foi apenas mais um capítulo numa longa história de erros. O ministro da Economia, Paulo Guedes, errou ao tentar mexer no IR neste momento. Não é hora de pensar em mudanças complicadas.

O País mal saiu de uma recessão. A economia cresceu 1,2% no primeiro trimestre e encolheu 0,1% no segundo. Mais de 14 milhões estão desempregados, os preços aumentam em disparada, há muita incerteza sobre as contas públicas e a insegurança é evidente em todos os mercados. A proposta orçamentária enviada há poucos dias ao Congresso poderá ser amplamente deturpada.

É hora de proteger o projeto de Orçamento, de cuidar dos mais vulneráveis, de favorecer o consumo, de eliminar entraves burocráticos, de facilitar a exportação, de tranquilizar os mercados, de aumentar a confiança na solvência do Tesouro e de administrar a crise hídrica. Um ministro da Economia comprometido com seu papel deveria também estar empenhado em conter os impulsos populistas e eleitoreiros do presidente da República.

Mas o ministro começou a errar muito antes, desde suas primeiras manobras para mexer no sistema tributário. Gastou tempo e energia tentando ressuscitar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), uma bem conhecida aberração. Depois, apresentou propostas de mudanças de alguns tributos federais, sem jamais se ocupar de uma efetiva reforma do sistema.

Agiu sempre como se fosse possível cuidar do assunto sem levar em conta Estados e municípios e sem pensar, portanto, no conjunto da tributação e em seus enormes problemas. Sempre desprezou projetos já disponíveis no Parlamento e elaborados por pessoas de conhecida competência. Tampouco recorreu a profissionais experientes e conhecedores do tema para discutir uma reforma de verdade.

O ministro da Economia nem deveria ter mandado ao Congresso seus ensaios medíocres de mudança tributária. Nem deveria ter imaginado – outro erro considerável – a hipótese de cuidar do tema sem uma séria discussão. A última grande reforma, em vigor a partir de 1967, já era debatida antes da implantação do regime militar. Não foi estudada só a partir de 1964 e ninguém poderia descrevê-la como improvisada.

Tributação envolve questões múltiplas e complicadas, como o equilíbrio das contas públicas, o bom funcionamento dos negócios, a competição, o crescimento econômico e a distribuição dos encargos entre pessoas com diferentes níveis de renda. O sistema brasileiro é complexo, trabalhoso para as empresas, oneroso para a produção, injusto na distribuição e nocivo à competitividade internacional. A dependência excessiva da tributação do consumo joga um peso desproporcional sobre as famílias de renda média e renda baixa. Não se pode pensar numa reforma verdadeira, é preciso insistir, sem considerar esses pontos. O ministro da Economia insiste em ignorá-los e em promover um arremedo de reforma – e na hora errada. O País perde.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de setembro de 2021 | 03h00