sexta-feira, 9 de abril de 2021

"Se fosse por Bolsonaro, Brasil já teria 1 milhão de mortos"

Governador do Maranhão e articulador de frente de centro-esquerda, Flávio Dino afirma que, sem estados, STF e Congresso, tragédia seria maior. Presidente tem ódio de governadores por rechaçar controle de seu poder, diz.

Flávio Dino: "Os governadores não são o governo federal. Lockdown federal depende exclusivamente do presidente"

Com um papel de destaque nas articulações da centro-esquerda para tentar derrotar Jair Bolsonaro em 2022, Flávio Dino (PCdoB), ex-juiz federal e em seu segundo mandato como governador do Maranhão, afirma que o presidente Jair Bolsonaro tem "repulsa aos governadores" e ao federalismo porque eles são uma das formas de contenção de seu poder.

Ataques aos gestores estaduais vêm se intensificando. A DW Brasil coletou relatos de várias assessorias de comunicação de governadores sobre ameaças físicas promovidas por grupos alinhados ao bolsonarismo.

Os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), do Ceará, Camilo Santana (PT), e do Piauí, Wellington Dias (PT), foram ameaçados de morte. Vários inquéritos policiais foram abertos nestes respectivos Estados para apurar essa onda de intimidação. No Espírito Santo, manifestantes pró-Bolsonaro fizeram carreata contra medidas de isolamento social no estado e cercaram a casa da mãe do governador Renato Casagrande, uma idosa de 88 anos. Flávio Dino afirma, em entrevista à DW Brasil, que outra linha de ação recente do bolsonarismo tem sido a tentativa de insuflar motins policiais nos estados contra a autoridade dos governadores.

Em relação ao comitê nacional de combate à covid-19, recém-criado, o governador demonstra poucas esperanças de mudanças de rumo na tragédia brasileira. "Não existe comitê nacional, porque comitê que exclui estados e municípios não é nacional, jurídica e constitucionalmente falando. E há uma condenação à ineficácia."

Sem a ação dos governadores, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, o Brasil certamente já teria atingido a marca de um milhão de óbitos por covid-19, diz Dino. "Se dependesse do presidente, de suas trocas de ministros e seus rompantes desvairados, teríamos a essas alturas um milhão de mortos", afirma. O país contabilizou até esta quinta-feira mais de 345 mil mortes por covid-19, após registrar um recorde de 4.249 óbitos em 24 horas.

A crise no Brasil vai se alongar, diz Dino, e os governadores não podem ser cobrados para decretar um lockdown articulado. "Os governadores não são o governo federal. Lockdown federal depende exclusivamente do presidente", justifica.

A despeito do cenário, Dino crê no enfraquecimento e no isolamento gradual de Bolsonaro e do bolsonarismo. Para ele, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem todas as condições de articular e de representar uma frente de centro para derrotar Bolsonaro em 2022.

DW Brasil: No final de março, 16 governadores divulgaram uma carta denunciando ataques democráticos sistemáticos, fake news sobre medidas sanitárias, e incitação de motins de militares. O senhor espera um efeito prático das manifestações de governadores, uma vez que há uma atitude beligerante do presidente da República em relação aos estados?

Flávio Dino: [Jair] Bolsonaro não gosta da ideia de que existem controles ao seu próprio poder. Um desses controles é o federalismo. Daí ele ter muita repulsa, rejeição e ódio dos governadores. O que desejamos com a carta foi mostrar esse risco, mais essa ameaça à democracia, colocar o debate publicamente aos demais poderes do Estado, ou seja, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal [STF], e sublinhar à sociedade que há uma indústria de fake news contra os governadores. É algo rotineiro, visando desestabilizar os governos estaduais, porque objetivamente eles são instrumentos de contenção do poder do Bolsonaro. Acredito que, com esse propósito de alerta, debate, reflexão e de provocação às demais instâncias de controle a carta foi e é extremamente útil.

Essa carta foi concomitante à troca de comando nas Forças Armadas que, ao que tudo indica, foi uma tentativa do presidente de interferir politicamente na corporação. Bolsonaristas fizeram apologia a motins de policiais militares. Como o senhor enxergou a troca nos comandos das Forças Armadas?

Não foi a primeira vez que Bolsonaro apostou contra a democracia. No ano passado ele já havia ido à porta do quartel do general do Exército, chamado Forte Apache, fazer uma espécie de exortação golpista. Naquele instante, o Supremo reagiu muito fortemente, por intermédio do inquérito policial das fake news. Agora, em razão das dificuldades que o governo enfrenta, ele tentou novamente solucioná-las do pior modo, novamente indicando rumo de ruptura institucional. As Forças Armadas não aceitaram. Houve uma tentativa de "enquadramento" das Forças Armadas ao projeto bolsonarista. Essa aposta foi novamente mal-sucedida. Em relação às polícias, também aconteceu o mesmo fracasso, não inédito. Isso já havia sido tentado lá atrás, no episódio do motim do Ceará. Agora, novamente [na Bahia, um policial teve surto psicótico, disparou tiros e foi morto; aliados do presidente deturparam o fato dizendo que ele foi alvo porque se recusou a cumprir ordens para "prender trabalhadores"]. Aqui no Maranhão tentaram semear fake news com a mesma linha da Bahia. Usaram um episódio que não tinha nada a ver, de um conflito policial com um vendedor ambulante, para dizer que a polícia do Maranhão estava sendo obrigada a prender trabalhadores por causa do lockdown. Esses quadrilheiros vivem de fake news, a serviço deste projeto de poder. Se olharmos a conjuntura política dos últimos dias, vamos encontrar duas grandes derrotas desse impulsos despóticos de Bolsonaro.

Os governadores mencionam a participação de agentes políticos nessa tentativa de incitação de policiais nos estados. Não há como barrar esses comportamentos quando partem de parlamentares?

Não é razoável que deputados e deputadas pratiquem permanentemente esse método, que não está acobertado pela imunidade parlamentar, uma vez que ele é abusivo. A Câmara já foi convocada uma vez, recentemente, a examinar a má conduta de um de seus integrantes, no caso do deputado Daniel Silveira (PSL), que agrediu o STF. Se a Câmara ou as Casas Parlamentares não se pronunciarem, creio que o sistema de Justiça novamente vai ter que intervir. Não é admissível que esse tipo de risco contra a democracia seja estimulado por agentes que têm o dever legal de preservar a Constituição. Se estimulam um motim policial armado contra um governo estadual, claro que isso é incompatível com a Constituição e deve ensejar duas responsabilizações: a primeira no âmbito parlamentar, quebra de decoro, e a outra é responsabilidade penal e criminal.

Os governadores podem recorrer ao STF contra esses agentes públicos?

Sim, é uma possibilidade. Nós não podemos ficar paralisados diante deste risco. E não ficaremos, e não estamos. Há muita preocupação com isso. É uma tentativa de emparedar os governadores que se refere a cercos em residências – aconteceu com [João] Doria, Ibaneis [Rocha], com a mãe do governador [Renato] Casagrande, do Espírito Santo. Fake news o tempo inteiro pelo próprio presidente da República e pelo perfil oficial do governo federal, algo absolutamente inusitado. E, finalmente, há essa dimensão de tentar criar instabilidade institucional usando o aparato policial nos estados. É uma estratégia contra os governadores. É certo que se não houver resposta do Parlamento nós vamos ao Supremo cobrar providências para que os deputados federais que se dedicam a isso façam imediatamente a suspensão desses procedimentos.

Há governadores que foram ameaçados inclusive de morte. O senhor pessoalmente sofreu ameaças nesta linha?

Essas ameaças são frequentes. Temos aqui vários inquéritos policiais de coisas muito graves, que tramitam na polícia do Maranhão. Nunca permitimos que houvesse qualquer espécie de cerco, físico, à sede do governo ou à residência [oficial do governador]. O poder democrático tem o dever de se defender contra ameaças golpistas. Uma coisa é o protesto, reivindicações com palavras de ordem. Outra coisa é tentar agredir. O que está acontecendo são tentativas quase que de linchamento.

Foi criado o Comitê Nacional de Combate à Covid-19, com participação dos presidentes da Câmara e do Senado, do novo ministro da Saúde, mas sem representatividade efetiva dos governadores. Quais as suas expectativas?

Da nossa parte sempre houve a disposição de dialogar, compactuar, convergir. A ideia do "Pacto Nacional pela Saúde e pela Vida" foi de 22 governadores, que apresentaram essa proposta. O presidente da República não respondeu e, posteriormente, instado pela Câmara e pelo Senado, fez uma reunião esquisita, em que os governadores não foram convidados por suas representações, mas apenas um ou outro que o presidente da República achava que seriam merecedores de sua cortesia. Essa reunião resultou num equívoco: não existe comitê nacional, porque comitê que exclui Estados e municípios não é nacional, jurídica e constitucionalmente falando. E há uma condenação à ineficácia. Quem, na prática, combate a pandemia no Brasil são os estados e os municípios. Noventa e cinco por cento dos leitos públicos estão nos estados. Nós que temos a visão sobre [necessidade de] anestésicos, oxigênio, etc. Então como é que a esfera federal vai gerenciar uma crise num país continental como o Brasil, que demanda a descentralização de políticas públicas para haver eficácia, sem que haja a oitiva permanente dos governadores e prefeitos? Não acredito que Bolsonaro, a essas alturas, vá corrigir o rumo de seu governo. Ele vai levar até o fim esse modelo. Ele sempre foi isso, esse desastre, essa pessoa insensata e insana. E assim tem sido na Presidência da República. Lamentavelmente, não acredito que ele tenha um diálogo sério com pessoas que pensem diferente de suas premissas esdrúxulas sobre a pandemia do coronavírus.

Diante deste quadro, como podemos esperar o combate à covid-19 no Brasil neste cenário de tragédia diária? O Ministério da Saúde não demonstra disposição de adotar medidas sanitárias restritivas.

Esse é o gravíssimo impasse no qual estamos e tem alcance mundial. O Brasil é, hoje, elemento central para que o mundo tenha segurança sanitária. Só não temos hoje uma tragédia ainda maior porque o Supremo, o Congresso e os governadores, lá atrás, viabilizaram o combate mínimo à pandemia. Se dependesse do presidente, de suas trocas de ministros e seus rompantes desvairados, teríamos a essas alturas um milhão de mortos. Nunca houve um gesto sincero nas coisas mais banais, como uso de máscaras. Então eu não acredito que haja mudança significativa. A tendência mais forte da crise no Brasil é que, em primeiro lugar, ela se alonga. Não há cenário de superação em curto prazo neste ambiente em que não há coordenação nacional, não há alinhamento, não há mobilização convergente. A tendência é que tenhamos abril, maio e junho com níveis bastante altos [de mortes], por conta do presidente da República. Vamos continuar fazendo a redução de danos. Às vezes nos perguntam: por que os governadores não se juntam e fazem uma espécie de lockdown nacional, com data única?

E por que não?

Porque nós não somos o governo federal. Os governadores podem muito, mas não podem tudo. O nível de coordenação, em 27 unidades da federação, é muito difícil. São momentos epidemiológicos diferentes em cada ponto do território [nacional]. É muito difícil alinhar 27, ou 20 que sejam, na mesma direção. Além disso, há instrumentos que só o governo federal tem, como, por exemplo, a emissão de moeda, de títulos da dívida, o uso de crédito. Os governos estaduais não têm. Nós não temos BNDES, não temos Banco Central, não temos Tesouro [Nacional]. O ambiente socioeconômico necessário para uma espécie de lockdown federal depende exclusivamente do governo federal. E, finalmente, temos um terceiro obstáculo: como é que você vai fazer, num país como o nosso, ou qualquer outro do mundo, os governadores dizendo A e o presidente dizendo B, sendo que B é diametralmente oposto ao A? Como você vai fixar uma orientação na sociedade? Então essa cobrança que fazem sobre os governadores é injusta.

Houve manifestação do setor financeiro, de empresários, de parte da diplomacia, houve a queda do ministro das Relações Exteriores. Foram derrotas sucessivas de Bolsonaro. O clima político e social no Brasil está virando?

Tenho essa convicção, de que o bolsonarismo está se isolando cada vez mais. E isso é fundamental para que ou ele seja atalhado ou vencido na eleição presidencial de 2022. Ou pelo impeachment ou pelas urnas nós precisamos derrotar o bolsonarismo, e o seu isolamento é um passo importante. Acho que ele vem se enfraquecendo e há outros complicadores adiante. Eu destaco o nó orçamentário, que é derivado da fragilidade da equipe econômica. A atual equipe econômica é um desastre também, desde antes da pandemia. E agora isso tudo explodiu neste absurdo inédito: estamos em abril, o Orçamento foi votado aos trancos e barrancos e é absolutamente inexequível.

Candidatos à Presidência que se dizem de "centro" assinaram uma carta, um compromisso democrático. Mas a centro-esquerda foi excluída desta articulação. Foi um movimento do centro para se distanciar de Lula?

Achei o movimento altamente positivo, porque o conteúdo está correto no sentido de defesa da democracia e da rejeição ao bolsonarismo. No inventário de derrotas de Bolsonaro acrescentaria isso, porque vários dos signatários apoiaram Bolsonaro e deixaram nítida agora postura de oposição. Sem dúvida ajuda no propósito de isolar  o bolsonarismo. Por outro lado, é evidente que também houve esse intuito de demarcar com o lulismo. Não vejo problema nisto. Temos que entender que neste campo político ampliado, no que venho chamando de frente ampla, você não precisa produzir uniões eternas ou apriorísticas. Temos eleições em dois turnos. O que é importante é termos esse bloco nitidamente em oposição ao bolsonarismo e mantendo diálogo conosco. Daqueles signatários, eu tenho contatos frequentes com Ciro [Gomes], Eduardo Leite, [João] Doria, Luciano Huck. É importante que haja esse diálogo com setores mais à esquerda para que possamos ter uma articulação capaz de cumprir a tarefa de derrotar o bolsonarismo no plano nacional e nos Estados. Então eu fiquei muito feliz com a carta, embora não seja signatário.

A decisão do Supremo anulando sentenças contra Lula e a suspeição do ex-juiz Sergio Moro colocaram o ex-presidente como player em 2022. Falta uma concertação da centro-esquerda?

Essas decisões do Supremo alteraram substantivamente o quadro. Houve reposicionamento do papel do ex-presidente Lula na medida em que não é rigorosamente certeza que ele será candidato, mas é bastante provável. E, em sendo candidato, é natural que para ele confluam várias forças da esquerda por sua representatividade e força popular. Temos conversado muito. Eu falo com ele toda semana. É também um caminho para a transição de superação do bolsonarismo. É quase como se fosse a outra transição da ditadura para a democracia. A mesma calma, delicadeza e generosidade que houve para viabilizar uma ampla frente para derrotar os militares e possibilitar a eleição de Tancredo precisamos agora, para derrotar Bolsonaro e tirar o Brasil das trevas. Claro que eu estou mais próximo do campo lulista, embora não deixe nunca de dialogar. É importante que haja uma candidatura mais ao centro. Basta olhar os exemplos históricos. Existiria campanha das Diretas sem o centro? Existiria a Constituição de 1988 sem o centro? Existiria uma Constituição progressista sem Ulysses Guimarães, sem Mário Covas e sem Fernando Henrique Cardoso? Não. É a prova de que, quando esquerda e centro conseguem conversar, o Brasil avança.

Lula pode ser esse centro?

Não tenho dúvida de que sim. Ele tem aptidão, autoridade política e legitimidade para cumprir esse papel. Nas manifestações recentes ele tem ido nesta direção, de compreensão de que a esquerda, sozinha, não consegue derrotar o Bolsonaro e desarmar o bolsonarismo. Lula tem condições de ser referencia imprescindível para esse processo de convergência até 20221.

Deutsche Welle Brasil, em 09.04.2021

Brasil no auge da pandemia, sociedade civil se organiza contra a fome

Com degradação das condições de vida de milhões de brasileiros, movimentos sociais promovem campanhas para socorrer a população e criticam ausência do Estado. "As pessoas estão desesperadas", diz cientista político.

Voluntários do MTST em Cozinha Solidária em São Gonçalo (RJ). Movimento quer abrir 16 cozinhas em 11 estados até fim de abril

"Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome", canta Caetano Veloso na canção Gente. De fato, o acesso à alimentação adequada é um direito humano básico, fundamental. Está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e é assegurado pela Constituição Brasileira. 

No entanto, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em setembro passado 10,3 milhões de pessoas não tinham acesso regular à alimentação no país. Isto é, passavam fome. E a situação se agravou ainda mais nos últimos meses, apontam especialistas, em meio ao recrudescimento da pandemia de covid-19 e ao contexto de crise econômica.

Para José Graziano da Silva, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil está de volta ao Mapa da Fome, de onde havia saído oficialmente em 2014. Isso significa que mais de 5% da população encontra-se em situação de insegurança alimentar grave, sem ingerir as calorias recomendadas para uma vida saudável e digna.

Em meio à pandemia, histórias tristes e pedidos de ajuda se multiplicam nas ruas, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Diante disso, a sociedade civil tem se organizado de diferentes formas para auxiliar a população. Dezenas de campanhas de arrecadação de alimentos, encabeçadas por diferentes entidades e organizações, estão em ação.

Auxílio cai, preço dos alimentos sobe

A suspensão do auxílio emergencial de R$ 600, pago pelo governo federal de abril a dezembro de 2020, gerou efeitos enormes na população em situação de vulnerabilidade social. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) projeta que em agosto de 2020 – com o auxílio – 9,5 milhões de brasileiros (4,5% da população) viviam na extrema pobreza. Em fevereiro de 2021, o número aumentou para 27 milhões de pessoas (12,2% da população). Viver na extrema pobreza significa sobreviver com R$ 246 por mês (R$ 8,20 por dia).

A partir de abril, o auxílio emergencial voltará a ser depositado por quatro meses, mas com valores menores: R$ 150 para famílias de uma pessoa só, R$ 250 para famílias de 2 pessoas ou mais, ou R$ 375 no caso de mães solteiras.

Além da interrupção e redução do auxílio, dados do IBGE mostram que o preço dos alimentos teve um aumento de mais de 15% nos 12 meses desde o início da pandemia. O número é quase o triplo da inflação, que foi de 5,2% no mesmo período.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que a cesta básica ficou mais cara em todas as capitais em 2020. Com base na cesta mais cara de janeiro de 2021, a de São Paulo, o Dieese indica que uma família de quatro pessoas – dois adultos e duas crianças – precisaria de um salário mínimo de R$ 5.495,52. Isso corresponde a cinco vezes o valor do salário mínimo atual, que é de R$ 1.100,00.

Ainda segundo o IBGE, a taxa de desemprego atual é de 14,2%, a maior registrada na série histórica, iniciada em 2012. São cerca de 14,3 milhões de desempregados. É nesse contexto que os movimentos sociais têm se organizado.

"As pessoas estão desesperadas"

"Não tem nada mais cruel do que a fome. Porque com fome você não pensa, não age, você não consegue de fato sair daquela condição", diz o cientista político Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos. A organização composta por mais de 200 entidades ligadas ao movimento negro lançou, em março, a campanha Tem Gente Com Fome. Em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, entre outras, a Coalizão quer atender mais de 222 mil famílias em todos os estados do país.

"Cotidianamente eu recebo mensagens dizendo 'Olha, não precisa nem ser uma cesta básica, pode ser um arroz, um fubá'. As pessoas estão desesperadas por coisas mínimas", diz Souza.A campanha, que se sustenta através de financiamento coletivo, já arrecadou cerca de R$ 5 milhões. Mas o cientista político alerta: "É muito pouco diante da demanda que temos. Com R$ 5 milhões conseguimos atingir pouco mais de 30 mil das 222 mil famílias."

Outra iniciativa que teve início em março é a Cozinha Solidária, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). O MTST pretende inaugurar, até o fim de abril, 16 cozinhas comunitárias em 11 estados do Brasil. Quatro já foram abertas. Cada cozinha oferece gratuitamente ao menos uma refeição todos os dias. A quantidade de porções diárias, que gira em torno de 150 a 300, varia em cada estado. A iniciativa também é mantida através de financiamento coletivo.

Danilo Pereira, da coordenação nacional do MTST, diz que a maioria das pessoas atendidas pelas cozinhas são trabalhadores informais, como camelôs e ambulantes. "Já teve casos de desmaio na fila porque a pessoa chega em uma situação sem alimentação há muito tempo, no calor, pessoas vindo de outros municípios", relata. Apesar de a iniciativa estar estruturada, a previsão não é boa: "A nossa previsão, e espero que não esteja correta, é que na ausência do auxílio emergencial ou com esse valor reduzido, nos próximos meses tenhamos um quadro igual ou pior ao do ano passado."

Dezenas de outras organizações também estão promovendo campanhas pelo país, como a Ação da Cidadania, A Cufa (Central Única de Favelas), G10 Favelas e o Banco de Alimentos. As entidades destacam que as doações diminuíram em relação ao início da pandemia: "Temos tido uma demanda muito maior e uma diminuição das doações", explica Seimour Souza, da Coalizão Negra por Direitos.

"A situação me deixa muito angustiada, triste. Eu tenho que fazer alguma coisa", conta a professora aposentada Palma Orofino d'Ávila, de Porto Alegre, que tem contribuído com algumas iniciativas. A aposentada vê e sente os efeitos da crise econômica: "As pessoas estão mais pobres, e os alimentos estão mais caros. A conta não fecha, né? Não dá. Por isso a fome está aí", diz.


Membros da Coalizão Negra Por Direitos distribuem cestas básicas em Salvador. A organização promove a campanha "Tem Gente Com Fome" e quer auxiliar 222 mil famílias em todos os estados do Brasil.

O papel do Estado

Mesmo levando ajuda a milhares de brasileiros, os movimentos sociais apontam que a responsabilidade não deveria ser deles. "A gente assume essa responsabilidade porque a gente tem uma consciência coletiva. E porque senão nós, quem? É uma imoralidade que a gente esteja voltando a pedir uma coisa básica, que é um arroz e feijão", afirma Seimour.

"Apesar de muito importantes, as mobilizações da sociedade civil não têm o mesmo alcance do Estado. A gente tem que louvar, mas essas iniciativas têm um papel de colchão de amortecimento",  diz Sergio Schneider, professor de desenvolvimento rural e sistemas alimentares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele ressalta que a segurança alimentar da população deve ser promovida através de políticas públicas: "E não é uma política de governo, é uma política de Estado."

O cenário é paradoxal, pois mesmo estando entre os maiores produtores de alimentos do mundo, o país tem 10,3 milhões de pessoas sem ter o que comer. Schneider aponta que agronegócio é estratégico para a geração de divisas para a exportação, mas não tem cumprido o seu papel na garantia da segurança alimentar da população. "É uma grave falha. Pode até ter comida na prateleira do supermercado, mas o preço é proibitivo."

Ele destaca ainda que, em um cenário de crise, o poder público tem a responsabilidade de agir. "O Estado precisa fazer políticas de segurança alimentar. Tem que fazer esse alimento chegar ao povo", defende.

Danilo Pereira, do MTST, resume o cenário que o movimento tem encontrado: "Quem está no território sente na pele essa ausência do Estado no que diz respeito à garantia das condições básicas de vida. Nessas emergências, o movimento social está lá, tanto para ajudar no problema imediato, quanto para cobrar soluções."

Desmantelamento de políticas públicas

Para Schneider, há um desmantelamento das políticas públicas relacionadas à segurança alimentar no Brasil nos últimos anos. "O que o governo faz quando não quer que as políticas sejam executadas? Não aloca orçamento e não aloca pessoal. É uma tática de desconstrução intencional e organizada", afirma.

Ele cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 como parte de um sistema de políticas públicas de segurança alimentar. "O PAA era um programa que tinha um orçamento muito expressivo e agora tem um orçamento baixíssimo", diz.

No âmbito do PAA, alimentos produzidos pela agricultura familiar são comprados e destinados a pessoas em situação de insegurança alimentar, a restaurantes populares, à formação de estoques de alimentos e às redes de ensino e socioassistenciais. Em 2012, o orçamento do programa chegou a R$ 1,2 bilhão. Já em 2018 foram aplicados R$ 253 milhões, seguidos de apenas R$188 milhões em 2019: menos de um sexto do valor de 2012. Em 2020, houve um acréscimo com relação ao ano anterior para ações emergenciais devido à pandemia, e o orçamento foi de R$220 milhões.

Schneider também critica a falta de ação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – um dos mais conceituados do mundo – em acionar as cozinhas das escolas durante a pandemia, com ações organizadas, para alimentar famílias. "Nós não tivemos nenhuma ação dos responsáveis pelo PNAE, e os contratos de fornecimento dos alimentos estavam lá", diz. "Vejo uma falta de interesse, uma desarticulação dessas políticas alimentares. Isso resulta, junto com a pandemia e a estagnação da economia, no recrudescimento da fome", conclui.

Por enquanto, movimentos como o MTST e a Coalizão Negra Por Direitos continuam com as campanhas, arrecadando recursos e buscando ajudar o máximo de pessoas possível. Mas, nas palavras de Danilo Pereira, do MTST, o desejo a longo prazo é: "Chegar em um momento em que a gente não precise mais fazer isso, que o governo consiga implementar uma política de combate à fome efetiva, que chegue a todos os lugares, contemple uma alimentação saudável, como a gente já chegou perto no Brasil, em um passado recente."

Deutsche Welle Brasil, em 09.04.2021

Biden cria comissão para estudar ampliação da Suprema Corte

Liberais são hoje representados por três dos nove ministros e discutem alterações como novos assentos ou mandatos fixos. Decano alerta para riscos à confiança no colegiado.

Democrata está sob pressão após Corte ter se inclinado fortemente à direita no governo Trump

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, criou nesta sexta-feira (09/04) uma comissão bipartidária que irá elaborar um estudo sobre possíveis mudanças na Suprema Corte do país, como ampliar o número de assentos ou estabelecer mandatos fixos para os ministros.

Ao lançar a iniciativa, Biden cumpre uma promessa de campanha feita após ser pressionado por ativistas e democratas a realinhar a Suprema Corte, cuja composição inclinou-se fortemente à direita no governo de Donald Trump, que nomeou três ministros – incluindo a conservadora Amy Coney Barrett, confirmada na vaga aberta pela morte de Ruth Bader Ginsburg, de orientação liberal, poucos dias antes da eleição presidencial de 2020.

Durante a campanha, Biden esquivou-se diversas vezes de perguntas sobre expandir o número de assentos da Suprema Corte. Ele chegou a dizer que o sistema de nomeações estava "saindo do controle", mas não indicou se apoiava a ampliação do colegiado ou retirar a vitaliciedade do cargo de ministro.

A comissão é composta por 36 membros, em sua maioria acadêmicos. Ela terá 180 dias para analisar os temas e não foi encarregada de fazer recomendações. O grupo será liderado por Bob Bauer, que foi conselheiro do ex-presidente Barack Obama, e Cristina Rodriguez, professora da Faculdade de Direito de Yale que integrou a assessoria jurídica do governo Obama.

Assunto explosivo

As regras sobre a composição da Suprema Corte é um assunto tradicionalmente delicado, que voltou ao debate em 2016, quando os democratas acusaram os republicanos de obterem uma vantagem injusta ao bloquear a indicação, por Obama, da juíza Merrick Garland ao assento aberto pela morte do ministro conservador Antonin Scalia.

O então líder da maioria no Senado, o republicano Mitch McConnell, recusou-se a realizar audiências sobre o preenchimento da vaga, apesar de na época faltarem mais de seis meses para a próxima eleição presidencial.

Após a manobra de McConnell, alguns políticos progressistas começaram a considerar ampliar o número de assentos ou estabelecer limites temporais aos mandatos dos ministros como forma de contrabalancear a influência de qualquer presidente sobre a composição da Corte.

Em resposta, conservadores criticaram essas propostas e disseram que elas seriam um instrumento para aparelhar a corte – "court-packing", na expressão em inglês – similar a tentativas feitas pelo presidente Franklin D. Roosevelt na década de 1930.

Confiança da população

Na terça-feira (06/04), o decano da Corte, ministro Stephen Breyer, de orientação liberal, fez um alerta a ativistas que defendem alterações substanciais nessas regras. Em discurso, ele afirmou que os ativistas deveriam refletir de forma "longa e aprofundada" sobre o que estavam propondo. Segundo Breyer, mudanças para atender interesses políticos poderiam reduzir a confiança que os americanos depositam na Corte.

A Suprema Corte americana é composta por nove ministros desde o momento imediatamente posterior à Guerra da Secessão (1861-1865). Qualquer iniciativa para alterar as suas regras de funcionamento tem alto potencial de provocar conflitos e precisaria da aprovação do Congresso.

"Com cinco ministros nomeados por presidentes que perderam no voto popular, é crucial que consideremos todas as opções para retomar o controle político da Suprema Corte", afirmou Nan Aron, presidente da Aliança por Justiça, um grupo de ativistas liberais. "A comissão do presidente Biden demonstra um compromisso forte para analisar essa situação e agir".

Biden prometeu que criaria a comissão durante uma entrevista em outubro passado. O lançamento do colegiado ocorre em meio a especulações sobre se ele será capaz de nomear algum ministro para a Corte caso Breyer aposente-se apenas no final de seu mandato.

O ministro tem 82 anos e é o mais velho dos três que compõem a ala liberal da Corte. Diversos grupos progressistas tentam convencer Breyer a se aposentar enquanto os democratas controlam o Senado e o processo de confirmação de novos ministros. Biden já se comprometeu a nomear a primeira mulher negra para a Suprema Corte.

Deutsche Welle Brasil, em 09.04.2021

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Barroso determina que Senado instaure a ‘CPI da Covid’

'O perigo da demora está demonstrado em razão da urgência na apuração de fatos que podem ter agravado os efeitos decorrentes da pandemia da covid-19', observou o ministro do STF


O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, e presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Foto: Carlos Moura/SCO/STF (04/03/2020)

Em um duro revés para o Palácio do Planalto, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou nesta quinta-feira (8) que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), instaure a “CPI da Covid”, que mira ações e omissões do governo Jair Bolsonaro no combate à pandemia. A decisão atende a pedido formulado pelos senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Cidadania-GO) ao contestar a inércia de Pacheco, que segurou por 63 dias o requerimento pelo início da investigação. O presidente do Senado prometeu cumprir a decisão.

A abertura de uma CPI pode levar à convocação de autoridades para prestar depoimentos, quebra de sigilo telefônico e bancário de alvos da investigação, indiciamento de culpados e encaminhamento ao Ministério Público de pedido de abertura de inquérito. A decisão de Barroso aprofunda o desgaste do governo em um momento de queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro e de agravamento da pandemia, que já levou à morte mais de 340 mil brasileiros.

Segundo o Estadão apurou, o ministro comunicou Pacheco previamente do teor da decisão, em um sinal de cortesia – e uma tentativa para que o próprio Pacheco se antecipasse ao STF.  Esse aviso prévio daria tempo a Pacheco de instalar a CPI por conta própria, sem a obrigação de uma decisão judicial. Mas, mesmo assim, Pacheco manteve a posição de que uma CPI só vai trazer mais caos para o país. Por conta desse aviso, antes mesmo de Barroso assinar a liminar, já se falava nos corredores do Senado sobre a decisão de do STF.

“O perigo da demora está demonstrado em razão da urgência na apuração de fatos que podem ter agravado os efeitos decorrentes da pandemia da covid-19. É relevante destacar que, como reconhece a própria autoridade impetrada (Senado), a crise sanitária em questão se encontra, atualmente, em seu pior momento, batendo lamentáveis recordes de mortes diárias e de casos de infecção”, observou Barroso, ao determinar que Pacheco adote as “providências necessárias” à criação e instalação da comissão.

“Ressalto que é incontroverso que o objeto da investigação proposta, por estar relacionado à maior crise sanitária dos últimos tempos, é dotado de caráter prioritário”, frisou. O ministro submeteu a liminar para o plenário virtual da Corte, onde será analisada pelos demais integrantes da Corte a partir do dia 16 de abril. O Supremo já abriu um inquérito para investigar a atuação de Eduardo Pazuello, agora ex-ministro da Saúde, na crise da falta de oxigênio em Manaus. O caso foi enviado para a Justiça Federal do Distrito Federal após Pazuello deixar o cargo e perder o foro privilegiado.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou ao Estadão que a questão deve ser tratada entre Supremo e o Legislativo. “Esse tema é atinente ao Poder Judiciário e o Senado Federal. Eu cuido da gestão do Ministério da Saúde”, disse.

A decisão foi tomada no mesmo dia em que o Supremo frustrou novamente as pretensões do Planalto, ao permitir que governadores e prefeitos de todo o País fechem igrejas e templos para combater a pandemia do novo coronavírus. Barroso destacou que o plenário do Supremo já decidiu que a omissão do presidente do Senado em adotar medidas, como instalar e dar regular funcionamento a uma CPI, não é assunto interno da Casa. “É certo que a definição da agenda e das prioridades da Casa legislativa cabe ao presidente da sua mesa diretora. No entanto, tal prerrogativa não pode ferir o direito constitucional do terço dos parlamentares à efetivação criação da comissão de inquérito”, observou o ministro.

O Supremo já impôs uma série de reveses a Bolsonaro no enfrentamento da pandemia, como ao garantir a Estados e municípios autonomia para decretar medidas de isolamento social, decidir a favor da vacinação obrigatória contra a covid-19 e mandar o governo a detalhar o plano nacional de imunização contra a doença. Um ministro ouvido reservadamente pela reportagem concorda com a decisão de Barroso e avalia que a posição pacífica do Supremo de que é direito da minoria a abertura de uma CPI, se ela tiver objeto específico e 1/3 de assinaturas, como houve no caso.

“Considero que CPI de pandemia neste momento, com a gravidade do momento, vai ser um ponto fora da curva. E para além de um ponto fora da curva, pode ser o coroamento do insucesso nacional no enfrentamento da pandemia. Como se pretende apurar o passado, se não conseguimos definir o nosso presente e futuro com ações concretas?”, questionou Pacheco a jornalistas, após a decisão de Barroso. “Como há uma decisão judicial, ela será cumprida. A CPI poderá, sim, fazer papel de antecipação palanque político, o que é absolutamente inapropriado neste momento.” No mês passado, o presidente do Senado afirmou ao Estadão que seria “contraproducente” abrir a CPI neste momento.

Em 4 de fevereiro, senadores protocolaram pedido de abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, para investigar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia. O pedido já reúne a assinatura de 32 parlamentares, mais do que o mínimo de 27 assinaturas que deve ter para ser apresentado à mesa.

O grupo denuncia uma atuação “sistemática” do governo, violando os direitos fundamentais básicos à vida e à saúde da população brasileira/

Rafael Moraes Moura e Eliane Cantanhêde, de Brasília para o Estado de S. Paulo, em 08 de abril de 2021 | 19h24 / COLABORARAM LAURIBERTO POMPEU e DANIEL WETERMAN.

STF permite que estados e municípios proíbam cultos presenciais na pandemia

Por 9 votos a 2, Corte conclui que proibição temporária a reuniões religiosas é compatível com a Constituição e justificada para preservar o direito à vida e à saúde.   

Decisão não proíbe cultos, mas autoriza governadores e prefeitos a fazerem isso

O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira (08/04), por 9 votos a 2, que governadores e prefeitos podem proibir a realização de missas e cultos religiosos presenciais para evitar a disseminação da covid-19.

O resultado reforça outra decisão tomada pelo plenário do Supremo, em abril de 2020, ainda no início da pandemia, que assegurou a estados e municípios o poder de determinar medidas de restrição à circulação de pessoas, contrariando o presidente Jair Bolsonaro, que queria proibir governadores e prefeitos de agirem nesse sentido.

O tema julgado nesta quinta veio à tona após uma decisão individual do ministro Nunes Marques, no último sábado, véspera do feriado de Páscoa, determinar de forma liminar que governadores e prefeitos não poderiam proibir a celebração de atos religiosos presenciais. 

Na segunda, também em liminar, o ministro Gilmar Mendes decidiu na direção oposta, afirmando que um decreto do governador paulista, João Doria (PSDB), que proibiu reuniões religiosas presenciais era compatível com a Constituição e deveria ser mantido. O presidente da Corte, Luiz Fux, então trouxe o tema para o plenário.

Apenas Dias Toffoli seguiu o posicionamento de Nunes Marques, sem apresentar justificativa para seu voto, enquanto todos os demais concordaram com Gilmar Mendes.

A decisão não determina que missas e cultos sejam proibidos, mas autoriza governadores e prefeitos a fazerem isso se julgarem necessário para combater a pandemia.

Proteção da vida e liberdade religiosa

Nesta quinta, Nunes Marques, indicado por Bolsonaro para o STF, argumentou que a Constituição garantia a liberdade do exercício de crença religiosa e que as missas e cultos presenciais se inseriam nesse direito.

"O confinamento é importante, mas também pode matar se as pessoas não tiverem algum alento espiritual", disse o ministro. Ele defendeu que estados e municípios não poderiam proibir a realização de cultos e missas, mas apenas exigir que fossem organizados de forma "prudente e cautelosa", com respeito ao distanciamento social, espaços arejados e uso de máscaras.

A posição que prevaleceu na Corte, porém, entendeu que a proibição temporária da realização de cultos, em um momento dramático da pandemia no Brasil, era uma medida proporcional e adequada para proteger o direito à vida e à saúde. Nesta quinta, o país bateu mais uma vez seu recorde de novas mortes diárias, com o registro de 4.249 óbitos em 24 horas.

O ministro Alexandre de Moraes argumentou que assim como fechar escolas não viola o direito à educação e proibir comícios durante campanhas eleitorais não fere a democracia, restringir os cultos presenciais de forma temporária não era um óbice à liberdade de crença e ao exercício da religião.

"Se queremos rezar, rezemos em casa. Não há necessidade de abertura de templo ante este contexto", resumiu o ministro Marco Aurélio. O ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, disse que o direito à vida e à saúde eram prioritários neste momento, e que as comunidades religiosas poderiam usar recursos tecnológicos para exercer a sua liberdade de culto.

Deutsche Welle Brasil, em 08.04.2021

Em novo recorde, Brasil registra 4.249 mortes por covid-19 em 24 horas

É o maior número de óbitos em um dia desde o início da pandemia, e total de mortes chega a 345 mil. Também foram contabilizados mais 86,6 mil novos casos da doença.

Coveiros baixam caixão em cova durante a noite

Brasil é líder global de novas mortes diárias neste momento da pandemia

O Brasil registrou oficialmente 4.249 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta quinta-feira (08/04). É o maior número de novas mortas em um dia desde o início da pandemia e supera o recorde anterior, de terça.

Também foram confirmados 86.652 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.279.857, e os óbitos somam 345.025.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 11.732.193 pacientes se recuperaram da doença.

Com os dados de óbitos registrados nesta quarta, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 164,2 no Brasil, a 15ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

O Brasil é no momento o líder global disparado de novas mortes diárias e responde por cerca de 27% dos novos óbitos por covid-19 no mundo, segundo dados do site Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford. O país tem cerca de 2,7% da população mundial.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 30,9 milhões de casos e 559,1 mil óbitos, segundo contagem mantida pela universidade americana Johns Hopkins.

Ao todo, mais de 133,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,89 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 08.04.2021

'Chega de orações, é hora de agir': Biden anuncia primeiras medidas contra 'epidemia' de violência armada nos EUA

Ações modestas vêm após dois massacres em março e incluem restrições a 'armas fantasmas' e maior controle sobre armas com estabilizadores; iniciativas mais duras dependem do Senado

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante discurso anunciando decretos para conter a violência por armas de fogo Foto: KEVIN LAMARQUE / REUTERS

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou nesta quinta-feira seus primeiros decretos para conter a violência por armas de fogo nos Estados Unidos, após os dois massacres registrados em uma semana que, juntos, deixaram 18 mortos em março. As medidas são modestas, já que ações mais contundentes dependem do Legislativo, mas reacendem o debate sobre o controle de armas no país, assunto que há décadas é motivo de discórdia e polarização. 

— A violência por armas é uma epidemia, pelo amor de Deus. E precisa parar — disse o presidente, em um discurso na Casa Branca, afirmando que o problema é uma "questão de saúde pública". — É uma vergonha internacional.  

Biden afirmou que o Departamento de Justiça divulgará  uma medida para conter a proliferação das chamadas “armas fantasmas” — kits que permitem ao comprador montar o armamento por conta própria e não têm números de série. Devido às dificuldades de rastreio, são populares entre organizações criminosas, grupos armados de extrema direita e frequentemente usadas em ataques a tiro em estados com regras mais contundentes para a venda de armas.

A intenção é que as peças tenham números de série, o que permitirá seu rastreio e controle, e que sejam classificadas legalmente como armas de fogo, com seus compradores passíveis de checagem de antecedentes criminais.

(Após massacre, Biden pressiona Senado para aprovar maior checagem de antecedentes e quer banir rifles semiautomáticos)

Reconhecendo a limitação do que pode impor via decreto, o presidente voltou a defender a proibição da venda de fuzis de assalto para pessoas físicas e pressionou o Senado pela aprovação de um projeto de lei que prevê a checagem de antecedentes de todos os compradores de armas, como havia feito após os ataques do mês passado. A medida recebeu o aval da Câmara, de maioria democrata, em 11 de março, mas enfrenta resistência de um Senado dividido ao meio, com 50 assentos republicanos e 50 democratas.

— Eles [os senadores] oferecem muitos pensamentos e orações, mas não passam sequer uma lei federal para reduzir a violência por armas de fogo — disse Biden. —Chega de orações. É hora de agir.

O presidente disse ainda que a Casa Branca irá propôr aos estados, dentro de 60 dias, modelos de legislações que permitam aos tribunais remover temporariamente as armas de uma pessoa que represente um perigo para si mesma ou para os outros perante pedidos de parentes ou da polícia.

O governo federal não tem autonomia para implementá-las por conta própria, mas a iniciativa busca acelerar o processo para que os estados o façam. Até o momento, 19 estados e a capital, Washington, têm legislações deste tipo em vigor. 

Prevenção

Outra medida determina que pistolas modificadas com estabilizadores devem ser englobadas nas diretrizes da Lei Nacional de Armas de Fogo, o que demandará seu registro e controle. O instrumento, na prática, transforma as armas em rifles de cano curto, aumentando sua precisão e letalidade. Estabilizadores foram usados durante o ataque que deixou 10 mortos em Boulder, no Colorado, em 22 de março. Seis dias antes, um incidente similar já havia deixado oito mortos em Atlanta, na Geórgia — entre eles, seis mulheres de ascendência asiática.

Decretos paralelos anunciados nesta quinta também incluem a instrução para que cinco agências federais redirecionem verbas para a prevenção da violência comunitária, tentando mitigar os impactos desproporcionais a grupos minoritários. Sem contar os massacres, a violência por arma de fogo continua a ser a principal causa de morte entre homens negros entre 15 e 34 anos no país, ressaltou o presidente.

Biden também anunciou que David Chipman, um defensor do controle da posse de armas, irá dirigir o Departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, que terá papel-chave na execução dos decretos. Determinou-se ainda a elaboração de um relatório sobre o tráfico de armas no país — o último tem mais de 20 anos.

Desde que era senador, Biden é um defensor contundente do controle da venda de armas nos EUA e vinha sendo pressionado por ativistas para que tomasse medidas referentes ao assunto desde sua posse, em 20 de janeiro. Em 1994, teve um papel-chave para a aprovação de um projeto de lei que baniu a venda de rifles semi-automáticos. A proibição, no entanto, expirou em 2004 e nunca foi renovada.  

— Deveríamos proibir os fuzis de assalto e os cartuchos de alta capacidade neste país — defendeu o presidente nesta quinta, afirmando que o número de massacres caiu durante a década em que a medida esteve em vigor.

Ampliação da checagem

Apesar de pesquisas recentes mostrarem que a maioria dos americanos defende controles mais duros no controle de armas, os republicanos tendem a argumentar que isto vai contra a Segunda Emenda da Constituição, interpretada como o direito dos cidadãos americanos possuírem armas de fogo. O poderoso lobby armamentista no país, em paralelo, é visceralmente envolvido com os conservadores do país.

Diversos parlamentares democratas mais moderados também têm resistência aos controles, o que vem travando a aprovação das duas legislações paralisadas no Senado. A primeira medida torna a checagem de antecedentes obrigatória na compra de armas, algo que hoje não ocorre com quem adquire seus armamentos on-line ou em mostras de armas, modalidade responsável pela maior parte das vendas atualmente.

O segundo projeto trata da chamada “brecha de Charleston”, que limita a três dias o tempo concedido ao FBI para realizar uma verificação de antecedentes. Em função do tempo exíguo, muitas aquisições acabam sendo realizadas sem nenhum tipo de verificação. O projeto de lei estenderia o tempo disponível ao FBI para 10 dias.

— Esse não é um assunto partidário, é um assunto americano. Eu estou disposto a trabalhar com qualquer um para aprovar as medidas — afirmou o presidente. — Eu sei que a conversa sobre armas pode ser complicada, mas até aqui tem mais lugar-comum do que se imagina. Tudo que foi proposto aqui hoje é completamente compatível com a Segunda Emenda.

O Globo e New York Times, em 08/04/2021 - 13:01 / Atualizado em 08/04/2021 - 17:01

Empresários não são contra nem a favor de Bolsonaro. São pragmáticos; leia análise

Jantar do presidente foi ação de marketing para tentar mostrar apoio dos donos do dinheiro; mas só fazer promessas não garante apoio algum

O presidente Jair Bolsonaro tem sido constantemente criticado nos bastidores por empresários e executivos por sua postura frente à pandemia da covid-19, seu descaso com a vacinação, suas críticas ao isolamento social e ao uso de máscaras. Está claro, para todos eles, que, quanto maior a demora no controle da pandemia, mais difícil será a economia se recuperar. O presidente, porém, foi aplaudido por empresários em um jantar na noite de quarta-feira, 7, em São Paulo – ‘ovacionado’, nas palavras de um dos presentes – ao dizer que aceleraria a vacinação. Também voltou a se comprometer com as reformas.

Há uma diferença na postura pública e na postura privada dos empresários? Não muita. Empresários não são, a princípio, nem contra nem a favor de Bolsonaro. São pragmáticos, e sabem da importância, no Brasil, do papel do governo na economia. Têm, claro,  a percepção de que é muito difícil – senão impossível - que qualquer reforma saia ou que a vacinação seja acelerada, mas expectativas também movem a economia. Se o presidente promete algo positivo, o cenário melhora. Mesmo sendo o presidente Bolsonaro, que costuma dizer uma coisa num dia e desdizê-la nesse mesmo dia. 

Jair Bolsonaro participou de jantar com empresários na noite de quarta-feira, em São Paulo.  Foto: Dida Sampaio / Estadão

O jantar da quarta-feira transcorreu num clima de cordialidade, segundo os presentes. Mas não era de se esperar outra coisa. A lista de convidados passou pelo crivo do Palácio do Planalto, e não foram chamados empresários que têm sido mais enfáticos nas críticas às políticas do governo, principalmente no que se refere ao controle da pandemia, como Luiza Trajano, do Magazine Luiza. Os que assinaram a carta dos economistas cobrando mudanças também ficaram de fora.

E seria difícil imaginar, de qualquer forma, que um empresário fosse fazer em público alguma cobrança mais firme a um presidente da República. Há meios mais eficientes de se passar a mensagem. Como, por exemplo, se aliar aos presidentes da Câmara e do Senado numa tentativa de “enquadrar” Bolsonaro, como vem sendo feito.

O jantar do presidente com um pedaço importante do PIB, aliás, veio logo depois de esse mesmo PIB jantar com Arthur Lira, o presidente da Câmara, e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e cobrar, por exemplo, a cabeça do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo – que foi entregue. 

Tem muito de marketing nesse movimento de Bolsonaro. Ele tenta mostrar que os donos do dinheiro, que estiveram majoritariamente com ele em 2018, não o abandonaram.  Mas não dá para dizer que os presentes ao jantar representam efetivamente o PIB, dado o perfil do encontro . Nada mudou entre o jantar com Lira e Pacheco e o jantar com o presidente. 

Que Bolsonaro não se engane. O objetivo final do empresário é o lucro, é para isso que todos trabalham. E é muito mais difícil lucrar com um país com desemprego em alta, população empobrecida – e pior, morrendo por falta de vacinas -, com uma economia estagnada (que não consegue se livrar dos efeitos da recessão de 2015/2016), sem reformas estruturais importantes. Se ele não consegue resolver isso, pode esquecer o apoio. Se a disputa que se configura na eleição de 2022 é mesmo entre Bolsonaro e Lula, os empresários, ressabiados,  já se movimentam em busca de uma terceira via. Mas, se tudo continuar como está, já não descartam a segunda via.

Alexandre Calais é Editor de Economia d'O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 08 de abril de 2021 | 11h22

Ao lado de Bolsonaro, general cita Duque de Caxias e diz: 'Minha espada não tem partido'

General Antonio Amaro, chefe do Estado-Maior do Exército, afirmou ainda que generais devem zelar pela hierarquia e disciplina na tropa. Ele e Bolsonaro participaram de evento de promoção de generais, no clube do Exército.

O general Antonio Amaro, chefe do Estado-Maior do Exército, disse nesta quinta-feira (8), em evento com o presidente Jair Bolsonaro, que "minha espada não tem partido". Amaro lembrou que a frase é uma citação do patrono do Exército, Duque de Caxias.

A separação entre a política e as Forças Armadas tem sido um tema central em Brasília desde a última semana, quando Bolsonaro demitiu o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.

Como consequência da demissão, os comandantes das três Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) saíram dos cargos. O movimento suscitou avaliações de que Bolsonaro quer das Forças um maior alinhamento ao governo.

O general Antonio Amaro, chefe do Estado-Maior do Exército, em evento com o presidente Jair Bolsonaro — Foto: Marcos Corrêa/PR

Amaro e o presidente participaram, no Clube do Exército, de uma cerimônia de promoção de generais. Em seu discurso, o chefe do Estado-Maior lembrou que a frase de Caxias foi usada também por Bolsonaro, em discurso no Dia do Soldado, em 2020.

"A virtude personificada por Caxias já mereceu também, por parte do comandante supremo das Forças Armadas [Bolsonaro], uma referência especial por ocasião do Dia do Soldado de 2020. Naquela ocasião, o presidente da República, Jair Bolsonaro, fez citação à famosa frase proferida pelo Duque, que sendo ele do partido conservador, mas compromissado com a pátria, ao ser convidado pelo imperador Dom Pedro II para ser o comandante em chefe na Guerra da Tríplice Aliança, assim declarou: 'Aceito o convite, a minha espada não tem partido'", disse Amaro.

O chefe do Estado-Maior disse ainda que os generais recém promovidos devem zelar pela hierarquia na tropa. Amaro lembrou aos generais de que os soldados devem ser "guardiões" da vocação principal da Força: defender a pátria.

"Neles [nos soldados], a destreza técnica e a habilidade para refrega devem continuar amparadas nas rígidas bases da hierarquia e da disciplina e na prática dos valores morais mais caros à nossa sociedade", continuou o general.

O presidente Jair Bolsonaro discursou em seguida. Ele defendeu o limite das "quatro linhas da Constituição" e disse que não se pode aceitar alguém que queira atuar fora desse "balizamento".

“Nós atuamos dentro das quatro linhas da nossa Constituição. Devemos, e sempre agiremos assim. Por outro lado, não podemos admitir quem por ventura queira sair desse balizamento", afirmou o presidente.

Bolsonaro também disse que "os momentos são difíceis" e que "vivemos uma fase um tanto imprecisa", mas não especificou a que situação se referia.

"Os momentos são difíceis. Vivemos uma fase um tanto quanto imprecisa, mas temos a certeza, pelo nosso compromisso, pela nossa tradição, sempre teremos como lema a nossa bandeira verde e amarela e a nossa perfeita sintonia com desejos da nossa população. Assim agiremos”, completou Bolsonaro.

Guilherme Mazui para o G1 — Brasília, em 08/04/2021 12h05  Atualizado há 4 horas

"O sistema de saúde já colapsou, e vai continuar no colapso"

Infectologista que atua na linha de frente em hospitais do Rio descreve cenário dramático. Prevendo até 6 mil mortes por covid-19 por dia no Brasil, ele defende lockdown e canalização de esforços para vacinação em massa.

Hospital de Campanha em Santo André no início de março

Em meio ao pior momento da pandemia de covid-19 no Brasil, com o sistema de saúde sobrecarregado e a vacinação caminhando a passos lentos, o país registrou nesta terça-feira (06/04) mais um recorde de mortes ligadas à doença: foram 4.195 em 24 horas .

O Brasil é atualmente líder mundial disparado em novas mortes diárias, e responde por cerca de 28% dos novos óbitos por covid-19 no mundo, segundo dados do site Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford. Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos.

Nesta terça, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou um boletim extraordinário do Observatório Covid-19  em que prevê que a pandemia permanecerá em níveis críticos ao longo do mês de abril. Segundo uma análise do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, após viver, em março, o mês mais mortal da pandemia, com 66 mil óbitos ligados à covid-19, o Brasil pode vir a registrar 100 mil mortes neste mês.

O infectologista David Sufiate trabalha na linha de frente em vários hospitais da capital fluminense. Em entrevista à DW, ele relata um quadro dramático. "Eu, como médico, infectologista, intensivista na linha de frente, fico muito desanimado. A gente fica muito triste de perceber que a prioridade do governo não é coletiva, a prioridade do governo é individual", afirma.

Sufiate prevê mais dois ou três meses com mortalidade elevada no país, com até 5 mil ou 6 mil mortes por covid-19 por dia. Sobre um colapso no sistema de saúde, ele é categórico: "Vai colapsar não – vai continuar no colapso. Pois o colapso já chegou. Estamos nele."

DW: A pandemia está fora de controle, no Brasil?

David Sufiate: É difícil até definir controle dentro de um contexto de pandemia. O que é controle? Mas, de fato, há uma sobrecarga no sistema de saúde como um todo. Desde a rede privada até a rede pública – ambos os cenários são bem difíceis.

Na Fiocruz, estamos há um mês com carga máxima, ou, melhor, acima da carga máxima em alguns momentos. Atualmente, só entra [paciente novo após] o que a gente consegue dar alta ou, infelizmente, os óbitos. Nem dá nem para dizer que está pior, porque já está sobrecarregado há pelo menos três semanas.

Você percebe que o perfil dos pacientes está mudando, já que os mais idosos foram vacinados?

Sim, isso é bem notório em todas as esferas de cuidado. Na UTI que eu coordeno, na Fiocruz, a gente já, desde ontem, não tem mais pacientes com mais de 80 anos internados. Isso reflete claramente o papel da vacina na pandemia. Agora temos um cenário em que os mais jovens estão expostos, pois as políticas governamentais estimulam às pessoas a sair de casa, a se expor mais. Assim, ficam mais doentes.

Que faixa de idade é mais afetada atualmente?

Entre 40 e 60 anos talvez sejam as pessoas mais afetadas e mais internadas.

O perfil do vírus também mudou?

O que parece mais claro para a gente é que o vírus está mais transmissível. Na Fiocruz, a gente consegue fazer uma análise filogenética, e 90% dos atuais pacientes internados já tem a mutação P.1. Então, o vírus mudou e está mais transmissível. Se ele faz uma forma mais grave [da doença], honestamente isso é difícil de dizer. Tem alguns trabalhos pequenos que mostram que o vírus parece ser mais virulento, mas o que me parece olhando de dentro é que tem mais pessoas doentes. Então, estatisticamente vai ter mais pessoas em estado grave. Isso não necessariamente decorre de um vírus estar mais virulento. Isso é difícil de afirmar. 

Mas as pessoas agora permanecem por mais tempo na UTI, certo?

É porque são pessoas mais novas. E pacientes mais jovens tem mais reserva funcional. Esse pessoal demora mais para entrar em falência orgânica múltipla, por exemplo. Essas pessoas duram mais, entre aspas. A internação acaba sendo mais prolongada, porque são pessoas mais jovens, que resistem mais.

No seu dia a dia na UTI, o que falta para os profissionais de saúde?

Onde eu trabalho, o que mais falta é pessoal especializado em terapia intensiva. Em termos de suprimento, em termos de aparelhagem, não falta, em termos cotidianos. Mas tem muito médico que não está acostumado a trabalhar em UTI, e isso faz uma diferença absurda. E isso se estende a outras áreas também, como fisioterapeuta, enfermeiro e tudo mais. Mão de obra especializada me parece ser uma carência ainda, um ano após o começo da pandemia.

E muitos trabalhadores de saúde estão cansados depois de todo esse tempo?

Muitos colegas largaram a medicina, muitos pararam de trabalhar em UTI por causa disso, não querem ver covid de jeito nenhum. Realmente, é bem dramático.

O que o governo federal poderia fazer por vocês?

Vacinar as pessoas, priorizar todas as verbas, todas as vontades políticas, e canalizar os esforços na vacinação em massa. É o que vai mudar a história desses 4.100 óbitos em um dia. 

E o lockdown? O governo federal disse que não haverá. Mas um lockdown seria positivo?

Não há dúvida. Temos um exemplo aqui no Brasil, a cidade de Araraquara, que fez lockdown e está no segundo lockdown. E que agora está registrando zero mortes. A gente não quer que não internem pacientes com covid. A gente precisa que haja recursos suficientes. Porque a gente não pode ter 700 pessoas esperando uma vaga na UTI para internar. Porque tudo fica engarrafado, tudo fica acumulado, e nosso trabalho é afetado em cascata.

A vacinação não vai impedir que as pessoas peguem a doença. Mas a vacinação vai impedir que tantas pessoas ao mesmo tempo peguem a doença. E o lockdown faz com que as pessoas circulem menos. E isso já foi amplamente divulgado e amplamente difundido, e eu me recuso, em abril de 2021, já 14 meses depois do começo de tudo, a ter que ensinar que lockdown funciona. Não há discussão de que ele funciona, é uma ferramenta muito útil.

Mas a gente vai entrar em outra discussão: como é que o governo vai fomentar as pessoas para não passarem fome? É muito preocupante.

Mas você percebe um perfil diferente, com mais pessoas pobres pegando a doença do que pessoas de camadas mais bem abastadas?

Isso acontece com qualquer doença infecciosa. Quanto mais abastado, menor o impacto. Porque as pessoas ricas conseguem ficar em casa, têm recursos para isso. As pessoas pobres não, elas têm de trabalhar, têm de se movimentar de alguma maneira.

Vocês, na linha de frente, sentem uma falta de apoio por parte do governo federal?

Eu, como médico, infectologista, intensivista na linha de frente, fico muito desanimado. A gente fica muito triste de perceber que a prioridade do governo não é coletiva, a prioridade do governo é individual. O que nos parece é que o governo não está preocupado com a coletividade, com o coletivo, de priorizar o que deve ser prioridade. Muito desanimador.

Ter agora um médico no Ministério da Saúde não traz esperança?

Bom, mais esperança dá se esse médico puder trabalhar. A gente sabe que o impacto das relações políticas é maior do que a própria competência da pessoa no cargo. Espero que o atual ministro da Saúde tenha a liberdade para preconizar o que deve ser preconizado, e não ser mais uma ferramenta de políticas individualistas.

Há cientistas prevendo ainda um aumento de mortes diárias – você está otimista ou pessimista?

Eu acho que a gente ainda vai ter dois ou três meses de grande impacto na mortalidade, chegando sim a talvez 5 mil ou 6 mil mortes por dia.

E neste caso, tudo vai colapsar?

Vai colapsar não – vai continuar no colapso. Pois o colapso já chegou. Estamos nele.

Deutsche Welle Brasil, em 08.04.2021

O papa que decretou 'lockdown' em Roma para salvar população de peste no século 17

 Ele era intelectual, fã de arquitetura e arte, doutor em filosofia, teologia e direito. Quando o italiano Fabio Chigi (1599-1667) se tornou o papa Alexandre 7º, nem em seus piores pesadelos poderia vislumbrar que teria de enfrentar uma epidemia de peste.


O papa Alexandre 7º decretou medidas sanitárias que, para pesquisadores, contribuíram para que a letalidade de uma peste no século 17 fosse muito menor.(Crédito da foto: domínio público)

A resposta dele, no entanto, foi contundente.

Embora a ciência só tenha descoberto o bacilo causador da peste em 1894 — graças ao bacteriologista Alexandre Yersin (1863-1943) —, o papa decretou medidas sanitárias que, para pesquisadores, contribuíram para que a letalidade da doença fosse muito menor na população romana do que em outros lugares afetados pela mesma doença.

De acordo com levantamento realizado pelo historiador italiano Luca Topi, professor da Universidade de Roma La Sapienza, entre 1656 e 1657 a peste matou 55% da população da Sardenha, metade da população de Nápoles e 60% dos que habitavam Gênova.

Em Roma, contudo, foram 9,5 mil mortos em um universo de 120 mil pessoas — menos de 8%. Essas conclusões foram publicadas em uma revista científica italiana em 2017.

Calcula-se que a peste tenha dizimado cerca de metade da população europeia, em diversas ondas. Fazia um ano que Alexandre VII havia sido eleito papa quando começaram a chegar relatos de mortes pela doença no então reino de Nápoles.

Alexandre 7º não era somente o líder do catolicismo. Se hoje o papa é soberano de um estado diminuto encravado em Roma, o Vaticano, na época comandava os chamados Estados Pontifícios que compreendiam Roma e boa parte dos arredores — praticamente todo o centro da Itália atual.

A fascinante história a seguir mostra como medidas que geram controvérsia no Brasil da pandemia de covid-19, como proibição de circulação de pessoas, fechamento de fronteiras e de templos, rastreamento de casos, auxílio emergencial, debates sobre jejuns religiosos e outras, foram aplicadas há mais de 400 anos — e tiveram bons resultados.

Quais foram as medidas do papa?

Nos domínios papais, esse surto ocorreu de maio de 1656 a agosto de 1657.

Assim que as primeiras notícias da peste chegaram a Roma, Alexandre 7º colocou em alerta a então Congregação da Saúde, que havia sido criada em um surto anterior.

As medidas de contenção foram implementadas gradualmente, conforme a situação se tornava mais perigosa.

Em 20 de maio, foi promulgado um decreto que suspendia toda atividade comercial com o reino de Nápoles — já fortemente afetado. Na semana seguinte, o bloqueio se estendeu: ficava proibido também o acesso a Roma de qualquer viajante vindo de lá.

No dia 29, a cidade de Civitavecchia, dentro dos domínios dos Estados Pontifícios, registrou a chegada da peste e foi imediatamente colocada em quarentena.

"Nos dias e meses seguintes, muitas outras localidades dos Estados Papais foram colocadas em isolamento", detalha o historiador Topi, em seu artigo. Em Roma, a decisão foi radical: quase todos os portões que então davam acesso à cidade foram fechados. Apenas oito permaneceram abertos, mas eles eram protegidos 24 horas por dia por soldados, supervisionados por "um nobre e um cardeal".

A partir de então, qualquer entrada tinha de ser justificada e registrada.

Em 15 de junho, Roma teve o primeiro caso: um soldado napolitano que morreu em um hospital. As normas passaram a endurecer cada vez mais. Em 20 de junho, uma lei passou a obrigar que todo aquele que soubesse de um doente informasse autoridades.

Na sequência, um novo dispositivo papal passou a obrigar que todo pároco e seus ajudantes visitassem, a cada três dias, todas as casas de suas circunscrições para identificar e registrar os doentes.

Era a maneira, na época, de rastrear os infectados.

Aí veio a notícia de mais uma morte, um pescador que estava hospedado na região de Trastevere. "Toda a família que teve contato com essa vítima também se infectou e muitos foram a óbito", conta Raylson Araujo, membro do Núcleo de Diálogo Católico-Pentecostal e estudante de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que também pesquisou o assunto.

A primeira ideia foi tentar isolar a região. Na noite do dia 22 para o dia 23 de junho, sob as ordens de três cardeais, trabalhadores ergueram um muro de contenção após nove horas de trabalho.

Ilustração papa Alexandre 7o, feita por Andrea Sacchi

O endurecimento das regras impostas pelo papa Alexandre 7º foi gradual até chegar a um lockdown completo.

"O papa era também a autoridade civil. Conforme a doença começou a se espalhar, ele passou a implementar medidas de isolamento. Depois que proibiu o comércio com Nápoles, passou a decretar outros meios de distanciamento social: foi proibindo encontros, procissões, todo o devocional mais popular", pontua Araujo.

O endurecimento das regras foi gradual até o lockdown completo.

"Conforme o tempo foi passando, ele [o papa] foi adotando novas proibições. Congregações [da Igreja] foram suspensas, todas as visitas diplomáticas também, encontros religiosos e reuniões públicas… Estradas foram vigiadas", enumera Araujo. "Todas as aglomerações civis acabaram suspensas."

"Foram banidas várias atividades econômicas e sociais. Festas e cerimônias públicas, civis e religiosas foram canceladas", diz o seminarista Gustavo Catania, filósofo pelo Mosteiro de São Bento de São Paulo. "Mercados foram suspensos e algumas pessoas que moravam na rua foram retiradas, porque podiam ser causas de contágio. A travessia noturna do Rio Tibre foi proibida."

"Com quase toda a cidade fechada, os cultos inevitavelmente se transformaram em privados. Quase todos tinham alguém da família com a doença", completa Catania.

O papa também determinou que naquele período ninguém deveria fazer jejum, numa tentativa de que as pessoas não se privassem de alimentos e, assim, se mantivessem mais saudáveis para o caso de serem infectadas.

Todos aqueles que tinham pelo menos um contaminado na família eram proibidos de sair de casa. Para garantir a assistência, Alexandre 7º separou os padres e os médicos em dois grupos — aqueles que teriam contato com os doentes e os que não teriam, encarregando-se de zelar pelo restante da população.

"Havia uma preocupação que os padres não se transformassem em vetores da doença", diz Araujo.

"Os médicos foram proibidos [por lei] de fugir de Roma", atenta Catania, lembrando que muitos tinham receio de se contaminarem com a peste. Como os doentes eram isolados, foi montada uma rede de apoio assistencialista. "Houve a previsão de ajuda financeira às famílias que não podiam sair de casa e algumas pessoas recebiam comida pela janela", diz o seminarista.

Nos meses de outubro e novembro, quando a incidência da doença foi maior, chegou-se a prever pena de morte para quem descumprisse as regras.

Negacionistas e fake news

Mas nem todos acreditavam na gravidade da situação.

Havia quem desdenhasse e até as hoje chamadas fake news foram espalhadas. "O papa chegou a ser acusado de ter inventado a doença em benefício próprio, para ganhar popularidade", conta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

"[Muitos] não queriam que o pontífice adotasse tais medidas [de restrição] para não alarmar a população", complementa. "Até seus colaboradores mais próximos o aconselharam a não fazê-lo. Temiam que, a partir do momento em que ele levasse a público a gravidade da situação, por meio de decretos e divulgação, a economia passasse a sentir os efeitos desse tipo de postura. No entanto, ele [o papa] foi firme e seguiu com sua política sanitária."

Talvez Alexandre 7º possa ser considerado uma espécie de padroeiro do lockdown.

Araújo compara o acontecido no século 17 com o "movimento de hoje, com a resistência das pessoas" a aceitarem a gravidade da pandemia de covid-19. "[Na época,] primeiro os comerciantes quiseram aconselhar o papa para que ele não adotasse as medidas, pois [o fechamento] iria prejudicar o comércio, a colheita", comenta o pesquisador. "Parte do povo foi murmurar contra as decisões do papa."

"Grupos procuraram o papa, aconselhando-o para não decretar medidas de isolamento. Queriam que ele acobertasse, maquiasse um pouco a doença para que o pânico não se espalhasse e o comércio não fosse fechado", prossegue.

Há relatos de que um médico teria divulgado fake news acerca das reais motivações do lockdown. "Ele espalhou que essas decisões do papa escondiam interesses políticos", diz o historiador Victor Missiato, professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Brasília) e pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"Foi acusado de calúnia e acabou condenado a trabalhar em um hospital voltado para a cura da peste."

Outro caso emblemático foi o do religioso Gregorio Barbarigo (1625-1697). Quando foi eleito, o papa Alexandre VII nomeou-o prelado da Casa Pontifícia, conselheiro e, em seguida, referendário do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Isso tudo em 1655, mesmo ano em que Barbarigo havia se tornado sacerdote.

Mas o conselheiro acabou sendo uma voz contrária ao lockdown de Alexandre 7º. "Ele questionava as medidas, dizia que elas provocavam mais mortes do que a peste, porque causavam mortes pela fome e pelo medo. Mesmo próximo ao papa, ele tinha um olhar crítico", frisa Araujo.

Alexandre 7º não parece ter guardado rancor. Tanto que, anos mais tarde, em consistório de abril de 1660, fez de Barbarigo cardeal.

Vitória contra a doença

Quando esse surto foi vencido em agosto de 1657, a celebração foi à altura.

Alexandre 7º demonstrou o renascimento da Igreja com monumentos que marcam o Vaticano até hoje, como o conjunto de colunas da Praça de São Pedro, obra do escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini (1598-1660).

Obras de Papa, Alexandre 7º marcam o Vaticano até hoje, como o conjunto de colunas da Praça São Pedro, do escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini (Crédito da foto: Edison Veiga)

"Era muito comum, nesse período, que os papas tornassem visíveis a sua soberania e o seu poder. Os grandes monumentos de Roma, nesse período, foram construídos a partir dessa motivação", contextualiza Medeiros.

"É o caso das Quattro Fontane da Piazza Navona, Fontana di Trevi, entre outros."

A embaixada brasileira em Roma fica em frente às esculturas da famosa Piazza Navona.

"Alessandro 7º era apaixonado pela arte, amigo de Bernini. O início de seu pontificado foi marcado, justamente, pela peste", explica.

"A forma que ele encontrou, de certa forma, de apagar aquele período sombrio, foi investindo em obras colossais. As colunatas que ele mandou construir representam os braços abertos da Igreja. A catedral do apóstolo Pedro foi restaurada, o símbolo do poder temporal, não só espiritual."

Outros casos

Não foi este o único momento histórico em que a Igreja, no passado, fechou suas portas por conta de surtos e epidemias. Mas, como destaca Medeiros, foi o único de forma oficial "e contando com uma estrutura de Estado para tal".

"Ocorreram [em outros momentos] casos isolados em algumas dioceses da Itália, sobretudo no século 19 durante a epidemia de cólera", lembra ela. "Nesses lugares, adotaram-se medidas restritivas semelhantes."

Por outro lado, Medeiros lembra que no surto de peste do século 14, ocorreu "totalmente o contrário".

"O papa Clemente 6º, isolado no palácio pontifício de Avignon, na França, não parecia muito preocupado com o que ocorria fora dos muros da sua casa", aponta a vaticanista. "Como na mentalidade do homem da época a doença nada mais era do que um castigo divino, procissões e outras formas de aglomeração aconteciam, na tentativa, segundo a mentalidade religiosa da época, de extirpar aquele mal."

"Mas já nessa época, assim como na época de Alexandre 7º, existiam os dormitórios para isolar os infectados. Esses 'lazarettos', como eram chamados, estavam sob a responsabilidade dos [religiosos] franciscanos", contextualiza. "Os viajantes, seguindo as normas sanitárias de alguns lugares, deveriam evitar o convívio com outras pessoas por 40 dias — daí que surge o termo quarentena."

No século anterior, a região de Milão foi fortemente acometida pela peste. O cardeal arcebispo de lá, Carlo Borromeo (1538-1584), também estabeleceu medidas sanitárias rígidas em sua circunscrição.

"Ele fez a proposta de uma quarentena geral, que foi adotada [pela região]", diz Araujo. "Foi publicado um decreto que determinava que as pessoas se mantivessem em casa até que a situação fosse controlada. Só podiam sair os que estavam cuidando espiritual e materialmente da população."

O pesquisador conta que até as missas foram realizadas em um formato "à distância", conforme as possibilidades da época. "Um padre ia para a esquina e celebrava na rua. Os fiéis assistiam de suas janelas, de dentro de casa", explica ele.

Fé e ciência

Ao analisar esses episódios do passado — muitas vezes semelhantes ao vivenciados hoje — dois pontos precisam ser levados em conta.

Este era um mundo em que a ciência ainda não era valorizada como hoje. E no qual religião e política estavam intrinsecamente mesclados.

"No século 17, absolutismo era muito forte na Europa e estava ligado ao poder da Igreja. Poder político e poder religioso, naquela época, ainda estavam muito misturados", explica Missiato.

"Naquele período, a Revolução Científica ainda não havia sido difundida nas diversas sociedades do mundo europeu. A crença no divino enquanto ente definidor da paz e do caos ainda era vista como o caminho para a salvação."

Por isso, o lockdown imposto por Alexandre 7º se torna ainda mais interessante.

"[O ocorrido] mostra um alinhamento entre fé e ciência", diz Araujo. "Uma fé que tem os pés no chão. Com base no que Roma já havia sofrido com a peste em outros momentos, [a experiência faz com que] eles passam a saber que essas medidas são importantes. Existem pastores sensíveis."

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 8 abril 2021, Atualizado Há 3 horas

Os dez mandamentos do desmando, segundo Eugênio Bucci

Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder      

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

Eugênio Bucci, Jornalista, é Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.04.2021

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Incompetência estrutural

Troca sem critério de servidores está degradando os escalões inferiores do governo  

Se o presidente Jair Bolsonaro fosse o CEO de uma grande empresa, já teria sido demitido. Em pouco mais de dois anos de mandato, Bolsonaro mexeu incontáveis vezes em seu Ministério e, a cada mudança, são substituídos, aos magotes, funcionários de escalões inferiores. Nenhuma administração que se pretenda séria e competente consegue funcionar sem um mínimo de estabilidade, palavra desconhecida no governo Bolsonaro.

Já é notória a inabilidade do presidente na gestão de seu pessoal. Sempre que pretende afastar um ministro, como mostrou recente reportagem do Estado, trata de desgastá-lo publicamente, com insinuações e cobranças, tratando-o como desafeto, ao mesmo tempo que alimenta especulações sobre quem seria o substituto. No dialeto do poder, isso se chama “fritura” – que, além de humilhar o substituído, serve para constranger os ministros remanescentes. Tal prática desestimula os cidadãos mais preparados a desejarem fazer parte do governo, pois ninguém gosta de ser humilhado por fazer seu trabalho.

Para Bolsonaro, contudo, a qualidade da administração é irrelevante; seu único propósito, como presidente, é ser temido e ter suas ordens acatadas sem contestação. Por isso, Bolsonaro troca de ministros como troca de camisas, quase nunca para satisfazer às demandas das áreas afetadas, e quase sempre para atender a seus devaneios de poder.

Pode-se argumentar que a constante substituição de ministros tem um impacto limitado no dia a dia da administração, pois o Estado conta com um corpo de funcionários públicos de carreira que, independentemente da chefia, desempenham corretamente seu trabalho, pois têm bom preparo técnico. Isso é um fato, mas também é um fato que a cada ministro que entra e a cada um que sai, a administração Bolsonaro parece empenhar-se em promover a degradação dos escalões inferiores nos órgãos envolvidos.

Hoje, em áreas estratégicas, como Educação e Saúde, já não é mais possível garantir a qualidade estrutural, desgastada pela nomeação de servidores sem nenhum preparo e, pior, escolhidos exclusivamente por demonstrarem publicamente compromisso fanático com o bolsonarismo – pseudoideologia assentada na destruição.

Assim, ganham cargos-chave funcionários dedicados a arruinar a memória administrativa a duras penas construída ao longo dos anos e dos governos de diferentes orientações.

Tome-se o exemplo do Ministério da Saúde. Além da alta rotatividade na pasta, que já está em seu quarto titular, houve notável deterioração da qualidade do quadro de gestores. O terceiro ministro, o intendente Eduardo Pazuello, não sabia nem o que era o SUS, segundo suas próprias palavras. Sendo assim, poderia ter se cercado de gente do ramo, mas, fiel ao projeto bolsonarista, montou uma equipe destinada a descaracterizar o Ministério da Saúde.

Entre os auxiliares diretos de Pazuello agora exonerados estavam um certo “Markinhos Show”, hipnólogo responsável pelo marketing do ministro, e um advogado que já defendeu milicianos no Rio de Janeiro, além de inúmeros militares sem qualquer experiência na área. E tudo isso em meio ao maior desafio sanitário enfrentado pelo País em um século.

No Ministério da Educação, que também está no quarto ministro (um deles nem chegou a assumir, por ter embelezado o currículo acadêmico), o desmantelamento é generalizado. A Secretaria Executiva está no terceiro secretário. A importantíssima Secretaria de Educação Básica, que já teve cinco secretários, está sem titular desde a semana passada, quando a última pediu demissão. A Secretaria de Educação Superior é administrada hoje pelo seu terceiro gestor. O Inep, que faz as avaliações de ensino, está no quarto titular.

A esse descalabro se somem as trocas intempestivas na direção de estatais, bancos públicos e outros órgãos da administração, com destaque para as áreas ambiental e de segurança, e tem-se o retrato de um governo sem rosto – ou melhor, com a exata feição de seu presidente, um político sem partido e sem rumo, cujo objetivo é apenas o poder em si mesmo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08 de abril de 2021 | 03h00