quarta-feira, 9 de junho de 2021

PGR cobra informações do governo Bolsonaro sobre orçamento secreto

Procuradoria também requisitou que TCU compartilhe os documentos sobre as apurações já iniciadas pelo tribunal 

A Procuradoria-Geral da República (PGR) requisitou a seis ministérios do governo de Jair Bolsonaro informações a respeito do chamado “tratoraço”. Em busca de dados sobre o esquema do orçamento secreto montado pelo Palácio do Planalto para obter apoio político no Congresso, o órgão solicitou também ao Tribunal de Contas da União (TCU) que compartilhe documentos das apurações internas em andamento na corte. 

Os pedidos fazem parte de uma investigação preliminar da Procuradoria, aberta a partir de representações de parlamentares oposicionistas que cobram a apuração de possível prática de crimes por parte de autoridades federais, incluindo o presidente e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. 

Os partidos apontam violações à Constituição e sustentam que a série de reportagens do Estadão sobre o orçamento secreto mostra a compra de apoio político por meio da liberação das chamadas emendas de relator-geral do orçamento (RP 9). No pedido à PGR, as siglas cobram uma investigação abrangente para apurar possível superfaturamento na compra de máquinas e equipamentos agrícolas pela pasta do Desenvolvimento Regional e pela empresa pública Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). O jornal mostrou que o governo deu aval para a compra de máquinas até 259% acima do preço de referência estabelecido pelo próprio ministério. 

As legendas da oposição pediram ainda que a PGR investigue se houve crimes de prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.

No despacho de sete páginas em que atendeu aos pedidos das siglas, a Procuradoria afirmou que é “imperioso colher maiores informações, no intuito de direcionar as diligências a serem realizadas na presente apuração preliminar”. A PGR requisitou as informações a Marinho e aos também ministros da Agricultura Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina; da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas; da Cidadania, João Roma; da Saúde, Marcelo Queiroga; e do Turismo, Gilson  Machado Neto. O pedido é para que eles “prestem as informações que julgarem pertinentes acerca dos fatos noticiados, no prazo de 15 (quinze) dias, instruindo-as, se for o caso, com os documentos correlatos”.

O órgão solicitou informações também dos diretores-presidentes da Codevasf; do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs); da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco); do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), estabelecendo o mesmo prazo de 15 dias, “se possível, com os documentos correspondentes”. Por fim, a Procuradoria solicitou à presidente do TCU, ministra Ana Arraes, que remeta à Procuradoria cópias dos processos abertos pelo tribunal para apurar os fatos.

Há pelo menos cinco apurações em andamento na Corte de Contas referentes ao orçamento secreto. No principal deles até aqui, após um despacho do ministro Walton Alencar Rodrigues, o TCU requisitou ao governo cópias de todos os ofícios utilizados por deputados e senadores para indicar a aplicação de verbas de emendas de relator-geral, além das explicações detalhadas do governo sobre a distribuição do orçamento feita pelo governo para sua base de parlamentares. Uma primeira resposta do governo já foi enviada ao TCU, que mantém sob reserva o teor da manifestação.

A apuração no TCU não se restringe ao Ministério do Desenvolvimento Regional, mas busca apurar irregularidades na execução de valores de emenda de relator-geral em outras pastas. Os valores empenhados de RP 9 em 2020 foram R$ 20 bilhões. Para 2021, há mais R$ 18,5 bilhões do orçamento reservado para uso por meio de RP 9, que, na prática, tem sido o mecanismo utilizado pelo governo para agraciar os parlamentares da sua base, por meio da destinação de milhões de reais em cotas individuais definidas em conversas de gabinete entre os principais líderes do Congresso.

Enquanto a requisição do TCU foi assertiva, a da PGR não exigiu que os ministros apresentem os documentos relacionados ao uso do orçamento, deixando as autoridades à vontade para decidir o que enviar. O despacho que fundamenta as requisições da PGR foi assinado por Carina Costa Oliveira Leite, que é auxiliar do procurador-geral Augusto Aras e originalmente é promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. 

Os ofícios aos ministros, contudo, foram assinados pelo procurador-geral e enviados, na noite desta terça-feira,8, aos ministérios, aos órgãos do governo e ao TCU. A partir das informações recebidas, a PGR irá decidir se abre inquéritos criminais e se encaminha os fatos para apuração também na esfera cível, na primeira instância.

Apesar de não ter sido alvo dos pedidos de Aras, os partidos querem que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado. Os pedidos de apuração do caso têm como autores, entre outros, a Liderança da Minoria na Câmara, a Liderança do PSOL na Câmara, e o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). As representações enviadas à PGR apontam que é ilegal o uso de verba pública para influenciar votações no Legislativo, de acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias. 

“No Estado Democrático de Direito, a integridade da votação do Parlamento depende de convicções e convencimento, nunca de liberação de recursos – de forma ilegal – para bases parlamentares, mormente no meio de uma crise pandêmica, em que milhões de brasileiros e brasileiras dependem de recursos públicos para sobreviver”, destacou a Liderança do PSOL em uma das representações.

Em seu pedido, Randolfe destaca que a "existência desse orçamento secreto, ou orçamento extra, gera um claro desequilíbrio democrático e republicano, na medida em que, de um lado, há nefasta e indevida diferenciação entre aqueles parlamentares apadrinhados e os renegados a uma espécie de escória de importância orçamentária, e, de outro lado, esse grande toma lá, dá cá acaba implicando enormes prejuízos ao fiel cumprimento do interesse público, já que se confundem os interesses pessoais patrimonialistas de gestores públicos e seus apoiadores políticos e as reais necessidades da população brasileira. (...) Pode-se dizer que os Representados, sem prejuízo de se apurar que outros também concorreram para as condutas ora denunciadas, praticaram, em tese, crime de prevaricação e de advocacia administrativa”.

Os partidos cobram também investigação sobre desvio de finalidade e abuso de poder no uso do orçamento. Eles ressaltam que a Constituição exige transparência e publicidade na administração e estabelece princípios da legalidade, da impessoalidade e da moralidade da administração pública. Apontam ainda o descumprimento da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) quanto à exigência de critérios para repasses de recursos da União para municípios e quanto à necessidade de transparência das informações, conforme revelou o Estadão.

Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 09 de junho de 2021 | 10h35

Um sindicato armado

Não há nada mais no horizonte, menos ainda governo. A meta a alcançar é uma ditadura      

Jair Bolsonaro em 2017, então deputado federal pelo Rio de Janeiro (27/11/2017) Foto: Hélvio Romero/Estadão

A ideia emergente de que o Exército se deixou subjugar aos caprichos de Jair Bolsonaro por temor à ascensão de Lula até pode parecer elegante, mas é falsa. O presidente pretende que seja entendida como alta política sua retórica de envelhecidos bichos-papões. Nem sequer adaptou ao século em que vive o repertório com que se elegeu e reelegeu deputado nos últimos 30 anos. Acena com as ameaças puídas de invasão de comunistas e maconheiros. Até como insultos, há muito superados pela sociedade. Os militares vergaram não por esta, mas por outra razão. 

Bolsonaro tirou do seu caminho os líderes que tentavam preservar as Forças Armadas como instituição de Estado e as atraiu para seu domínio pessoal. Abrigo onde já estavam as polícias militares, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária, as milícias, as agências de inteligência, todos os estamentos de vigilância e segurança, os produtores e vendedores de armas e munições. Uma associação que lidera como poderoso chefão de um sindicato armado, cujo logotipo é a sugestiva mão com os dedos polegar e indicador esticados em ângulo reto e três dedos dobrados. 

O Exército, que se sobressai entre as Forças, perdeu substância profissional e ideológica. Suas lideranças se enfraqueceram, não mais tiveram o êxito anterior em missões civis de desafiante complexidade. Como se viu na ocupação do Ministério da Saúde, onde produziu um desastre. 

O Alto Comando se deixou vulnerável ao assédio histórico de Bolsonaro às patentes subalternas e forças auxiliares. O comando se exerce por meio de instrumentos típicos da mobilização trabalhista: salários, ampliação das prerrogativas, equalização das vantagens, proteção em reformas das carreiras, ampliação dos postos de trabalho. 

Não há nada mais no horizonte, menos ainda governo. A meta a alcançar é uma ditadura. Abertamente admitida pelos filhos do presidente. Tal projeto político pessoal e subversivo tem o fim imediato de interromper a alternância de poder caso Bolsonaro perca a disputa de 2022. Já está preparando, em público, a acusação de fraude futura, ao modelo Trump, para anular as eleições. Ao mesmo tempo que, numa espécie de plano B, turbina o Bolsa Família para reconquistar a popularidade perdida e ter um desempenho que lhe sirva de pretexto. 

Na sequência, o roteiro inclui desmoralizar instituições, já tendo obtido a capitulação das que poderiam interromper sua marcha. Bolsonaro reduziu a Câmara dos Deputados a um balcão, onde compra as mudanças de legislação de que precisa para enquadrar a realidade à sua fantasia. Maneja sem esforço a Procuradoria-Geral da República. Fidelizou setores produtivos, como o ruralista. Com método, vai ocupando plenários decisivos. Amarra estatais e bancos públicos. Bolsonaro consome seu mandato em atitude possessiva e onipotente. 

Na sequência cadenciada de demolições, ele aumenta agora o cerco ao Supremo Tribunal Federal. Recorre à velha teimosia acusatória: o STF o impede de gerir a pandemia como quer, com seu renitente negacionismo que colocou o Brasil no triste pódio dos campeões de mortes. Na verdade, o STF o incomoda por outras razões, não confessadas. Como vetar nomeações impróprias. Ou não se intimidar na instalação de inquéritos para investigar atos golpistas que tornaram réus seus filhos, auxiliares próximos e deputados do grupo. 

Bolsonaro quer arquivar todas as investigações, sem julgamento. A resposta do Supremo Tribunal Federal a este desejo indicará seu grau de resistência. 

O presidente insiste, ainda, em tirar dos Estados e municípios a gestão compartilhada da pandemia, para ser ele a única instância de decisões sobre abertura irrestrita do comércio. Alega o artigo 5.º, pelo direito de ir e vir, mas sonega o principal preceito do dispositivo, que o Supremo deverá invocar: o direito à vida. 

Rosângela Bittar, colunista d'O Estado de S. Paulo, escreve semanalmente sobre o cenário político do País. Publicado originalmente em 09.06.2021

Obstinado em permanecer ministro, Queiroga expõe na CPI as barreiras impostas por Bolsonaro no combate à pandemia

Pela primeira vez, titular da Saúde diz que cloroquina não funciona no tratamento de covid-19, mas que não é “censor” do presidente

O ministro Marcelo Queiroga durante depoimento na CPI da Pandemia, nesta terça-feira.ADRIANO MACHADO / REUTERS

O segundo depoimento do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, quase nada acrescentou à produção de novas provas para a Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia. Mas serviu para explicitar que ele está diante de uma missão impossível: defender a ciência e os protocolos mundiais de combate à pandemia não podendo desagradar o seu chefe, um presidente negacionista. Desta maneira, Queiroga tentou de novo blindar Jair Bolsonaro, obstinado em se manter no cargo quanto tempo puder. O ministro deixou claro que compreende que a cloroquina é ineficaz no tratamento da covid-19 e que o uso de máscara e o distanciamento social são medidas necessárias para a redução da mortalidade e da contaminação, mas não pode criticar Bolsonaro nem tampouco remover orientações do próprio ministério que indicavam o uso desse remédio. “Para mim não há evidência comprovada da eficácia desses medicamentos”, disse na CPI, ao longo de quase sete horas de inquirição.

Queiroga é o quarto ministro durante a pandemia de covid-19. E acaba seguindo um roteiro já esperado de seus antecessores, se deparar com a autonomia limitadíssima do ministério no atual Governo. Em um momento do depoimento, afirmou que todos os brasileiros deveriam seguir as medidas de restrição sanitárias. “As recomendações são para todos os brasileiros, sem exceção. O cuidado é individual, o benefício é de todos”, disse Queiroga. Indagado se a exceção seria apenas Bolsonaro, o ministro afirmou que levou suas considerações ao presidente, mas que não iria avaliar a sua conduta. “Eu sou ministro da Saúde, não sou censor dele. O presidente da República não é julgado pelo ministro da Saúde”, declarou.

Em mais de uma ocasião, disse que não faria “juízo de valor” sobre as atitudes do presidente. Desde o início da pandemia, o mandatário tem promovido aglomerações em série. Um levantamento publicado pelo jornal O Globo mostra que, desde março do ano passado, Bolsonaro promoveu ao menos 84 eventos com aglomerações de pessoas e usou máscara em apenas três dessas atividades contraindicadas pelas autoridades sanitárias. Em maio, o EL PAÍS revelou que Bolsonaro havia intensificado suas viagens desde que a CPI passou a seguir em seu encalço.

“Não me compete julgar os atos do presidente da República”, disse Queiroga. “É um ato individual. As imagens, elas falam por si sós”, completou Queiroga em seguida. “Essa fala mostra um conflito que o ministro vive”, avaliou o vice-presidente da CPI e senador opositor, Randolfe Rodrigues. O mesmo sentimento foi externado pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL). “Queiroga é como um João Bobo: vai pra um lado, vai pra o outro. Entrega os anéis para não perder o cargo”.

Ao longo da tarde, o ministro ainda teve de assumir a responsabilidade pela não nomeação da infectologista Luana Araújo para a secretaria extraordinária de combate à pandemia do Ministério da Saúde e bancar a permanência de Mayra Pinheiro Aguiar na secretaria de trabalho. Araújo é uma profissional anticloroquina e, por esta razão, foi atacada nas redes sociais de militantes bolsonaristas. Pinheiro, pelo contrário, é apelidada de capitã cloroquina e foi a responsável pela implantação do aplicativo Tratecov, que orientava os médicos a prescreverem este medicamento para todos os pacientes que apresentassem sintomas de coronavírus. Na sessão, Queiroga admitiu que não há um infectologista em sua equipe no ministério, mas ficou de enviar à comissão uma lista completa das especialidades na cúpula da pasta. O Programa Nacional de Imunização é comandado por uma enfermeira infectologista e há dois consultores do ministério que também são da mesma especialidade.

O ministro, por fim, tem de se mostrar razoável, sem atacar o presidente. “A maior oportunidade da minha vida quem me deu foi o presidente Bolsonaro: enfrentar esta pandemia (...) Eu não me sinto frustrado em nada, eu me sinto muito confiante de que nós vamos vencer esta pandemia”, disse ao ser questionado se sentia frustrado de dizer uma coisa e ver o presidente fazendo outra.

O discurso de Queiroga rachou até a base governista. Defensor ferrenho da cloroquina, Luiz Carlos Heinze (PP-RS) afirmou que discordava da fala do ministro contra esse medicamento. “Não podemos desqualificar centenas e milhares de médicos brasileiros que adotaram esse procedimento”, afirmou. Já Eduardo Girão (Podemos-CE) disse que o presidente colocava Queiroga em uma saia justa. “É óbvio que eu vejo o senhor [Queiroga] numa saia justa muito grande aqui. O presidente da República dá motivos para isso quando causa aglomeração, quando não usa máscara. Nós estamos numa guerra e, numa guerra, todas as armas precisam ser usadas, e o líder máximo tinha que dar esse exemplo.”

O ministro ainda defendeu a realização da Copa América no Brasil e disse que Bolsonaro pediu que ele analisasse o protocolo das confederações sul-americana e brasileira de futebol para decidir se aceitaria ou não sediar o torneio. Queiroga deu o seu aval ao protocolo e o presidente concordou em receber o campeonato, que receberá cerca de 650 atletas e comissões técnicas de outros nove países, além de 2.000 jornalistas a partir do próximo dia 13 de junho. “Se ocorrer essa Copa América vai piorar o cenário sanitário do Brasil? Essa é a pergunta que deve ser feita. No meu entendimento, se cumprir os protocolos de segurança, não”, ponderou o ministro.

Vacinas perto da data de validade

Desde que chegou ao ministério, Queiroga colocou como sua meta aumentar a compra de vacinas. Nos 77 dias de sua gestão, o Brasil fechou o contrato de 100 milhões de novas doses, todas da Pfizer, e assinou o contrato para a transferência de tecnologia da AstraZeneca para que a vacina seja inteiramente produzida no país. Ao todo, o Brasil tem contratadas cerca de 600 milhões de doses.

No entanto, o ministro não conseguiu até o momento definir uma meta detalhada mensal da vacinação. Entre julho e agosto, por exemplo, não há a previsão de chegada de novas vacinas. O plano nacional de imunizações elaborado pelo Ministério da Saúde prevê a vacinação de 78 milhões de pessoas durante o ano. Mas os discursos de Queiroga e de Bolsonaro são de que até dezembro todos os brasileiros com mais de 18 anos de idade estarão imunizados. Ou seja, seriam 160 milhões de pessoas. A conta não fecha.

À CPI, o ministro da Saúde também confirmou que as primeiras 3 milhões de doses da vacina da Janssen, adquiridas da farmacêutica da Johnson & Johnson, chegarão ao Brasil perto do prazo de validade. Queiroga ratificou informação publicada pela Folha de S. Paulo segundo a qual o prazo para utilização do imunizante é até 27 de junho. O ministro disse que já está coordenado com Estados e municípios a aplicação rápida, mas não esclareceu porque esse prazo tão exíguo foi aceito.

Algo que já está no radar do ministério é a necessidade de se adquirir mais doses para 2022, quando provavelmente será preciso aplicar uma dose de reforço em todos os imunizados. Segundo Queiroga, 100 milhões de doses devem ser adquiridas da farmacêutica Moderna e há conversas para comprar mais 30 milhões do Instituto Butantan, neste caso, não está definido se a compra seria da coronavac, produzida em parceria com uma empresa chinesa, ou a butanvac, que é 100% nacional e está em fase de testes.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 08 JUN 2021 - 20:54 BRT

O Brasil não é só Bolsonaro

Para a "Economist", país está em sua maior crise desde o retorno à democracia. A principal razão é seu presidente. É verdade. Mas o Brasil é mais do que Bolsonaro, escreve Alexander Busch.

Protesto contra Bolsonaro no Rio de Janeiro

Nos últimos 12 anos, por três vezes o Brasil foi tema de uma reportagem especial da Economist, a principal revista de negócios do mundo. Na primeira vez, a previsão se mostrou errada: em 2009, o Cristo na capa alçava voo como um foguete. O Brasil decola era a manchete – a ascensão do país a uma potência mundial política e econômica parecia possível na época, embora, como sabemos, isso não tenha acontecido.

A segunda previsão foi profética. Em 2013, o Cristo aparecia se desintegrando na capa. "O Brasil estragou tudo?", perguntava a Economist. Isso se revelou uma sábia previsão. Na época, o verdadeiro colapso do país em tal magnitude não poderia ser previsto.

A manchete na capa mais recente é A década sombria do Brasil. O Cristo recebe ventilação artificial. E é realmente um quadro extremamente sombrio o que a Economist pinta ao longo de dez páginas, sem ousar fazer uma previsão desta vez. O título da reportagem diz tudo: À beira do abismo.

O surpreendente nesta análise é que a Economist, como publicação de referência do capitalismo liberal e da economia global, geralmente coloca a economia no centro de sua análise – para depois explicar as influências sociais, políticas ou tecnológicas que fazem com que um país não cresça, por exemplo.

No caso do Brasil, desta vez é diferente. A correspondente Sarah Maslin descreve os desafios assustadores da estagnação econômica, polarização política, degradação ambiental, regressão social e o pesadelo da covid-19. No texto, ela argumenta principalmente em termos políticos.

Ela vê o presidente Jair Bolsonaro como o culpado e a principal razão da pior crise do Brasil desde 1985, quando o país voltou à democracia. Bolsonaro, diz ela, não está interessado em reformas: ele quer destruir as instituições. "Antes da pandemia, o Brasil estava sofrendo numa década com problemas políticos e econômicos. Com Bolsonaro como seu médico, agora está em coma."

A Economist adverte sobre os graves danos que o Brasil enfrentará se Bolsonaro permanecer na presidência por mais quatro anos. O risco é real: 30% dos brasileiros apoiam a política do populista de direita.

Tudo isso é verdade. Ainda assim, é importante não esquecer: o Brasil não é apenas Bolsonaro. Trinta por cento dos brasileiros é muito, mas eles são uma minoria. O Brasil tem uma sociedade civil ativa, um Judiciário pronto para se defender, apesar de todas as suas falhas, e uma mídia vigilante. Tem negócios inovadores, mercados financeiros sólidos, sua própria base industrial. O Brasil tem uma vibrante cultura de startups, ao lado de produtores de commodities e energia que são líderes mundiais. A sociedade é jovem, há uma classe média. O país possui meia dúzia de centros políticos e econômicos.

Minha previsão, portanto, é que o Brasil também pode sobreviver a Bolsonaro. Mesmo que mais quatro anos possam causar danos irreparáveis ao país, por exemplo, no meio ambiente, educação ou pesquisa e desenvolvimento. Sem mencionar os danos sociais.

De minha parte, assino embaixo da conclusão da Economist: será difícil mudar o rumo do Brasil enquanto Bolsonaro for presidente. A prioridade mais urgente é derrotá-lo nas urnas.

A isso, não há mais nada a acrescentar.

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Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 09.06.2021

"Lula e Bolsonaro são duas visões populistas"

Em entrevista à DW Brasil, Fernando Gabeira, fundador do Partido Verde, critica polarização em torno de "visões populistas de esquerda e de direita", defende terceira via na eleição e nega um dia ter apoiado Bolsonaro: "PT tenta me atribuir isso".

Fernando Gabeira: "No Brasil, a ascensão da extrema direita se deu em torno do fracasso do processo de democratização"

O jornalista Fernando Gabeira é uma das mais notórias figuras tanto em termos de participação ativa quanto de análise política no Brasil. Deputado federal por quatro mandatos seguidos pelo Rio de Janeiro (Partido Verde e PT, entre 1995 e 2011), rompeu com o Partido dos Trabalhadores logo no início do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, tornando-se um crítico do PT.

Nos anos 1960 participou da luta armada contra a ditadura militar, o que lhe rendeu uma década de exílio em países como Chile, onde testemunhou o golpe de Estado de 1973, e Suécia, até retornar ao Rio em 1979.

Idealizador e fundador do Partido Verde na década de 1980, Gabeira concorreu à Presidência da República na primeira eleição após a Redemocratização, em 1989. Desde 2013 ele apresenta programas, conduz entrevistas e comenta os cenários políticos nacionais e internacionais no canal GloboNews.

Nesta entrevista à DW Brasil, Gabeira compara a possível eleição de Annalena Baerbock, do Partido Verde da Alemanha, à eleição do democrata Joe Biden nos Estados Unidos. "A consciência verde, que uma chanceler federal desse nível teria, seria importantíssima para questões de defesa da Amazônia."

Ele também fala sobre democracia e agenda ambiental e analisa a ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo. "Aqui no Brasil a ascensão da extrema direita se deu muito em torno do fracasso do processo de democratização e também do fracasso de um longo governo de esquerda, que durou 13 anos", afirma.

Gabeira ainda se defende de um suposto apoio ao presidente Jair Bolsonaro em 2018, além de comentar sobre uma possível terceira via para a eleição de 2022. "Tem que haver um candidato que consiga unificar todo o campo", ressalva.

DW Brasil: Há chances de Annalena Baerbock, do Partido Verde, ser eleita chanceler federal alemã em setembro. Como o senhor vê esse cenário? O senhor acredita que uma possível eleição ou participação direta do Partido Verde em uma coalizão governamental na Alemanha pode ter influência sobre outras nações, incluindo o Brasil?

Fernando Gabeira: Sem dúvidas, acho que vai ser uma notícia importantíssima. Como foi a eleição do Biden nos Estados Unidos. O Biden não é um candidato verde, mas aceitou que a questão ambiental fosse para o topo da agenda e desenvolveu um projeto de governo que tem essa característica de buscar sustentabilidade, de investir em empregos verdes, algo que eu acredito que aconteceria na Alemanha de forma talvez até mais precisa e mais bem desenvolvida.

Além disso, a consciência verde, que uma chanceler federal desse nível teria, seria importantíssima também para questões, por exemplo, de defesa da Amazônia. Vivemos um momento muito especial no Brasil, em que a Amazônia está sendo devastada por uma política deliberada do governo Bolsonaro de permitir não só o desmatamento como a atividade indiscriminada dos garimpeiros e a decadência dos povos tradicionais que têm uma grande importância na defesa da floresta.

A Alemanha e a Noruega tinham um fundo dedicado precisamente a financiar projetos sustentáveis na Amazônia. Esse fundo foi sabotado pelo Bolsonaro, e a ajuda foi suspensa. Muito possivelmente, com a ascensão dos verdes, essas negociações podem voltar ou, pelo menos, pode haver uma política mais intensa de pressão para que a Floresta Amazônica seja preservada.

Por que o Partido Verde não deu certo ou não tem alcançado resultados tão expressivos no Brasil, mesmo após um crescimento interessante em termos eleitorais e representativos nos anos 1990 e 2000? Por que o PV não tem a mesma força que seus partidos-irmãos em países desenvolvidos?

Eu acho que houve um bom impulso inicial. Houve a possibilidade de concorrer em eleições legislativas. Foi possível disputar eleições majoritárias nas quais o Partido Verde, aqui no Rio de Janeiro, era cabeça de chapa, e outros partidos eram ligados ao PV. Mas houve um processo mais amplo que acabou atingindo o PV.

Primeiro: de decomposição muito rápido da democracia no Brasil. Parcial e inicialmente, pelo fato de que a esquerda, no poder, foi atingida por denúncias de corrupção muito sérias e não conseguiu se recuperar disso. Então aquela velha aliança que existia entre a esquerda e o PV, que era uma espécie de reprodução da aliança verde-vermelha na Europa, acabou se dissolvendo, parcialmente pela minha decisão de sair, de romper com o PT e denunciar também o processo de corrupção.

Faltou uma espécie de conjunto de intelectuais e de pessoas que pudessem não só formular um Partido Verde, mas sim adaptar o programa do PV a cada instante do momento histórico, de responder a cada situação histórica. E como os candidatos eleitos pelo Partido Verde sempre dependeram, da sua reeleição, de uma certa boa vontade do governo, eles não fizeram a oposição necessária para se colocarem como uma alternativa à esquerda e à direita no Brasil. Eles não conseguiram, digamos assim, montar uma espécie de estaca para uma posição mais no centro que pudesse afastar os extremismos e oferecer uma alternativa.

Mas as necessidades históricas continuam. O Brasil continua sendo uma potência ambiental em um momento em que o mundo cada vez mais se mostra interessado no desenvolvimento sustentável, em combater o aquecimento global através de programas bem claros. Então as possibilidades para que o Brasil assuma um programa verde e tenha uma inserção internacional melhor continuam de pé. Se isso não acontecer através de um partido verde, eu acho que isso pode acontecer através da influência de algum partido existente, como aconteceu nos Estados Unidos: a não existência de um forte partido verde nos EUA não impediu que o tema fosse para o topo da agenda.

Mas qual seria a fórmula para o PV ter mais representatividade e atuar de forma ativa na política nacional?

O caminho talvez seja uma espécie de aliança, na qual verdes e deputados sensíveis à questão ambiental em outros partidos possam formar uma espécie de aliança e conduzir essa questão ambiental dentro dos programas das eleições de 2022. O Brasil vai à eleição em 2022, e certamente essa questão ambiental vai ser muito importante na agenda.

O Brasil é o país que tem a maior biodiversidade do planeta e, assim, tem pautas ambientais muito pertinentes. As questões ambientais têm sido cada vez mais destacadas e debatidas no mundo todo. No entanto, elas ainda parecem muito distantes e inexpressivas para boa parte da população brasileira. A que o senhor atribui isso?

A uma série de questões. A primeira delas é que a população brasileira tem uma série de necessidades que, aparentemente, não são ambientais, mas que deveriam ser parte de um programa ambiental. Quando falamos em meio ambiente e na defesa da Amazônia, [esses são] temas universalmente reconhecidos. Para a população urbana brasileira, sobretudo a população pobre, essas questões não têm tanto significado, mas se você souber, por exemplo, afirmar uma luta pelo saneamento básico, por uma água pura, você teria condições de avançar muito mais.

Eu acho que o problema é saber encontrar no cotidiano da população aquelas questões que são importantíssimas, mas nunca foram reconhecidas como ambientais. Metade dos brasileiros não tem acesso a esse recurso [estima-se que falta saneamento básico a 100 milhões, e água potável para 35 milhões de pessoas no Brasil]. Então um programa ecológico evidentemente passa por essas questões que universalmente são reconhecidas. Mas também por um exame da vida e das necessidades das populações que vivem situações concretas no Brasil.

Alguma influência política faria alguma diferença nesse sentido?

Eu acho que sim. Não haver saneamento básico para metade da população é um sinal do fracasso das elites políticas. Nós já vivemos um momento longo de redemocratização, que começou na década de 1980, e já teríamos que ter isso resolvido. Essa questão foi resolvida por alguns países já no século 19. Nós deixamos passar o século 20, entramos no século 21 e agora vamos talvez esperar uns 30 anos para resolver essa questão. Mas eu acho que ela tem que ser politizada. Ela tem que ser um tema da agenda política, assim como a questão da água potável.

E nas grandes populações urbanas eu acho que tem que se colocar a qualidade de vida. As pessoas vivem em áreas remotas, não há parques, não há lazer, não há um trabalho voltado para a qualidade de vida. Você tem o equipamento social concentrado nos centros e nos bairros ricos, e nos bairros mais pobres você tem um ajuntamento de casas.

A eleição de 2022 se aproxima com uma possível polarização entre Lula e Bolsonaro. Como o senhor enxerga esse cenário?

A polarização é tudo que as pessoas veem no momento. Mas existe um trabalho de articulação para ver se é possível apresentar um candidato que não seja nem um nem outro. Um candidato de centro que possa expressar alguma expectativa mais moderna. Porque, de um modo geral, são duas visões populistas: uma de esquerda e outra de direita. Articula-se muito sobre isso. Mas vai depender também da evolução dos acontecimentos.

O Bolsonaro tem tido, nos últimos meses, um desgaste muito grande. O prestígio dele tem caído. Pode ser que daqui a um ano e meio ele esteja tão desgastado que não vá ao segundo turno, e o segundo turno seja entre um candidato do centro e um da esquerda. É possível que isso aconteça. Mas é muito difícil prever essa situação porque, no momento, tudo indica ainda que a polarização é entre o Bolsonaro e o Lula.

O senhor acredita em uma terceira via por meio de um candidato de centro?

Se forem preenchidas algumas condições. Eu acho que o campo não pode estar muito atravancado. Tem que haver um candidato que consiga unificar todo o campo. Se isso for possível, e se ele conseguir se apresentar de uma forma tranquila nas eleições, pode ser que grande parte da população queira olhar para frente. O que você tem hoje é uma grande insatisfação com o Bolsonaro e uma lembrança do governo do PT como alternativa.

Uma outra condição é um programa que saiba interpretar as necessidades atuais do Brasil. E uma terceira condição é a capacidade de falar com a população com uma linguagem inteligível. Os dois outros candidatos, o Lula e o Bolsonaro, cada um à sua maneira, se comunicam muito bem com a população. Eles têm uma linguagem, um estilo que é facilmente reconhecível. Nós precisaríamos de um candidato que tenha também não só essa capacidade de unir e um programa moderno, mas que tivesse essa linguagem e essa proximidade com o povo.

Mas o senhor enxerga algum possível candidato?

Existem vários candidatos na arena tentando viabilizar o nome. Existem alguns que teriam essas condições de falar com o público porque já vêm de um processo profissional que possibilita isso. É o caso do Luciano Huck, por exemplo. Ele faz um programa de televisão com vários quadros voltados para a população mais pobre, destinados a ajudar as pessoas no cotidiano. Então ele tem uma linguagem mais próxima. Mas, ao mesmo tempo, ele está sendo seduzido por um trabalho na televisão com um salário astronômico, então possivelmente não enfrente a situação.

Existem outros que estão aí no centro, tentando, que são candidatos, como é o caso do Ciro Gomes, do PDT, do João Amoêdo, do Partido Novo, do Mandetta, que foi ministro da Saúde. Todos eles estão tentando botar um pé, mas nenhum deles se apresenta ainda como candidato e não entra na arena com a clareza que o Bolsonaro e o Lula têm.

As instituições políticas e o atual governo estão em crise em vários aspectos. O senhor acredita numa reeleição de Bolsonaro?

Eu acho que a situação é muito imprevisível, mas eu acredito que, em termos eleitorais, o governo tende a ser derrotado. O único problema que vai se colocar é se ele aceitará ou não a derrota porque o governo já iniciou uma campanha questionando o voto eletrônico. Um voto que ninguém contesta no Brasil, um tipo de votação bastante moderno, e ele quer que se volte ao tempo de se oferecer um certificado de papel.

O voto impresso.

É, exatamente. Ele está preparando as circunstâncias para que a vitória do candidato que eventualmente lhe derrotar não seja legítima. Um pouco parecido com o processo dos EUA.

O gasto com o voto impresso seria de mais de R$ 2 bilhões.

É, então muito possivelmente isso não vai acontecer. É possível que não aconteça, e ele vai questionar a votação eletrônica dizendo que foi uma fraude. É um problema perigoso porque você pode reproduzir em escala até maior aquelas manifestações da invasão ao Capitólio.

O senhor acha que é possível isso ocorrer? 

Em 2013, ocorreram os protestos contra o governo petista que levaram milhares de pessoas à Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Não houve uma invasão, mas uma "tomada externa" de prédios e da Esplanada.

Eu acho mais difícil. Uma vez que o processo eleitoral está se aproximando, eu acho que todas as expectativas de mudança acabam se canalizando para a mudança eleitoral. E o tipo de manifestação do Capitólio é diferente das de 2013. As de 2013 foram massivas. As manifestações no Capitólio são resultado de uma extrema direita organizada.

A agressividade e a violência estão cada vez mais evidentes na política brasileira desde o começo da última década. O senhor pensa que será possível, um dia, existir um Brasil politicamente mais consciente em termos democráticos?

Eu acho que tem que se trabalhar com essa perspectiva, com esse objetivo. Mas você vê que países como os EUA, que têm um pouco mais de maturidade nesse campo da democracia, viveram momentos difíceis agora com a eleição do Biden e o questionamento do Trump e essas tentativas todas. Eu acho que o processo de amadurecimento virá, mas ele será muito tumultuado, muito cheio de episódios dramáticos no caminho. Manifestações, protestos, violência policial: tudo isso está previsto no caminho.

O senhor então não acredita que essa truculência vá deixar de existir tão cedo na política brasileira?

Eu acho que ela pode ser atenuada, mas deixar de existir é um pouco de ilusão. Eu acho que temos que contar com esses fatores ainda.

Em 2018, o senhor disse que a eleição de Bolsonaro era "uma forma de virar a mesa", ou seja, uma tentativa de alterar o jogo político do país. No ano passado, o senhor mostrou-se arrependido quanto ao "perigo que Bolsonaro representava em 2018". O senhor, na época, apoiou Bolsonaro?

Eu vou explicar o que eu quis dizer, mas isso foi extraído do contexto pelo PT. Exatamente uma tentativa de tentar me culpar pela vitória do Bolsonaro quando, na verdade, o PT tem uma culpa muito maior do que eu [risos]. Quando eu disse que o Bolsonaro significava uma virada de mesa, eu estava dizendo que isso significava para os eleitores dele. Por duas razões: primeiro porque, para os seus eleitores, significava uma luta contra a corrupção, que ele negou agora. Segundo porque ele significava também uma pessoa com a intenção de reduzir a violência urbana. Ele tinha uma política de segurança, algo que os outros candidatos não tinham claramente.

Mas isso não significa, de forma alguma, que eu concorde com essa política do Bolsonaro. Pelo contrário. A política de segurança dele é baseada em aumento da violência, baseada em armamento, em autorização para matar, enquanto a minha visão de política de segurança é baseada em desarmamento, em inteligência, enfim, é de respeito aos direitos humanos, é completamente diferente.

Então o PT tentou me atribuir isso como se eu tivesse alguma expectativa no Bolsonaro a respeito de uma mudança real no país. Não. Eu não tinha isso. Eu convivi com ele por 16 anos, eu conheço as limitações dele. Agora, isso é a lenda que o PT desenvolve, no sentido de dizer que de uma certa maneira eu apoiei o Bolsonaro. E isso também é a forma de me punir por não ter votado no candidato deles. Nas eleições, eu votei nulo. Eu não queria votar nem no PT nem no Bolsonaro. No segundo turno. No primeiro turno, eu votei na Marina.

Como o senhor enxerga a ascensão da extrema direita em alguns países europeus nos últimos anos, e também nos EUA e no Brasil? Qual é a mensagem que isso passa para o mundo e o eleitorado, na sua opinião?

É muito difícil entender essa ascensão da extrema direita de uma forma única. Acho que na Europa a questão da imigração tem um peso fora do comum que não existe aqui no Brasil. Quase toda ascensão da extrema direita na Europa se deu em função do medo e da rejeição aos imigrantes. Na França, na Hungria, em quase todos os países existe uma espécie de revolta de um setor da população que acha que os imigrantes estão invadindo, disputando empregos, trazendo violência, dissolvendo os costumes e as tradições.

Aqui no Brasil a ascensão da extrema direita se deu muito em torno do fracasso do processo de democratização e também do fracasso de um longo governo de esquerda que durou 13 anos. Sempre houve no Brasil uma disputa entre direita e esquerda. Mas isso dentro de um contexto democrático. Às vezes, o PSDB criava uma aliança de centro-direita e vencia as eleições contra o PT, que representava a esquerda. Mas o processo de decadência do regime democrático no Brasil, marcado sobretudo pela distância das eleições.

As eleições, no Brasil, se transformaram em algo muito caro. São gastos milhões de dólares. E, para isso, houve uma espécie de aproximação dos empresários que atuam com o governo ou que têm esperança de atuar com o governo e os partidos políticos. Então todas as eleições passaram a ser uma espécie de associação de partidos políticos com empresários querendo lucrar com eles. E os partidos, em função disso, se afastaram muito da própria população e dos anseios da população.

Esse processo de decadência geral da democratização que tinha, naquele momento específico, o PT e a esquerda como, digamos assim, os guardiões do sistema político, que estava no poder, foi muito explorado pela extrema direita no sentido de mostrar que era preciso mudar tudo, rever tudo. Parcialmente, utilizando o tema da corrupção e também a violência urbana. O que aparentemente funcionou no Brasil como um instrumento de medo é exatamente a violência nas grandes cidades, mas também a presença da população mais pobre, em situação muito dramática. Ela teve também um papel indireto, não específico como dos imigrantes na Europa.

Isso tudo permitiu que a extrema direita ascendesse. Mas ela não teve as mesmas características. Você vê, por exemplo, que a extrema direita no Brasil, quando se tratou de receber imigrantes da Venezuela, ela foi extremamente generosa, porque a Venezuela era um país de esquerda, e era preciso estabelecer essa abertura para os imigrantes da Venezuela. Aqui o tema não foi imigração. Foram a pobreza interna, a violência urbana e a decadência do sistema democrático.

Deutsche Welle Brasil, em 09.06.2021

Canais bolsonaristas investigados ganharam R$ 4 milhões no YouTube, segundo PGR

Investigações da Polícia Federal (PF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre atos antidemocráticos apontaram que 12 canais no YouTube de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro receberam cerca de US$ 1,1 milhão em monetização dos vídeos. 

O valor, que vai de junho de 2018 a maio de 2020, corresponde a cerca de R$ 4,2 milhões em valores convertidos com o câmbio médio da época.

Divulgação do inquérito expôs divergências entre órgãos envolvidos na investigação, cujo futuro ainda será decidido pelo STF. (CRÉDITO,GETTY IMAGES)

"Para que se tenha uma dimensão dos volumes envolvidos nesse mercado, um relatório de uma empresa especializada em análises estatísticas de páginas do YouTube dá conta de que as 829 mil visualizações obtidas com o vídeo da 'live' que o presidente gravou no último dia 3 de maio na frente do Palácio do Planalto podem ter gerado um lucro entre 6 mil e 11 mil dólares para o administrador do canal "Folha Política", que tem 1,8 milhões de inscritos", afirma inquérito da PF cujo sigilo foi levantado nesta segunda-feira (7) pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em depoimentos, todos os responsáveis por esses canais negam qualquer tipo de irregularidade.

A divulgação do inquérito expôs divergências entre os órgãos envolvidos na investigação, cujo futuro ainda será decidido pelo STF.

Para o vice-procurador-geral Humberto Jacques, por exemplo, a PF deixou de investigar diversos pontos ligados ao faturamento dos investigados, inclusive com dinheiro público, e não conseguiu determinar "o envolvimento do governo federal na movimentação de recursos para a propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política e de outros crimes previstos na lei de segurança nacional" - a PGR aponta, por exemplo, que a PF não pediu relatórios de monetização ao Facebook e ao Instagram e nem compilou os dados de ganhos com publicidade repassados pelo Google.

A PGR também critica o YouTube, controlado pelo Google, por ter gerado lucro expressivo e faturado "certamente muito mais" com esse tipo de conteúdo antidemocrático "a despeito da existência de indícios concretos de que a plataforma tinha conhecimento de que esses produtores estavam em desconformidade com as políticas e as diretrizes do seu programa de parcerias".

Questionado pela BBC News Brasil sobre as críticas da PGR, o Google, empresa dona do YouTube, disse por meio de um porta-voz que "apoia consistentemente o trabalho das autoridades, produzindo dados em resposta a pedidos específicos, desde que sejam feitos respeitando os preceitos constitucionais e legais previstos na legislação brasileira".

A empresa afirmou também que o uso do YouTube por qualquer pessoa está sujeito à revisão de acordo com suas "diretrizes da comunidade". "Quando não há violação das políticas do YouTube, a decisão sobre a necessidade de remoção do conteúdo cabe ao Poder Judiciário, de acordo com o que estabelece o Marco Civil da Internet", acrescentou o porta-voz.

Na investigação, coube à PGR tabular os faturamentos dos canais investigados no inquérito da PF. Os três canais mais lucrativos, segundo levantamento do Ministério Público, são: Folha Política (US$ 486 mil), Folha do Brasil/Foco do Brasil (US$ 307 mil) e O Giro de Notícias (US$ 219 mil). Por outro lado, os dois menos lucrativos pertencem a Emerson Teixeira (US$ 352) e a Sara Winter (US$ 2.126), que chegou a ser presa em investigação sobre disseminação de conteúdo falso na internet e ameaças ao STF.

Quanto 12 canais bolsonaristas faturaram no YouTube, segundo cálculo da PGR. Levantamento em dólares vai de junho de 2018 a maio de 2020.  

O Folha Política, que tem 2,4 milhões de inscritos e gera ganhos de R$ 50 mil a R$ 100 mil por mês, é controlado pelo casal Ernani Fernandes e Thais Raposo, sócios da empresa Raposo Fernandes Marketing Digital.

Durante a eleição presidencial, o Facebook anunciou ter derrubado 68 páginas e 43 contas administradas pelo casal "por violação de nossas políticas de autenticidade e de spam". A plataforma disse que a suspensão não estava ligada ao conteúdo publicado, mas às práticas de spam, "uma tática geralmente usada por pessoas mal intencionadas para aumentar de maneira artificial a distribuição de conteúdo com o objetivo de conseguir ganhos financeiros".

Segundo a plataforma, grupos como o de Fernandes e Raposo usam "cada vez mais conteúdo sensacionalista político - em todos os espectros ideológicos - para construir uma audiência e direcionar tráfego para seus sites fora do Facebook, ganhando dinheiro cada vez que uma pessoa visita esses sites".

No YouTube, o vídeo mais assistido do canal Folha Política é "Fim da 'mamata' para presos: Veja vídeos em que Bolsonaro anunciou o que pretende fazer com…", com 5,4 milhões de visualizações. Um vídeo "monetizado" significa que é acompanhado por anúncios que podem gerar dinheiro tanto para os criadores quanto para o YouTube.

"O vídeo da 'live' presidencial no dia do Exército rendeu 1,5 milhão de visualizações ao canal 'Foco do Brasil', e pode ter proporcionado um lucro entre 7,55 mil a 18,8 mil dólares apenas com os recursos de monetização oferecidos pela plataforma", afirma a PF.

Segundo os investigadores, o canal Foco do Brasil (ou Folha do Brasil) recebeu sistematicamente vídeos de Bolsonaro enviados por Tercio Arnaud Tomaz, assessor do presidente apontado como integrante do chamado "Gabinete do Ódio", termo para designar um grupo dentro do Palácio do Planalto que supostamente dissemina mensagens difamatórias contra adversários de Bolsonaro e cuida de suas redes sociais. O Planalto nega que exista um grupo do tipo na estrutura institucional da Presidência.

Segundo investigadores, Tercio Arnaud Tomaz, funcionário do Planalto e tido como membro do Gabinete do Ódio, passava sistematicamente vídeos do presidente para canais no YouTube investigados. (CRÉDITO,FACEBOOK/REPRODUÇÃO)

Anderson Azevedo Rossi, dono do canal, afirmou em depoimento que seus ganhos mensais com o canal variam de R$ 50 mil a R$ 140 mil.

Mas a estrutura de faturamento dos canais vai além dos ganhos com visualizações. No inquérito, os investigadores explicam que o faturamento "advém de um programa de parceria que envolve receita de publicidade decorrente da veiculação de anúncios gráficos, de sobreposição e em vídeo, provenientes de empresas e órgãos públicos; de valores advindos de assinaturas dos canais; da compra de produtos oficiais divulgados nas páginas de exibição; da aquisição, pelos usuários, de destaque no chat das transmissões ao vivo e até mesmo de uma parcela da taxa do serviço de assinatura paga de 'streaming' livre de propagandas".

A PF afirma que "com o objetivo de lucrar, estes canais (no YouTube), que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros".

Além disso, "a investigação permitiu identificar a existência de um grupo de pessoas que se influenciam mutuamente, tanto pessoalmente (em manifestações públicas, por exemplo), como por meio de redes sociais digitais (…), com o objetivo de auferir apoio político-partidárias por meio da difusão de ideologia dita conservadora, polarizada à direita do espectro político."

Rixa entre PF e PGR sobre futuro da investigação

Mas o resultado da investigação da PF desagradou a PGR, que pediu o arquivamento do inquérito.

De um lado, a PF diz em seu relatório final, de janeiro deste ano, que não conseguiu aprofundar alguns aspectos da investigação porque diligências solicitadas em junho de 2020 não foram autorizadas após discordância da PGR.

Ministro do STF Alexandre de Moraes vai decidir sobre futuro do inquérito de manifestações antidemocráticas de 2020 (CRÉDITO,ROSINEI COUTINHO/SCO/STF)

D outro, a PGR acusa a Polícia Federal de não ter conduzido uma investigação eficiente ao longo de meses de apuração e diz que a PF deixou de realizar uma série de análises dos materiais apreendidos nas ações de busca e apreensão.

Para o vice-procurador-geral Humberto Jacques, que assina o pedido de arquivamento apresentado em 4 de junho, a falta de resultados obtidos pela PF justificam o encerramento do inquérito contra autoridades com foro no STF.

Ele, porém, concordou com o pedido de abertura de outros seis inquéritos pela PF para apurações mais específicas de possíveis crimes cometidos por pessoas que não têm prerrogativa de função. Nesse caso, Jacques recomendou que as investigações sejam remetidas à primeira instância.

Matheus Magenta, de Brasília e Mariana Schreiber, de Londres, para a BBC News Brasil, 8 de junho 2021.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Operação global usa app de mensagens desenvolvido pelo FBI para prender 800 pessoas em 17 países

Demanda pelo dispositivo Anon disparou conforme os policiais fechavam redes criptografadas rivais mais antigas e era recomendado por figura importante no mundo do crime

       Aplicativo Anom em uma tela de celular exibida em Paris; FBI comercializou aplicativo criptografado próprio para combater o crime  Foto: Olivier Morin/AFP

Quadrilhas de tráfico de drogas, assassinos contratados e traficantes de armas pensaram que estavam usando telefones criptografados seguros e de alto custo que os protegeriam enquanto discutiam abertamente as transações de drogas por mensagem de texto. Teve até fotos de abacaxis embalados com cocaína. Mas o que eles estavam realmente fazendo, investigadores revelaram nesta terça-feira, 8, era canalizar seus planos direto para as mãos de agentes de inteligência dos EUA.

Uma coalizão internacional de policiais e investigadores anunciou que havia capturado supostos criminosos em todo o mundo após induzi-los a usar telefones carregados com um aplicativo de mensagens criptografadas controlado pelo FBI.

Chefe da máfia turca faz sucesso com vídeos em que acusa autoridades de corrupção

O esforço audacioso - liderado pelo FBI, a polícia australiana e uma série de agências europeias de aplicação da lei - deu aos oficiais uma janela para as conversas das redes criminosas, enquanto as pessoas planejavam carregamentos de drogas ilegais, tramavam roubos e fechavam contratos para assassinatos.

Policiais - alguns dos quais mal conseguiram conter sua alegria nesta terça-feira - anunciaram que prenderam mais de 800 pessoas e ganharam um entendimento sem precedentes sobre o funcionamento de redes criminosas modernas que continuariam alimentando investigações muito além dos ataques internacionais coordenados que ocorreram recentemente.

"O esforço foi uma das maiores e mais sofisticadas operações de aplicação da lei até o momento na luta contra atividades criminosas criptografadas", disse Jean-Philippe Lecouffe, vice-diretor executivo de operações da Europol, a agência que coordena a atividade policial entre os 27 países da União Europeia, em uma entrevista coletiva em Haia.

Por quase três anos, os policiais estiveram virtualmente dentro no bolso de trás de algumas das principais figuras do mundo do crime. Celulares personalizados, comprados no mercado paralelo e instalados com a plataforma controlada pelo FBI, chamada Anom, circularam e cresceram em popularidade entre os criminosos à medida que entidades criminosas de alto perfil atestavam sua integridade.

O comissário da Polícia Federal Australiana, Rece Kershaw (D), e o primeiro-ministro Scott Morrison (L) em entrevista coletiva em Sydney  Foto: Dean Lewins/EFE

No passado, o FBI desarticulou plataformas criptografadas usadas por criminosos para se comunicarem e se infiltrou em outras. Desta vez, decidiu comercializar um aplicativo criptografado próprio para combater o crime organizado, o tráfico de drogas e as atividades de lavagem de dinheiro em todo o mundo. O esforço do FBI foi auxiliado por um colaborador pago que anteriormente havia comercializado outros dispositivos criptografados para membros do submundo do crime global.

Autoridades australianas revelaram a operação em virtude da necessidade de interromper tramas perigosas que estavam em curso no aplicativo e por causa do caráter limitado das autorizações legais para interceptar as mensagens. 

Além disso, segundo o FBI, a investigação foi encerrada perto do fim da autorização porque as provas reunidas já seriam suficientes, de acordo com Suzanne Turner, uma das responsáveis pelo caso nos EUA.

Mensagens diretas para a polícia

Um grande avanço veio depois que alguns policiais australianos se reuniram com agentes do FBI em 2018 para tomar algumas cervejas, de acordo com as autoridades. Os australianos, então, desenvolveram uma capacidade técnica para acessar, quebrar a criptografia e ler comunicações na plataforma do FBI. Os usuários acreditavam que seus dispositivos Anom estavam protegidos por criptografia. Eles realmente estavam, mas todas as mensagens também foram enviadas diretamente para os agentes da lei.

“Essencialmente, eles se algemaram ao endossar e confiar no Anom e se comunicar abertamente dentro dele - sem saber que estávamos assistindo o tempo todo”, disse o comissário da Polícia Federal Australiana, Reece Kershaw.

A operação global, conhecida como Operação Especial Ironside na Austrália e Trojan Shield nos Estados Unidos e na Europa, supostamente expôs criminosos ligados a cartéis de drogas sul-americanos, grupos de tríades na Ásia e quadrilhas criminosas com bases no Oriente Médio e na Europa. No total, 17 países participaram do esforço.

Imagem fornecida pela polícia da Nova Zelândia registra parte do dinheiro apreendido na operação policial global  Foto: New Zealand Police via AP

As autoridades disseram que as batidas nesses países nos últimos dias apreenderam mais de 8 toneladas de cocaína, 22 toneladas de maconha e haxixe, 2 toneladas de metanfetamina e anfetamina, 250 armas de fogo, 55 veículos de luxo e mais de US$ 48 milhões em dinheiro e criptomoedas.

"A operação desferiu um forte golpe contra o crime organizado não apenas neste país, mas que ecoará no crime organizado em todo o mundo", disse o primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison.

45 idiomas

Mais de 9 mil policiais estiveram envolvidos, examinando 27 milhões de mensagens enviadas por meio do aplicativo durante os 18 meses de operação. Os criminosos suspeitos usaram o aplicativo como um WhatsApp ilícito ou sistema de mensagem de texto, comunicando-se em 45 idiomas para trocar detalhes de suas atividades, disseram as autoridades. Os países com mais usuários foram Alemanha, Holanda, Espanha, Austrália e Sérvia, de acordo com um processo do FBI em um tribunal federal que foi aberto na noite de segunda-feira.

“Para se ter uma ideia da magnitude de nossa penetração, pudemos ver fotos de centenas de toneladas de cocaína escondidas em carregamentos de frutas. Conseguimos ver centenas de quilos de cocaína escondidos em produtos enlatados”, disse Calvin Shivers, diretor assistente da Divisão de Investigação Criminal do FBI, a repórteres em Haia. “Os resultados são surpreendentes.”

A demanda pelo dispositivo disparou conforme os policiais fechavam redes criptografadas rivais mais antigas, incluindo uma chamada EncroChat que foi desmontada em julho de 2020 e outra, Sky Global, que foi atacada em março. Antes disso, havia cerca de 3 mil usuários de dispositivos vigiados pelo FBI. Depois disso, esse número quase triplicou, disse o processo do FBI.

A operação foi revelada na terça-feira em parte porque um mandado de um terceiro país para encaminhar mensagens às autoridades dos EUA expirou em 7 de junho, disse o documento. O procurador interino dos EUA em San Diego Randy Grossman anunciou na terça-feira que seu escritório acusou 17 estrangeiros de distribuir milhares de dispositivos de comunicação criptografados para grupos criminosos. Oito deles, disse ele, foram presos. Os demais são considerados fugitivos.

“A grande ironia aqui é que os próprios dispositivos que esses criminosos estavam usando para se esconder da polícia eram na verdade faróis para a aplicação da lei”, disse Grossman em um comunicado. 

O procurador americano Randy Grossman apresenta algumas das apreensões na operação global   Foto: Denis Poroy/AP

Os usuários normalmente pagam entre US$ 1.500 e US$ 2.000 por um plano de serviço de seis meses para esses dispositivos e normalmente só conseguem ter acesso ao receber o sinal verde de um usuário atual, afirma o documento, uma etapa que aumenta a confiança do usuário. 

Em uma entrevista coletiva para anunciar a operação, as autoridades americanas disseram que, embora a tecnologia de criptografia tenha benefícios, a operação mostra como pode ser explorada por atores nefastos. “A criptografia também permite que os criminosos operem no mesmo ambiente seguro e protegido, ocultando suas comunicações em um manto de sigilo”, disse Suzanne Turner, a agente especial encarregada do FBI em San Diego.

Policiais globais tiveram sorte com Anom logo no início porque um membro do submundo do crime australiano, Hakan Ayik, um dos criminosos mais procurados do país, elogiou o dispositivo para seus associados e encorajou sua adoção.

“Ele era um dos coordenadores deste dispositivo em particular. Então, ele basicamente entregou seus próprios colegas”, disse Kershaw, o comissário de polícia australiano, a repórteres na terça-feira, dizendo que ele deveria se entregar, considerando a ameaça que enfrenta.

Detalhes

As autoridades descreveram o esforço abrangente e perturbador que esperam que resulte em um sério revés para as redes criminosas em seus países. O processo judicial dos EUA ofereceu detalhes das interações que as autoridades testemunharam no aplicativo: disputas intrincadas sobre os custos de distribuição de drogas, fotos das formas como as drogas eram escondidas, interações amigáveis entre supostos criminosos.

“Há 2 kg colocados em envelopes diplomáticos franceses selados de Bogotá (Colômbia)", escreveu um usuário em março de 2020. “'O único problema é que o COL leva 50/4 Parceiros, incluindo você, precisarão dividir outros 50”.

O processo explicava que os distribuidores colombianos ficariam com 50% dos lucros dos carregamentos de cocaína escondidos na mala diplomática, enquanto outras quatro pessoas dividiriam o restante.

Na Austrália, a polícia usou informações enquanto a operação estava em andamento para apreender 3,7 toneladas de drogas, 104 armas e cerca de US$ 35 milhões em dinheiro. Durante esse tempo, os supostos criminosos não tinham ideia de por que suas drogas estavam sendo apreendidas e suas tramas frustradas, disse a polícia.

A polícia disse que interrompeu uma série de possíveis homicídios, incluindo um complô envolvendo planos para atirar em uma família de cinco pessoas em um café.

Na Suécia, que lutou contra as redes de drogas nos últimos anos, um alto funcionário disse que as autoridades realizaram um dos ataques mais importantes de todos os tempos contra o crime violento e as redes de drogas.

A oficial Linda Staaf, chefe de inteligência da Autoridade Policial Sueca, disse que nos últimos dias, 70 pessoas foram presas. "Muitas delas eram pessoas com papéis essenciais e forte influência no mercado de drogas: aqueles que instigam assassinatos e violência por tiroteios e explosões bem no meio da sociedade sueca.” 

As autoridades dos EUA disseram que entre os presos estavam seis policiais corruptos.

Uma importante oficial da polícia holandesa ficou satisfeita com o que considerou o sucesso do aplicativo. “Tem boa reputação entre os criminosos. Eles o promovem mutuamente como a plataforma que você deve usar para sua confiabilidade absoluta”, disse Jannine van den Berg, comissária-chefe da unidade nacional da polícia holandesa. “Mas nada estava mais longe da verdade.”/

Redação, O Estado de S.Paulo, em 08 de junho de 2021 | 17h09. Atualizado 08 de junho de 2021 | 19h49 NYT e WASHINGTON POST

Presidente do STF rebate líder do governo que defendeu descumprir decisões judiciais

Deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR) criticou o Judiciário e disse que 'vai chegar a hora' de decisões judiciais deixarem de ser cumpridas

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, reagiu nesta terça-feira, 8, às declarações do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), sobre descumprir decisões judiciais. “O respeito a decisões judiciais é pressuposto do Estado Democrático de Direito”, disse Fux ao Estadão.

Horas antes, em um evento organizado pelo jornal Correio Braziliense e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), Ricardo Barros criticou o Judiciário e disse que “vai chegar a hora” de decisões judiciais deixarem de ser cumpridas.

A ameaça de descumprimento surgiu enquanto o parlamentar falava sobre o que ele considerou como “avanços do Judiciário sobre prerrogativas” do Poder Executivo.

Ao comentar a determinação do STF para que o governo realize o censo demográfico em 2022, o parlamentar reclamou de decisões que não têm “nenhum fundamento”.

“O Judiciário vai ter que se acomodar nesse avançar nas prerrogativas do Executivo e Legislativo. Vai chegar uma hora em que vamos dizer (para o Judiciário) que simplesmente não vamos cumprir mais. Vocês cuidam dos seus que eu cuido do nosso, não dá mais simplesmente para cumprir as decisões porque elas não têm nenhum fundamento, nenhum sentido, nenhum senso prático”, afirmou.

No evento, voltado a debater a reforma tributária, o líder do governo na Câmara sugeriu que a legislação tenha mecanismos que permitam que empresários reajam a juízes, promotores de Justiça e auditores fiscais.

Essas categorias, para o deputado, formam uma “classe de inimputáveis” que fazem “ativismo político” e precisam ser enfrentados. O fato de moverem processos e aplicarem multas e penalidades que, mais tarde, acabam sendo revistas deveria resultar em reparações, na opinião do deputado.

“Promotores, juízes, auditores fiscais podem ir na sua empresa, lhe multar em R$ 100 milhões, bloquear seus bens para garantir esses R$ 100 milhões. E, depois de 10 anos, você vai no conselho de contribuintes, ganha, e o que acontece? Nada”, disse, antes de prosseguir:

“Quando a nossa Constituição diz que todos somos iguais perante a lei, precisamos fazer valer isso porque essa classe de inimputáveis, que faz ativismo político, que prejudica a tantos… para eles é apenas um comentário no cafezinho do fórum: ‘você viu o que eu fiz?’. Isso é uma coisa que o Brasil tem que enfrentar. Se não enfrentarmos, não vamos avançar”.

Vinícius Valfré, de BRASÍLIA para O Estado de S. Paulo, em 08 de junho de 2021 | 18h37

Brasil supera 17 milhões de infectados pelo coronavírus

País teve 52.911 novos casos de covid-19, o que eleva o total de pessoas infectadas para 17.037.129. Com 2.378 novas mortes, número de óbitos em solo brasileiro é de 476.792.    

Vários leitos ocupados vistos de cima em hospital de campo em São Paulo. Total de infecções de covid-19 no Brasil chega a 17.037.129, e os óbitos somam 476.792.

Total de infecções de covid-19 no Brasil chega a 17.037.129, e os óbitos somam 476.792

O Brasil registrou oficialmente nesta terça-feira (08/06) 2.378 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 52.911 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 17.037.129, e os óbitos somam 476.792.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 15.408.401 pacientes haviam se recuperado da doença até estar terça-feira.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 598 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,3 milhões) e Índia (28,9 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 226,9 no Brasil, a 10ª mais alta do mundo, quando desconsiderado o país nanico de San Marino.

Ao todo, mais de 173,7 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,74 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 08.06.2021

PF indicia líder do governo Bolsonaro sob suspeita de propina de R$ 10 milhões em obras no Nordeste

Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) teria recebido valores em troca de benefícios a construtoras quando era ministro da Integração Nacional

O senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) durante reunião da comissão mista que analisa a Medida Provisória 870/19 - Marcelo Camargo/Agência Brasil

A Polícia Federal indiciou o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-AL), líder do governo de Jair Bolsonaro no Senado, e seu filho, o deputado Fernando Coelho Filho, por suspeita dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, associação criminosa, falsidade ideológica e omissão de prestação de contas.

A delegada do caso afirma em seu relatório final de 300 páginas ter encontrado indícios que demonstram que pai e filho receberam R$ 10,4 milhões das empreiteiras OAS, Barbosa Mello, S/A Paulista e Constremac entre os anos de 2012 e 2014.

Os pagamentos, diz a PF, são vantagens indevidas porque foram “realizadas em contrapartida à execução de obras atreladas ao Ministério da Integração Nacional” no governo de Dilma Rousseff (PT), à época comandado pelo atual líder do governo.

O senador ocupou o cargo de ministro entre janeiro de 2011 e outubro de 2013.

Uma das obras citadas é a transposição do rio São Francisco, em que todas as empresas atuavam como contratadas.

O indiciamento é um desdobramento do inquérito aberto pela PF com base no acordo de colaboração de operadores financeiros pernambucanos que atuavam no financiamento e também na intermediação de repasses ao grupo político do senador.

A PF chegou até eles a partir da operação Turbulência, responsável por apurar a compra do avião que caiu em Santos (SP), em 2014, com o então candidato à Presidência Eduardo Campos (PSB).

Os operadores, capitaneados por João Carlos Lyra e Eduardo Leite, assinaram um acordo de colaboração premiada com a procuradoria-Geral da República e detalharam a estrutura financeira que teria sido utilizada nos repasses.

“O recebimento de tais valores ocorreu por um intrincado esquema de movimentação financeira ilícita, como também ocultação de ativos obtidos por meio criminoso, com a crível finalidade de integrar patrimônio adquirido de forma escusa”, afirma a PF.

Em setembro de 2019, para avançar na apuração sobre os relatores dos delatores, o ministro Luís Roberto Barroso, relator do inquérito, autorizou busca e apreensão em endereços do senador, inclusive em seu gabinete. A ação foi batizada de operação Desintegração.

O material apreendido, depoimentos colhidos e dados de quebras de sigilo bancário e telemático são utilizados pela delegada Andréa Pinho Albuquerque da Cunha para detalhar como os valores das empreiteiras teriam transitado por empresas dos operadores e chegaram a pessoas e firmas ligadas ao atual líder do governo Bolsonaro no Senado.

Segundo a PF, as provas amealhadas mostram que as empresas dos operadores financeiros repassaram valores para uma revendedora de veículos, a Bari Automóveis, de Petrolina (PE).

E-mails e mensagens por aplicativos indicam que o senador era quem exercia “efetivamente o poder decisório” na empresa em nome de um familiar.

Também foram encontrados pelos investigadores repasses para empresas ligadas a aliados políticos de Bezerra em Pernambuco e para prestadores de serviço das campanhas de pai e filho.

Uma troca de e-mail da secretária de Bezerra Coelho com uma integrante do diretório do PSB, partido do senador à época, citado pela PF sugere que a empreiteira Barbosa Mello teria sido responsável pelo pagamento de advogados do político.

Sobre a relação do senador com a construtora baiana OAS, a PF fala em “pagamentos sistemáticos” entre 2012 e 2014 e cita as obras da transposição do São Francisco e do Canal do Sertão como contrapartida pelos pagamentos.

Além das informações dos delatores e das transações mapeadas entre a empreiteira e os operadores financeiros, a PF também cita planilhas de um diretor da OAS com referências a pagamentos ao senador.

“A OAS também pagou parte das vantagens indevidas por meio de doações oficiais às campanhas políticas dos candidatos ou a seus partidos”, diz a PF.

A PF aponta para Iran Padilha Modesto, ex-assessor do senador, como seu intermediário entre os operadores financeiros e empreiteiras.

No relatório final, a delegada afirma que ele atuava na “arrecadação de receitas para as campanhas de integrantes da família Coelho” e na “operacionalização do recebimento da propina paga pelas empreiteiras executoras de obras”.

Além do indiciamento, a delegada pede no relatório o bloqueio de R$ 20 milhões em bens do senador e do filho dele.

O valor foi estimado como “o proveito econômico por eles auferidos com as práticas criminosas” comprovadas, segundo a PF.

A defesa do senador afirma que "o relatório final do Inquérito 4513 não passa de opinião isolada de seu subscritor, que, inclusive, se arvora em atribuições que sequer lhe pertencem, sem qualquer força jurídica vinculante".

Segundo os advogados André Callegari e Ariel Weber, a investigação "é mais uma tentativa de criminalização da política, como tantas outras hoje escancaradas e devidamente arquivadas".

Painel da Folha de São Paulo, editado por Camila Mattoso. Reproduzido pelo UOL, em 08.06.2021.

Líder do governo diz que ‘vai chegar a hora’ em que decisões do Judiciário não serão mais cumpridas

Ameaça foi feita ao comentar a determinação do STF para que o governo realize o censo demográfico em 2022

O líder do governo na Câmara, deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR) Foto: Gabriela Biló/Estadão

O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), criticou nesta terça-feira, 8, o poder Judiciário e disse que chegará um momento em que as decisões judiciais “simplesmente” não serão mais cumpridas.

A ameaça de desrespeito às decisões judiciais foi feita ao comentar a determinação do Supremo Federal Tribunal (STF) para que o governo realize o censo demográfico em 2022. Barros criticou a decisão dizendo que “ninguém vai abrir a porta para o recenseador no meio da pandemia”.

“O Judiciário vai ter que se acomodar nesse avançar nas prerrogativas do Executivo e Legislativo. Vai chegar uma hora em que vamos dizer (para o Judiciário) que simplesmente não vamos cumprir mais. Vocês cuidam dos seus que eu cuido do nosso, não dá mais simplesmente para cumprir as decisões porque elas não têm nenhum fundamento, nenhum sentido, nenhum senso prático”, afirmou em evento organizado pelo jornal Correio Braziliense e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

O deputado disse ainda ser preciso enfrentar o que chamou de “classe de inimputáveis”, composta, segundo ele, por promotores, juízes e auditores fiscais que “fazem o que querem". “Se um promotor te ofender, não acontece nada. O Brasil tem que enfrentar isso”, completou.

Não é a primeira vez que Barros faz declarações críticas a decisões do Judiciário. Em entrevista ao Estadão em fevereiro, o parlamentar defendeu a contratação de parentes de políticos para cargos públicos, o nepotismo. A prática foi proibida pelo STF em 2008 por violar o princípio constitucional da impessoalidade na administração. 

“O poder público poderia estar mais bem servido, eventualmente, com um parente qualificado do que com um não parente desqualificado”, afirmou Barros na época. Na ocasião, ele defendeu a derrubada de artigo da Lei de Improbidade Administrativa que prevê punição ao nepotismo, em discussão na Câmara.

Em maio deste ano, o presidente Jair Bolsonaro nomeou a ex-governadora do Paraná Maria Aparecida Borghetti, mulher do deputado, para compor o conselho da Itaipu Binacional. No caso dela, a nomeação não configura nepotismo porque, embora Barros exerça a função de líder do governo na Câmara, o deputado não tem vínculos formais com o Executivo. O conselho da Itaipu se reúne a cada dois meses e seus integrantes recebem salários de cerca de R$ 25 mil.

Lorenna Rodrigues, O Estado de S.Paulo, em 08 de junho de 2021 | 14h43

Chavismo caboclo

A escalada da crise protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro com os militares sugere que o País corre o sério risco de sofrer forte degradação democrática, a ponto de assemelhar-se à Venezuela chavista.

“Os militares daqui estão enfrentando o que os da Venezuela enfrentaram no início do período chavista”, comparou Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa no governo de Michel Temer. Em entrevista ao Estado, Jungmann disse que “Bolsonaro persegue o modelo de Chávez”, isto é, quer transformar as Forças Armadas em braço do bolsonarismo. “Os militares, aqui como lá, guardadas as devidas proporções, evitam o confronto direto com o comandante para não ferir a Constituição, mas o dilema é que assim correm o risco de ver a Constituição destruída junto com a hierarquia e a disciplina”, alertou Jungmann.

Na mesma linha foi o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. Também ao Estado, Maia descreveu como Bolsonaro está seguindo rigorosamente o manual chavista: tenta envenenar o processo eleitoral, ao questionar as urnas eletrônicas; hostiliza a imprensa livre; intervém na estatal de petróleo, submetendo-a a seus interesses políticos; busca transformar as Polícias Militares estaduais em milícias bolsonaristas; neutraliza o Congresso por meio de distribuição desavergonhada de verbas, abaixo dos radares republicanos; e ataca sistematicamente o Supremo Tribunal Federal, além de inocular os órgãos de fiscalização e controle com a toxina bolsonarista. Como disse a historiadora Lilia Schwarcz à revista The Economist, basta ler o Diário Oficial para perceber que Bolsonaro dá “um golpe por dia”.

Já advertimos várias vezes, neste espaço, sobre a marcha bolsonarista rumo a uma versão cabocla do chavismo (ver especialmente os editoriais O bê-á-bá do chavismo, de 31/1/21, e A hora da verdadeira oposição, de 4/2/21). Os sinais dessa degeneração são tão evidentes que não podem ser mais ignorados, especialmente agora, quando Bolsonaro dá um passo concreto na tentativa de transformar as Forças Armadas em sua guarda pretoriana.

A crise está contratada. Ao levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que amalgama os militares a seu governo, Bolsonaro semeia confusão e tenta intimidar quem porventura não aceite viver sob seu tacão.

Há um ano, à TV Cultura, o ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, descreveu com precisão o cerne do problema: “As Forças Armadas não podem se identificar com o governo porque numa democracia existe alternância de poder. Se as Forças Armadas são governo e o governo é derrotado nas urnas, as Forças Armadas são derrotadas e acabou. Evidentemente isso não pode acontecer”. Na mesma ocasião, o ministro Barroso também já alertava para o que chamou de “chavização”, isto é, a multiplicação de militares em cargos no governo: “Isso é o que aconteceu na Venezuela”.

Não é prudente ignorar tantos alertas e tantos sinais. Quando Bolsonaro se refere ao Exército como “meu Exército”, não é mera figura de linguagem. Ao dobrar o número de militares no governo em relação à administração de Temer, Bolsonaro deixou claro que pretendia enredar as Forças Armadas em seus devaneios golpistas. Considerando-se que cresceu em cerca de 30% a presença de militares da ativa no governo, essa relação fica ainda mais forte – e o caso da submissão humilhante de um general, Eduardo Pazuello, aos interesses de Bolsonaro, sob a vista grossa do Comando do Exército, foi o ponto alto, até agora, dessa genuflexão militar ao presidente.

Timidamente, o Congresso começa a reagir à militarização do governo promovida pelo bolsonarismo, ao articular uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe a atuação de militares da ativa em cargos de natureza civil no Executivo. É uma medida necessária, pois aos militares da ativa é vedada a atividade política – que é essencialmente o que se faz num governo. Mas talvez seja tardia: a esta altura, a identificação forçada por Bolsonaro entre ele e os militares já não depende mais de quem usa o crachá do governo.

A escalada da crise protagonizada por Jair Bolsonaro com os militares sugere que o País corre o sério risco de assemelhar-se à Venezuela chavista     

 A escalada da crise protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro com os militares sugere que o País corre o sério risco de sofrer forte degradação democrática, a ponto de assemelhar-se à Venezuela chavista.

“Os militares daqui estão enfrentando o que os da Venezuela enfrentaram no início do período chavista”, comparou Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa no governo de Michel Temer. Em entrevista ao Estado, Jungmann disse que “Bolsonaro persegue o modelo de Chávez”, isto é, quer transformar as Forças Armadas em braço do bolsonarismo. “Os militares, aqui como lá, guardadas as devidas proporções, evitam o confronto direto com o comandante para não ferir a Constituição, mas o dilema é que assim correm o risco de ver a Constituição destruída junto com a hierarquia e a disciplina”, alertou Jungmann.

Na mesma linha foi o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. Também ao Estado, Maia descreveu como Bolsonaro está seguindo rigorosamente o manual chavista: tenta envenenar o processo eleitoral, ao questionar as urnas eletrônicas; hostiliza a imprensa livre; intervém na estatal de petróleo, submetendo-a a seus interesses políticos; busca transformar as Polícias Militares estaduais em milícias bolsonaristas; neutraliza o Congresso por meio de distribuição desavergonhada de verbas, abaixo dos radares republicanos; e ataca sistematicamente o Supremo Tribunal Federal, além de inocular os órgãos de fiscalização e controle com a toxina bolsonarista. Como disse a historiadora Lilia Schwarcz à revista The Economist, basta ler o Diário Oficial para perceber que Bolsonaro dá “um golpe por dia”.

Já advertimos várias vezes, neste espaço, sobre a marcha bolsonarista rumo a uma versão cabocla do chavismo (ver especialmente os editoriais O bê-á-bá do chavismo, de 31/1/21, e A hora da verdadeira oposição, de 4/2/21). Os sinais dessa degeneração são tão evidentes que não podem ser mais ignorados, especialmente agora, quando Bolsonaro dá um passo concreto na tentativa de transformar as Forças Armadas em sua guarda pretoriana.

A crise está contratada. Ao levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que amalgama os militares a seu governo, Bolsonaro semeia confusão e tenta intimidar quem porventura não aceite viver sob seu tacão.

Há um ano, à TV Cultura, o ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, descreveu com precisão o cerne do problema: “As Forças Armadas não podem se identificar com o governo porque numa democracia existe alternância de poder. Se as Forças Armadas são governo e o governo é derrotado nas urnas, as Forças Armadas são derrotadas e acabou. Evidentemente isso não pode acontecer”. Na mesma ocasião, o ministro Barroso também já alertava para o que chamou de “chavização”, isto é, a multiplicação de militares em cargos no governo: “Isso é o que aconteceu na Venezuela”.

Não é prudente ignorar tantos alertas e tantos sinais. Quando Bolsonaro se refere ao Exército como “meu Exército”, não é mera figura de linguagem. Ao dobrar o número de militares no governo em relação à administração de Temer, Bolsonaro deixou claro que pretendia enredar as Forças Armadas em seus devaneios golpistas. Considerando-se que cresceu em cerca de 30% a presença de militares da ativa no governo, essa relação fica ainda mais forte – e o caso da submissão humilhante de um general, Eduardo Pazuello, aos interesses de Bolsonaro, sob a vista grossa do Comando do Exército, foi o ponto alto, até agora, dessa genuflexão militar ao presidente.

Timidamente, o Congresso começa a reagir à militarização do governo promovida pelo bolsonarismo, ao articular uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe a atuação de militares da ativa em cargos de natureza civil no Executivo. É uma medida necessária, pois aos militares da ativa é vedada a atividade política – que é essencialmente o que se faz num governo. Mas talvez seja tardia: a esta altura, a identificação forçada por Bolsonaro entre ele e os militares já não depende mais de quem usa o crachá do governo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08 de junho de 2021 

Sensação de vitória de Bolsonaro no caso Pazuello é só sensação. Alerta disparou

É indefensável que oficiais e policiais se calem em nome da disciplina e da hierarquia, aponta Eliane Cantanhêde em comentário publicado hoje pelo O Estado de S.Paulo.

Foram dois movimentos paralelos, mas têm tudo a ver e acendem a luz amarela em gabinetes e consciências neste país: a decisão do comandante do Exército, que jogou no lixo os princípios basilares das Forças Armadas para agradar ao presidente Jair Bolsonaro, e o ataque também covarde da polícia pernambucana a manifestantes pacíficos, para testar limites da nossa democracia. 

Tudo está dominado e é indefensável que oficiais e policiais se calem em nome da disciplina e da hierarquia. O capitão insubordinado e suas tropas podem implodir esses princípios à vontade, porque os que teriam de garanti-los alegam que “têm de respeitar a hierarquia”. 

Ele se lixa para os protocolos das três Forças, como já fazia há mais de 30 anos, na ativa, mas os que prezam a farda e estão indignados, estupefatos, adotam a mesma postura que criticam do comandante Paulo Sérgio: condenam, mas aos sussurros, no conforto dos seus lares. 

Bem fizeram os generais Fernando Azevedo e Silva e Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudes, ao comandar as Forças Armadas como instituições de Estado, não de governos que vêm e vão. Eles tinham um limite e caíram por saber de que lado da história ficar. Agora, precisam agir e falar. 

Devem estar se remoendo diante da decisão de Paulo Sérgio, com aval do Alto Comando, de deixar para lá a grave insubordinação de Pazuello, que passou por cima do Estatuto Militar e do Regimento Disciplinar do Exército para se aboletar num trio elétrico da campanha pré-eleitoral de Bolsonaro. Nem uma mísera advertência? 

A desculpa de Pazuello é que não era ato político. Não?! Então, era o quê?! Ele, deliberadamente, fez o comandante e o Alto Comando de bobos. E só fez isso, e deve ter dado gargalhadas ao fazê-lo, porque tinha costas quentes. “O que manda” engoliu “os que obedecem”, de véspera, na Amazônia. Instalou-se a anarquia, é só aguardar as eleições de 2022 para ver. 

Ao pularem no barco de Bolsonaro em 2018, os militares achavam que teriam a bússola e o manche. Ledo engano. O capitão encheu o Planalto de generais e o governo de variadas patentes, mas subjugou todos eles. “Quem manda sou eu”, repete, enquanto dá medalha para o dócil comandante do Exército e um gordo aumento para “seus generais”, em meio à pandemia e ao desemprego feroz. 

Não se ouve nenhum oficial-general das três Forças capaz de defender a impunidade absurda de Pazuello, mas, aparentemente, empurraram para dois civis, os ex-ministros da Defesa Raul Jungmann e Aldo Rebelo, o papel de porta-vozes do descontentamento. Entre corajosas exceções, mais uma vez, o general Santos Cruz. 

Como satisfação, ou tentativa de acalmar os ânimos, oficiais sérios e com senso de responsabilidade informam que a sensação de vitória de Bolsonaro no episódio é só isso mesmo, uma sensação. Segundo eles, o presidente alimentou a cizânia, aprofundou a divisão e disparou o sinal de alerta. Onde ele quer chegar? Quer fazer as Forças Armadas de marionetes? 

Essas questões se tornam ainda mais inquietantes com o comandante da PM do DF usando o slogan eleitoral de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), e vai-se desenrolando o fio que permitiu que a polícia de Pernambuco cegasse dois civis indefesos num protesto pacífico. 

As outras duas pontas já estão desencapadas: o vínculo comprovado com as milícias e a obsessão de armar e ampliar a munição de civis. 

Se Bolsonaro perder a reeleição e um bando de alucinados invadir o Congresso e o Supremo, o que fará a PM? E como reagirão as Forças Armadas? Esse risco é tão óbvio que só não vê quem não quer. O Exército não quer ver? E a Marinha? E a Aeronáutica? Todos vão tapar olhos, ouvidos e bocas, esperando o carnaval chegar?

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do Telejornal GloboNews "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 08.06.2021