quinta-feira, 22 de julho de 2021

Guerra política na igreja da paz: a perseguição ao padre Lino por criticar Bolsonaro em missa

Padre Lino Allegri, 82 anos, foi ameaçado e hostilizado por fiéis bolsonaristas, entre eles militares reformados, ao lamentar gestão da pandemia. Teve que parar de rezar missas na igreja de Fortaleza e pediu ajuda ao programa estadual de proteção a defensores dos direitos humanos


Padre Lino Allegri durante entrevista em uma casa paroquial de Fortaleza. (Crédito da foto: Fernanda Siebra)

São 8h da manhã de domingo, 18 de julho. Do lado de dentro da Paróquia da Paz ―uma igreja católica instalada no coração de uma ilha bolsonarista de Fortaleza―, os bancos de madeira vão sendo ocupados por pessoas vestindo camisas verde-amarelas, algumas delas com o nome do presidente Jair Bolsonaro estampado nas costas. O dress code pouco usual para uma celebração religiosa e divulgado em vários vídeos nas redes sociais tinha uma razão: mostrar a articulação de um grupo de aproximadamente 20 pessoas, formado majoritariamente por militares reformados e empresários, contra o credo progressista do padre italiano Lino Allegri, de 82 anos, que algumas vezes por mês celebra missas naquela paróquia.

Adepto da Teologia da Libertação e leal à visão de que é papel da igreja adaptar o Evangelho à realidade atual em defesa dos pobres, Allegri viu formar-se contra si uma espécie de patrulha aos seus sermões depois de fazer críticas, no início do mês, ao descaso de Bolsonaro na crise sanitária e dizer que o presidente também tem responsabilidade pelos mais de 544.000 mortos registrados no país. O grupo, apelidado pejorativamente pelos outros frequentadores de “pijamas patriotas”, achou que a missa daquele domingo seria celebrada por Allegri e compareceu em peso. Todos prontos para reagir caso ele voltasse a criticar o Governo. Do lado de fora, policiais militares vigiavam para evitar que a situação saísse do controle.

Mas Allegri não celebrou a missa na Igreja da Paz naquele dia por “orientação” de seus superiores, que argumentavam questões de segurança. O padre acatou. Já havia sido intimidado logo que acabou a missa de 4 de julho, o fatídico dia em que fez críticas à política bolsonarista frente a uma das maiores tragédias sanitárias do país. O culto transcorreu normalmente, mas após a missa um grupo de cerca de oito pessoas entrou na sacristia aos gritos. “O senhor deveria rezar pelo presidente, que é um exemplo de cristão”, ouviu. Tentou dialogar sobre o que significava ser um bom cristão, sem sucesso. “O senhor deveria voltar para a Itália. Nós não precisamos do senhor aqui”, bradou outro fiel bolsonarista, segundo fontes ouvidas pelo EL PAÍS.

Na missa do domingo seguinte, uma nota da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outra de várias entidades foram lidas em solidariedade ao padre Lino Allegri, que não estava presente. Uma das entidades apoiadoras era o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Foi o suficiente para que um coronel reformado do Exército levantasse e desse gritos em protesto. “Este padre transformou o altar em um palanque político”, bradou. Acabou deixando a igreja após alguns fiéis gritarem “respeito”. O militar passou então a organizar, com outros bolsonaristas, uma presença massiva à igreja em protesto ao que considera “comunismo”. No último domingo, 18, eles comemoravam o sucesso do boicote em áudios que circulavam pelo Whatsapp. “Estava cheio de general, coronel, foram tudo de verde-amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego, perdão. ʽAqui é pra rezarʼ... Já afastaram o padre lá. (...) Foi uma beleza a missa com a nossa presença”, diz um integrante do grupo. “Botamos os comunistas pra correr”, emenda no mesmo áudio. Allegri diz que cancelou uma celebração após ser aconselhado por superiores, mas espera voltar para a Igreja da Paz em breve.

“Foi uma intimidação”, define o padre italiano em entrevista ao EL PAÍS, com uma voz tão baixa quanto assertiva. “O presidente criou uma situação de antagonismo e ódio”, acrescenta ele, que teme que a situação piore com as eleições do ano que vem. Há semanas ele sofre ameaças e xingamentos pelo Whatsapp e pelas redes sociais. O vocabulário usado contra ele e o padre Oliveira Braga Rodrigues ―pároco oficial da Igreja da Paz, que passou a sofrer represálias por lhe dar espaço― é vasto: “comunista safado”, “picareta”, “imbecil”, “desagregador”, “comunista com a batina de padre” e por aí vai. Em alguns áudios, militantes bolsonaristas afirmam que a polícia destacada pelo governador petista Camilo Santana “será pouca” para o que preparam, sem dar detalhes. Santana mandou instaurar um inquérito para apurar as ameaças à segurança do padre.

“A tolerância precisa ser recíproca, mas eles não querem dialogar. Me chamam de comunista e esquerdista. Essas palavras não me ofendem”, diz Allegri. Ele não minimiza a gravidade da intolerância política que nos últimos anos vem ganhando mais espaço nas igrejas. Instado pela Defensoria Pública, aceitou se inscrever no programa estadual de proteção aos defensores de direitos humanos por precaução. Mesmo assim, o padre diz que ainda não perdeu o sono pela patrulha dos autointitulados patriotas.

Embates com grileiros e ameaças de morte na ditadura militar

A trajetória de mais de meio século no sacerdócio ajuda a entender a postura do italiano. Filho de operários, Lino Allegri foi ordenado padre na Itália em 1965. Tentou atuar em seu país como padre-operário, um missionário que atua em ambientes de trabalhadores, mas recebeu negativa de seus superiores na igreja. “Naquele tempo eu era bastante obediente”, ri. Poucos anos depois, na década de 1970, conseguiu ser enviado ao Brasil. Movido por uma forma diferente de viver a religião e ancorado nos resultados do Concílio Vaticano II ―uma série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo―, Allegri queria mergulhar na vertente da igreja latinoamericana cuja missão extrapola os muros dos templos, pois parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres.

Chegou ao país em plena ditadura militar, durante o duro Governo Médici (1969-1974), quando padres considerados subversivos eram presos e reprimidos. Mesmo assim, sempre direcionou sua atuação religiosa para além das paredes da igreja. Trabalhou na Paraíba com comunidades de base, braço da igreja que atua em locais mais pobres. Depois, já no interior da Bahia, viu-se no centro das ameaças de grileiros e fazendeiros a agricultores que lutavam pelo direito à terra. Recebia tantas ameaças de morte ao apoiar os mais pobres que precisou buscar o Ministério da Justiça por proteção. “Eu sabia que não era brincadeira”, diz.

Padre Lino Allegri foi hostilizado por militares e empresários bolsonaristas em igreja de Fortaleza, no Ceará. (Crédito da foto: Fernanda Siebra)

Somente nos anos 1990, Allegri seguiu em missão para Fortaleza, onde abraçou trabalhos sociais especialmente nas comunidades carentes, com apoio a menores em vulnerabilidade e à população em situação de rua. Coordena atualmente a Pastoral do Povo da Rua e, já aposentado, tornou-se também padre auxiliar da Paróquia da Paz, onde faz celebrações pontuais e agendadas a cada início do mês. Seu interesse é trabalhar nas “ilhas de pobreza” como as comunidades das Quadras e Trilhos do Senhor, que resistem na “área nobre” da capital cearense. “Não queria ser pároco nem vigário. Sempre trabalhei nas pastorais sociais”, conta.

Um sacerdote progressista na ilha do bolsonarismo

Seu perfil progressista, porém, pode soar como um contraste ao perfil conservador e elitista da comunidade que cerca aquela igreja, localizada no bairro de maior IDH (índice de desenvolvimento humano) e com um dos mais caros metros quadrados de Fortaleza, o Meireles. A Igreja da Paz também está a poucos metros do maior palco da direita e da ultradireita fortalezense: a Praça Portugal. É lá que bolsonaristas costumam se reunir para protestar. Já houve manifestações em favor do presidente, contra o Supremo e o Congresso e até em prol da ditadura militar. Curiosamente, o bairro da igreja está na 3ª Zona Eleitoral, a única da capital cearense em que Bolsonaro venceu no primeiro turno das eleições de 2018, desbancando até mesmo o então candidato local, Ciro Gomes.

Padre Lino Allegri conta que, especialmente nos últimos anos, vinha percebendo que parte das pessoas que frequentam aquela paróquia não estava afinada às suas pregações, mas sempre considerou normal que nem todos concordassem com ele. “O jeito que falo e o que prego é igual para ricos e para pobres. O que eu faço é juntar a palavra de Deus com a vida das pessoas. Me sinto mais confortável nas comunidades, mas não agrado a todos lá. Haver discordâncias é normal, mas chegar a este ponto é uma violência e um desrespeito”, afirma.

Reprodução de mensagens de militantes bolsonaristas sobre boicote ao padre Lino Allegri. 

Ele diz que acredita na igreja que exalta um Evangelho “pé no chão” e que não se fecha apenas às celebrações e ao culto a Deus. Seu papel, aponta, é também trazer reflexões sobre os ensinamentos de Jesus Cristo. “Quando há injustiça social, a gente toma uma posição”, defende. É por isso que, em uma de suas missas, trouxe à tona o assassinato da travesti Dandara dos Santos, linchada por ao menos dez pessoas no Ceará em 2017. “Vocês acham que Deus estava com Dandara ou com os homofóbicos?”, questionou aos fiéis. E deu sua própria visão: “Eu tenho certeza que Deus estava com a Dandara”.

“Há assuntos que não se pode tocar na igreja”

Allegri conta que reações a comentários como este no sermão tornaram-se mais enérgicas nos últimos dois anos, durante o Governo Bolsonaro. O presidente coleciona uma série de declarações machistas, racistas e de ódio a minorias que, nas palavras dele, devem “se curvar às maiorias” ou serão “esmagadas”. “Não quero um Deus como o dele [Bolsonaro] acima de todos. Quero seguir o que Jesus Cristo nos ensinou. Se for para ter um Deus como o dele, prefiro ser ateu. Bolsonaro contraria tudo o que Jesus nos ensinou”, declara o padre, em alusão ao lema bolsonarista “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Vários ativistas sociais alertam, desde o início do mandato, que as declarações controversas do presidente têm potencial em estimular a cultura do ódio. “Há assuntos que não se pode tocar. Não se pode usar a palavra pobre na igreja. A Teologia da Libertação é como se fosse o capeta. E eu tenho orgulho de ser da Teologia da Libertação”, segue Allegri, referindo-se à corrente teológica cristã latinoamericana.

Allegri prepara seus sermões com antecedência e, várias vezes, usa o ministério contra a homofobia, o racismo, a intolerância. Não costuma falar em candidatos a cargos públicos ou pedir votos. “Acho que eles têm o direito de votar em Bolsonaro. Vivemos em um Estado Democrático de Direito”, lembra. “Mas o respeito e a tolerância têm que ser recíprocos”, reforça ele. O padre toma muito cuidado ao falar sobre que tipo de política acredita caber dentro dos templos religiosos. “Não sei se essa palavra política é a mais adequada porque as pessoas entendem equivocadamente”, pondera. “A política que cabe na igreja é no sentido amplo, é a do bem comum. É a do Evangelho com os pés no chão. Não acredito que a religião seja apenas um culto a Deus, mas é aquela que deixa as pessoas mais humanas.”

Igreja da Paz está localizada em uma ilha bolsonarista de Fortaleza. (Crédito da foto: Fernanda Siebra).

Vertentes antagônicas da igreja, a outra face do embate

“A fala de padre Lino na Igreja da Paz é como se fosse um corinthiano no meio da torcida do Palmeiras que gritou: Vai Corinthians!”, compara, com alguma dose de humor, o articulador paroquial da Igreja da Paz, Mário Fonseca. “É um público majoritariamente de classe média alta, politicamente ultraconservador e religiosamente pentecostal”, define. O episódio com o Padre Lino Allegri, analisa, não está restrito apenas à intolerância política, mas também ao embate de duas vertentes antagônicas da igreja: uma mais tradicional e focada nas celebrações dentro dos templos (pentecostal); e outra mais alinhada a um modelo defendido pelo Papa Francisco e pelo Movimento Igreja Em Saída, que pressupõe uma atuação fora dos templos e junto às comunidades.

“É um ponto de virada na degradação do nosso tecido social”

O cientista político Ricardo Moura, que integra a Rede de Observatórios da Segurança e tem acompanhado as mensagens de ódio contra padres nas redes sociais, afirma que há um acirramento no discurso de confrontamento ideológico no país, e a igreja não está isenta de repercutir internamente este tipo de discurso. Os casos de hostilidade a religiosos de perfil mais progressista são vários. Também no Ceará, o frei Lorrane Clementino, da Ordem dos Frades Menores, vem sofrendo ataques pessoais e ameaças de morte por defender a população LGBTQIA+. Moura avalia que esses casos são ainda isolados e estão distantes de lideranças da política tradicional, mas têm potencial de repercutir em 2022.

“São padres que vivenciaram a ditadura, passaram por áreas bastante vulneráveis da cidade na luta por direitos básicos. Quando esta trajetória chega na atual fase, já octogenários, tendo que pedir proteção governamental para que possam exercer seu ministério, é um fato que preocupa. É um ponto de virada na degradação do nosso tecido social importante″, diz. O próprio Lino Allegri vê a hostilidade como um ensaio para as próximas eleições. “É um sinal do que virá no próximo ano, um acirramento violento”, prevê. “As religiões todas deveriam ajudar as pessoas a serem mais humanas.”

BEATRIZ JUCÁ, de Fortaleza, em 22 JUL 2021 para o EL PAÍS.

O médoto Bolsonaro: um assalto à democracia em Câmera lenta

Em quase três anos de Governo, presidente promove corrosão da democracia, quebra pactos sociais do Brasil e, seguindo o modelo ultradireitista de outros países, ameaça um legado de 36 anos de regimes democráticos

Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ―uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela no e-mail ao qual o EL PAÍS teve acesso. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.

Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.

“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ―o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.

O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.

Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.

Democracia verde oliva

Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.

O presidente Jair Bolsonaro durante formatura na Academia Militar dos Agulhas Negras, em Resende (RJ) em 24 de setembro de 2020. (Crédito da foto: Isac Nóbrega/PR)

O Governo federal já gastou o equivalente a 86,8 bilhões de reais em privilégios à categoria, uma alta de 17% nos anos Bolsonaro. Neste cálculo, estão os benefícios concedidos pela reforma da Previdência da caserna ―podem se aposentar com salário integral, por exemplo—; um reajuste salarial de 13% —enquanto o dos demais servidores públicos não superou os 8%— e a concessão de comissionamentos extraordinários aos militares que participam de conselhos administrativos de estatais. A conta foi feita, a pedido do EL PAÍS, pelo cientista político Willian Nozaki, que em maio publicou o estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?. Na equação não está inclusa a mudança na regra que permite que militares aposentados, como Bolsonaro ou seus ministros Walter Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) possam receber acima do teto constitucional de 39.293 reais.

Bolsonaro estende benefícios aos policiais militares das 27 unidades da federação. Os PMs são uma base natural do presidente, que poderiam jogar a favor dele, a despeito do comando dos governadores, a quem respondem. O presidente aprovou recentemente um programa de financiamento habitacional exclusivo para as forças de segurança. Também incluiu na reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados um artigo que entende que os policiais seriam carreira típica de Estado, portanto, não correriam o risco de demissão, como as demais funções.

2005
996
2010
1427
2015
1783
2016
2957
2017
3020
2018
2765
2019
3515
2020
6157

A pergunta é se todo esse prestígio alcançado pelos militares e PMs no Governo vai se converter em apoio em caso de uma tentativa de golpe do presidente no ano que vem. “Se isso acontecer, as Forças Armadas terão que tomar uma decisão. Se agirão dentro da legalidade, rompendo de vez publicamente com Bolsonaro ou não”, alerta Amorim Neto. As PMs, por sua vez, seguem a corrente que estiver mais forte. “As polícias no Brasil têm duplo comando. Elas obedecem aos 27 governadores e ao comandante do Exército. Se você perguntar para um oficial da PM quem ele irá seguir em caso de ameaça, a resposta que ele lhe dará será: quem estiver mais forte”, diz o professor Zaverucha.

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Celso Amorim, acredita que nenhum comandante das Forças Armadas está de acordo com uma intervenção. “Isso é uma discussão mais entre alguns generais da reserva. Por mais que boa parte da tropa concorde com as ideias do presidente, ela vai contra o que pensa o Alto Comando do Exército. Ela não vai ultrapassar essa linha”, diz. Para Amorim, o presidente não é bem visto na caserna, quando forçosamente leva a política para dentro dos quartéis, como no episódio que resultou na demissão coletiva do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em maio, por discordarem da linha de atuação do presidente. O ex-ministro lembra também que todo golpe requer apoio internacional, algo que o Brasil deixou de ter após o início do Governo Joe Biden.

Os militares, contudo, também vivem o desgaste do poder ao lado de Bolsonaro. Eles emprestaram sua imagem a um Governo que perdeu prestígio com os resultados desastrosos da pandemia, alto desemprego e agora acossado com acusações de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 que alcançam integrantes do Exército. As acusações de propina, investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, começam agora a levantar suspeitas sobre vários militares que ocupam ou ocuparam cargos no Ministério da Saúde.

Jair Bolsonaro não vive exatamente seu momento mais popular nem entre as instituições, nem junto à opinião pública. Rejeitado por metade da população pela gestão da crise sanitária, o mandatário tem encarado protestos puxados por partidos de esquerda contra sua administração desde maio. As pesquisas eleitorais já mostravam uma erosão do apoio popular pouco antes do noticiário brasileiro ser tomado pelas denúncias de corrupção no Ministério da Saúde na última semana de junho. Um levantamento feito pelo Instituto Ipec entre os dias 17 e 21 daquele mês revelava queda preocupante da sua popularidade diante do ex-presidente Lula: 49% a favor do petista, contra 23% do presidente, o que levaria Lula a ganhar em primeiro turno. Numa pesquisa mais recente, feita pelo instituto Datafolha entre os dias 7 e 8 deste mês, Lula aparece com 58% de apoio para sua candidatura presidencial contra 31% de Bolsonaro —a rejeição ao presidente chega a 59%, contra 37% do petista.

Combustível para se reerguer

Faltando um ano e três meses para as eleições presidenciais, Bolsonaro ainda tem tempo, eleitores e alianças fiéis, além da máquina pública a seu favor para navegar nestas águas revoltas até chegar a 2022 competitivo para se reeleger. Ao farejar o risco de perder as eleições, o presidente já plantou as sementes do caos ―assim como Trump fez no ano passado― inventando um risco de fraude. A verborragia calculada para atormentar adversários e incomodar as instituições ajuda a desviar a atenção. É o método adotado desde que assumiu a presidência.

E ―novamente seguindo o roteiro trumpista―, dia sim, dia não, submete o país a sobressaltos com seus discursos radicais e falas distópicas que confrontam a realidade e desafiam a Constituição. Enquanto distrai a opinião pública, muda leis por atos institucionais que não dependem do Congresso. No dia 19 de julho de 2019, por exemplo, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros, Bolsonaro afirmou que não existia gente passando fome no Brasil, apesar de 5,2 milhões de brasileiros que se encontravam nessa situação àquela altura, mais do que a população da Nova Zelândia. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, dizia enfaticamente na presença de jornalistas internacionais. “Passa-se mal, não come bem. Agora passar fome, não”, afirmou ele com veemência.

Enquanto a imprensa repercutia a sua fala, naquele mesmo dia foi publicado no Diário Oficial da União o decreto número 9.926/19 que promoveu um revogaço de 324 atos administrativos, incluindo o que determinava a criação de conselhos com a participação de representantes da sociedade civil em decisões sobre políticas públicas. Essa foi a primeira canetada para reduzir o controle social sobre o poder público. Outros vieram, diminuindo também a transparência dos atos públicos.os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovado pela Congresso em 2003. O Estatuto previa um referendo em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram contra a proibição da venda de armas naquele ano. As restrições à posse de armas, porém, continuaram valendo segundo a lei de 2003. Mas desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Os quatro decretos mais recentes foram assinados em fevereiro deste ano com o objetivo de facilitar ainda mais a venda de armas e reduzir a fiscalização pelos órgãos competentes. “Temos projetos antigos no Congresso do grupo pró-armas, mas eles sempre enfrentaram resistência. Nenhuma ação conseguiu desmontar o Estatuto do Desarmamento, por isso o Governo partiu para os decretos”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé. Risso explica que, apesar dos decretos poderem ser contestados mais facilmente na Justiça —a ministra do Supremo Rosa Weber suspendeu em liminar a eficácia de diversos dispositivos de quatro decretos presidenciais—, as armas que já foram vendidas durante a queda de braço jurídica não terão mais retorno. “A obsessão do presidente pelas armas foi o primeiro sinal de que o Governo iria mexer com o sistema democrático, uma vez que ele começa a fazer decretos para legislar. E uma vez derrubado o decreto, o Governo revoga e publica outros três. É uma forma de driblar os sistemas de controle”, afirma.

No início da pandemia, no ano passado, o Governo editou uma medida provisória suspendendo os prazos de respostas aos pedidos de informação enquanto durasse a crise sanitária para todos os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovado pela Congresso em 2003. O Estatuto previa um referendo em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram contra a proibição da venda de armas naquele ano. As restrições à posse de armas, porém, continuaram valendo segundo a lei de 2003. Mas desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Em um cenário hipotético em que Bolsonaro perde a reeleição e tenta se manter no poder, a existência de um grande grupo de simpatizantes que se muniram de armas de fogo durante seu Governo representa um cenário sinistro. Desse modo, contornar os limites impostos pelas leis cumpre uma dupla função: manter a lealdade de seu núcleo duro de apoio e, ao mesmo tempo, proteger seus próprios interesses.

Enquanto os atos facilitam a venda de armas, nenhuma outra área sofreu mais ataques do Governo Bolsonaro sob esse método do que a proteção socioambiental. Já são 1.112 atos voltados para alterar a legislação ambiental e facilitar a exploração das florestas, segundo o monitor Política por Inteiro, do Instituto Talanoa. A eficiência dessa estratégia é incontestável. O desmatamento na Amazônia bate recorde desde a chegada de Bolsonaro e o Governo faz vista grossa para a ação de garimpeiros e madeireiros. O Fundo Amazônia, que recebe doações estrangeiras com o objetivo de promover ações de controle e combate ao desmatamento na Amazônia, foi uma das vítimas desse revogaço. O fundo tinha um comitê técnico que, deliberadamente, não foi retomado. Assim, foi rompido o contrato, deixando 2,9 bilhões de reais acumulados no fundo até hoje.

Pesca
29
Meio Ambiente
21
Mineração
9
Agricultura
8
Energia
8
Florestas
7
Biodiversidade
6
Indígena
5
Institucional
3
Terras
3
Marinho
3
Águas
2
Turismo
1
Mudança do Clima
1
Quilombolas

Do total de atos, 107 tiveram como objetivo flexibilizar as normas vigentes de forma unilateral pelo Executivo. Foi assim que Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha: acabar com o que chamou de “indústria da multa no campo”. Um decreto de abril de 2019 passou a obrigar os órgãos de fiscalização a “estimular a conciliação” nos casos de infrações administrativas por danos ao meio ambiente. Na prática, os infratores passaram a ser convidados a participar das audiências, que não são obrigatórias. E mesmo os que são multados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) ganham descontos e maiores prazos para pagar. “A conciliação ambiental foi criada para travar as multas. Essas audiências não foram marcadas. Criou-se a indústria do perdão”, lamenta Natalie Unterstell, diretora-presidente do Instituto Talanoa.

Não por acaso os ruralistas interessados em ampliar seus domínios no campo em antítese à preservação são hoje uma base de sustentação do presidente. A bancada de deputados que representam o agronegócio é parte do grupo legislativo Centrão que garante ao presidente a sua estabilidade no poder, depois do acordo selado no ano passado. Essa convergência no Congresso levou à aprovação, em 13 de maio, de um projeto de lei que flexibiliza regras para concessão de licenciamento ambiental para determinados empreendimentos. E ao apoio à aprovação do projeto de lei 490, que dificulta demarcações de terras indígenas e abre espaço para que as terras sejam exploradas pelo agronegócio —foi aprovado no final de junho numa comissão da Câmara.

A intimidação pública de indígenas e ativistas também é parte do plano Bolsonaro. Em abril deste ano a Polícia Federal abriu inquérito para apurar a conduta dos líderes indígenas Sônia Guajajara e Almir Suruí por supostamente propagar “mentiras” contra o Planalto. O suposto crime foi veicular vídeos de uma campanha de preservação da memória dos povos indígenas, cujo fio condutor era o mote “Nenhuma gota a mais”, referente ao sangue derramado por ataques de invasores ou pela covid-19. O pedido de inquérito partiu da Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje dirigida por um ex-dirigente da PF, Marcelo Xavier, a pedido do presidente. Sem provas, o inquérito foi arquivado dois meses depois.

Em setembro de 2019, uma operação da Polícia Civil de Santarém, em Belém do Pará, mandou prender quatro brigadistas voluntários sob suspeita de terem promovido um incêndio criminoso em setembro em Alter do Chão, uma região paradisíaca no norte do país. Os quatro jovens tiveram as cabeças raspadas e foram acusados de provocar os incêndios para obter mais verbas de ONGs num inquérito cheio de falhas. Era tudo especulação, como apontou um inquérito da Polícia Federal concluído em 2020, que afirmou não haver evidências de que os quatro rapazes eram culpados. Foi um grande espetáculo que serviu para Bolsonaro se descolar da responsabilidade pelo chamado Dia do Fogo, organizado por fazendeiros bolsonaristas do Pará, com queimadas tão intensas que fizeram a fumaça chegar até São Paulo, a milhares de quilômetros de lá. As ações, no entanto, seguem a reverberar na rede de informações dos bolsonaristas até hoje com versões que culpam os brigadistas, as ONGs, e afirmam até que o ator Leonardo di Caprio financiaria essas organizações com intuito criminoso.

Notícias sob medida

As redes de comunicação do bolsonarismo são um capítulo à parte na fragilização da democracia brasileira. Desde que assumiu o poder, Bolsonaro faz uma live semanal nas redes sociais em que muitas vezes desdiz ―num espaço blindado para críticas― o que ele ou seus ministros afirmaram em público. No exercício de poder, o presidente mantém sua linha de intolerância com os jornalistas, em arroubos que já eram conhecidos desde seus tempos de deputado. E se multiplicaram com Bolsonaro presidente, incluindo milícias virtuais para atacar profissionais, especialmente mulheres, num assédio amplificado por seus seguidores. Não por acaso, o mandatário brasileiro entrou este ano para a seleta lista de protofascistas que perseguem a imprensa, segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras. Nessa lista de “predadores da imprensa” estão Nicolás Maduro, e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

Sua aversão à imprensa fez o presidente fechar um círculo com sites e redes de televisão que o apoiam incondicionalmente —e recebem melhores verbas publicitárias estatais por isso. São portais e TVs que reduzem o impacto da pandemia da covid-19, e ignoram as suas manobras casuísticas. Bolsonaro só dá entrevistas a esses meios afins. Parte da estratégia bolsonarista incluiu facilitar a venda de uma concessão pública de televisão à Rede Jovem Pan, o grupo com o maior número de comentaristas defensores de Bolsonaro na rádio e na internet.

É dessas fontes que seus mais leais seguidores se abastecem de informações. Vinicius Publio, de 45 anos, por exemplo, é um orgulhoso bolsonarista que não acompanha a imprensa e raramente assiste a um telejornal. Ele busca informações pelas redes que apoiam Bolsonaro e as que o presidente, sua equipe e seus ciberescudeiros alimentam com uma avalanche de conteúdos. Entre eles, vídeos com propaganda das ações do Governo, as visitas surpresas de Bolsonaro a pequenas cidades, balanços ministeriais triunfalistas, muitas vezes com meias verdades.

Publio admira o perfil do presidente. “É autêntico, fala claramente, diz o que o povo quer ouvir”, explica ele numa cafeteria em Barueri, na grande São Paulo. Publio compartilha com o presidente os valores, a ideologia, o gosto por armas e pelas motos potentes. A bordo de sua BMW, foi um dos que acompanharam o mandatário no comboio de motos num sábado de junho pelas ruas e estradas de São Paulo. Bolsonaro transformou os passeios de motos com seguidores em manifestações públicas de apoio popular, dentro de uma sofisticada estratégia de relacionamento com seus seguidores.

O bolsonarista Vinicius Publio, 45, posa com sua motocicleta em Barueri, cidade de São Paulo onde trabalha como policial militar, no dia 23 de junho. (Crédito da foto: Toni Pires)

Casado e pai de dois filhos adolescentes, Publio combina seu emprego na Polícia Militar com negócios imobiliários. Personifica o núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro, aqueles que permanecem leais a ele apesar de tudo. Mais de meio milhão de mortes por pandemia, inflação ascendente, incêndios na Amazônia ... “São cerca de 15% do eleitorado brasileiro, com presença destacada de homens brancos de certa idade e alta renda”, explica Isabela Kalil, coordenadora do Observatório de Extrema Direita.

É este grupo que endossa o presidente e propaga suas verdades sem questionar. Uma parte do Brasil que é imagem e semelhança com o presidente. Bolsonaro governa no caos para ganhar espaço político e implementar seu projeto de poder. Enquanto não alcança um novo mandato, usa os recursos disponíveis na legislação brasileira para intimidar adversários. Desde que assumiu, em 2019, seu Governo intensificou a perseguição a seus críticos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN).

Consolidada em 1983, dois anos antes do fim da ditadura, a LSN é mais um entulho da era militar no Brasil. É ela que tem embasado inquéritos abertos pela Polícia Federal e até pela Polícia Civil contra professores, artistas, ativistas. Foram vítimas de processos do Governo com base nessa lei desde o youtuber Felipe Neto por chamar Bolsonaro de “genocida” nas redes sociais, o cartunista Aroeira, que desenhou o símbolo do fascismo como se o presidente o tivesse pintado, até o jornalista Ricardo Noblat por ter partilhado a charge de Aroeira nas redes sociais. “Essa lei significou um dos elementos que mantinham o sistema ditatorial. Ela pune a crítica”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP. “Deveria ter sido revogada e não foi, mas em compensação existia um certo pacto na sociedade por não utilizá-la.”

O autoritarismo do presidente no emprego dessa lei contamina até “o guarda da esquina”, usando a expressão cunhada na ditadura pelo então vice-presidente Pedro Aleixo no Governo de Costa e Silva, em 1968, que temia o efeito da institucionalização do AI-5 sobre as tropas. No final de maio, o professor Arquidones Leão, de Trindade, região metropolitana de Goiânia, foi detido por um policial militar por supostamente caluniar o presidente. Leão tinha uma faixa colada ao capô do carro onde se lia “Fora Bolsonaro Genocida”. A justificativa do policial para detê-lo era o desrespeito à Lei de Segurança Nacional. Leão, que é também secretário estadual do Partido dos Trabalhadores em Goiás, teve de depor na Polícia Federal, e foi liberado horas depois.

As salas de aulas e as universidades têm sido uma frente de batalha para Bolsonaro desde que chegou ao poder. Segundo ele, estão cheias de esquerdistas pregando o comunismo. O Governo tentou interferir até nas eleições de reitores eleitos por seus pares com a edição de uma medida provisória que dava poderes ao ministro da Educação de eleger os nomes durante a pandemia. Passou a intimidar também professores que fizessem críticas ao Governo com processos na Justiça. Em janeiro deste ano os professores universitários Erika Suruagy e Tiago Costa Rodrigues foram alvos de inquérito da Polícia Federal por publicarem críticas ao presidente em outdoors de suas cidades. Suruagy vive em Recife, e Rodrigues, em Palmas, no Tocantins. Os inquéritos foram arquivados meses depois por falta de consistência nas acusações. Mas o estrago foi feito. “As portas se fecharam, não consegui mais trabalho”, conta Rodrigues, que teve de se mudar de cidade. “O clima é de medo”, resume a professora Erika Suruagy.

Tiago Costa Rodrigues foi indiciado pela PF depois de ter espalhado outdoors em Palmas (TO) com mensagens contra o presidente Jair Bolsonaro. O inquérito foi arquivado agora em junho. (Crédito da foto:Fernando Leite).

Também um grupo de professores e alunos da Universidade Federal do Ceará é alvo de inquérito da Polícia Federal por aulas sobre os riscos do fascismo. Alunos eleitores de Bolsonaro delataram os docentes do curso à polícia por um suposto assédio contra eles.

Dentro da sala de aula, há uma pressão para evitar assuntos ligados à política. Não foram poucos os casos de vídeos de professores filmados por alunos fazendo alguma crítica informal, mas que circularam nas redes bolsonaristas como uma conspiração comunista. “Se a universidade não pode falar, não pode discutir ideias, quem fará isso? Não existe democracia que se sustente sem as universidades”, diz Suruagy.

O presidente também mina os investimentos nas universidades, estrangulando ainda mais o já sufocado orçamento do ensino superior. De 2019 para cá, o corte da verba das universidades federais chega a 25%, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). O assédio não se restringe aos professores universitários. A Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), coalizão de entidades do setor público, por exemplo, identificou mais de 820 episódios de assédio. Segundo o levantamento, o Ibama encabeça a lista dos órgãos onde mais ocorreram essas intimidações.

Resistência

O Judiciário, em especial a Corte Suprema, tem sido uma barreira para inibir os abusos de poder do presidente. A Corte tem desarmado parte das bombas-relógios que o Governo cria com a promulgação de medidas provisórias, por exemplo. A Corte também liderou a investigação, conduzida pela Polícia Federal, sobre as redes digitais bolsonaristas que incentivaram a perseguição e assédio ao próprio Judiciário e a opositores do presidente. O chamado inquérito dos atos antidemocráticos encontrou indícios de “uma verdadeira organização criminosa” que ataca a democracia, e que conta com o trabalho de parlamentares, empresários que apoiam o presidente e blogueiros que espalham notícias falsas. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, abriu uma nova frente de investigação a partir de agora.

Hoje há mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já demonstrou não ter interesse em avançar com o assunto. O último, apresentado no final de junho como um superpedido reunindo todos os demais que já estão com Lira, trazia uma lista de 23 potenciais crimes de responsabilidade, incluindo o de prevaricação (um crime contra a administração pública, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal), uma vez que Jair Bolsonaro foi informado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda, sobre a pressão por propina na compra de uma vacina contra a covid-19. Embora tenha assegurado aos irmãos Miranda que iria investigar, o presidente não deu nenhuma ordem nesse sentido.

As ruas começaram a ganhar expressão em maio, especialmente com o papel que a CPI da Pandemia passou a exercer apontando as responsabilidades do presidente sobre o caos na saúde. Protestos organizados pela esquerda levaram milhares de brasileiros às manifestações, especialmente nas capitais do país, em três ocasiões, mas ainda sem a adesão de partidos de centro ou da direita. É nesta encruzilhada que o Brasil se encontra, com os maiores partidos resistindo a se unir aos protestos, hoje dominados por eleitores do ex-presidente Lula.

Em seu livro O povo contra a democracia, o professor Yascha Mounk lembra que na maioria dos países os populistas só alcançam o cargo máximo porque seus adversários fracassam em concluir um pacto eleitoral. “Embora seja natural presumir que a ameaça autoritária possa nos ajudar a enxergar as coisas com mais lucidez, o oposto também é verdadeiro: aflitos e apavorados, os adversários dos populistas começam a fazer o jogo político da pureza, impondo testes… recusando-se a abraçar antigos aliados do populista”, diz ele.

Um passo importante foi dado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que desde abril sinaliza que pode votar em Lula num eventual segundo turno com Bolsonaro. “Quem não tem cão caça com gato”, afirmou Cardoso. Nomes cotados para disputar as eleições de 2022 ouvidos pelo EL PAÍS nos últimos meses tinham claro que a união contra Bolsonaro é irreversível e não descartam abrir mão de candidatura em algum momento da corrida eleitoral para evitar que ele avance ao segundo turno.

O objetivo é evitar a reeleição de Bolsonaro, onde ele dobraria a aposta nas quebras democráticas, como aconteceu em outros países governados por líderes radicais. “Todos os Governos autoritários atuais, seja na Venezuela ou na Hungria, foram degradando aos poucos a democracia no primeiro mandato e o desmonte final veio no segundo”, lembra Pedro Abramovay, diretor da Open Society.

“Bolsonaro não tem convicção democrática, ele aceita [a democracia] por questão estratégica”, diz o cientista político Jorge Zaverucha, professor da Universidade Federal do Pernambuco. “Ele fica esperando para, se um dia os ventos soprarem para uma solução autoritária, ele embarcar nela”, acrescenta. À espera de tempestades, Bolsonaro avança em seus propósitos. Muitos brasileiros os percebem. E os temem.

AFONSO BENITES, CARLA JIMÉNEZ, FELIPE BETIM, MARINA ROSSI e NAIARA GALARRAGA GOR, de S. Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Genebra para o EL PAÍS, em 18 de Julho de 2021.

domingo, 18 de julho de 2021

Bolsonaro recebe alta e deixa hospital após tratar obstrução intestinal em SP

De acordo com boletim divulgado pela assessoria de comunicação do hospital, ele seguirá com acompanhamento ambulatorial da equipe médica assistente

Bolsonaro caminha no corredor do Hospital Vila Nova Star (Foto: Reprodução/Bolsonaro/AFP)

O presidente Jair Bolsonaro recebeu alta médica neste domingo, 18, no quinto dia de internação. Ele tratava um quadro de obstrução intestinal no Hospital Vila Nova Star, na zona sul de São Paulo, e vinha apresentando melhora gradativa desde a última quinta-feira. A informação é de um boletim divulgado pela assessoria de comunicação do hospital às 9h30.


Bolsonaro deixou o hospital pouco antes das 10h e parou para falar com a imprensa. "Comecei a passar mal depois de uma cirurgia de implante. E realmente é complicado saber a origem disso. Alguns dias depois agravou a crise de soluço, e parecia que estava pegando fogo o estômago. A causa disso era uma obstrução intestinal, porque a aderência é comum em quem já sofreu cirurgia, como eu sofri, após a facada do ex-psolista Adélio lá em Juiz de Fora", disse.

"Tive que me submeter a uma dieta, fiz o que tinha que ser feito. Queria ir embora desde o primeiro dia, mas não me deixaram ir embora. Espero daqui a uns 10 dias estar comendo aí um churrasquinho de costela."

Ainda de acordo com a nota divulgada pela assessoria, Bolsonaro seguirá com acompanhamento ambulatorial da equipe médica assistente. 

O médico-cirurgião Antonio Luiz Macedo, que acompanha o presidente desde 2018, quando foi vítima de um ataque a faca, já havia adiantado a previsão da alta na tarde de ontem, ao chegar no hospital. "O sistema digestivo de Bolsonaro está funcionando, já há passagem de alimentos, e está sem obstruções", informou.

Bolsonaro foi internado na última quarta-feira, 14, após sentir fortes dores na região do abdômen. Ele também se queixava de crises de soluço há pelo menos dez dias. De acordo com diagnóstico médico, ele sofreu uma obstrução no tubo digestivo por causa de dobra do intestino, o que impedia a passagem adequada de alimentos.

Em entrevista ao Estadão, o médico-cirurgião explicou que o quadro é "potencialmente grave", mas que a situação de Bolsonaro foi controlada rapidamente. O presidente foi transferido de Brasília para São Paulo para que o médico pudesse acompanhá-lo de perto, além da maior oferta de recursos para o tratamento. Uma nova cirurgia, porém, foi logo descartada pela equipe. "Novas cirurgias abririam espaço para novas obstruções", afirmou Macedo.

O processo de recuperação do presidente, no entanto, deve avançar cuidadosamente nos próximos dias. A equipe médica ainda irá definir a progressão da alimentação do presidente: a dieta deve passar de cremosa (consumida com colher) para pastosa (consumida com garfo), sem incluir alimentos fermentativos, que formam gases. 

Uma sonda neogástrica foi utilizada no presidente para levar alimentos e hidratação diretamente ao estômago. Ela foi retirada na quinta-feira, e desde então a alimentação via oral tem sido reintroduzida na rotina de Bolsonaro

Macedo afirmou também que outras recomendações a Bolsonaro incluam mastigar bem a comida, fazer refeições leves e praticar exercícios regularmente, como caminhadas.

Também segundo o médico, a depender da avaliação da equipe, Bolsonaro estaria apto para voltar ao trabalho amanhã.

Brenda Zacharias, O Estado de S.Paulo, em 18 de julho de 2021 | 09h41, Atualizado 18 de julho de 2021 | 10h29.

Semipresidencialismo vira tática contra impeachment

Presidente da Câmara, Arthur Lira articula emenda constitucional que muda sistema de governo; objetivo é aliviar pressão pela abertura de processo de impedimento de Bolsonaro

       O presidente da Camara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), defende 'pôr água na fervura' da crise, diante de 126 pedidos de impeachment  Foto: DIDA SAMPAIO / ESTADÃO - 31/3/2021

Disposto a esvaziar a pressão para autorizar o impeachment de Jair Bolsonaro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), articula com aliados a mudança no sistema de governo por meio de uma proposta de emenda à Constituição (PEC). A um ano e três meses das eleições de 2022 e sob a justificativa de que o presidencialismo virou uma fonte inesgotável de crises, a ideia apoiada por Lira e nomes de peso do mundo político e jurídico prevê a adoção do regime semipresidencialista no Brasil.

O modelo introduz no cenário político a figura do primeiro-ministro e aumenta o poder do Congresso. Embora a proposta determine que o novo sistema tenha início apenas no primeiro dia do “mandato presidencial subsequente” à promulgação da emenda, sem fixar datas, o presidente da Câmara, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e José Sarney, defendem o ano de 2026 como ponto de partida.

Lira apresentou a minuta na última terça-feira, em reunião do colégio de líderes, e obteve apoio da maioria para levá-la adiante, apesar das críticas da oposição, principalmente do PT, que chama a proposta de “golpe” e “parlamentarismo envergonhado”. A PEC é de autoria do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), ex-secretário da Casa Civil de São Paulo, e, para que comece a tramitar na Câmara, precisa de 171 assinaturas.

O Estadão apurou que a proposta, protocolada em agosto do ano passado, estava na prateleira e foi resgatada após o presidente Bolsonaro fazer uma série de ameaças, dizendo que o Brasil não terá eleições em 2022, se não houver voto impresso.  Nesta sexta-feira, 16, ao perceberem que seriam derrotados, aliados do governo promoveram uma manobra e conseguiram adiar para agosto, na comissão especial da Câmara, a apreciação do que definem como “voto auditável”.

Nos últimos tempos, afirmações do presidente na contramão da democracia serviram para acender a luz amarela no Congresso e no Supremo. O temor de ruptura institucional cresceu depois que o ministro da Defesa, Walter Braga Neto, e comandantes das Forças Armadas divulgaram nota atacando o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, Omar Aziz (PSD-AM).

Diante de 126 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, Lira afirmou que é preciso trabalhar mais para “pôr água na fervura” do que para “botar querosene” na crise. Cabe ao presidente da Câmara dar andamento ao processo, mas Lira disse não ver ambiente político para isso e reagiu às cobranças. “Não posso fazer esse impeachment sozinho”, afirmou o deputado, que comanda o bloco de partidos aliados, conhecido como Centrão.

Barreira

A proposta de semipresidencialismo que reaparece agora como uma barreira para enfrentar arroubos­ – por enquanto retóricos – de Bolsonaro prevê um modelo híbrido. Ao mesmo tempo em que mantém o presidente da República, eleito pelo voto direto, delega a chefia de governo para o primeiro-ministro. É ele quem nomeia e comanda toda a equipe, o chamado “Conselho de Ministros”, incluindo nesse rol até mesmo o presidente do Banco Central.

Inspirado em sistemas adotados em Portugal e na França, o regime sugerido para o Brasil em nome da estabilidade joga luz sobre um “contrato de coalizão”, com força de lei, para ser assinado por partidos que dão sustentação ao presidente. Ali devem constar as diretrizes e o programa de governo.

Na prática, é o primeiro-ministro que toca a administração do País e conduz o “varejo político” nas relações do Palácio do Planalto. Nomeado pelo presidente, de preferência entre os integrantes do Congresso, ele tem a obrigação de comparecer todo mês à Câmara para prestar contas.

A destituição do chefe de governo pode ocorrer pela aprovação de moção de censura apresentada pelo presidente ou por dois quintos de integrantes de cada Casa do Congresso. O gabinete não cai, porém, enquanto não houver outro primeiro-ministro, já que não existe vice-presidente.

“Hoje temos um presidencialismo de coalizão, mas o equilíbrio para o governo se manter no poder custa o que a gente não sabe. A fatura é alta e o Congresso não tem compromisso político. No semipresidencialismo, a governança muda e as composições são reveladas”, argumentou Moreira, o autor da PEC.

Desde a redemocratização, dois presidentes – Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff – foram afastados e todos os outros conviveram com a espada da interrupção do mandato sobre a cabeça. O Brasil já fez dois plebiscitos sobre sistema de governo: um em 1963 e outro em 1993. Em ambas as consultas, uma minoria demonstrou apoio à criação do cargo de primeiro-ministro e o parlamentarismo foi derrotado.

“Qual o problema aqui? O presidente da República já se elege com o impeachment do lado”, disse Lira ao Estadão. “Ninguém aguenta isso. Um processo de impeachment deflagrado a um ano da eleição é o caos. O semipresidencialismo é a forma de estabilizar a política dentro do Congresso”.

Para ser aprovada, a proposta precisa ter 308 votos na Câmara e 49 no Senado, em duas votações. “Semipresidencialismo é parlamentarismo disfarçado. Torna presidente eleito sem poder. É criar crise, colocar no comando do País quem não tem legitimidade do voto para tanto. Golpe na soberania popular. Regime e sistema de governo já foram decididos por plebiscito duas vezes no Brasil”, criticou a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), em mensagem postada no Twitter.

Na avaliação da cúpula petista, a proposta só ressurgiu para prejudicar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje está em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto e é o maior adversário de Bolsonaro para 2022. A PEC determina que o mandato do presidente é de quatro anos, com direito a apenas uma reeleição, consecutiva ou não.

“Eu acho que nós deveríamos implantar essa inovação para 2026, para que não haja mais nenhum interesse posto em mesa”, ponderou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luis Roberto Barroso.

Coordenador

Além da polêmica sobre o ano de instituição do novo sistema, caso haja apoio para a tramitação da PEC, o texto embute uma novidade. No período de transição do atual regime para o semipresidencialismo está prevista a criação do cargo de ministro coordenador, a quem caberá a articulação político-administrativa do governo.

“Isso é para colocar desde já o Centrão dentro do Planalto”, observou o ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que é parlamentarista. “Vejo essa proposta como um bode na sala, para distrair a população que enfrenta pandemia, inflação e desemprego. Adotar uma mudança tão profunda para resolver uma emergência pode ser uma emenda pior do que o mau soneto”.

A opinião é compartilhada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS). Ao ser questionada sobre a proposta, ela respondeu: “Com esse Congresso? Mais poderes para o Centrão”.

Candidato à Presidência em 2014, tendo Aloysio como vice, o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) disse ser a favor do semipresidencialismo, mas afirmou que, antes de tudo, é necessário um enxugamento no número de partidos. “Para permitir que o Congresso tenha poderes fortalecidos é preciso que haja o mínimo de organização partidária. Não tem 30 ideologias para ter 30 partidos”, constatou o tucano.

Não é a primeira vez que o semipresidencialismo vira assunto na Praça dos Três Poderes. Em 2017, durante o governo Temer, o ministro do STF Gilmar Mendes, que à época era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), enviou uma minuta sobre o assunto para ser analisada pela Câmara. Para o magistrado, o presidencialismo dá sinais de exaustão.

“As sucessivas crises do nosso sistema, com incansáveis invocações de impeachment, reclamam uma reforma que garanta a co-responsabilidade do Congresso Nacional nos deveres de Governo. Representatividade e governabilidade podem andar juntas", escreveu Gilmar no Twitter.

O deputado bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP) tem receio da mudança e pondera que o efeito pode ser o inverso do pretendido. “O presidente vai nomear o primeiro-ministro, vai colocar um cara dele lá. Vai continuar concentrando poder e neutralizar o Legislativo", resumiu. Orleans e Bragança disse que prefere o parlamentarismo original, sem inovações.

O cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia, porém, que o semipresidencialismo permitiria remédios mais suaves e soluções menos traumáticas para instabilidades políticas e trocas de governo. “Teoricamente, é muito mais fácil você resolver isso no semipresidencialismo do que no presidencialismo. Assim como é mais fácil resolver no parlamentarismo”.

Mesmo assim, Couto também considerou que, antes de mudar o sistema, o Brasil precisa diminuir o número de partidos para permitir uma formação mais programática de maioria no Congresso. "O que às vezes se tem é o que a gente chama de coalizão de veto. Vários partidos que não se unem para construir alguma coisa, mas podem se unir para derrubar um governo”, destacou.

Vera Rosa e Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo, em 18 de julho de 2021 | 05h00