quarta-feira, 7 de julho de 2021

"Temos provas cabais no caso Covaxin", diz Simone Tebet

Líder da bancada feminina no Senado afirma que só falta CPI juntar todas as peças para comprovar irregularidades envolvendo a vacina indiana. Ela diz que antes de abrir processo de impeachment é preciso "pensar no país".

"Não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno", afirma Simone Tebet

Líder da bancada feminina no Senado, Simone Tebet (MDB-MS) se projetou nacionalmente quando, em  2019, brigou dentro de seu partido para ser um nome alternativo à presidência da Casa. A investida não prosperou. Em 2020 ela voltou à carga e disputou com Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na primeira candidatura de uma mulher à presidência do Senado. Foi derrotada e nem seu próprio partido ficou ao seu lado integralmente.

Agora, à frente da bancada feminina, atuou para assegurar a participação das mulheres na CPI da Pandemia. Em um colegiado exclusivamente masculino, Tebet foi a parlamentar que arrancou, no depoimento do deputado federal bolsonarista Luis Miranda (DEM-DF), o envolvimento do líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), em suposto esquema de corrupção na aquisição da vacina indiana Covaxin contra a covid-19.

Nesta terça-feira (06/07), a senadora afirmou durante sessão da CPI que documentos apresentados pelo governo para rebater acusações de irregularidades nas negociações para compra da Covaxin foram fraudados, incluindo erros de grafia em inglês e indícios de montagem.

Em entrevista à DW Brasil, ela afirma já haver "provas cabais" no caso Covaxin e que "só falta juntar todas as peças e ouvir todas as testemunhas". Ao mesmo tempo, afirma que, antes de abrir um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, é preciso "pensar no país".

Filha de Ramez Tebet, que presidiu o Senado no início dos anos 2000, Simone agita discretamente os bastidores do MDB como uma opção de nome para a terceira via em 2022. A senadora diz acreditar que essa terceira via possa tirar Bolsonaro do segundo turno e se recusa a repetir o gesto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que deixou clara a intenção de votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva caso ocorra a disputa do petista com Bolsonaro em 2022.

"Quem é do centro democrático não pode responder a essa pergunta. O centro democrático, se quiser, tem todas as condições de estar no segundo turno. Pelo andar da carruagem, não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno. Então não é escolha de Sophia", afirma.

DW Brasil: Tem sido marcante sua atuação na CPI da Covid. A senhora conseguiu arrancar o nome do líder do governo, Ricardo Barros (PP), no depoimento do deputado Luis Miranda [que denunciou suposto esquema de corrupção na compra de vacinas]. Foi sorte, intuição feminina, ou habilidade?

Simone Tebet: A política não pode mais viver sem as mulheres, não porque somos melhores, mas porque somos diferentes. Na CPI nós [a bancada feminina] somos mais detalhistas, ficamos mais atentas a certos tipos de sinais corporais, o tom emocional. Meu pai, que era criminalista, falava sempre que o depoente, quando entra numa fase de cansaço, e fica abalado, precisa de acolhimento e de se sentir protegido. Minha fala inicial ao deputado [que prestava depoimento] era invocar o espírito público. Fiz o processo reverso, disse que entendia a posição dele, porque ele não queria falar. Aí na primeira tentativa ele já soltou. Foi um conjunto de situações que levou a isso. Teve um pouco de tudo: destino, estar no lugar certo na hora certa, ter lembrado do que meu pai ensinou. Tive sorte.

Qual a importância da bancada feminina hoje, sobretudo num país cujo presidente com posturas misóginas?

A minha candidatura à presidência do Senado foi fundamental para que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco [DEM-MG] fizesse um compromisso com as senadoras, e muitas não votaram em mim, de criar a liderança da bancada feminina. Essa liderança permitiu às senadoras ter espaço no colégio de líderes. Com isso, nós emplacamos toda semana um projeto de interesse da mulher brasileira. Ou na igualdade salarial, como aprovado e que agora está na Câmara, ou no combate à violência à mulher. São projetos que fazem a diferença. Votamos nesta semana [passada] a criação de um tipo penal importante que é a violência psicológica, que não era tipificada.

A bancada feminina está surpreendendo positivamente o Senado. Para alguns têm até gerado algum incômodo. Quando pulamos para dentro da CPI, num gesto generoso do presidente do colegiado, senador Omar Aziz, isso mudou o rumo da comissão. Porque passou a ter uma voz da sensibilidade, do detalhe. A CPI já cumpriu uma missão que é comprovar a conduta errática, equivocada, negligente, negacionista do governo do presidente Bolsonaro em relação à pandemia e todas as consequências nefastas deste negacionismo, a ponto de hoje termos muito mais mortes do que teríamos se eles tivessem feito o dever de casa.

Isso vai constar no relatório e está comprovado. Quando a CPI já estava exaurindo seu objeto, tivemos outra denúncia bombástica, feita por um deputado bolsonarista, acusando outro deputado em rede nacional de corrupção. Coisa que eu nunca vi em meus 20 anos de vida pública. Começa agora uma nova fase da CPI. Sorte ou não, instinto, feeling, destino, foi feito por alguém da bancada feminina. Só homens teriam chegado a isso? Não sabemos dizer. Mas a participação feminina na CPI tem sido no mínimo a cereja do bolo.

A senhora diz que a CPI comprovou o negacionismo, a negligência e a omissão que levaram milhares de pessoas à morte. Mas a corrupção, que passa a ser investigada agora, parece erodir mais a base bolsonarista. Por quê?

Grande parte da sociedade se distanciou deste governo no momento em que se deu conta de que ele realmente foi omisso, negligente, agiu contra a ciência, contra a vida, a favor de uma tese obscura de imunidade de rebanho, uso de medicamentos ineficazes [tratamento precoce] e atrasando a compra de vacinas.

Uma parte significativa da população brasileira, e as pesquisas mostram isso, passou a não acreditar mais no governo e até a culpá-lo pelas mortes de familiares e amigos. Só que isso aconteceu e houve estagnação.

O presidente ainda tem um segmento muito firme com ele. Veio agora essa denúncia gravíssima, – crime de corrupção ativa e passiva, prevaricação, peculato, tráfico de influência – não de um único contrato, mas em relação a pelo menos três, e já se fala em "propinoduto", "vacinoduto".

O governo era tido como não conivente com a corrupção. Estamos hoje diante de uma travessia, em cima de uma ponte, e não sabemos para onde esse eleitor, que ainda confiava no governo, vai. Na minha modesta opinião, o eleitor vai atravessar essa ponte e abandonar essa base do governo. Não só fora, a opinião pública, mas também dentro do Congresso Nacional.

Começo a ver alguns congressistas do Centrão, que não são da cúpula, abandonando esse barco. Não estou dizendo que estamos caminhando para o impeachment. Estou dizendo que estamos caminhando para um governo que não vai ter mais a quantidade de congressistas o defendendo. Podem até continuar votando com o governo em pautas importantes para o país, como eu faço, mas não mais defendendo esse governo, como eu não faço.

A CPI passa agora a investigar denúncias referentes a três contratos de compra de vacinas?

Sim. No caso da Covaxin já temos provas e documentos. O contrato foi assinado antes da Medida Provisória que permitiria essa assinatura. Contrato é um ato administrativo. Você não pode fazer nada no direito público sem lei anterior que permita. Como o contrato [da Covaxin] seria de uso emergencial, não tinha ainda autorização por lei.

Isso dependeria de uma lei que permitiria a compra de vacinas autorizadas por uma autoridade sanitária indiana, e no Brasil não tínhamos essa lei ainda. Temos nota de empenho, contrato assinado, fax e documentos comprovando a tentativa de venda e um funcionário público que se recusou a assinar [a liberação de recursos] e foi pressionado. No caso da Covaxin só falta juntar todas as peças e ouvir todas as testemunhas.

E surgiu no meio do caminho outra denúncia, em relação a uma negociação para compra de doses vacina da AstraZeneca, com cobrança de propina.

Embora neste caso não tenhamos nenhuma materialidade, essa denúncia não foi negada pelo governo. O depoimento [do policial militar Luiz Paulo Dominguetti] ajudou a comprovar a autoria [do suposto esquema de propina]. Os autores e personagens envolvidos são os mesmos da Covaxin, onde, aí sim, temos provas cabais.

E, por fim, há um contrato maior ainda, que não se efetivou porque foram com muita sede ao pote, mas que é com o mesmo personagem. É o laboratório CanSino [Biologics], a vacina Convidecia. O contrato seria de R$ 5 bilhões.

Agora, acho que precisamos focar na Covaxin. Temos já a comprovação de que o negacionismo e a conduta errática do governo, sem contratação de vacinas no tempo devido, caracterizam crime contra a saúde pública e, inclusive, crime de responsabilidade aí.

Se a Câmara vai abrir impeachment é outra história. Mas já há elementos para o Ministério Público acionar os personagens na área cível e criminal. E, agora, temos também fortes indícios e elementos claros de crime de corrupção. A dúvida é quando a CPI vai tratar, e isso é um terceiro ponto, de prevaricação. Quem é que prevaricou?

Como parlamentar e com formação em direito, a senhora não considera que todos esses casos que citou justificam um pedido de impeachment?

Aí é uma decisão política. CPIs dão embasamento para um processo de impeachment, mas o objetivo principal é ter trazer elementos para encaminhar ao Ministério Público os indícios de irregularidades. O que se extrai de uma CPI são sim elementos que comprovam crime de responsabilidade. Mas é decisão política da Câmara dos Deputados acionar [o presidente] por crime de responsabilidade.

A CPI precisa ser concluída. Vamos precisar de pelo menos mais três semanas para amarrar as pontas. Vejo no dia a dia o governo perdendo apoio dentro do Congresso, vejo a economia combalida e vejo criando corpo a rejeição ao governo do presidente Bolsonaro. Talvez o que possa levar sim a se pensar na abertura de um processo de impeachment seja efetivamente essas três próximas semanas comprovando crime de corrupção dentro do Ministério da Saúde. Temos que aguardar.

Mas a senhora é a favor de um impeachment?

É preciso que os indícios se transformem em elementos de prova, e não só prova testemunhal, que é a mais frágil das provas. Precisamos amarrar as provas testemunhais com análises de vídeos, áudios, provas documentais, periciais. Isso leva duas, três semanas. É um momento delicado, de polarização nas redes sociais, de radicalismo.

Temos que pensar no país. Para abrir um processo de impeachment, antes de mais nada, é preciso saber se vai dar certo. A gente não sabe sequer se tem número, na Câmara, para abrir o processo e mandar ao Senado, que apura. Temos que ter equilíbrio emocional agora, usar a razão, além da emoção, para sentir tudo isso. É fundamental a CPI cumprir essa primeira fase, cumprir o tempo normal de jogo, antes da prorrogação, que ainda não terminou. Eu aguardaria.

Já há assinaturas necessárias para prorrogar a CPI, a senhora assinou, mas o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sinalizou abertamente que acatará.

Acho que ele pode estar sendo pressionado pela base governista para aguardar o término da CPI [o período oficial de 90 dias de funcionamento, que só se encerra ao final de julho], numa tentativa frustrada do governo de retirar assinaturas [a favor da prorrogação]. O governo não consegue retirar. Há um apelo popular.

A senhora sempre defendeu a terceira via em 2022. Pelas pesquisas atuais, está claro que o ex-presidente Lula é um candidato fortíssimo, e poderia vencer Bolsonaro. Há mesmo espaço para essa terceira via?

Sem a menor dúvida, mais do que nunca. E acho que essa terceira via poderia, inclusive, tirar Bolsonaro do segundo turno. Sessenta porcento não querem olhar para o retrovisor, para o passado, e não estão satisfeitos com o presente. Querem um nome novo para o futuro. Advogo que os partidos têm que lançar seus candidatos e, no final do ano, testados esses nomes, sentamos numa mesa para decidir quem pode representar a cara do Brasil que queremos. Não se pode, agora, sacar um nome da manga.

O seu nome está em algumas rodas. A senhora teria essa disposição?  O MDB bancaria seu nome?

A única certeza que eu tenho é que o MDB vai ser peça fundamental como foi, no passado, para unir o centro. O que não significa unir o centro com nome próprio. O ideal seria que tivéssemos alguém do MDB com envergadura e condições. Pode ser que tenha. Mas o que eu advogo é: o partido que uniu lá atrás, no momento mais delicado da história, hoje continua sendo o maior partido de centro.

O MDB em matéria de votos é fundamental nesse processo. E tem hoje um presidente muito equilibrado, que é o Baleia Rossi. O MDB vai ter um encontro, em 30 dias, para entender o seu papel exato. Vamos lançar candidato agora? Isso o partido ainda não definiu. Mas defendo que o MDB deve estar no centro da conversa. O que converge esse centro é a defesa das instituições democráticas que dia a dia são abaladas por esse governo. O país está sendo comandado por um governo tão à direita que conseguiu a façanha de colocar na mesma mesa todas as matrizes ideológicas.

A senhora quer tentar a reeleição ou colocará seu nome nesse projeto nacional?

Nunca fugi de responsabilidades, ainda que isso tenha custos políticos. Fui para a linha de frente na defesa intransigente da democracia, contra um governo que quer ditar regras contra minorias, num retrocesso humanitário, e tentando combater uma pauta tão conservadora a ponto de me jogar na oposição. Quando esse governo viola direitos sagrados, civis, as liberdades públicas, eu coloco esse projeto de defesa das instituições democráticas acima do meu projeto político. A princípio eu sou candidata à reeleição, mas não fujo do que o destino reservar para mim. Em política a gente não escolhe missão, ainda mais agora.

No início do governo Bolsonaro a senhora tinha muita interlocução, sobretudo com a equipe econômica. Hoje é oposição?

Sou independente, porque, de alguma forma, voto com o governo em tudo o que acho que é importante para o país. O que está me tirando desta independência é o fato de ver que nem mais pauta econômica o governo tem. Tem uma pauta eleitoreira. Apresentou uma reforma administrativa que de reforma não tem nada e jogou no colo do Congresso. Entrega uma reforma tributária que não é reforma, ali só tem aumento disfarçado de imposto para um segmento muito importante, que é o setor de serviços. Vão usar dinheiro público com fins eleitoreiros.

Eles estão brincando com a economia brasileira. Não consigo entender como o mercado ainda não visualizou isso. Eles podem quebrar o país, como a Dilma fez lá atrás. Os gastos públicos crescem, a receita caiu, vai ter aumento de inflação. Eles se recusam a cortar gastos, porque querem a agenda populista. A dúvida é se o Congresso vai cair nessa e se o Centrão vai se submeter a isso. O MDB se posicionou radicalmente contra esse engodo de reforma tributária.

Se houver segundo turno entre Lula em Bolsonaro em 2022, em quem a senhora vai votar?

Não respondo a essa questão porque é um erro de quem busca a terceira via responder. Quem é do centro democrático não pode responder a essa pergunta, a meu ver. Porque só divide quem está sentado numa mesma mesa. O centro democrático, se quiser, tem todas as condições de estar no segundo turno. Pelo andar da carruagem, como o santo é, sim, de barro, não tenho dúvidas de que o centro pode sim estar com Lula no segundo turno. Então não é escolha de Sophia. Por tudo o que eu já disse, acho que a resposta está dada. Mas o externar isso enfraquece a construção de uma alternativa de poder. A terceira via é melhor, e eu acredito nela.

Deutsche Welle Brasil, em 07.07.2021

Brasil registra mais 1.648 mortes por covid-19

Número acumulado de mortes passa de 528 mil. Total de casos notificados da doença passa de 18,9 milhões.


O Brasil registrou oficialmente nesta quarta-feira (07/07) 1.648 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 54.022 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções reportadas no país chega a 18.909.037, e os óbitos oficialmente identificados somam 528.540.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 17.262.646 de pacientes haviam se recuperado da doença até terça-feira, mas os números não indicam quantos ficaram com sequelas.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 606 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,7 milhões) e Índia (30,6 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 251,5 no Brasil, a 8ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 184 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,99 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 07.07.2021

Reunião com Davati foi encaixada por coronel bolsonarista em agenda de outro empresário

 Foi a esse coronel que o cabo Dominghetti se referiu quando disse que "um colega de turma" de Elcio Franco viabilizou o encontro. Segundo Dominghetti, Helcio Almeida tinha acesso ao 02 do ministério "por ele ser dos comandos". Em conversa ontem, por telefone e mensagens, Helcio (com H) confirmou que seu acesso ao coronel Elcio (com E) vem das Forças Especiais. "Serve como boa credencial", escreveu. 

O coronel da reserva Helcio Bruno Almeida (à esquerda), que organizou a reunião para a oferta de 400 milhões de doses de vacina ao número 2 do Ministério da Saúde, Elcio Franco

Desde que o cabo da PM Luiz Paulo Dominghetti afirmou na CPI da Covid ter recebido um pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina oferecida ao Ministério da Saúde, a cada dia surgem mais detalhes da negociação que colocou, de um lado, o PM, um reverendo e um executivo de uma empresa obscura dos Estados Unidos – e de outro, funcionários indicados pelo Centrão do deputado Ricardo Barros (PP-PR) e coronéis subordinados a Eduardo Pazuello. Na última sexta-feira (01), na CPI, um novo personagem passou a fazer parte desse enredo. 

Trata-se do coronel da reserva Helcio Bruno de Almeida, presidente do Instituto Força Brasil, que defende causas bolsonaristas como o armamento da população, o voto impresso e o tratamento precoce. O vice-presidente da entidade é o empresário Otavio Fakhoury, investigado na CPI das fake news. Helcio também é egresso das Forças Especiais do Exército, assim como o secretário-executivo do ministério, Elcio Franco, Pazuello e vários ministros palacianos. 

Foi a esse coronel que o cabo Dominghetti se referiu quando disse que "um colega de turma" de Elcio Franco viabilizou o encontro. Segundo Dominghetti, Helcio Almeida tinha acesso ao 02 do ministério "por ele ser dos comandos". Em conversa ontem, por telefone e mensagens, Helcio (com H) confirmou que seu acesso ao coronel Elcio (com E) vem das Forças Especiais. "Serve como boa credencial", escreveu. 

O Instituto Força Brasil foi criado emsetembro do ano passado, já em meio à pandemia. O site oficial diz que a entidade sem fins lucrativos "se propõe a fazer frente à hegemonia da esquerda como participante do poder, bem assim ao crime organizado nas instituições" e "deste modo, oferecer subsídios para o fortalecimento dos movimentos ativistas conservadores". 

A reunião dos coronéis aconteceu na manhã do dia 12 de março e estava prevista na agenda oficial do ministério. Mas não era para falar com a Davati, e sim para tratar do  "Contrato Beep". Em tese, deveria servir para o dono de uma rede privada de vacinação do Rio de Janeiro, a Beep, dar sugestões para regulamentação da lei que permitia a compra de vacinas para o setor privado. 

Mas, no horário marcado, o coronel Helcio apareceu com Dominghetti, o executivo da Davati Cristiano Carvalho e o reverendo Amilton Gomes de Paula, da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), entidade religiosa com sede em Brasília.

Quando o secretário de Pazuello chegou, havia cerca de dez pessoas numa sala anexa ao seu gabinete, incluindo funcionários do Ministério e o presidente da Beep, Vander Corteze. 

Mas a pauta da Davati tomou a maior parte dos 15 a 20 minutos reservados para os visitantes. Segundo um executivo destacado pela Beep para dar informações a esta reportagem, o presidente da empresa ficou atrás do grupo, no fundo da sala, enquanto Dominghetti, Carvalho e o reverendo Amilton Gomes de Paula falavam da proposta das 400 milhões de doses de AstraZeneca – que havia começado a ser discutida a um preço de US$ 3,50, mas já  estava cotada a US$ 17,50 por dose. 

"Alguns dias antes da minha audiência eu tive um contato com a Davati e eles comentaram sobre uma proposta de vacinas que haviam feito à secretaria-executiva. E que o assunto estava lá. Como essas vacinas também poderiam ser oferecidas ao setor privado, eu entendi que eles também poderiam participar dessa audiência"

Àquela altura, Dominghetti já tinha feito a oferta ao diretor de logística do ministério, Roberto Dias, que segundo afirmou à CPI pediu propina de US$ 1 por vacina. O pedido teria sido feito no dia 25 de fevereiro, num shopping de Brasília. Dias nega. 

Depois disso, os representantes da Davati se encontraram com o secretário de Vigilância em Saúde, Laurício Monteiro, na tentativa de fazer a venda se concretizar. Mas o secretário disse que cabia ao 02 do ministério decidir sobre compra de vacinas. 

No dia 11 de março, o reverendo Amilton enviou email ao sócio da Davati nos Estados Unidos, Herman Cardenas, avisando da reunião.

Esses emails foram exibidos pelo Jornal Nacional, da TV Globo, no sábado (3). Neles, o reverendo diz que o encontro do dia 12 seria para "tratar de questões relacionadas à aquisição de vacinas da Astrazeneca via Davati, fortalecendo assim a confiabilidade dos laços para futuras aquisições”. Diz, ainda, que a reunião era importante para validar a proposta de preço.

À CPI, Dominghetti que, ao chegar ao ministério, percebeu que Elcio Franco não sabia nada da proposta. "O que nos espantou o Sr. Coronel Elcio Franco não ter conhecimento dessa proposta", afirmou. "Então, ela foi novamente validada."

Depois do encontro, os representantes da Davati, o da Beep e os membros do Instituto Brasil foram almoçar na casa de uma amiga do grupo. Não havia restaurantes abertos, porque a capital federal estava em lockdown. 

Os emails em poder da CPI informam ainda que o reverendo esperava assinar o contrato no próprioa dia 12, mas isso não aconteceu nem naquele dia, nem depois. A Davati afirma oficialmente que não recebeu mais nenhum contato do ministério. Tampouco há provas de que os representantes da Davati tivessem mesmo 400 milhões de doses de AstraZeneca para vender. A farmacêutica afirma que a Davati não tinha procuração para representá-la. 

O coronel Helcio Almeida – que, em seus perfis, se apresenta como especialista em geopolítica e segurança – diz que só levou os negociadores de vacina ao ministério porque checou "com os Estados Unidos" e confirmou que "eram idôneos". Perguntei com quem nos Estados Unidos ele conferiu a informação. Resposta: com interlocutores da própria Davati.  

"Meu assunto não tem nada a ver com vacina. Somos inclusive a favor do tratamento preventivo. Eu fiquei seguro porque a informação que eu recebi foi de uma pessoa idônea dos Estados Unidos, um consultor da Davati. Eu conferi as informações que eu tinha no momento. Estava absolutamente tranquilo de que não havia nenhum problema nessa relação", disse o coronel.  

Há divergências entre o relato feito pelo representante da Davati à CPI e as informações que o coronel Helcio deu à coluna. O coronel afirma que foi procurado pela Davati dois dias antes da reunião no ministério, e só então se ofereceu para levá-los ao encontro. 

Mas, a senadores da CPI, os representantes da Davati afirmaram ter recebido um contato de Helcio no final de janeiro, junto com o reverendo Amilton, se oferecendo para facilitar o acesso do grupo ao Ministério da Saúde.

O executivo indicado pela Beep para prestar informações também afirmou que Helcio foi indicado por pessoas do mercado de laboratórios que o descreveram como alguém que abria portas no governo. 

"As portas já estavam abertas, porque já tinha uma audiência marcada", diz Helcio Almeida. De fato, estavam. Mas a conversa não evoluiu.

Segundo Dominghetti, "houve uma troca de olhares, ele  (Elcio) abaixou a cabeça, simplesmente saiu e pediu para que dois estagiários pegassem os nossos nomes, que entrariam em contato, que ele ia validar a proposta da Davati."

Apesar de ter feito a intermediação da reunião, o coronel Helcio Almeida diz que não há relação comercial entre ele e a Davati. Segundo ele, o único objetivo era ajudar o ministério a conseguir vacinas.  "Eu fiz o que pude, por altruísmo, naquele momento."

Além do contato próximo com os militares, o coronel Helcio Almeida tinha como cartão de visitas o próprio Instituto Força Brasil.

Segundo o coronel, embora tenha sido formada só em setembro do ano passado, a  entidade vinha sendo planejada junto  com Otavio Fakhoury e outros sócios desde 2018, quando se juntaram para militar a favor de Jair Bolsonaro. 

Seu primeiro projeto era desenvolver um aplicativo "de teleconsulta e diagnóstico imediato pelo médico" para oferecer "tratamento preventivo" aos primeiros sintomas de Covid.

Algo semelhante ao TrateCov, que foi depois criado pelo Ministério da Saúde. Assim como no caso das vacinas, não foi adiante. 

Malu Gaspar para O GLOBO, em 07/07/2021 • 04:30

PM discutiu "esquema" na Saúde bem antes de suposto pedido de propina

Mensagens do celular do PM Luiz Paulo Dominguetti mostram que ele já falava sobre superfaturamento no ministério semanas antes de suposta cobrança de propina sobre doses de vacina denunciada à CPI da Pandemia.


Celular de Dominguetti foi apreendido durante seu depoimento à CPI da Pandemia

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, policial militar que também atuava como representante da empresa Davati Medical Supply e denunciou a cobrança de propina no Ministério da Saúde para a compra de vacinas, já falava sobre superfaturamento dentro da pasta semanas antes do suposto pedido de suborno, indicam mensagens de seu celular divulgadas nesta terça-feira (06/07) pelo Jornal Nacional.

Dominguetti disse em entrevista publicada em 29 de junho pelo jornal Folha de S.Paulo que Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística do Ministério da Saúde, cobrou propina de 1 dólar por dose para que a pasta fechasse a compra de 400 milhões de doses da vacina contra covid-19 produzida pela AstraZeneca. Dias foi exonerado do cargo no mesmo dia. 

Em depoimento à CPI em 1º de julho, Dominguetti repetiu a versão relatada à Folha e disse ter se reunido em 25 de fevereiro, em um restaurante de Brasília, com Dias e o tenente-coronel da reserva Marcelo Blanco, que então era assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. Ali, Dias teria feito o pedido de propina.

Nas mensagens agora divulgadas pelo Jornal Nacional, trocadas no início de fevereiro, Dominguetti conversa com um contato identificado como coronel Romualdo, que já havia sido citado por ele à CPI, sobre um suposto esquema de superfaturamento.

Em 8 de fevereiro, Romualdo escreve a Dominguetti ser "importante ver quem está nesse esquema lá no MS" e afirma que "para a coisa chegar no presidente... tem que ter informação correta", sem especificar se se referia ao presidente Jair Bolsonaro.

Aparentemente abordando o mesmo assunto, Dominguetti envia então uma imagem de outra mensagem ao coronel e escreve: "Cmt absurdo!". "Queriam que eu superfaturado o valor da vacina para 35 dólares". "Falei que ninguém fazia". Ao que Romualdo responde: "Absurdo".

Romualdo escreve então que Dominguetti tinha lhe falado sobre "um Dias no MS" e envia um link de uma reportagem perguntando se se tratava da pessoa citada no texto.

Junto com uma foto de Roberto Dias, Dominguetti responde: "Se for este, matou a charada". "Ele quem assina as compras e contratos no ministério".

Elementos suspeitos

A CPI da Pandemia removeu nesta terça-feira o sigilo das mensagens de celular de Dominguetti. O aparelho havia sido apreendido para perícia durante o depoimento à comissão no Senado.

Desde o início, a história contada pelo PM tem elementos suspeitos. A Davati, sediada nos Estados Unidos, foi formada em 2020 e tem apenas três funcionários. A AstraZeneca declarou que não negocia vacinas com entes privados, negou ter trabalhado com a Davati e afirmou que todas as vendas no Brasil foram tratadas com a Fiocruz.

Segundo informações reveladas pela Folha e pela TV Globo, no mesmo período em que Dominguetti trocou mensagens com o coronel Romualdo, Dias procurou Cristiano Carvalho, representante oficial da Davati no Brasil. Os contatos sobre a venda de doses de vacina entre os representantes do Ministério da Saúde e da empresa americana teriam começado em 3 de fevereiro.

Também é alvo da CPI uma mensagem enviada por Dominguetti ao coronel Blanco em 8 de março, em que o PM escreve: "Vamos depositar US$ 1 milhão agora". Não está claro se o valor foi de fato depósito, para quem e por quê.

Em outras mensagens do celular de Dominguetti às quais a Folha teve acesso, o PM conversa com o coronel Blanco e com Carvalho, representante  da Davati. Segundo o jornal, as conversas indicam que os três mantiveram expectativas de fechar contrato com o Ministério da Saúde até meados de março, ou seja, semanas depois do suposto pedido de propina por Dias.

A CPI da Pandemia ouvirá Dias nesta quarta-feira. A comissão também já aprovou a convocação de Blanco, que falará aos senadores em data a ser agendada.

Deutsche Welle Brasil, em 07.07.2021

Uma reforma eleitoral desastrada

O ‘distritão’ enfraquece a democracia representativa ao desvalorizar os partidos

A democracia exige eleições periódicas. A cada quatro anos, o eleitor escolhe quem serão seus representantes no Executivo e no Legislativo, nas três esferas da Federação. No Brasil, o Congresso inventou uma outra modalidade de evento recorrente, atrelado às eleições: a reforma eleitoral rotineiramente realizada a cada dois anos. Não tem ano prévio às eleições em que o Congresso não aprove uma reforma eleitoral.

Essa contínua revisão das regras eleitorais é, por si só, disfuncional. No entanto, neste ano, a reforma eleitoral discutida no Congresso não apenas desrespeita a estabilidade mínima de que a lei deve dispor, como tem levantado uma série de propostas que são verdadeiros desastres.

Uma dessas medidas prejudiciais é a criação do chamado “distritão”, sistema de eleição majoritária, em grandes circunscrições, para o Legislativo. Hoje, os deputados são eleitos pelo sistema proporcional, no qual o preenchimento das vagas é definido de acordo com o número de votos para cada partido e o quociente eleitoral. No “distritão”, são eleitos os candidatos com o maior número de votos em cada Estado, sem levar em conta os votos que cada legenda recebeu.

A eleição majoritária em grandes circunscrições para o Legislativo favorece candidatos já conhecidos, como personalidades artísticas, lideranças religiosas e caciques políticos. Além de tornar mais difícil a renovação política, a proposta enfraquece a democracia representativa, desvalorizando os partidos. Com o “distritão”, os eleitos representam apenas a si mesmos.

A proposta é tão prejudicial para a qualidade da representação política que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, tem alertado para as suas consequências danosas. “O ‘distritão’ não barateia as campanhas, talvez encareça. Ele enfraquece os partidos e será dramático para a representação das minorias”, disse o presidente do TSE, em recente debate do Senado.

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) lembrou que o “distritão” aumenta a fragmentação partidária das Casas Legislativas, o que é também um evidente retrocesso. Nos últimos anos, o objetivo foi precisamente implementar medidas, como a cláusula de barreira, para reduzir o número de legendas no Legislativo, de modo a melhorar a representação política e a governabilidade.

Com o atual número de partidos – e que tenderia a aumentar com a implementação do “distritão” –, há um incentivo para o toma lá dá cá. Simplesmente, não tem cabimento o Congresso aprovar mudanças que favoreçam, em alguma medida, o uso da política como balcão de negócios.

Além do “distritão”, o Congresso debate, no âmbito da reforma eleitoral, uma possível volta das coligações partidárias nas eleições proporcionais, proibidas pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017.

Aplicada pela primeira vez nas eleições municipais de 2020, a restrição de coligações é importante proteção do voto. Antes, o voto em determinado candidato podia eleger outro candidato, de outro partido, em razão de um acordo entre as legendas. Não faz sentido retirar a proibição das coligações antes de sua aplicação nas esferas federal e estadual.

Também houve a tentativa, por parte de alguns parlamentares, de viabilizar a volta das doações de pessoas jurídicas a candidatos e partidos políticos. Além de ser um desrespeito com a Constituição e com a lisura do sistema político-eleitoral, a manobra é outro grave retrocesso, do ponto de vista das negociatas político-partidárias.

Além disso, a Câmara pôs para tramitar, em regime de urgência, um projeto de lei, apresentado em 2015 no Senado, que tenta burlar a cláusula de barreira. O Projeto de Lei (PL) 2.522/15 possibilita que dois ou mais partidos se reúnam em uma federação.

Com uma taxa inédita de renovação das cadeiras, a atual legislatura foi eleita com o objetivo explícito de renovar as práticas políticas. Seria uma burla com o eleitor que este Congresso, em vez de melhorar a legislação, aprovasse medidas que fortalecem os feudos políticos e distorcem a representação.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07 de julho de 2021 | 03h00

A estreita visão do governo

O bem-estar da população passa ao largo do rol de preocupações do presidente da República. Jair Bolsonaro só tem olhos para a eleição de 2022.

O presidente Jair Bolsonaro editou medida provisória no início desta semana prorrogando o pagamento do auxílio emergencial por três meses. Cerca de 39 milhões de brasileiros receberão entre R$ 150 e R$ 375 até outubro. A nova rodada de pagamentos, portanto, segue os moldes da anterior, tanto em valores como em público-alvo.

Com o País ainda devastado pelos efeitos da pandemia de covid-19, prorrogar o auxílio emergencial era o mínimo a fazer, até mesmo por imposição humanitária. A taxa de desemprego beira os 15%, a inflação acima do teto da meta corrói a renda dos que ainda a têm e o espectro da fome ronda os lares de milhões de brasileiros. O grande problema é que Bolsonaro é um presidente do tipo que se contenta com o mínimo a fazer, especialmente quando este mínimo é o que ele precisa para tentar estancar a vertiginosa queda de sua popularidade.

A esta altura, já está claro para a maioria dos brasileiros – como pesquisas de opinião sobre o governo podem atestar – que o bem-estar da população passa ao largo do rol de preocupações do presidente da República. Bolsonaro só tem olhos para a eleição de 2022. Neste sentido, prorrogar o auxílio emergencial não se pauta por outra coisa que não o mero cálculo eleitoral. Caso estivesse genuinamente preocupado com a situação periclitante de milhões de brasileiros, Bolsonaro teria dedicado tempo e energia para melhor formular e implementar seu plano de transferência de renda, uma reformulação do programa Bolsa Família que o governo pretende chamar de Renda Brasil.

“Estamos prorrogando o auxílio emergencial por mais três meses enquanto acertamos o valor do novo Bolsa Família para o ano que vem”, disse o presidente durante breve cerimônia em seu gabinete. Por sua vez, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a prometer o lançamento do Renda Brasil ainda neste ano. Já o ministro da Cidadania, João Roma, afirmou que o programa será lançado em novembro próximo. Bolsonaro fala em 2022, Guedes é impreciso e Roma promete o Renda Brasil para daqui a cinco meses. Uma conversa entre os três poderia resolver ao menos o problema de comunicação.

A prorrogação do auxílio emergencial, repita-se, era o certo a fazer. Mais certo, porém, teria sido o governo compreender, ainda em 2020, o sentido da palavra “emergencial” e ter planejado a transição para o novo Bolsa Família, reformulado. Não o fez porque só planeja quem tem um plano a executar. A ausência de um programa de governo claro e exequível é um vício fundamental deste governo. Igualmente, a visão estreita. Basta lembrar que o ministro da Economia, não faz muito tempo, falou em “surpresa” pela irrupção da segunda onda de covid-19 no País, ainda mais mortal do que a primeira. Não foram poucos os epidemiologistas que alertaram para este risco.

Um programa de transferência de renda, seja como for chamado, é imperativo em um país tão desigual como o Brasil. Mas não deve ser um fim em si mesmo. É dever do governo planejar uma política econômica que propicie as condições para o crescimento da atividade, este, sim, capaz de mudar a vida das pessoas de forma consistente. A política econômica há de vir acompanhada por uma política de educação igualmente bem elaborada e implementada. No Brasil sob Jair Bolsonaro, não há uma coisa nem outra.

Ao presidente, ao que parece, interessa mais lançar mão de políticas pontuais de claro viés eleiçoeiro do que atacar os problemas que pairam sobre sua mesa de trabalho com mais responsabilidade. Bolsonaro não mobilizou seu governo para mudar profundamente a realidade que submete milhões de seus concidadãos à pobreza, ao desemprego e à fome. Agora, acossado que está por graves denúncias de corrupção na aquisição de vacinas, pela acusação da prática de “rachadinhas” e, como se não bastasse, pelos achados de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem lançado luz sobre o descalabro que é a resposta federal à crise sanitária, tenta de qualquer forma se manter de pé do ponto de vista eleitoral, dado que a atual conjuntura política lhe é flagrantemente desfavorável.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07 de julho de 2021 | 03h00

Desconhecidas no mercado, empresas que negociaram vacinas ampliam negócios no governo Bolsonaro

Belcher Farmacêutica e Precisa Medicamentos são alvo da CPI por suspeita de irregularidades nas negociações de imunizantes contra a covid


Precisa Medicamentos tem sede em Barueri; empresa negociou Covaxin com associação de clínicas privadas e também com o governo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Desconhecidas no mercado farmacêutico até poucas semanas atrás, as empresas Precisa Medicamentos e Belcher Farmacêutica têm em comum mais do que as suspeitas de irregularidades nas negociações de vacinas com o governo federal. Alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, ambas têm ligações com o deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), líder do governo na Câmara, e conquistaram uma série de contratos na gestão de Jair Bolsonaro em processos sem licitação.

Como revelou o Estadão, os valores dos negócios da Precisa com o governo aumentaram 6.000% após Bolsonaro assumir. No caso da Belcher, que negociou a vacina chinesa Convidencia com o Ministério da Saúde, mas não chegou a fechar um acordo, foram 12 diferentes contratos a partir de 2020. Antes disso, a farmacêutica nunca havia sido contratada pela administração federal.

Com sede em Maringá, a Belcher abriu negociação com o Ministério da Saúde para vender doses de vacinas em nome do laboratório chinês CanSino, mas no mês passado os chineses romperam a parceria sem explicar o motivo. Antes disso, a empresa paranaense já havia recebido R$ 653 mil de recursos federais, relativos a vendas de produtos médico-hospitalares relacionadas à covid-19, como máscaras cirúrgicas, luvas e termômetros. Conforme dados que constam no Portal da Transparência, os contratos da Belcher foram feitos para fornecimento de materiais para uma série de ministérios, como o da Defesa e da Economia. Embora tenha sido fundada em 2011, esta foi a primeira vez que a empresa negociou com a administração federal.

Por trás da Belcher está Daniel Moleirinho Feio Ribeiro, sócio da empresa, filho de Francisco Feio Ribeiro, um ex-secretário de Ricardo Barros na época em que ele era prefeito de Maringá. Outra ligação é o advogado Flávio Pansieri, que defende o parlamentar em ações na Justiça e, ao mesmo tempo, se apresentou como representante da empresa paranaense na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), como mostrou o jornal Folha de S. Paulo. Em nota, a empresa negou qualquer “interferência ou relação do deputado, de qualquer outro parlamentar, autoridade ou terceiro” nos negócios.

Questionado, porém, Barros admite que conhece os donos da Belcher e afirma que faz parte de sua posição no governo ter relações com empresas desse setor. “Na condição de ex-ministro da Saúde e coordenador da Frente Parlamentar da Indústria Pública de Medicamentos sou procurado por muitos parceiros do SUS e coopero naquilo que está ao meu alcance em todos os temas da Saúde. Em relação à pandemia da covid o objetivo maior é que todos os brasileiros possam ser imunizados e tratados o quanto antes. É minha obrigação como parlamentar”, afirmou. Ele também diz não ver qualquer impedimento de seu advogado atuar como representante da empresa.

Quando abriu negociações para vender vacinas ao Ministério da Saúde, em junho deste ano, a Belcher já havia sido alvo da operação “Falso Negativo”, sob suspeita de fazer parte de um esquema que superfaturou testes de coronavírus adquiridos pelo governo do Distrito Federal. A investigação aponta conluio entre empresas para oferecer produtos com preços mais altos.

A farmacêutica de Maringá virou alvo da CPI após tentar vender vacinas a um preço mais alto do que todos os outros imunizantes já comprados até agora pelo governo federal. No caso da vacina Convidencia, a dose foi oferecida a US$ 17, valor acima do imunizante indiano Covaxin, o mais caro até agora adquirido pelo Ministério da Saúde (US$15).

No caso da Covaxin, cuja compra foi intermediada pela Precisa, o contrato se tornou alvo de investigações após um servidor da pasta apontar suspeitas de corrupção no processo de contratação.

Diferentemente da Belcher, o contrato com a Precisa foi assinado em fevereiro deste ano e prevê a compra de 20 milhões de doses a R$ 1,6 bilhão. O sócio da empresa é um velho conhecido do Ministério da Saúde, o empresário Francisco Maximiano. Em 2017, uma compra de medicamentos de alto custo contra doenças raras da Global Gestão em Saúde, outra empresa de Maximiano, virou alvo do Ministério Público Federal, que denunciou a firma por participação em um esquema de desvio de recursos públicos. Na ocasião, o Ministério da Saúde pagou R$ 19,9 milhões antecipadamente pelos remédios, que nunca foram entregues. O ministro na época era Ricardo Barros, que é réu no processo por improbidade administrativa.

Relação com empresários

A negociação da Belcher com o Ministério da Saúde envolveu 60 milhões de doses, com um valor total de R$ 5 bilhões. A parceria com a farmacêutica, contudo, foi cancelada unilateralmente pelo laboratório chinês. A CanSino informou à Anvisa, por meio de um comunicado, que nem a Belcher ou o Instituto Vital (com o qual atuava em conjunto na negociação) tinham mais autorização para representar o laboratório chinês no Brasil. Procurada para esclarecer a razão do fim do contrato, a CanSino não retornou aos pedidos de entrevista.

As relações da Belcher com o bolsonarismo vão além de Barros. O sócio de Moleirinho é Emanuel Catori, que ocupa o cargo de presidente da empresa e que apareceu ao lado de empresários próximos de Bolsonaro que defenderam a compra da vacina chinesa, caso de Carlos Wizard. Outro empresário que defendeu a aprovação da Convidencia pela Anvisa foi Luciano Hang, dono da varejista catarinense Havan, ferrenho defensor do presidente, desde a época da campanha de 2018.

Um grupo de empresários, liderado por Wizard e Hang, foi o responsável pelo pedido de autorização de uso no Brasil desse imunizante chinês. Catori chegou a participar de uma “live” ao lado dos empresários, quando defendeu a vacinação pelo setor privado para “agilizar o processo de vacinação em massa para que tudo volte à normalidade o mais rápido possível”. Procurados, Wizard e Hang não responderam.

Davati

Uma terceira negociação de vacinas que entrou no foco da CPI envolve outra empresa sem tradição no ramo. A americana Davati Medical Supply virou alvo dos senadores após denúncia feita pelo cabo da Polícia Militar Luiz Paulo Dominghetti de que recebeu pedido de propina para vender 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca com o Ministério da Saúde. Ele não apresentou qualquer prova do que disse.

Embora não reconheça o policial como representante, a empresa admite que a oferta existiu, mas não foi para frente. A AstraZeneca, por sua vez, nega que a Davati tenha autorização para vender doses da sua vacina.

Em seu site, a Davati não disponibiliza a vacina da AstraZeneca em seu portfólio, mas sim outros medicamentos como o antiviral Remdesivir, recentemente aprovado como medicamento para uso em pacientes com covid-19.

Em março de 2021, a Davati foi questionada pelo Better Business Bureau (BBB), uma sólida organização que atua nos Estados Unidos e no Canadá na promoção da transparência de informações de empresas e da confiança de mercado. Após consulta à Texas Secretary of State, o BBB contestou as alegações da Davati, de que a empresa mantém parcerias formais com farmacêuticas. Segundo registros obtidos pelo BBB, a Davati foi criada em 2013 e não há 22 anos, como divulga.

No momento, a Davati está sendo investigada pelos governos do Canadá e dos Estados Unidos por ter oferecido vacinas em nome da AstraZeneca, permissão que nunca teria sido concedida pela fabricante. No Brasil, também fez propostas a prefeituras, mas não há registros de que tenha fechado qualquer negócio.

Procurada, a empresa não respondeu aos contatos da reportagem.

Fernanda Guimarães e Victor Faria, especial para o O Estado de S.Paulo, em 07 de julho de 2021 | 05h00

Documentos mostram que cloroquina virou jogo de empurra entre Defesa e Saúde após pressão de CPI

Quem mandou o Exército produzir o medicamento, ineficaz para covid-19 e obsessão de Bolsonaro, para distribuir à rede pública? Oficialmente, ninguém, segundo respostas das pastas aos senadores da comissão que investiga o Governo

Laboratório do Exército (LQFEx) ampliou a produção de cloroquina na pandemia. (LQFEX / REPRODUÇÃO)

Quem mandou o Exército produzir cloroquina para distribuir à rede pública? Oficialmente, ninguém, segundo respostas dos ministérios da Saúde e da Defesa encaminhadas à CPI da Pandemia. As pastas se contradizem sobre a responsabilidade no aumento da produção do medicamento utilizado contra à malária e sem eficácia comprovada contra a covid-19 e que, mesmo assim, se tornou a principal estratégia do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia. A crise de responsabilidade coloca o Governo em nova saia justa, num momento em que o presidente é acusado de contar com um gabinete paralelo de gestão da pandemia e vê seu comando na Saúde acossado por denúncias de corrupção.

O Ministério da Saúde disse à CPI que a ordem não partiu de lá. “Informamos que não houve envio, por parte do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), de nenhum ofício ao Ministério da Defesa solicitando a produção de cloroquina e hidroxicloroquina.” A pasta esclarece ainda que a hidroxicloroquina distribuída pelo Governo é fruto de uma doação recebida do Governo norte-americano “para ser utilizada como medida adicional ao enfrentamento da pandemia”. A responsabilidade seria do Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx), que desde janeiro de 2000 tem permissão para produzir a cloroquina junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e teria se colocado “à disposição” para distribuir às Secretarias de Saúde de Estados e municípios a cloroquina 150 mg.

Essa versão dos fatos foi corroborada em entrevista dada ao EL PAÍS pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. “Jamais o Ministério da Saúde solicitou ao Exército produção para atender o que estava no kit ilusão, que era jogar esse medicamento para a atenção primária. O Exército na época nos informou que tinha em estoque X comprimidos. Falamos: pode mandar para o Ministério da Saúde para gente atravessar esse período. Eu nunca fiz agenda com o Exército para aumento da produção”, disse o ex-ministro.

O Ministério da Defesa, por outro lado, afirmou que atendeu “à orientação e à demanda do Ministério da Saúde para a produção de cloroquina” no Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. Ofício da pasta enviado à CPI e assinado pelo atual ministro Walter Braga Netto acrescenta ainda que o laboratório não realiza “por não ser sua missão, qualquer juízo de valor de eficácia de medicamentos”, tampouco da prescrição médica. A Defesa vem repetindo essa narrativa desde o começo da crise sanitária. Em maio de 2020, ao ser questionado pela reportagem do EL PAÍS sobre a produção da cloroquina, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que o Laboratório do Exército “recebe demandas do Ministério da Saúde, por meio de Termos de Execução Descentralizada”. E que “nestes casos, após produzido o medicamento, o mesmo é distribuído às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Estoque Regulador, conforme pauta definida pelo próprio demandante (Ministério da Saúde)”. Por fim, informou também que a destinação do material produzido caberia ao Ministério da Defesa, “conforme orientação do Ministério da Saúde”.

Quando Bolsonaro anunciou que ampliaria a produção de cloroquina em 21 de março de 2020, mencionou estudos sobre o medicamento para a covid-19 iniciados pelo Hospital Israelita Albert Einstein, mas não fez qualquer menção ao Ministério da Saúde ou ao seu então ministro, Mandetta. 

“Agora há pouco me reuni com o senhor ministro da Defesa [na época, Fernando Azevedo e Silva] onde decidimos que o laboratório Químico e Farmacêutico do Exército deve imediatamente ampliar a sua produção deste medicamento”, disse o presidente em uma postagem nas redes sociais. 

O LQFEx aumentou a sua produção logo depois, a partir de 23 de março. Em abril, um texto no site do Exército afirmava que o medicamento usado contra malária, artrite e lúpus estava em falta nas farmácias em virtude da divulgação do seu uso contra o coronavírus. 

A ordem do presidente não parece ter sido formalizada pelos órgãos competentes, o que alimenta as suspeitas de que havia um funcionamento paralelo ao controle do Estado das questões da pandemia. 

Perguntamos aos ministérios da Saúde e Defesa sobre quem é o responsável pelo aumento da produção de cloroquina, mas, até a publicação desta reportagem, não tivemos resposta.

A cadeia de distribuição

Antes da crise da covid-19, o laboratório militar produzia um lote de 250.000 comprimidos a cada dois anos, “sendo esta demanda exclusiva do Exército Brasileiro, para o combate à malária”. À CPI, o Ministério da Defesa informou que as entregas do medicamento pelo LQFEX ocorreram diretamente às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, totalizando 2.463.200 comprimidos de cloroquina 150mg. Ao todo, o Governo distribuiu 5.416.510 comprimidos, sendo 2.953.310 do estoque do Ministério da Saúde. Acrescentou ainda que a “entrega da produção, demandada pelo Ministério da Saúde, foi atendida por intermédio das pautas encaminhadas pelos Ofícios números 150, 167 e 254/2020/CGAFME/DAF/SCTIE/MS, anexos”. Estes documentos, porém, não fazem alusão a qualquer pedido de produção embora orientem como distribuir os medicamentos tendo em vista informações de pronta entrega e de aumento da produção pelo laboratório do Exército durante a pandemia.

Os próprios documentos enviados pelo Ministério da Defesa à CPI da Pandemia contradizem o que afirma o atual titular da pasta, Walter Braga Netto, no ofício enviado aos senadores e o que declarou o próprio presidente Jair Bolsonaro no vídeo divulgado por ele em 21 de março do ano passado. Os papéis enviados à CPI mostram que um dia antes do anúncio do presidente ocorreu a primeira dispensa de licitação para a compra da matéria prima (o IFA) necessária para a produção do medicamento. Três dias depois, foram empenhados recursos para o pagamento. Mas a nota do Ministério da Saúde com orientações para o uso compassivo (quando não há outro recurso terapêutico para os pacientes graves em ambiente hospitalar) da cloroquina em casos graves de covid-19 ―alegada pela Defesa como motivo para o aumento da produção― só foi publicada no dia 27 de março.

CPI ouve nesta quarta feira o ex-Diretor do Ministério acusado de pedir propina 

Nesta terça-feira, a CPI da Pandemia ouviu o depoimento da servidora Regina Célia Silva Oliveira, fiscal do contrato do Ministério da Saúde com a Bharat Biotech para fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin. Em um depoimento bastante técnico, a servidora afirmou que nunca foi nomeada para cargos por razões políticas e que não conhece o líder do Governo na Câmara Ricardo Barros, apesar de, segundo informações trazidas por alguns senadores, ter sido nomeada por ele. Oliveira disse ainda que não viu nada “atípico” no contrato, investigado pelo Ministério Público Federal e que gera cobranças do TCU (Tribunal de Contas da União). Nesta quarta, a CPI da Pandemia ouve Roberto Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde exonerado após denúncia de cobrança de propina na negociação com a empresa Davati.

BEATRIZ JUCÁ, MARINA ROSSI e REGIANE OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em 06 JUL 2021 - 22:09 BRT

‘Pirata da vacina’ que negociou com ministério, Davati montou esquema para lucrar com prefeituras de Minas

EL PAÍS reconstrói passos da empresa que, com ‘kit prefeituras’ composto por documentos toscos, obteve autorização de municípios mineiros para negociar imunizantes em seu nome. Eles ofereciam doses da Janssen, sem a chancela da farmacêutica

Davati oferecia vacinas da Janssen sem ter vínculo com a farmacêutica.(SANDER KONING / EFE)

Isaías Nunes é um vendedor autônomo com experiência em comércio exterior. Ele vende praticamente qualquer coisa que dê lucro, inclusive material hospitalar, mas sua especialidade, hoje, é um triciclo elétrico com pintura que imita o uniforme do Homem Aranha conhecido como drift car. Foi com este currículo que Nunes mobilizou dezenas de prefeituras no interior de Minas Gerais prometendo milhares de doses da vacina Janssen em nome da Davati Medical Supply, empresa que negociou imunizantes com o Ministério da Saúde e cujo representante diz ter ouvido proposta de propina de um diretor da pasta.

Quem é quem no depoimento de Dominguetti e perguntas sem resposta na suspeita de propina na Saúde

A prefeitura da pequena Borda da Mata, com 20.000 habitantes e a 350 km de Belo Horizonte, chegou a autorizar a Davati a negociar em seu nome a compra de entre 15.000 e 200 milhões de doses da Janssen que poderiam ser revendidas a municípios de outros Estados e até outros países da América do Sul. Detalhe: embora assinada pelo prefeito, a carta autorizava a negociação em nome do Ministério da Saúde.

“Nunca vendi vacina. Vendo brinquedos, drift car. Este é o meu negócio. Tudo o que aparece a gente vai vendendo”, explicou Nunes.

Documentos, diálogos e trocas de mensagens aos quais o EL PAÍS teve acesso mostram como a Davati, com um esquema tosco e falsificações grosseiras, arregimentou um batalhão de pessoas sem qualquer intimidade com a área da saúde, mas com algum trânsito junto a pequenas prefeituras, para se aproveitar da ansiedade gerada pela falta de vacinas e tentar obter lucro fácil no momento mais grave da pandemia da covid-19 no Brasil.

A Davati está na mira da CPI da Pandemia depois que um representante dela, o PM Luiz Paulo Dominguetti Pereira, afirmou à Folha de S. Paulo ter ouvido uma exigência de pagamento de propina do então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, enquanto negiociava a venda de imunizantes da AstraZeneca. Exonerado em meio meio ao escândalo, Dias nega ter feito a proposta e deve depor nesta quarta ao senadores. Seja como for, documentos do ministério mostram que a negociação com a Davati, que contou com o apoio de uma ONG religiosa e de um deputado bolsonarista, foi, sim, levada a sério na pasta apesar de ser autorizada pela farmacêutica.

“O que eu não entendo é como o Governo federal não percebeu que este esquema tinha alguma coisa de errado a ponto de negociarem 400 milhões de doses com pessoas desqualificadas. A gente percebeu logo que era um golpe. Não é possível o presidente [Jair] Bolsonaro continuar em silêncio”, disse o ex-sindicalista Wagner Cinchetto, um dos envolvidos na negociação com as prefeituras mineiras.

Cinchetto é um velho conhecido de quem acompanha os escândalos da política nacional. Duas décadas atrás ele integrou o bunker montado pela pré-campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva para produzir dossiês contra adversários. Depois passou a denunciar corrupção no meio sindical, contribuiu na apuração de irregularidades na emissão de cartas sindicais durante os Governos do PT, investigados na Operação Registro Espúrio, da Polícia Federal, e em 2018 se aproximou de Bolsonaro. Nunca trabalhou na área da saúde, mas foi cooptado pela Davati por ter bom trânsito em algumas prefeituras do Sul de Minas. Ele diz que foi apresentado a Isaías Nunes por um amigo em comum, Antonio Olimpio, que mora em Montes Claros, Norte de Minas.

No primeiro momento o objetivo era negociar testes de covid-19 e material hospitalar, mas a ideia logo evoluiu para as vacinas, mediante uma comissão que seria adicionada ao custo dos imunizantes. Além dele, um outro homem, identificado apenas como Bruno, também passou a integrar o grupo que oferecia a vacina aos municípios. No final de fevereiro Cinchetto e Nunes combinaram um encontro na divisa entre Minas Gerais e São Paulo para acertar detalhes. O período coincide com as negociações da Medida Provisória aprovada pelo Senado e a autorização dada pelo Superior Tribunal Federal (STF) para que prefeituras e governos estaduais também pudessem comprar os imunizantes e precedia o início da segunda onda da covid-19 no país. Antes o monopólio era do Ministério da Saúde.

Isaías Nunes chegou ao encontro em uma Harley Davidson e, segundo Cinchetto, se apresentou como representante de Cristiano Carvalho, homem que fala oficialmente em nome da norte-americana Davati no Brasil. “Minha moto foi até multada na estrada”, lembra o vendedor. Para convencer os prefeitos de que o negócio, apesar de todas as evidências, era legal, Nunes encaminhou aos parceiros cópias de “documentos”, segundo eles repassadas por Carvalho, que compunham uma espécie de “kit prefeituras”.

Compunham o kit uma carta em inglês na qual a Davati apresentava Carvalho como seu representante no Brasil; cópias de textos publicados no site do CDC (Centers for Disease Control and Prevention, a agência de saúde dos EUA) e da Johnson & Johnson, fabricante da Janssen, sobre aspectos técnicos da vacina; uma carta da Frente Nacional de Prefeitos falando sobre a autorização de aquisição pelas prefeituras e a montagem grosseira de uma “credencial” da farmacêutica que apresenta a Davati como “facilitator” (intermediária) da empresa no Brasil. No panfleto intitulado “como adquirir!”, ilustrado com imagens da Janssen, a Davati dizia que “o fator tempo hoje é crucial” e “desejamos que nosso modus operandi seja dinâmico”. Além disso, segundo uma das mensagens, Cristiano Carvalho alegava estar em negociação com grandes prefeituras como a de São Paulo ―”a maior da América Latina”― e prometia entregar as doses 72 horas depois da compra.

A Janssen, por meio de sua assessoria, negou qualquer relação com a Davati. “A Janssen não tem nenhuma relação contratual ou de representação com a empresa Davati Medical Supply. Reiteramos que as negociações para o fornecimento da vacina desenvolvida pela Janssen contra a covid-19 estão sendo efetuadas somente e diretamente pela liderança da empresa no Brasil e exclusivamente com o Ministério da Saúde. Nenhuma pessoa física ou empresa está autorizada a negociar em nome da Janssen com nenhum ente público ou privado, seja direta ou indiretamente.” O secretário municipal de Saúde de São Paulo, Edson Aparecido, também negou que a prefeitura tenha conversado com a Davati. “Fizemos conversas com os CEOS da Jhonson & Jhonson. Acha que aceitaríamos isso? Esses caras são golpistas”, disse ele.

Segundo Cinchetto, cerca de dez prefeituras assinaram cartas de intenção de compra. Escritas em inglês, as minutas eram enviadas pela Davati. Como alguns prefeitos não dominam o idioma estrangeiro, acabaram assinando os documentos sem saber qual era o conteúdo. Isso explica o fato de Borda da Mata ter autorizado a Davati a comprar 15.000 doses, ampliáveis para até 200 milhões (o suficiente para vacinar 10.000 vezes toda a população da cidade) em uma carta datada do dia 19 de março. O documento fala em repassar o imunizante para cidades do Estado de São Paulo e outros países da América do Sul e chega a dar detalhes sobre frete, certificação e embarque. Outra minuta, sem data e com teor mais detalhado, dizia que a compra seria para o Ministério da Saúde. O pagamento seria feito a uma “conta de garantia de terceiro, estabelecida pela Davati”.

Pessoas envolvidas no esquema acham que a Davati queria se aproveitar da autorização conferida pelo Senado e pelo STF às prefeituras para transformar as pequenas administrações municipais em intermediárias de seus negócios. O esquema começou a ruir quando Nunes e seus parceiros passaram a cobrar mais garantias da Davati.


“Quis saber mais informações sobre a vacina, documentos, certificados etc., mas não foi enviado pela pessoa que me ofereceu a possibilidade de negócio. Foi uma pessoa chamada Cristiano. Disse que era representante de uma empresa”, disse Nunes.

Àquela altura, o vendedor de triciclos do Homem Aranha sofria forte pressão dos outros envolvidos. “Você vem querer dar 171 e me colocar numa fria? Já fiz contato com dois agentes da Polícia Federal. Espero que não tenha complicação para mim porque se queimar meu filme com os prefeitos vou arrolar todo mundo. Acha que estão mexendo com bobo? Boto no rabo de todo mundo. Vocês não sabem o mato em que estão lenhando”, disse o homem identificado apenas como Bruno em mensagem de áudio para Nunes já em meados de março.

O vendedor então fez uma nota na qual abortava o negócio. “A [sic} aproximadamente duas semanas fomos procurados pelo Sr. Cristiano Carvalho, representante da Davati Medical, o mesmo se apresentou como representante para vendas de vacina da Jhonson e Jhonson [sic], inclusive foi apresentado documentos e negociações com grandes prefeituras, como a de São Paulo (maior cidade da América Latina), em diversas reuniões por vídeo conferência Carvalho foi tachativo em afirmar que após o contrato assinado com a farmacêutica em até 72 horas as vacinas seriam entregues no Brasil”, diz a nota.

De acordo com prefeitos ouvidos pelo EL PAÍS, em momento algum se falou em preço das vacinas e formas de pagamento. Em uma troca de mensagens, no entanto, Isaías dizia que a Janssen seria vendida a 10 dólares a dose para São Paulo e seus parceiros poderiam ganhar 20 centavos de dólar por unidade a título de comissão.

Nunes diz que só levou o negócio adiante porque não havia pedido de pagamento adiantado e, portanto, segundo ele, nenhum risco de golpe. Cinchetto, no entanto, diz que uma parcela do pagamento deveria ser feita no ato do suposto embarque dos imunizantes e que se chegou a cogitar o acréscimo de 2 dólares por dose como forma de lucro pela intermediação.

Nunes tem memória fraca. No primeiro contato, disse que ofereceu a AstraZeneca e, só depois de confrontado com a nota escrita por ele próprio, se lembrou de ter ofertado a Janssen. Ele também disse não se recordar do preço e não explicou como chegou à Davati e a Cristiano Carvalho. “Fiquei sabendo de uma possível oferta de vacina que estava sendo disponibilizada para municípios. Daí quis saber mais informações sobre a vacina, documentos, certificados etc. e como não tive logo em seguida abortei essa possível negociação”, afirmou ele.

Além de Minas Gerais, a Davati tentou vender vacinas a cidades de São Paulo, Goiás e Paraná. A empresa, segundo reportagem da Folha de S. Paulo, possui apenas três funcionários em sua sede nos EUA e também tentou vender imunizantes a reservas indígenas do Canadá, sem sucesso.

Procurada, a Davati, por meio de sua assessoria, enviou a seguinte nota: “Os advogados no Brasil da Davati Medical Supply, Silveiro Advogados, informam que estão analisando o caso. Em relação à proposta de intermediação na venda de vacinas, consigna-se que não houve concretização de venda no país por não se ter recebido manifestação de interesse de compra por parte do Ministério da Saúde, pois nunca foi assinado nenhum documento. A empresa estará à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos juridicamente necessários, certa de que não houve, de sua parte, qualquer procedimento indevido”.

RICARDO GALHARDO, de São Paulo para o EL PAÍS, em 06 JUL 2021 - 20:30 BRT

Spike Lee fala de Bolsonaro em Cannes: “Estamos sendo governados por gângsteres”

Política dominou a apresentação do júri do festival, presidido pelo cineasta. “Os negros continuam sendo caçados como animais”, disse o diretor sobre o que mudou desde ‘Faça a coisa certa’ (1989)

Da esquerda para a direita, o júri do Festival de Cannes em 2021: Mylène Farmer, Kleber Mendonça Filho, Maggie Gyllenhaal, Jessica Hausner, Mati Diop, Spike Lee (presidente), Mélanie Laurent, Tahar Rahim e Song Kang-ho. (DANIELE VENTURELLI / WIREIMAGE)

Os nove jurados que decidirão dentro de 13 dias a premiação do 74º Festival de Cinema de Cannes sabem que estão perante um momento histórico: pelo menos dois deles repetiram essa expressão durante sua apresentação na entrevista coletiva que antecedeu à cerimônia de inauguração nesta terça. E liderando esse grupo selvagem está Spike Lee, que já deveria ter presidido o júri da edição de 2020, caso tivesse acontecido. Naturalmente, o cineasta radicado em Nova York, que em 2018 ganhou o Grande Prêmio do Júri com Infiltrado na Klan, estava se sentindo em casa: três ou quatro declarações políticas antes de decidir que não falaria muito mais à imprensa, porque afinal são nove cineastas no júri, “e todos iguais”. Mas teve tempo de discorrer sobre o atual estado da indústria: “As salas e as plataformas digitais precisam coexistir. Houve um tempo em que se pensou que a televisão mataria o cinema, então este medo não é novo, e sim cíclico”.

Lee (Atlanta, Geórgia, 64 anos), que esteve em numerosas ocasiões na competição (“Lembro uma vez que voei de Nice a Nova York para ver um jogo dos Knicks numa final da NBA e voltei; aliás, perderam”), salientou o racismo presente na sociedade atual. “Quando você vê o irmão Eric Garner, quando você vê o rei George Floyd, assassinados, linchados, penso em Radio Raheem [o personagem de Faça a coisa certa, de 1989, o segundo longa do cineasta e o primeiro dele a passar em Cannes]. E trinta e tantos fucking anos depois, os negros continuam sendo caçados como animais”. Sobre o mundo atual, comentou: “Está governado por gângsteres. O agente laranja [assim se refere a Donald Trump, para não citar seu nome], o cara lá do Brasil e Putin. Eles fazem o que querem, sem moral nem escrúpulos. E esse é o mundo em que vivemos. Temos que levantar a voz contra mafiosos desse tipo”. A competição está entregue a Lee: até o cartaz oficial é um aceno à peça de promoção do seu primeiro filme, Ela quer tudo.

Junto a Lee estavam o crítico e cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho, a atriz e diretora francesa Melánie Laurent, a realizadora franco-senegalesa Mati Diop (que chamou a atenção em Cannes com Atlantique), o ator coreano Song Kang-ho (o protagonista habitual do cinema de Bong Joon-ho e, portanto, de Parasita), a cineasta austríaca Jessica Hausner, a atriz e diretora norte-americana Maggie Gyllenhaal, a cantora francesa Mylène Farmer e o ator francês Tahar Rahim. Tanto Mendonça como Gyllenhaal admitiram que estavam havia quase dois anos sem entrar em uma sala de cinema, e Rahim acrescentou que há muito tempo nem sequer fala de filmes.

Quando recordaram como receberam o convite, Hausner contou, divertida, que dias antes tinha visto o anúncio da programação: “Estava cheia de títulos que eu queria ver, e fui marcando... Pouco depois me chegou o e-mail, e foi assombroso”. Eles avaliarão 23 filmes, embora tenham a sensação de que este não será um Cannes normal: é o primeiro depois da pandemia, com uma maioria de mulheres no júri, um presidente negro pela primeira vez... “É uma edição histórica, e isso aumenta a honra de fazer parte deste grupo”, comentou Laurent. Song chegou a achar que esta edição poderia não acontecer por causa da pandemia, então, para o sul-coreano, estar em Cannes é “quase um milagre”. Rahim, cujo primeiro grande filme, Um profeta, concorreu na edição de 2009, definiu a competição como “o lugar onde o sonho de um menino de ser ator pode sair transformado em realidade”.

Política e feminismo

A parte final da coletiva enfocou a política e em aspectos sociais. Respondendo à reflexão de uma jornalista, Mendonça recordou o sofrimento causado pela covid-19 em um país governado por um político como Jair Bolsonaro, e Gyllenhaal salientou: “O cinema sempre foi comprometido em temas políticos, e não só de forma consciente. Temos que estar atentos às mensagens que chegam aos nossos corações e mentes”.

E, sobre o cinema feito por mulheres, a nova-iorquina refletiu: “Fazemos filmes diferentes, contamos histórias de forma diferente. E para isso, para levar essas histórias adiante, às vezes é preciso usar uma musculatura extra”. Laurent, que combinou uma grande carreira como atriz e diretora, tanto de ficção como em documentários, recordou que nesta edição o concurso fez um esforço pelo ecológico, pela reciclagem e pelo cinema sobre o meio ambiente. “É uma notícia maravilhosa, mas vejamos além: deixemos que o planeta respire e que as mulheres respirem”. Por isso, Diop encerrou da seguinte maneira a coletiva do júri: “Não aceitemos a condescendência do politicamente correto, quero que escolham nosso cinema por seu valor”.

GREGORIO BELINCHÓN, de Cannes para o EL PAÍS, em 06 JUL 2021 - 17:15 BRT

terça-feira, 6 de julho de 2021

É possível fazer melhor

Neste país complexo, o Rio Grande do Sul é dos estados mais peculiares. Praticamente ingovernável. Mas a atual gestão faz escola. Comentário de Zeina Latif sobre o governo de Eduardo Leite.

A história tem peso. O passado parece ter forjado uma sociedade pouco coesa em seu conjunto e inclinada a polarizações. A presença portuguesa só vingou com a chegada da família real, depois de muitas disputas com espanhóis. O estado foi palco de várias revoltas.

A mais lembrada é a Guerra dos Farrapos, um movimento separatista, mas houve outras tantas disputas internas (e sangrentas) entre facções.

Compõe esse quadro a heterogeneidade cultural – ao mesmo tempo uma benção e um desafio. O gaúcho era mestiço de índio, português, espanhol e africano. A imigração europeia no século 19 tornou a sociedade mais complexa.

Trazendo para os dias de hoje, não seria coincidência que governadores enfrentem tantas dificuldades para governar e não consigam se reeleger. Construir consensos para aprovar reformas é bastante desafiador e muitos comprometeram a higidez das contas públicas, possivelmente no anseio de agradar a muitos – uma postura que acaba alimentando demandas oportunistas de grupos organizados, corroendo o orçamento público.

Outra característica é a elevada judicialização. Há alta incidência do RS nas ações no STF, ponderando pelo tamanho da população, devido à própria litigiosidade nas instâncias anteriores.

O atual governo recebeu um estado quebrado, com quase 3 anos com atrasos no pagamento da folha e bombas relógio a explodir.

A razão entre funcionários ativos (128 mil) e inativos e pensionistas (209 mil) é a mais elevada no Brasil (dados de 2019), sendo que 80% dos vínculos são na educação e na segurança, que contam com regras mais generosas para aposentadoria.

Enquanto o número de ativos encolhe, prejudicando a administração pública, o de inativos só faz crescer – a idade média do funcionalismo é de 51 anos –, pressionando os gastos com Previdência.

Ao longo dos últimos anos, os governos fizeram uso de expedientes inadequados para tentar fechar as contas: saques de depósitos judiciais e do caixa único (com recursos de órgãos e demais poderes). Totalizaram R$19 bilhões e precisam ser devolvidos.

Houve também sensível piora dos indicadores de educação na última década. A 4ª maior renda per capita do País está no 12º lugar no ranking de educação. Isso apesar do legado histórico: a imigração europeia e a menor desigualdade na distribuição de terras resultaram em maiores gastos com educação no passado, segundo pesquisas acadêmicas.

A gestão Eduardo Leite marca uma inflexão. Sem demonizar governos anteriores, segue um roteiro pouco usual na política brasileira: faz diagnóstico dos problemas com base em evidências e dados, comunica a sociedade, apresenta as propostas de reforma e, com diálogo, negocia sua aprovação.

Em pouco tempo, conduziu a mais completa reforma da Previdência do País e um conjunto amplo de reformas administrativas - com emendas à constituição e projetos de lei. Foram incluídos os atuais servidores, inclusive magistério e militares, visando a conter o crescimento

vegetativo da folha e promover a eficiência da máquina pública. Avança paulatinamente na ampla agenda de privatizações e concessões.

Já colheu frutos em 2020, como a eliminação do atraso na folha e sua redução (-3,8% em termos reais), e o menor déficit previdenciário.

“O PIB do primeiro trimestre cresceu 5,5% na variação anual, acima da média nacional de 1%.’

Tudo somado, a Pesquisa Atlas apontou aprovação do governo em 47,2% em abril.

Os desafios são grandes. O estado ainda recorre a liminares do STF para suspender o pagamento de dívida ao Tesouro, que acumula R$12 bilhões de atraso. A ambiciosa reforma tributária, que prevê redução de isenções, está atrasada. Na educação, houve avanço nos indicadores do ensino médio, mas menos nos demais níveis e insuficiente para cumprir as metas. 

Os gestos políticos do governador são simbólicos. Convidou toda a bancada federal gaúcha para a cerimônia de entrega de viaturas e equipamentos de segurança para as polícias, por terem viabilizado as emendas parlamentares para sua aquisição.

Com valores republicanos e democráticos, sua habilidade política ganha mais importância na crise atual. Sem isso, grupos organizados bloqueiam reformas em meio à apatia da sociedade.

A democracia ganha com a competição na política. Com diversidade, ainda mais.

ZEINA LATIF é economista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 06.07.2021

Brasil registra mais 1.780 mortes por covid-19 em 24 horas

País já soma mais de 526 mil óbitos ligados ao coronavírus. Autoridades confirmam ainda mais de 62 mil novos casos da doença em 24 horas, e total de infectados vai a 18,8 milhões.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 250,7 no país

O Brasil registrou oficialmente 1.780 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta terça-feira (06/07).

Também foram confirmados 62.504 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 18.855.015 e os óbitos somam 526.892.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 17.262.646 pacientes haviam se recuperado da doença até esta terça-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 250,7 no país, a 8ª maior do mundo.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.558, e a média móvel de novos casos, em 48.816.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 605 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,7 milhões) e Índia (30,6 milhões).

Ao todo, mais de 184,3 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,98 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.

Deutsche Welle Brasil, em 06.07.2021

Como compras de vacina enredaram Bolsonaro em escândalos

Caso da indiana Covaxin, oferta suspeita da AstraZeneca e acordo com a chinesa CanSino deslocaram foco das críticas ao governo, do negacionismo para a corrupção.

Caso Covaxin resultou em inquérito contra Bolsonaro no STF e foi incluído em pedido de impeachment

O debate público sobre a atuação do governo Jair Bolsonaro na pandemia covid-19, que há mais de um ano girava em torno de uma postura de negação às recomendações científicas, mudou de foco em junho e passou a se debruçar sobre escândalos de corrupção e negociações suspeitas para a aquisição de imunizantes.

O fio do novelo começou a ser puxado no caso da vacina indiana Covaxin, quando um servidor do Ministério da Saúde disse, em depoimento ao Ministério Público Federal, que havia sofrido uma pressão incomum para acelerar os trâmites para importar o imunizante.

Nas semanas seguintes, mais detalhes sobre a compra da Covaxin vieram à tona e envolveram Bolsonaro e o líder do governo na Câmara, o deputado Roberto Barros (PP-PR), e novas investigações foram abertas, potencializadas pelo trabalho da CPI da Pandemia.

Os escândalos não se limitaram ao imunizante indiano. Estouraram também acusações de um suposto pedido de propina em uma oferta inusitada de doses da AstraZeneca, e surgiram conexões de Barros com uma intenção de compra da vacina da chinesa CanSino, que seria a mais cara já adquirida pelo governo.

Entenda cada uma dessas histórias:

Primeiro, Covaxin implicou Bolsonaro e líder do governo

A compra da Covaxin pelo Brasil foi anunciada em 26 de fevereiro e envolvia o fornecimento de 20 milhões de doses de março a maio, no valor total de R$ 1,6 bilhão. Cada dose sairia por 15 dólares, o que fez dela a vacina mais cara negociada pelo Brasil naquele momento. Nenhuma chegou a ser entregue, devido a restrições da Anvisa e outros problemas.

Desde o início, a decisão de comprar esse imunizante destoava da postura do governo em relação a outras vacinas: foi tomada de forma muito rápida, antes que o resultado do ensaio clínico de fase 3 fosse divulgado e sem que ele estivesse autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Além disso, foi fechado por meio de uma empresa intermediária, a Precisa Medicamentos, em vez de direto com a farmacêutica.

Em abril, a Procuradoria da República no Distrito Federal instaurou um inquérito civil público para apurar a prática de improbidade administrativa no contrato. Nesse procedimento, Luís Ricardo Miranda, servidor concursado do Ministério da Saúde e chefe da divisão de importação da pasta, relatou ter sofrido pressões incomuns para acelerar os trâmites da Covaxin e ouvido pedidos para que a Anvisa abrisse uma exceção.

Miranda é irmão do deputado Luís Miranda (DEM-DF), que em 23 de junho chamou mais atenção ao caso. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ele disse ter informado pessoalmente Bolsonaro em 20 de março de suspeitas de irregularidades envolvendo a Covaxin, que incluía um pedido de pagamento adiantado de 45 milhões de dólares (R$ 234 milhões) não previsto em contrato.

À CPI, irmãos Miranda confirmaram terem avisado Bolsonaro sobre suspeitas na compra da Covaxin

Depois, em depoimento à CPI da Pandemia , o deputado Luiz Miranda confirmou ter alertado Bolsonaro e foi além. Segundo ele, o presidente disse que encaminharia o caso à Polícia Federal (PF) e que Barros estaria por trás do "rolo" da Covaxin. A PF não abriu à época investigação sobre o caso, e Barros – que nega ter participado de qualquer negociação relacionada à compra da vacina – seguiu líder do governo.

Outros elementos ligam a compra da Covaxin a Barros. A fiscal desse contrato no Ministério da Saúde, Regina Célia Silva Oliveira, havia sido nomeada à pasta quando Barros era ministro da Saúde, no governo Michel Temer. Ela prestou depoimento à CPI nesta terça-feira, e negou ter sofrido qualquer pressão.

A Precisa Medicamentos, que intermediou a compra da Covaxin pelo Brasil, é de Francisco Emerson Maximiano, que também é sócio da Global Gestão de Saúde. Em dezembro de 2018, o Ministério Público Federal instaurou uma ação de improbidade administrativa contra Barros pelo pagamento antecipado de R$ 20 milhões à Global, feito na sua gestão à frente da pasta por medicamentos que não foram entregues.

O Ministério da Saúde suspendeu o contrato de compra da Covaxin em 29 de junho, após recomendação da Controladoria-Geral da União (CGU), que também apura o tema.

Depois, caso Covaxin virou inquérito no STF e entrou em pedido de impeachment

As revelações sobre as negociações para a compra da vacina indiana levaram a CPI a pedir que o Supremo Tribunal Federal solicitasse à Procuradoria-Geral da República (PGR) que investigasse Bolsonaro pelo crime de prevaricação, que ocorre quando um servidor público, no caso o presidente, não toma um ação que deveria ter sido tomada para satisfazer um interesse pessoal.

A PGR inicialmente pediu para aguardar o fim da CPI antes de abrir o inquérito, mas Weber rejeitou a argumentação, dizendo que o órgão não era "espectador das ações dos Poderes da República". A PGR então abriu o inquérito, autorizado pela ministra na última sexta-feira.

Um dia antes, a Polícia Federal também abriu outro inquérito para investigar o caso, a pedido do ministro da Justiça, Anderson Torres.

Rosa Weber não aceitou pedido da PGR para esperar fim da CPI, e inquérito contra Bolsonaro foi aberto

Além disso, a acusação de que Bolsonaro teria cometido o crime de prevaricação foi incluída em um pedido de impeachment apresentado por partidos e movimentos de oposição na última quarta-feira. Também vinculado ao caso Covaxin, os autores acusaram o presidente ainda por denunciação caluniosa, em função de Bolsonaro ter ordenado que a PF investigasse o servidor Luis Ricardo Miranda após ele ter dito que havia avisado sobre as irregularidades.

Nesta segunda-feira, o Tribunal de Contas da União pediu ao Ministério da Saúde explicações sobre a compra da Covaxin. O ministro Benjamin Zymler, relator do caso, deu dez dias para a pasta entregar documentos. Um dos pontos que o TCU quer esclarecer é por que, em novembro, a vacina havia sido oferecida ao governo a 10 dólares a dose, e o acordo foi assinado em fevereiro a 15 dólares a dose. O tribunal já havia solicitado informações sobre o tema, que ainda não foram prestadas.

O governo federal diz que Bolsonaro comunicou as suspeitas ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que teria avisado o então secretário-executivo da pasta, Élcio Franco. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), afirmou que as denúncias foram apuradas, mas não foram encontradas irregularidades.

No meio disso, acusação de propina em doses da AstraZeneca

Enquanto o governo tentava lidar com as revelações e perguntas não respondidas sobre a Covaxin, um segundo escândalo estourou, agora envolvendo uma negociação suspeita para a compra de 400 milhões de doses da vacina produzida pela AstraZeneca.

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, policial militar em Minas Gerais que também atuava como representante da empresa Davati Medical Supply, disse em entrevista publicada em 29 de junho pelo jornal Folha de S.Paulo que Roberto Ferreira Dias, então diretor de Logística do Ministério da Saúde, cobrou propina de 1 dólar por dose para que a pasta fechasse a compra. Dias foi exonerado do cargo no mesmo dia. 

Desde o início, a história tinha elementos suspeitos. A Davati, sediada nos Estados Unidos, foi formada em 2020 e tem apenas três funcionários. A AstraZeneca declarou que não negocia vacinas com entes privados, negou ter trabalhado com a Davati e afirmou que todas as vendas no Brasil foram tratadas com a Fiocruz.

Dominguetti disse que diretor do Ministério da Saúde pediu propina de 1 dólar por dose

Em depoimento à CPI, Dominguetti disse ter se reunido em 25 de fevereiro em um restaurante de Brasília com Dias e o tenente-coronel Marcelo Blanco, que então era assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. Ali, Dias teria feito o pedido de propina.

Dominguetti também relatou ter se reunido em outra data com Franco, então secretário-executivo do Ministério da Saúde, quando apresentou novamente a proposta de venda de vacina.

Dias prestará depoimento à CPI nesta quarta-feira. A comissão também já aprovou a convocação de Blanco, que falará aos senadores em data a ser agendada.

Governo deu aval a reverendo evangélico para conduzir negociação

Se as circunstâncias da negociação de 400 milhões de doses da AstraZeneca detalhadas por Dominguetti já eram inusitadas, elas ficaram ainda mais estranhas com novas revelações feitas pelo Jornal Nacional, da TV Globo, neste sábado.

Um reverendo evangélico, Amilton Gomes, recebeu aval formal do Ministério da Saúde para negociar com a Davati, em nome do governo brasileiro, a compra das supostas 400 milhões de doses. A autorização foi dada pelo diretor de Imunização do Ministério da Saúde, Laurício Cruz, em 9 de março.

Gomes é fundador e presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), uma organização privada. Ele já havia sido mencionada no depoimento do Dominguetti, como alguém que o ajudou a agendar sua reunião com Franco.

Em 10 de março, a tratativa entre Gomes e Cruz já estava formalizada no sistema eletrônico do Ministério da Saúde, e foi em seguida enviada para a secretaria-executiva da pasta.

Cruz também enviou e-mails a Herman Cardenas, presidente da Davati, confirmando que a Senah tinha aval do Ministério da Saúde para negociar a compra de vacinas. Nesse contato, o reverendo pede que a oferta de venda seja corrigida para o valor de 17,50 dólares por dose – três vezes mais do que o próprio governo pagou por dose da AstraZeneca em janeiro, comprada de um laboratório na Índia.

Segundo a TV Globo, a Senah informou à Davati o nome de duas empresas nos Estados Unidos onde poderia ser feito o pagamento de comissão, caso a compra fosse finalizada, ambas associadas ao reverendo. Uma delas também tem como diretor Daniel Fernandes Rojo Filho, que em 2015 chegou a ser preso nos EUA por fraude.

Cruz, do Ministério da Saúde, disse ter sido designado para negociar com Gomes, confirmou ter se reunido com ele e que deu andamento às tratativas, e afirmou que a pasta não conferia a idoneidade das pessoas que ofereciam vacinas.

Intenção de compra com laboratório chinês também na mira da CPI

Por fim, a CPI da Pandemia pretende investigar a negociação feita pelo Ministério da Saúde para aquisição do imunizante chinês Convidecia, do laboratório CanSino Biologics.

O Ministério da Saúde assinou em 15 de junho uma intenção de compra de 60 milhões de doses, a 17 dólares a dose –  mais cara que a Covaxin e a da Pfizer/BioNTech –, totalizando cerca de R$ 5 bilhões. O contrato ainda não foi formalizado.

Assim como no caso Covaxin, a negociação envolvendo a Convidecia contou com uma empresa intermediária no Brasil, a Belcher Farmacêutica. Essa empresa é sediada em Maringá (PR), onde Barros, o líder do governo na Câmara, também ligado ao escândalo Covaxin, foi prefeito de 1989 a 1992.

A Belcher é apoiada por empresários bolsonaristas, entre eles Luciano Hang e Carlos Wizard, e tem como um de seus sócios o filho de Francisco Feio Ribeiro Filho, que foi presidente da empresa de urbanização de Maringá, a Urbamar, durante a gestão Barros como prefeito da cidade.

CanSino era representada no Brasil por empresa investigada pela PF

Além disso, Flávio Pansieri, advogado de Barros, atuou como representante legal da vacina Convidecia no Brasil, e participou de uma reunião com a Anvisa sobre o tema. Pansieri defende Barros em diversa ações, inclusive no Supremo.

A parceria entre a Belcher a CanSino, porém, foi rompida em 10 de junho, segundo a Belcher. A Anvisa confirmou que já ter sido comunicada pela empresa chinesa que a Belcher não a representa mais.

A Belcher é alvo de um investigação da Polícia Federal que apura a dispensa de licitação, superfaturamento e a baixa qualidade de testes para covid-19 comprados pelo Distrito Federal. 

Senadores da CPI da Pandemia querem aprofundar no futuro as investigação sobre as tratativas do Ministério da Saúde para comprar a Convidecia.

Deutsche Welle Brasil, em 06.07.2021