domingo, 4 de abril de 2021

Flávio Tavares: O horror se reúne em festa nacional

O fundamental vira desprezível acessório e o remotamente acessório passa a essencial   

Há momentos em que os absurdos brotam reunindo maldade e horror para atingir a todos. De um lado, a pandemia se propaga com fúria e ataca com novas cepas, fazendo da tétrica “média móvel de mortes” um hábito diário. De outro, o tumor cresce por atos dos que deveriam ser guardiães da ética, mas se portam como autores ou partícipes da balbúrdia, tal qual a decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal (STF) declarando o então juiz Sergio Moro “parcial” ao condenar o ex-presidente Lula da Silva. É como se o halo de justa justiça que a Lava Jato nos trouxe (ao desnudar o sórdido conluio dos intocáveis da política com os intocáveis do grande empresariado) fosse só devaneio.

Fomos sonâmbulos ao crer que a luz havia iluminado a longa noite de falcatruas do nosso bizarro capitalismo montado no assalto ao Estado nacional. O ministro Gilmar Mendes, relator do caso no STF, preparou o caminho, mas inexplicável mesmo foi a mudança de voto da ministra Cármen Lúcia, que desfez o que fizera e, de repente, entendeu que o juiz Moro foi “parcial”.

O novo entendimento do Supremo abre portas para invalidar o cerne da Operação Lava Jato. Começou anulando, de fato, o já apurado sobre Lula e pode chegar ao absurdo de que os tais “delatores premiados” reivindiquem receber o que devolveram dos milhões roubados à Petrobrás.

Sim, pois se o juiz “foi parcial” com Lula, terá sido, também, com os demais…

A decisão do STF nem sequer alega que Moro tenha cerceado os direitos do réu ou dos advogados. No fundo, o STF baseou-se em ilações e concluiu a partir delas.

Os processos sobre o triplex no Guarujá passarão à Justiça de Brasília, mas nada do já apurado vai valer. No lento recomeçar do zero, os processos prescreverão e Lula se beneficiará das prescrições.

Assim, a pandemia penetra na política e na Justiça como efeito colateral da suspeição de Sergio Moro.

A festança nacional do horror, porém, vai além da destruição da Lava Jato. O Brasil sofre o impacto da covid-19, mas o Orçamento proposto pelo governo para 2021 (e aprovado pelo Congresso) não dá maior atenção à “gripezinha” de Bolsonaro, que a cada dia mata mais.

Em vez disso, o Orçamento destina para gastos militares um quinto do total a ser aplicado em todos os demais ministérios. As verbas de defesa irão a R$ 8,3 bilhões e, além da manutenção das Forças Armadas, destinam-se a construir submarinos e comprar aviões de caça e blindados. É como se nos preparássemos para a guerra iminente, mas que não combate o inimigo real, a pandemia...

Os funcionários civis estão com salários congelados, mas o Orçamento prevê aumentos para os militares, a consumir outros bilhões de reais. Em contraste, as verbas das universidades se “reajustam’ para menos.

Nada disso, porém, foi mais absurdo e perigoso do que a demissão do ministro da Defesa e, logo, a dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, sob o pretexto de “realinhá-los” com os propósitos do presidente.

O demitido ministro da Defesa (um general) lembrou que “preservou as Forças Armadas como instituições do Estado”, forma elegante de revelar que evitou transformá-las em serviçais de Bolsonaro e saiu por isso. Impõe-se perguntar: o presidente estaria desejando o apoio (ou conivência) das Forças Armadas numa espécie de “autogolpe” que lhe desse poderes absolutos?

Terá sido simples coincidência que no mesmo dia o deputado Major Vítor Hugo, que foi líder do governo até 2020 (e íntimo de Bolsonaro), tenha proposto uma lei que, de fato, faz do presidente um ditador durante a pandemia? O projeto de lei terá sido só uma engrenagem na máquina do rei absolutista instalada no Palácio do Planalto?

Tudo é difuso ou oculto nos atos do presidente, nos quais o fundamental vira desprezível acessório e o remotamente acessório passa a essencial. Nada explica a tardia vacinação (que expandiu a covid-19) nem a insistência charlatanesca de Bolsonaro sobre o “uso curativo” da cloroquina e similares, que acabaram desmobilizando até parte do setor médico.

O combate à pandemia confundiu-se com a trapaça e em Minas e Espírito Santo houve “ofertas” de 200 mil doses falsas de vacina. A investigação da Polícia Federal evitou a consumação da fraude, mas o fato em si já revela o grotesco a que Bolsonaro nos levou desmobilizando a vigilância da população.

Só isso explica que, em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, distintos grupos se aglomerem em festas e a peste avance.

Vivemos a tempestade da pandemia como se, num temporal, a “solução” fosse amarrar os galhos das árvores porque, ao se moverem, causariam a ventania…

Para onde nos leva o estilo difuso do governo Bolsonaro, que, quanto mais opina, menos sabemos aonde quer chegar? No fundo, será ele um simulador nato e absoluto?

Tudo isso se acumula como se o horror reunisse suas variantes em festiva convenção nacional.

Flávio Tavares, Jornalista e Escritor. Prêmio Jaboti de Literatura em 2000 e 2005. Prêmio APCA. Professor Aposentado da Universidade de Brasília. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.04.2021.

Miguel Reale Júnior: Aprendiz de feiticeiro

Mais poder para quê? Para confrontos e mobilização com ‘seu’ exército? Não haverá!

Entre os motivos por que alertava para não se votar em Bolsonaro, eu ressaltava, nesta página de outubro de 2018, ser o candidato pessoa que não tivera ao longo da vida relações sociais ou políticas, sendo um outsider, sem densidade e compreensão da pluralidade própria do nosso mundo e para quem o Brasil, na sua complexidade, era visto como um quartel.

No quartel não há dissidentes ou debate livre entre membros de escalões diferentes, pois, como ensina o Manual de Campanha – Ordem Unida do Exército, 4.ª edição, 2019, as principais características de uma instituição militar são a disciplina e a coesão, entendida a disciplina como o predomínio da ordem e da obediência, sendo esta pronta, espontânea e entusiástica.

Bolsonaro, formatado na ordem unida, transformou o Ministério da Saúde num quartel, com ministro general e secretário executivo coronel, imperando o que haviam aprendido na caserna: disciplina, ou seja, um manda e o outro obedece às ordens superiores, com submissão cega às determinações do presidente Bolsonaro. Conclusão: nem no prédio do ministério se usavam máscaras.

Enquanto o presidente brincava de “marcha soldado”, milhares de brasileiros morriam. Mas quando chegou a três centenas de milhar, as elites políticas e econômicas resolveram dar um basta à brincadeira.

O repertório de encenações do pretenso mito está a se esgotar. Deu, então, uma cambalhota no palco presidencial para reafirmar sua autoridade. Tosco no plano político, sem traquejo na montagem de negociação, que presume ter-se fim preciso a ser alcançado e meios a serem negociados para chegar à meta, Bolsonaro imaginou que, abandonando seus correligionários originais e se unindo ao Centrão, estava garantido no poder para o que desse e viesse.

Como o aprendiz de feiticeiro, Bolsonaro desencadeou forças sobre as quais pensou ter controle, mas que o dominam. Como só conhece as regras da ordem unida, e não a arte da mudança de rumos e da aceitação de uma pluralidade de soluções, imaginou que teria à frente da Câmara e no Senado, em razão de seu apoio, dois outros Pazuellos.

Bolsonaro é presidente, mas sente que não mais governa, só administra crises e corre atrás do prejuízo. Diante do desastre sanitário gigantesco, o Centrão resolveu intervir no governo. Forçado pelos dirigentes das Casas do Congresso, Bolsonaro demitiu o ministro da Saúde, mas não seguiu a orientação de nomear médica de São Paulo, para desgosto em especial de Arthur Lira, que chegou a dizer serem os remédios do Parlamento amargos, podendo mesmo ser fatais.

Bolsonaro, em vista dessa pressão decorrente do número de mortos e do desespero da situação hospitalar, resolveu convocar os chefes dos Poderes para possível pacto, deixando, contudo, de convidar governadores, prefeitos e secretários da Saúde, contra os quais se voltou em posterior reunião do comitê, para culpá-los pelo desemprego decorrente das sabidamente necessárias medidas restritivas. O presidente do Senado, ao contrário, reuniu-se com governadores e deles recebeu várias sugestões.

Há evidente parlamentarismo branco. Os presidentes da Câmara e do Senado impuseram a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, cuja gestão fora desastrosa para o Itamaraty. Araújo pediu demissão, apesar de já demitido por Rodrigo Pacheco e Arthur Lira.

Tendo-se feito de surdos-mudos em meio à tormenta, na resistência, própria das vítimas de estelionato, a se reconhecerem enganadas, como o foram, por Bolsonaro, os agentes econômicos (Fiesp e Febraban) finalmente resolveram se juntar aos presidentes da Câmara e do Senado e tomar posição em face do presidente. Formou-se, então, um conjunto consistente de pressão sobre o governo.

Em reação, o presidente demitiu o Ministro da Defesa, que preservara as Forças Armadas como instituição de Estado, merecendo por isso o apoio dos comandantes das três Armas. No campo militar e nos ministérios da área jurídica, Bolsonaro tenta criar nichos de obediência, com ministros próximos à família, serviçais como Pazuello, a permitir-lhe até mesmo o devaneio do estado de sítio e de se afirmar como presidente.

A esquizofrenia se faz presente no governo: de um lado, caudatário do Centrão, entrega a Secretaria de Governo para inexpressiva deputada gerenciar emendas e cargos; de outro, temeroso da ingerência do Centrão, reforça com amigos a linha repressiva: delegado ligado à bancada da bala no Ministério da Justiça, o disciplinado André Mendonça na AGU e Braga Netto na Defesa. Com tal time e a possível mobilização de polícias militares pelo governo federal, concretiza-se o risco de caminho antidemocrático.

Pouca preocupação há em dotar o governo de capacidade gerencial ante a pandemia e a crise econômica que se avizinha: o que se quer é poder. E assim o aprendiz de feiticeiro tenta novos contorcionismos visando a sobrenadar no mar dos seus desatinos. Mas mais poder para quê? Para confrontos e mobilização nacional com o “seu” exército? Não haverá!

Miguel Reale Júnior, Professor Titular Sênior da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 04.04.2021

FHC: A hora se aproxima

Há que juntar as forças capazes de se contrapor a estrebuchamentos autoritários eventuais

A única vantagem que os mais velhos podem eventualmente ter é que já viveram situações difíceis. Elas não deixaram saudades. Os que se aproximam dos 90 anos (questão de três meses no meu caso), passaram pela 2.ª Grande Guerra; viram a migração do Nordeste tocada pela pobreza e, mais tarde, a do Sul, abrindo fronteiras no Oeste e ocupando terras; passaram pelo golpe de 1937, viram outra vez, de lado político distinto, o movimento de 1964 (em ambos os momentos carreiras foram cortadas e, mesmo, vidas ceifadas, às vezes pela tortura) e viram a democracia voltar a ser um valor. A liberdade é como o ar que respiramos: sem nos darmos conta, é dele que vivemos. Basta cortá-lo para aparecerem consequências nefastas.

Daí que eu veja com apreensão o momento atual. O País sofre uma crise sanitária gravíssima (talvez só comparável ao que aconteceu na “gripe espanhola” em 1918-1919); ainda está com as dificuldades econômicas, devidas não apenas à recessão, mas também à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, as quais, sem que haja dinamismo na produção, mostram com clareza as dificuldades para a obtenção de empregos. E, ainda por cima, temos um governo que não oferece o que mais precisamos: serenidade e segurança no rumo que estamos seguindo.

Nem tudo se deve à condução política do presidente da República. Convém repetir: ele foi eleito pela maioria e disse o que faria... Fez. E não deu certo. Em razão disso, para onde vai o País?

Primeiro, não julgo que seja suficiente distribuir “culpas”. Há várias culpas e vários culpados, interna e externamente. Sejamos realistas: ainda que o presidente fosse capaz de conter os seus ímpetos, não nos livraríamos do vírus que nos atormenta. Mas poderia haver menos mortos. A credibilidade dos que mandam é quase tão eficaz para conter desatinos como a competência dos serviços de saúde para evitar mortes.

A semana que passou dava a sensação (a meu ver, falsa) de que corríamos o risco da volta ao autoritarismo. O símile com situações autoritárias do passado não ajuda a entender as opções disponíveis. Houve, sim, uma forte movimentação de comandos militares. Mas, para dizer em termos simples, trocamos seis por meia dúzia.

Cada chefe militar tem, é natural, suas características e suas manias. Nenhum dos atuais comandantes, antigos ou novos nos postos, imagina que “um golpe” resolva a situação. Não sei o que se passa na cabeça presidencial, mas, ainda que desejasse um “golpe”, com que roupa? Basta ler as declarações dos militares que partiram ou dos que chegaram: quase todos falam em respeitar a Constituição e agir dentro da lei.

Não me parece haver clima, no País e na parte do mundo a que estamos mais vinculados, para aventuras. Dado o porte de nossa economia e a quantidade de questões sociais e econômicas a serem enfrentadas, por que uma pessoa razoável aumentaria as nossas angústias? E as que não são razoáveis? Estas precisam dispor de um clima favorável a suas loucuras, o que não me parece ser o caso.

Sendo assim, aumenta a responsabilidade de cada um dos cidadãos: devemos dizer, com firmeza, sim ao que queremos e não ao que nos assusta. Não é hora de calar, nem de fazer algazarra. Aproveitemos o quanto possível para, com equilíbrio, mostrar a insensatez de concentrar poderes nas mãos de quem quer que seja, pessoa ou instituição.

Defendamos a Constituição da República, que é democrática, e saudemos os políticos que creem que é melhor apoiar quem possa chegar à Presidência sem representar um extremo. Apresentemos aos brasileiros, quanto antes, um programa de ação realista, que permita juntar ao redor dele os partidos e as pessoas para formar um centro que seja progressista, social e economicamente. Centro que não pode ser anódino: terá lado, o da maioria, o dos pobres; mas não só, também o dos que têm visão de Brasil e os que são aptos para produzir.

Quem personificará esse centro? É cedo para saber. É cedo para “fulanizar”, como diria Ulysses Guimarães. Mas é hora de promover a junção das forças capazes de se contrapor a eventuais estrebuchamentos autoritários, antes que surjam propostas que nos levem a eles.

Vejo que alguns políticos se dispõem a agir para evitar que a mesmice predomine. Pelo menos é o que deduzo das declarações recentes de vários líderes da vida brasileira. A eles juntarei minha voz. Sei das minhas limitações e não tenho a ilusão de que, ao escrever que a eles me juntarei, a situação mudará. Mas se cada um dos brasileiros se dispuser a falar e a agir, é de esperar um futuro melhor.

Na política, como na vida, ou se acredita que é possível mudar e obter uma algo melhor, ou se morre por antecipação. Continuemos, pois, vivendo: propondo mudanças, sempre com a expectativa de que elas possam ser realizadas e com elas o Brasil ficará melhor.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2021 | 03h00

Segurança pública deixou de ser prioridade do governo, dizem policiais

Eles apontam diminuição de investimentos no Ministério da Justiça e nas polícias estaduais, além do abandono de pautas das categorias

Bandeira da campanha do presidente Jair Bolsonaro em 2018, a área de Segurança Pública deixou de ser prioridade do Palácio do Planalto, segundo coronéis, delegados de polícia, integrantes da bancada da bala no Congresso e representantes de entidades do setor. 

O anunciado superministério da Justiça e Segurança Pública perdeu relevância desde a demissão do ex-juiz Sérgio Moro da pasta, há quase um ano. Sob fogo cerrado das categorias de policiais e até da chamada bancada da bala, a pasta acaba de ganhar o terceiro titular no atual governo – o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres. 

O delegado Anderson Torres, da PF, nomeado ministro da Justiça e da Segurança Pública  Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO (26/5/2020)

Além da alta rotatividade de ministros, Bolsonaro não conseguiu tirar do papel as principais promessas para o setor, como garantir investimentos em equipamentos, tecnologia, inteligência e capacidade investigativa dos agentes, apontam especialistas e representantes da área. Logo após vencer as eleições, o então presidente eleito prometeu “carta branca” a Moro, que abandonou 22 anos de magistratura. 

O pacote anticrime, porém, foi desfigurado pelo Congresso, que também barrou a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o ministério. Criticado por falta de diálogo com secretarias estaduais de Segurança, Moro deixou o governo acusando o chefe do Executivo de interferência indevida na PF — as alegações são objeto de inquérito no Supremo Tribunal Federal. 

Sucessor de Moro, o advogado André Mendonça ficou onze meses à frente da pasta e foi transferido para a Advocacia-Geral da União. Se por um lado a passagem de Mendonça pelo Palácio da Justiça melhorou o diálogo com os Estados, por outro ficou marcada pelo uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos e opositores do governo. 

Os números da área na gestão Bolsonaro começaram a aparecer. Dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), compilados de janeiro a novembro de 2020, apontam elevação de 6,32% no número de homicídios dolosos, na comparação com o mesmo período do ano anterior. 

A perda de prestígio do setor pode ser testada no Congresso. Uma proposta do ministério para ampliar em R$ 945 milhões seu orçamento em 2021, nas negociações na Comissão Mista de Orçamentos, resultou em R$ 300 milhões. Esse montante ainda pode ser subtraído na reavaliação das emendas de relator, que será feita para recompor o corte em despesas obrigatórias aprovado pelo Legislativo. 

“As notícias que chegam são de que os recursos não estão na ordem em que já estiveram no passado e que há muita dificuldade em se conseguir recurso nacional para tocar projetos”, disse o coronel Marlon Tezza. Presidente da Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais (Feneme), ele avalia que as polícias estaduais foram esquecidas pela pasta. “As polícias estaduais não tiveram praticamente recurso nenhum.” 

Marlon é um dos integrantes do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, criado pela lei que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). O conselho deve avaliar a execução do Plano Nacional de Segurança Pública. “O ‘conselhão’ deveria ter pelo menos duas reuniões por ano, e não teve nenhuma na pandemia. A última foi no início de 2020”, disse o coronel, que tem cobrado o retorno das reuniões. O ministério tampouco entregou o primeiro relatório de avaliação do Plano Nacional de Segurança, exigência da lei que criou o Susp. O prazo era dezembro de 2020. 

Perfil

Titular da pasta no governo Fernando Henrique Cardoso, José Carlos Dias observa que a Justiça tinha um perfil muito diferente. “Cuidava desde índios até a relação com o Poder Judiciário. A Secretaria de Segurança Pública era um órgão importante, que tratava de articular com secretários de Segurança do Brasil uma política que pudesse ser uniforme no combate da violência.” Outro ex-ministro, José Eduardo Martins Cardozo (gestão Dilma Rousseff), disse ser “assustador” o “amesquinhamento” do órgão no atual governo. “Atribuo isso diretamente ao presidente. Bolsonaro quer transformar a pasta em ministério da defesa dele.” 

O delegado Anderson Torres e o presidentente Jair Bolsonaro, em março de 2019  Foto: Carolina Antunes/PR

Na avaliação de especialistas, o ministério não tem planejamento. Rodrigo Azevedo, coordenador de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, afirma que a pasta não tem nem mesmo programas articulados. “Me parecem muito sérias essa desarticulação e essa falta de continuidade de uma política pública minimamente sustentável, ainda mais com as trocas de ministros”, argumentou Azevedo. 

O governo não conseguiu fazer avançar no Congresso propostas que alimentaram as redes bolsonaristas, como a tipificação de invasões de propriedades como terrorismo, a redução da maioridade penal para 16 anos e o excludente de ilicitude para policiais. A exceção tem sido a flexibilização nas regras de posse e porte de armas. 

As pautas corporativistas defendidas por Bolsonaro, quando era deputado federal, foram deixadas de lado. Para o delegado Rodolfo Laterza, presidente da Associação de Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), “o presidente devia fazer uma análise mais detida do que as forças policiais precisam. Principalmente as forças estaduais, policiais civis, militares, guardas municipais e agentes penitenciários”. Procurados pela reportagem, o Planalto e o Ministério da Justiça não se manifestaram.

Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2021 | 05h00 / COLABOROU RAFAEL MORAES MOURA

Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais

Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações

Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”. 

O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM. 

(Polícia Civil de SP já abriu 23 inquéritos sobre ameaças a Doria)


Policiais militares acompanham equipes da Vigilância Sanitária durante operação em razão da covid-19 em São Paulo Foto: Governo do Estado de SP (28/3/2021)

O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão. 

“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando. 

Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas. 

Vacinação

Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs. 

“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada. 

A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação. 

A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs. 

Risco

Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson. 

Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações

Estabelecimento é fiscalizado pela Vigilância Sanitária em maio a fase de restrição contra a covid -9, na capital paulista Foto: Governo do Estado de SP

Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.” 

Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece. 

Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.” 

Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.” 

Marcelo Godoy e Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2021 | 05h00 / COLABOROU FÁBIO GRELLET

À imagem e semelhança

Está claro que Jair Bolsonaro, daqui em diante, vai ter que pedir permissão ao Centrão até para respirar

O Orçamento de 2021 é o retrato fiel do descarrilamento político e moral representado pela vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Convenhamos: não era possível esperar nada muito diferente de um governo cujo presidente é ergofóbico, cujo ministro da Economia promete o éden e entrega um terreno baldio e cujos supostos aliados no Congresso são profissionais do despudor.

Como se sabe, o maior problema do Orçamento de 2021 hoje nem é mais o inacreditável atraso de sua aprovação, mas o caráter absolutamente irreal de seus números. Parece ser já uma tradição brasileira elaborar orçamentos fictícios, com receitas superestimadas para acomodar emendas parlamentares. Mas no caso do Orçamento de 2021 o Congresso foi muito além, ao sumir com R$ 26,5 bilhões em despesas obrigatórias com o objetivo de abrir espaço para as emendas, acomodando-as ao teto de gastos.

Assim, o Orçamento de 2021 será o estado da arte dos crimes de responsabilidade caso venha a ser sancionado pelo presidente Bolsonaro sem vetos. Suprimiram-se verbas até da Previdência Social para engordar os recursos destinados a obras apadrinhadas por parlamentares cujo único interesse é se reeleger. Isso é obviamente irregular, pois os gastos obrigatórios, como seu próprio nome diz, não desaparecem.

Em vez de cortar as emendas parlamentares, em respeito ao momento muito difícil que o País vive, o Congresso as ampliou em nada menos que R$ 31 bilhões. Faz tempo que os parlamentares procuram meios de furar o teto de gastos – recorde-se a tentativa, durante o debate sobre a PEC Emergencial, de tirar o Bolsa Família do teto para aumentar os recursos destinados a emendas parlamentares. A ideia, que teve o aval do presidente Bolsonaro, acabou abortada em razão da reação negativa dos agentes econômicos ante a evidente ameaça às regras fiscais, mas estava claro que não seria a última arremetida dos parlamentares – e de parte do governo – contra o teto de gastos.

Para contornar a insatisfação dos parlamentares, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aceitou a ampliação dos recursos destinados às emendas ao Orçamento. Os parlamentares envolvidos na negociação asseveram que o ministro estava a par de tudo o que foi feito daí em diante e que resultou no teratológico Orçamento de 2021.

Ao alardear que o Orçamento é “inexequível” e recomendar ao presidente Bolsonaro que o vete, Paulo Guedes dá a entender que não tem nada a ver com o desastre irresponsável produzido no Congresso, mas os fatos o desmentem.

O todo-poderoso ministro da Economia errou em muitas etapas do processo – quando não atualizou a proposta orçamentária enviada em agosto, mantendo parâmetros defasados; quando subestimou as despesas obrigatórias em pelo menos R$ 17 bilhões já na proposta original, agora, com as emendas, o déficit chega a R$ 32 bilhões; e quando deu a entender aos parlamentares que seria possível acomodar um espantoso aumento de verbas para emendas em plena pandemia.

Agora, ante a perspectiva bastante real de que se caracterize crime fiscal e de que a máquina pública entre em colapso por falta de dinheiro, os operadores políticos do governo decidiram se mexer. Mas o padrão, nesse caso, é aquele já conhecido do governo Bolsonaro. A bagunça é tanta que a deputada Flavia Arruda, que mal assumiu a Secretaria de Governo, pasta responsável pela articulação política, está atuando como ministra, despachando no Palácio do Planalto, ao mesmo tempo que ainda é presidente da Comissão Mista de Orçamento – e, portanto, coautora da lambança.

Não se sabe ainda qual será a solução mágica para o impasse em torno do Orçamento, que ameaça Bolsonaro de pelo menos duas maneiras: se sancionar como está, o presidente cometerá crime de responsabilidade, passível de impeachment – cujo andamento depende dos humores do presidente da Câmara, Arthur Lira, prócer do Centrão; se vetar, o presidente vai se indispor com esse mesmo Centrão, de quem depende para se manter no cargo. De um jeito ou de outro, portanto, está claro que Bolsonaro, daqui em diante, terá que pedir permissão ao Centrão até para respirar.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2021 | 03h00

Brasil tem 29 fábricas de veículos paradas: 'Crise sem precedentes'

Uma crise considerada "sem precedentes" no fornecimento de componentes, aliada à queda da demanda no mercado interno com o agravamento da pandemia, levou à paralisação total ou parcial de 13 das 23 montadoras de automóveis do país, que somam 29 fábricas paradas, de um total de 58. Os dados são da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).

Protesto de trabalhadores do setor em Taubaté; falta de chips eletrônicos e queda de demanda deixam mais de 60 mil operários em casa. (Crédito da Foto: Reuters / Roosevelt Cassio)

Essa não é a primeira vez que parte da indústria interrompe atividades no Brasil esse ano.

Entre janeiro e fevereiro, durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, ao menos quatro fabricantes de motocicletas da Zona Franca paralisaram temporariamente a produção, segundo a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares). Outras indústrias da região tiveram que reduzir turnos devido ao toque de recolher imposto para conter a proliferação do vírus no Estado.

Com a parada de produção, especialistas no setor automotivo estimam que até 300 mil veículos podem deixar de ser produzidos esse ano. E entre 60% e 70% dos cerca de 105 mil empregados diretos do setor estão em casa nesse momento.

A paralisação temporária de parte da indústria piora a perspectiva para o desempenho da economia brasileira em 2021. As projeções para o PIB (Produto Interno Bruto) já vêm sendo reduzidas desde janeiro, devido ao agravamento da pandemia e lento avanço da vacinação.

No início do ano, a projeção mediana do mercado para o avanço do PIB em 2021 era de 3,4%, após queda de 4,1% registrada em 2020. No boletim Focus do Banco Central mais recente (de 29/3), a previsão de crescimento para esse ano já estava em 3,18%. Mas os mais pessimistas já apostam em números abaixo dos 3%.

Volkswagen foi a primeira montadora a anunciar a suspensão da produção no país, em 19 de março (Crédito da foto: Divulgação Volkswagen)

Paradas em cascata

A Volkswagen foi a primeira montadora a anunciar a suspensão da produção no país, no dia 19 de março. "Com o agravamento do número de casos da pandemia e o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos estados brasileiros, a empresa adota esta medida a fim de preservar a saúde de seus empregados e familiares", informou a companhia, na ocasião.

Nos dias seguintes, os anúncios de parada se sucederam. Algumas das empresas apontaram a falta de componentes como motivo para redução da produção, caso da Volvo e da GM.

"A Volvo vai reduzir a produção de caminhões em sua fábrica de Curitiba", disse a montadora sueca. "O motivo é o alto nível de instabilidade na cadeia - global e local - de abastecimento de peças, principalmente semicondutores, combinado com o agravamento da pandemia".

No último levantamento da Anfavea (de 30/3), estavam paradas: Mercedes, Renault, Scania, Toyota, Volkswagen, Volkswagen Caminhões e Ônibus, BMW, Agrale, Honda, Jaguar e Nissan. GM e Volvo não pararam totalmente, mas reduziram substancialmente a produção.

As paralisações começaram em 24 de março e as empresas planejam voltar entre 5 de abril e o final de maio. Mas os analistas avaliam que as paradas podem ser estendidas, dependendo do andamento das medidas de isolamento social nos estados e municípios, já que em muito deles as concessionárias estão fechadas, impedindo as vendas.

China é o maior produtor de chips do mundo e tem priorizado seu mercado interno na retomada (Crédito da foto: Getty Images)

Faltam chips em todo o mundo

Conforme Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics, consultoria especializada no mercado automotivo, são dois os motivos principais que levaram à onda de paralisação nas fábricas brasileiras de automóveis.

"O primeiro motivo é a falta de peças, decorrente de logística internacional, e problemas de suprimento, principalmente de semicondutores", afirma o consultor.

Segundo o especialista, o déficit de produtos se deve à recuperação da economia chinesa. O país asiático é o maior produtor de chips do mundo e tem priorizado seu mercado interno na retomada, em detrimento da exportação para outros países.

Além disso, os semicondutores também são usados pela indústria de notebooks, computadores, consoles de videogame, televisores e celulares, produtos cujas vendas cresceram muito na pandemia, devido à permanência das pessoas em casa.

"Em paralelo a isso, há também a diminuição das vendas em função da paralisação dos grandes centros urbanos pela segunda onda da covid", diz Kalume Neto.

De acordo com dados da Fenabrave, associação que representa as concessionárias, no acumulado de janeiro e fevereiro desse ano, foram emplacados cerca de 339 mil veículos no Brasil, entre carros, comerciais leves, caminhões e ônibus.

O montante representa uma queda de 14% sobre o mesmo período de 2020, sob impacto também do aumento de ICMS sobre a venda de veículos em São Paulo, estado que responde por mais de 23% da venda de carros novos e 40% das transações de usados no país.

Cassio Pagliarini, consultor associado da Bright Consulting, cita ainda a preocupação social das montadoras em meio ao agravamento da crise sanitária. "Com o aumento no número de mortes e infecções, as montadoras decidiram, em conjunto com os sindicatos, parar as atividades e fazer um plano de recuperação da produção mais à frente", diz Pagliarini.

Analistas estimam que de 55 mil a 300 mil veículos podem deixar de ser produzidos (Crédito da Foto: Agência Brasil)

Revisão de projeções

Com a parada de produção, a Jato Dynamics revisou sua estimativa para a quantidade de carros que deve ser vendida no Brasil esse ano, de uma estimativa de 2,3 milhões a 2,4 milhões no início do ano para 2,1 milhões. Em 2020, foram vendidos 1,95 milhão de veículos.

"Vamos ter que torcer muito para que atinja 2,1 milhões, vai depender muito de quanto a paralisação vai perdurar. A cada dia que as fábricas ficam fechadas isso afeta as projeções", diz Kalume Neto.

Já a Bright Consulting cortou sua projeção de 2,45 milhões para 2,38 milhões.

"Agora estamos na mão da pandemia", diz Pagliarini. "Por causa dos lockdowns e medidas de isolamento decretadas pelos governos estaduais e municipais, as concessionárias fecharam e o cliente ficou mais arredio. Então aquilo que perder agora, não vamos conseguir recuperar, não por causa de capacidade da indústria, mas por causa da capacidade de compra."

Pagliarini destaca que, em 2020, as vendas de veículos se recuperaram rapidamente porque elas competem principalmente com reformas de casa, cursos e viagens. Embora as reformas tenham continuado, cursos e viagens foram muito reduzidos, o que levou mais consumidores a investirem em carros, também diante da percepção de insegurança do transporte público.

Fabricantes Honda, Dafra, Triumph e J. Toledo chegaram a parar temporariamente a produção em Manaus (Crédito da foto: Agência Brasil)

Parada da indústria automotiva tem efeito em cadeia

A paralisação temporária da indústria automotiva deve impactar a produção industrial e também o desempenho do PIB em 2021, avalia o economista Claudio Considera, coordenador do Monitor do PIB do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

Com base em dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2018, Considera destaca que a fabricação de automóveis, caminhões, ônibus e autopeças representa 0,9% do PIB brasileiro e 6,7% do PIB da indústria de transformação; 0,4% do emprego total do país e 4,1% do emprego da indústria; além de 1,4% dos salários da economia e 8,8% dos salários do setor industrial.

"Acontece o seguinte: isso é só o peso direto. Porque a indústria automotiva compra plástico, laminados de aço, produtos químicos, produtos metálicos, produtos de borracha", enumera o economista. "Tudo isso deixa de ser demandado quando você para de produzir automóveis."

Em fevereiro, mesmo antes da paralisação das montadoras, a produção industrial brasileira já havia recuado 0,7%, em relação a janeiro, com queda de 7,2% da produção de veículos, segundo o IBGE.

O Ibre-FGV estima que o PIB do país deve cair 0,5% no primeiro trimestre e outro 0,5% no segundo trimestre. Ainda assim, o instituto projeta alta de 3,2% do PIB no ano, contando com o avanço da vacinação e reabertura gradual das atividades no segundo semestre.

Zona Franca de Manaus em alerta

A perspectiva de menor crescimento do PIB brasileiro este ano coloca os fabricantes do Polo Industrial de Manaus em estado de atenção.

Algacir Polsin, superintendente da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), autarquia ligada ao Ministério da Economia que administra a Zona Franca, lembra que empresas do polo tiveram a atividade afetada no início desse ano, durante a crise de falta de oxigênio no Amazonas.

"Houve paralisação do período noturno, do terceiro turno das fábricas, em virtude das restrições do governo do Estado", diz Polsin. "Também houve paradas momentâneas de produção, por decisão de algumas empresas, por segurança, falta de peças ou até mesmo pela questão do oxigênio, que é usado na indústria e foi remanejado para a saúde."

Segundo a Abraciclo, entidade que representa a indústria de motocicletas, as fabricantes Honda, Dafra, Triumph e J. Toledo (representante da Suzuki no Brasil) chegaram a parar temporariamente a produção em Manaus.

Em janeiro, quando a produção industrial do Brasil como um todo avançou 0,4%, em relação ao mês anterior, a produção no Amazonas despencou 11,8%, conforme o IBGE. Ainda não há dados regionalizados para fevereiro.

"Nesse momento, já estamos com o polo industrial funcionando em ritmo normal. Mas estamos aguardando o que está acontecendo no restante do país", diz Polsin. "É natural que qualquer redução da demanda de produtos acabados, em virtude de restrições de trânsito e de funcionamento do comércio no restante do país, possa afetar o Polo Industrial de Manaus."

O desempenho da indústria automotiva também está sendo acompanhado de perto. "Temos peças de automóveis que são fabricadas aqui em Manaus e estamos acompanhando a situação, para ver se isso pode, com o passar do tempo, impactar o polo."

Polsin destaca porém que, em 2020, a Zona Franca registrou um crescimento de 14% no faturamento, em relação a 2019, mesmo em meio ao grave efeito do coronavírus sobre Manaus.

"A produção foi muito afetada em abril e maio do ano passado, em virtude da pandemia. Mas depois, voltou a crescer", diz o superintendente.

Segundo ele, isso foi possível devido à mudança de hábitos da população brasileira, que resultou em um aumento das vendas de aparelhos de ar condicionado e itens de informática, devido ao trabalho remoto e ensino à distância. Além do forte crescimento na procura por motos e bicicletas, como resultado do avanço do delivery.

Outras montadoras podem seguir a Ford e deixar o Brasil?

Ford anunciou em janeiro o fim da produção de veículos no Brasil e o fechamento de suas fábricas (Credito da foto: Reuters / Carla Carniel) 

Diante de um ano que começou com o anúncio da saída da Ford do Brasil e que registra já em março paradas significativas na maior parte do setor automotivo, naturalmente surge a dúvida: outras montadoras podem seguir a americana e deixar o país?

Para Kalume Neto e Pagliarini, da Jato Dynamics e da Bright Consulting, esse é um cenário que não pode ser descartado, mas não é o mais provável no curto a médio prazo.

Pagliarini explica que a saída da Ford está ligada à decisão da empresa de se dedicar à produção de pick-ups, vans e SUVs (veículos utilitários esportivos), veículos eletrificados e o modelo de luxo Mustang. Com isso, a companhia decidiu abandonar a produção de hatchs e sedans, os dois modelos mais populares no Brasil.

Além disso, a empresa foi contemplada por benefícios fiscais no país durante 15 anos, entre 2003 e 2018. Com o encerramento desses benefícios, a Ford não tinha rentabilidade na fábrica de Camaçari, na Bahia.

"Veio a pandemia e acelerou tudo", diz o analista da Bright Consulting, explicando que, diante da mudança de estratégia da empresa e da falta de rentabilidade e ociosidade de suas fábricas no Brasil, a queda de demanda causada pela pandemia acelerou o processo de tomada de decisão quanto à saída do país.

Assim, Pagliarini destaca que o caso da Ford teve particularidades. Mas é preciso levar em conta que a capacidade instalada no Brasil é para a produção de 4,8 milhões de veículos por ano e estão sendo produzidos atualmente praticamente a metade disso. "Tem mais de 2 milhões de capacidade ociosa no país", destaca o analista.

"Com a diminuição do mercado, existe sempre o risco de uma empresa acabar saindo, mas não está no horizonte nenhuma fábrica ser fechada no mercado brasileiro atualmente", avalia Kalume Neto, da Jato Dynamics.

E as montadoras podem voltar a demitir?

                              


'Empresas estão em espera. Não estão demitindo, mas estão examinando o mercado', diz analista (Crédito da foto: Getty Images)

Quanto à manutenção do emprego nas fábricas, os analistas avaliam que tudo vai depender da extensão das paradas de produção.

"Historicamente, antes da última crise, a indústria nacional trabalhava com 125 mil, 130 mil funcionários", lembra Kalume Neto. "Estamos hoje entre 100 mil e 105 mil, então já houve uma diminuição e isso é muito visível quando se visita as montadoras."

Segundo o analista, a segunda metade de 2020 foi de retomada da produção e do emprego, mas esse processo agora pode ser interrompido. "Com esse novo ciclo da pandemia, as empresas estão em espera. Não estão demitindo, mas estão examinando o mercado."

Essa também é a avaliação de Renato Almeida, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região e trabalhador da GM.

A montadora anunciou em março a parada de suas plantas de São Caetano do Sul (SP) e Gravataí (RS) por falta de componentes eletrônicos. Em São José dos Campos (SP), 600 trabalhadores foram colocados em lay-off por dois meses - eles se somam a outros 368 funcionários que já estavam com contratos suspensos desde o ano passado.

"Vemos com muita preocupação a atual situação econômica e política do Brasil. Soma-se a isso agora essa crise sem precedentes de falta de peças, que desorganizou todo o parque industrial brasileiro", diz Almeida.

"Fizemos o acordo de lay-off com a direção da empresa com estabilidade do emprego, o que significa que não pode haver demissões por dez meses, nem para quem está na fábrica hoje e nem para os trabalhadores do lay-off", afirma.

"Isso nos dá uma certa segurança, mas nada é certo. Quantos acordos já não foram rasgados pelas montadoras? A própria Ford tinha acordo de estabilidade até 2021 e acabou determinando o fechamento das plantas", lembra o sindicalista.

O operador de máquinas Adriano Henriques Silva, de 40 anos, dez deles passados na fábrica da GM em São José, foi um dos 600 trabalhadores incluídos no lay-off mais recente.

Ele deve permanecer em casa entre 8 de março e 2 de maio, recebendo um benefício pago pelo governo a partir de recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), com complemento do salário pela empresa. Essa é a segunda vez que o funcionário é colocado em lay-off, a vez anterior foi durante a crise de 2013-2014, quando Silva ficou em casa por cinco meses.

"Como estou com previsão de volta para daqui a dois meses, os dias não estão sendo tão difíceis. Estou encarando isso como umas férias, mas como é durante a pandemia, não tem como passear", diz Silva.

"Espero que, do jeito que eu saí, daqui a dois meses quando eu voltar, esteja tudo da mesma forma, com os mesmos colegas de trabalho e que normalize a produção. É isso que eu espero."

Thais Carrança, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 4 abril 2021, 08:09 -03

Cúpula militar acende alerta sobre bolsonarismo e agora tenta calcular perdas e ganhos

Troca abrupta do comando das Forças Armadas abre uma crise inédita com os militares. “Se querem diminuir a politização, terão que encorajar os militares na ativa no Governo a retornar às suas unidades”, diz especialista. “Não há o menor indício de que irão fazê-lo”

Jair Bolsonaro cumprimenta militares da Aeronáutica durante celebração de 80 anos da Força Aérea Brasileira em 20 de janeiro de 2021.( Crédito da foto: Andressa Anholete).

Novembro de 2014. Um grupo de aspirantes a oficial do Exército brasileiro cruza com Jair Bolsonaro nos jardins da Academia Militar das Agulhas Negras. Começam a gritar: “Líder, líder, líder...”. Ele cumprimenta agradecido e improvisa algumas palavras diante das dezenas de jovens com uniforme de gala e quepe.

“Precisamos mudar esse país. Alguns vão morrer pelo caminho, mas em 2018 estou disposto, se Deus permitir, tentar jogar para a Direita esse país! (...) O Brasil é maravilhoso, temos de tudo aqui. 

Está faltando é político!”. Os militares aplaudem com entusiasmo, como mostra o vídeo publicado no YouTube por um dos filhos do atual presidente.

Quando Bolsonaro falou aos cadetes começava o quarto mandato do Partido dos Trabalhadores. Na Presidência, Dilma Rousseff, que entrou na história como a primeira presidenta. Mas também era uma guerrilheira que foi torturada durante a ditadura e impulsionadora da Comissão da Verdade. A corrupção do PT aflorava. A operação Lava Jato acabava de nascer.

Esse momento —as palavras, o público, o cenário— ajuda a entender a crise que explodiu surpreendentemente nesta semana entre o presidente mais ligado aos militares desde que o Brasil recuperou a democracia, em 1985, e a cúpula das Forças Armadas. Poucas vezes se viu o ultradireitista mais à vontade do que em um quartel cercado de militares, mas na terça-feira destituiu sem consideração o ministro da Defesa. Em um efeito dominó, no dia seguinte os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciaram em uníssono.

Outro ponto fundamental é o alerta lançado por um dos demissionários, o general Edson Leal Pujol, comandante em chefe do Exército, há quatro meses: “Não queremos ser parte da política de governo e do Congresso, assim como que a política entre em nossos quartéis”. A crise aberta, inédita, disparou as procuras no Google do Brasil de “o que é um golpe de Estado”.

Bolsonaro, reformado do Exército como capitão há 33 anos, “avança cada vez mais em seu projeto de transformar as Forças Armadas em instrumento de Governo. Deu os primeiros passos em 2014, quando visitou a academia militar para começar sua pré-campanha”, diz o professor Eduardo Heleno, da Universidade Federal Fluminense (sem parentesco com o ministro-general de mesmo sobrenome). A crise desmedida desta semana é consequência da “politização dos militares, um fenômeno que Bolsonaro impulsiona, e a militarização da política, que não começou com ele”, acrescenta o especialista do Instituto de Estudos Estratégicos.

Deputado medíocre, em 2014 Bolsonaro era um nostálgico da ditadura famoso por suas grosserias misóginas e homofóbicas. Retornava à academia localizada entre o Rio de Janeiro e São Paulo onde se formou. Durante anos esteve proibido de pisar os quartéis por indisciplina. Abandonou o Exército após ser absolvido em um tribunal militar de instigar a soldadesca ao protesto, mas saiu sem honras. O ditador Ernesto Geisel chegou a dizer sobre ele em 1993: “É um caso completamente fora do normal, é até um mau militar”.

Pensar que conseguiria chegar a presidente era uma loucura. Um delírio. Mas soube ler a conjuntura, também nos quartéis, onde fez campanha eleitoral. O Bolsonaro candidato germinou em meio a uma onda gigantesca de desencanto com a política, agitada pelo discurso contra a corrupção e o ressurgimento do ódio ao PT. Capitalizou a irritação com os partidos, com a política tradicional. Como por mágica, conseguiu se vender como candidato antissistema apesar de levar metade da vida de uniforme verde oliva e outra metade na política pedindo melhorias salariais à tropa.

As Forças Armadas que agora afirmam guardar zelosamente o papel que a Constituição outorga a elas pressionaram sem pudor o Supremo Tribunal Federal com uma publicação no Twitter durante a campanha eleitoral de 2018. Era uma frase trabalhada que foi lançada na véspera de os juízes decidirem se permitiriam a candidatura ou não de Lula. “Eu asseguro à Nação que o Exército Brasileiro acredita que compartilha o desejo de todos os cidadãos de repudiar a impunidade e respeitar a Constituição, a paz social e a Democracia, assim como vigiar suas missões institucionais”, tuitou à época o comandante em chefe do Exército, o general Eduardo Villa Boas. O resultado é conhecido. O Supremo não habilitou Lula, que foi preso. E Bolsonaro disparou nas pesquisas.

Vários colegas da academia militar que chegaram ao generalato o acompanharam na corrida à presidência. Todos formados na Guerra Fria, quando o grande inimigo era o comunismo. Já no poder, além do general vice-presidente com quem foi eleito, trouxe vários outros para ministros. Juntos começaram a recrutar militares para o Governo, centenas e centenas que espalharam por todos os órgãos. Hoje presidem 15 empresas estatais (incluindo a Petrobras), e dirigem outras 92. Por volta de 3.000 militares na ativa e outros tantos na reserva ostentam cargos governamentais, segundo as contas de Heleno.

Outros generais, alguns na ativa, entraram no Gabinete na incessante dança das cadeiras deste Governo. Bolsonaro já substituiu vinte e quatro. E com o Brasil assolado pelo coronavírus, nomeou um general ministro da Saúde após demitir os dois anteriores, médicos, por não se submeter à sua normalização da pandemia, seu repúdio à máscara e sua promoção de remédios inúteis. “O Governo colocou um militar de alto escalão da ativa no comando da política pública em meio à maior crise sanitária dos últimos tempos simplesmente para ter alguém que não o criticasse”, diz o professor de Estudos Estratégicos.

O eleito foi o general Eduardo Pazuello, que confessou imediatamente que não sabia nada de saúde pública. Suposto especialista em logística, não conseguiu evitar dezenas de mortes em hospitais de Manaus, a principal cidade do Amazonas, por falta de oxigênio (motivo pelo qual é investigado) e comprar vacinas suficientes. Durante seus meses como ministro da Saúde disse abertamente que ele estava lá para cumprir ordens, não para questioná-las.

O fracasso na guerra contra o vírus, como Bolsonaro gosta de chamá-la, se traduz em mais de 330.000 mortos e quase 13 milhões de infecções, e o Brasil transformado em epicentro da pandemia e incubadora de cepas que ameaçam o restante do mundo. O mandatário demitiu o general e trouxe um terceiro médico, mas a reputação das Forças Armadas se deteriora. Também não funcionou a mobilização de soldados na Amazônia para combater incêndios e crimes porque, além de sair caro, o desmatamento continua aumentando.

O que acabou com a paciência dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica são as pressões de Bolsonaro para que as Forças Armadas fiquem do seu lado e contra outras autoridades na batalha contra o coronavírus. Com sua renúncia em bloco, pretendiam soar o alarme e tentar preservar a independência da instituição. Mas Bolsonaro é tenaz: “Meu Exército brasileiro não vai sair à rua contra o povo e fazer com que se cumpram os decretos de governadores e prefeitos. Enquanto eu for o presidente não o fará”, proclamou na quinta-feira em sua conversa semanal pelo Facebook.

Ao contrário do chefe de Estado, o Exército levou a pandemia muito a sério desde o primeiro minuto. E lidou com ela infinitamente melhor pelos dados que oferece. Seguindo as recomendações da OMS, os militares têm uma taxa de mortalidade de 0,3% contra 2,5% dos civis. Um dos membros do trio escolhido por Bolsonaro na quarta-feira para substituir os demissionários é o general que implementou a bem-sucedida estratégia nos quartéis. A política brasileira é sempre uma caixinha de surpresas.

Concluída a tumultuosa semana, Bolsonaro já tem um novo ministro da Defesa mais alinhado ao seu estilo, Walter Braga Netto. Foi com ele que apareceu, sem máscara os dois, para pregar a participação das Forças Armadas na vacinação, ainda que, de novo, tenha pregado contra a política do “fecha tudo”. O presidente é muito popular entre os soldados e, principalmente, entre os policiais militares. A base bolsonarista nas redes age abertamente para politizar essas forças militarizadas subordinadas aos governadores dos Estados. Mais de uma vez o bolsonarismo já levantou a lebre no Congresso de que gostaria das polícias estaduais sob seu comando.

A incógnita é como evoluirá a relação presidente-militares-Forças Armadas durante os 18 meses que restam às eleições presidenciais. “Se os novos comandantes das Forças Armadas realmente querem diminuir a politização, terão que fazer algo, encorajar os militares na ativa que ocupam cargos no Governo a retornar às suas unidades”, diz o professor Heleno. Mas se mostra pessimista: “Não há o menor indício de que irão fazê-lo”.

NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 04 ABR 2021 - 12:11 BRT

Jordânia acusa irmão do rei de complô para desestabilizar o país

Governo jordano diz que Hamza bin Hussein conspirou com atores estrangeiros a fim de "minar a segurança nacional". Ex-príncipe herdeiro nega e diz que foi posto em prisão domiciliar. Vários suspeitos foram detidos.

Ex-príncipe herdeiro, Hamza (esq.) é filho do rei Hussein, morto em 1999, com sua última esposa, a rainha Noor (dir.)

O governo da Jordânia acusou o ex-príncipe herdeiro Hamza bin Hussein, meio-irmão do rei Abdullah, de atuar num complô para "desestabilizar" o país. Vários suspeitos foram detidos, e o ex-príncipe teria sido colocado em prisão domiciliar, segundo ele mesmo denunciou.

O vice-primeiro-ministro da Jordânia, Ayman Safadi, afirmou neste domingo (04/04) que Hamza, que perdeu seu título de príncipe herdeiro em 2004, e aliados trabalharam com atores estrangeiros numa "conspiração maliciosa" para "minar a segurança nacional".

Safadi, que é também ministro das Relações Exteriores do país, disse que entre 14 e 16 pessoas estão presas em ligação com o complô, além de duas pessoas próximas ao rei: Bassem Awadallah, ex-ministro e ex-assessor de Abdullah, e Hassan bin Zaid, membro da família real.

O grupo estaria sendo investigado já há algum tempo, afirmou Safadi. "As investigações monitoraram interferências e comunicações com partes estrangeiras sobre o momento certo para começar a agir para desestabilizar a segurança da Jordânia", declarou, sem dar muitos detalhes sobre qual seria o plano.

Segundo o ministro, as comunicações interceptadas incluem, por exemplo, conversas entre uma agência de inteligência de outro país e a esposa de Hamza para organizar um avião no qual o casal deixaria a Jordânia. Ele não especificou quais países estariam envolvidos.

"As investigações iniciais mostraram que essas atividades e movimentos atingiram um estágio que afetou diretamente a segurança e a estabilidade do país, mas sua majestade [rei Abdullah] decidiu que era melhor falar diretamente com o príncipe Hamza, para lidar com isso dentro da família."

Questionado se o ex-príncipe poderia ser levado à Justiça, Safadi insistiu que por enquanto houve apenas tentativas "amigáveis" de lidar com ele, mas acrescentou que "a estabilidade e segurança do reino transcende" qualquer coisa. Ele negou que Hamza esteja preso.

Prisão domiciliar

A declaração do governo vem um dia depois de Hamza, de 41 anos, ter enviado uma mensagem em vídeo à emissora britânica BBC dizendo que foi colocado em prisão domiciliar. Ele também acusa o governo jordano de nepotismo e corrupção, num raro confronto público entre os principais membros da família que há muito tempo governa o país.

No vídeo, o ex-príncipe afirma que vários de seus amigos foram presos, que seu aparato de segurança foi removido e sua internet e linhas telefônicas, cortadas.

Ele negou fazer parte de "qualquer conspiração ou organização nefasta", mas atacou o "sistema de governo" do país, onde, segundo ele, ninguém pode criticar as autoridades e que está "obstruído pela corrupção, pelo nepotismo e pelo desgoverno".

A mãe de Hamza, a rainha Noor, viúva do rei Hussein da Jordânia, também defendeu o filho. "Estou rezando para que a verdade e a justiça prevaleçam para todas as vítimas inocentes dessa calúnia perversa", escreveu ela no Twitter. "Deus os abençoe e os mantenha seguros."

Reação internacional

Governos vizinhos e aliados da Jordânia, considerada um dos países mais estáveis do Oriente Médio e um importante aliado dos Estados Unidos, foram rápidos em manifestar solidariedade ao rei Abdullah.

Seguindo a mesma linha de outros líderes internacionais, o secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Abulgueit, expressou sua "total solidariedade com as medidas tomadas pelas autoridades jordanas para manter a segurança do reino e preservar a estabilidade", segundo nota.

O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price, disse que Washington está "acompanhando de perto" os eventos no país aliado. "O rei Abdullah é um parceiro-chave dos Estados Unidos e tem nosso total apoio", afirmou o americano.

Hamza é o filho mais velho do rei Hussein com sua quarta e última esposa, a rainha Noor, nascida nos Estados Unidos. Abdullah, por sua vez, é o filho homem mais velho de Hussein, fruto de seu segundo casamento, com a britânica Antoinette Avril Gardiner.

Abdullah, hoje com 59 anos, assumiu o reinado após a morte do pai, em 1999, e nomeou Hamza príncipe herdeiro, em linha com os desejos de Hussein. Em 2004, contudo, acabou retirando o título do irmão e dando a seu filho mais velho, também chamado Hussein.

Deutsche Welle / Brasil, em 04.04.2021

Brasil tem 1.240 mortes por covid-19 em 24 horas

País soma agora 331 mil óbitos ligados ao coronavírus. Dados oficiais confirmam ainda 31 mil novos casos da doença, e total de infectados chega a 12,98 milhões

Profissionais de saúde em barco no Amazonas, levando vacinas para comunidades ribeirinhas

O Brasil registrou oficialmente 1.240 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste domingo (04/04).

Também foram confirmados 31.359 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país subiu para 12.984.956, enquanto os óbitos chegam a 331.433.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados nos fins de semana e feriados também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 11.305.746 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de sábado.

Com os dados de óbitos registrados neste domingo, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 157,7 no país.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30,67 milhões de casos e mais de 554,7 mil óbitos.

Ao todo, mais de 130,7 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,85 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 04.04.2021

Brasil pode ter 100 mil mortes por covid-19 em abril, prevê estudo

Análise da Universidade de Washington estima que, no pior dos cenários, país pode chegar a 422 mil óbitos no fim do mês. Contudo, milhares de vidas podem ser poupadas se população usar máscara corretamente.

Funcionários de cemitério enterram caixão em sepultamento noturno

Após viver, em março, o mês mais mortal da pandemia, com 66 mil óbitos ligados à covid-19, o Brasil pode vir a registrar 100 mil mortes em abril, segundo prevê uma análise do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.

Até 31 de março, o país somava um total de 321 mil vítimas do coronavírus. A análise da instituição estima que esse número deverá saltar para 422 mil até 30 de abril. Até este sábado (03/04), o Brasil acumulava 330.193 mortes causadas pela doença, segundo números oficiais.

A universidade prevê um pico de mortes diárias em 24 de abril, quando os óbitos podem passar de 4 mil em 24 horas. Desde o início da pandemia, o recorde de mortos em apenas um dia foi de 3.869 vítimas, registrado em 31 de março.

Até 1º de julho, última data incluída na previsão da instituição, o total de mortos pode se aproximar de 600 mil, chegando a 597.790 vidas perdidas.

Os números mencionados acima se referem ao pior cenário considerado pelo instituto. Ao todo, a análise projeta três possíveis cenários para o país, levando em conta fatores como a disseminação de variantes do vírus, o uso de máscaras e o cumprimento do distanciamento social.

Pior cenário

Nesse cenário mais grave, a análise considera que a circulação de pessoas vacinadas voltará aos níveis pré-pandêmicos, e a de não vacinados se manterá como no ano passado; as variantes brasileira e sul-africana do vírus se espalharão por locais aonde não haviam chegado; as vacinas serão menos eficientes contra a cepa sul-africana; e o uso de máscara começará a cair entre os vacinados 30 dias após receberam a segunda dose do imunizante.

Cenário mais provável

Em um segundo cenário, que a universidade chama de "projeção atual", por ser mais provável de acontecer, são considerados os seguintes fatores: a circulação de não vacinados se manterá como no ano passado, e apenas 25% dos vacinados retomarão o nível de mobilidade de antes da pandemia; as variantes britânica, brasileira e sul-africana se espalharão entre regiões vizinhas no mesmo ritmo registrado no Reino Unido; e o uso de máscaras começará a cair entre os vacinados 90 dias após receberam a segunda dose do imunizante.

Nesse cenário, o instituto prevê que o total de mortos pela covid-19 no Brasil chegará a 421 mil em 30 de abril, cerca de mil óbitos a menos do que no cenário mais grave. Já a previsão de longo prazo aponta para 562 mil óbitos até 1º de julho, ou seja, 35 mil mortes a menos que no pior caso.

Cenário mais otimista, com uso universal de máscaras

O terceiro e último cenário é mais otimista, projetando o que aconteceria se 95% da população brasileira usasse máscaras de forma apropriada, além dos mesmos outros fatores considerados na chamada "projeção atual".

Nesse caso, o número de mortos até 30 de abril seria de menos de 419 mil. Já até 1º de julho, esse total poderia ser de 507 mil óbitos, ou seja, o uso universal de máscaras pouparia quase 100 mil vidas.

O Brasil vive hoje o pior momento da epidemia de covid-19, com recordes sucessivos de mortes diárias e os hospitais em colapso. Em números absolutos, é o segundo país do mundo com mais infecções e óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos, mas é atualmente a nação que registra os maiores números diários de vidas perdidas na pandemia.

Deutsche Welle / Brasil, em 04.04.2021

sábado, 3 de abril de 2021

Brasil tem mais 1.987 mortes por covid-19

País supera 330 mil óbitos ligados ao coronavírus. Dados oficiais confirmam ainda 43 mil casos da doença em 24 horas, e total de infectados chega a 12,95 milhões.

Paciente é levado em maca em hospital em Brasília

O Brasil registrou oficialmente 1.987 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste sábado (03/04).

Também foram confirmados 43.515 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país subiu para 12.953.597, enquanto os óbitos superaram 330 mil, somando agora 330.193.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados nos fins de semana e feriados também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 11.276.628 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de sexta-feira.

Com os dados deste sábado, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 157,1 no país.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30,66 milhões de casos e mais de 554 mil óbitos.

Ao todo, mais de 130,5 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,84 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle / Brasil, em 03.04.2021, há 12 minutos.

O desperdício do fator humano

A economia já andava mal antes da pandemia, assim continua e o desemprego persistente é a consequência mais dramática

Com 14,3 milhões de desempregados no trimestre encerrado em janeiro, o Brasil teve uma passagem de ano especialmente penosa para os pobres e agourenta para a maior parte dos negócios. Perdido o primeiro trimestre, o governo só nos próximos dias voltará a pagar o auxílio emergencial. Com isso poderá atenuar a fome e dar novamente algum impulso ao consumo e à produção. Sem Orçamento, sem rumo e aparentemente sem perceber o desastre do dia a dia, a equipe econômica deixou perder-se a recuperação iniciada em maio e já enfraquecida nos três meses finais de 2020. As condições do emprego mostram bem as limitações dessa reação, agora dificultada também pelo forte aumento dos preços no varejo.

A desocupação, o subemprego e o desestímulo a grandes parcelas da força de trabalho compõem uma forma especialmente grave de desperdício. A ociosidade dos trabalhadores pode ocasionar mais que os dramas facilmente visíveis na experiência diária e diminuição do potencial de consumo. Quando prolongado, o desemprego pode também resultar em desatualização e desqualificação da mão de obra – um obstáculo a mais ao desenvolvimento da economia. Por isso, o investimento em requalificação é uma das políticas necessárias depois de longos períodos de desocupação.

O desemprego de 14,2% da força de trabalho, na virada de ano, é apenas o aspecto mais visível desse drama econômico e social. O quadro fica mais feio quando se adicionam 5,9 milhões de pessoas desalentadas – sem ânimo para continuar buscando uma colocação – e outros grupos com potencial de trabalho subempregado ou simplesmente perdido. Tudo somado, a população subutilizada chegou a 32,4 milhões de indivíduos, ou 29% da população economicamente ativa. Este é um número muito mais adequado que a taxa de desemprego para dimensionar o desperdício de mão de obra. 

Mas é preciso olhar outros detalhes para avaliar as limitações do consumo e das possibilidades de progresso individual e familiar. O nível de ocupação chegou a 48,7% das pessoas em idade de trabalhar, com aumento de 0,7 ponto porcentual em relação ao trimestre anterior. Mas esse aumento ocorreu principalmente no segmento informal, onde se acomodaram 34,1 milhões de trabalhadores no período de novembro a janeiro. O número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou 3,6% no setor privado, taxa equivalente a 339 mil pessoas, de um trimestre para outro.

A taxa de informalidade subiu de 38,8% para 39,7%, ficando pouco abaixo daquela registrada um ano antes. Participam da informalidade tanto os empregados sem carteira assinada quanto trabalhadores por conta própria sem registro oficial. Baixo rendimento, benefícios assistenciais escassos ou nulos e contratação precária constituem algumas das condições da ocupação informal.

“A perda de força no crescimento da ocupação vem principalmente da menor expansão na indústria, no comércio e na construção”, disse a pesquisadora Adriana Beringuy, ao apresentar os dados do último levantamento do IBGE. Ainda assim, o aumento da população ocupada, no período de novembro a janeiro, é em boa parte explicável pelas contratações adicionais ocorridas no fim de ano, embora o crescimento das vendas tenha sido mais fraco que em outros anos.

Mesmo com a recuperação econômica iniciada em maio, a desocupação continuou bem maior que no período anterior à crise deflagrada pela pandemia. No trimestre móvel terminado em janeiro de 2020 havia 11,9 milhões de desempregados, ou 11,2% da força de trabalho. Os subutilizados eram 23,2%. O desemprego era bem maior que o da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), praticamente o dobro.

O quadro já era muito ruim, porque o governo do presidente Jair Bolsonaro quase nada fizera, no primeiro ano de mandato, para impulsionar a atividade econômica. Em 2019 o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou 1,4%, tendo avançado 1,6% no ano anterior. A economia já andava mal antes da pandemia, assim continua e o desemprego persistente é a consequência mais dramática.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de abril de 2021 | 03h00

'Washington Post' critica Bolsonaro em editorial: 'pode estar mirando a democracia'

Em tom altamente crítico, o texto afirma que, 'graças à impressionante incompetência do presidente Jair Bolsonaro e seu governo', não há sinal à vista para o fim da crise sanitária causada pelo coronavírus no País       

Em um editorial publicado nesta sexta-feira, 2, o jornal americano The Washington Post alertou que, após a troca de comando no Ministério da Defesa, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro pode agora estar "mirando a democracia". Segundo o texto, "Estados Unidos e América Latina devem estar atentos para garantir a Bolsonaro que qualquer interrupção da democracia seria intolerável".

Em tom altamente crítico, o texto afirma que, "graças à impressionante incompetência do presidente Jair Bolsonaro e seu governo", não há sinal à vista para o fim da crise sanitária causada pelo coronavírus no País. O jornal destaca que o Brasil está vivendo um dos piores picos de infecções por covid-19 que o mundo já viu, lembrando que apenas 2% da população brasileira foi completamente vacinada e medidas de confinamento necessárias para diminuir as novas infecções "são virtualmente inexistentes".

"Em vez de lutar contra o coronavírus, Bolsonaro parece estar preparando as bases para outro desastre: um golpe político contra os legisladores e eleitores que poderiam removê-lo do cargo", escreve. 

O jornal analisa que o presidente Bolsonaro demitiu nesta semana o Ministro da Defesa - com os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica deixando suas posições na sequência -, no momento em que surgem novas ameaças de impeachment no Congresso, e uma eventual candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganha força para as próximas eleições.  

As últimas medidas do presidente, destaca o Post, foram suficientes para fazerem com que seis possíveis presidenciáveis divulgassem uma carta conjunta alertando que a "democracia do Brasil está ameaçada". O jornal cita  ainda o artigo assinado por Brian Winter, editor-chefe do Americas Quarterly, no qual ele afirma que o plano do presidente Bolsonaro é “ter tantos homens armados do seu lado quanto possível no caso de um impeachment ou um resultado adverso na eleição de 2022”.

Apesar das instituições democráticas no Brasil serem "relativamente fortes após mais de três décadas de consolidação", escreve o Post, há "razões para se preocupar". "O sr. Bolsonaro expressou abertamente sua admiração pela ditadura militar que governou o país nas décadas de 60 e 70. Admirador de Donald Trump, ele adotou a tática do ex-presidente dos EUA de alertar sobre fraude nas próximas eleições e exigir que os sistemas de votação eletrônica sejam substituídos por cédulas de papel", afirma o editorial.

"O presidente brasileiro já contribuiu muito para o agravamento da pandemia de covid-19 em seu próprio País e, por meio da disseminação da variante brasileira, pelo mundo. Ele não deve ter sucesso em destruir uma das maiores democracias do mundo também."

Redação, O Estado de S.Paulo, em 03 de abril de 2021 | 11h47


Raça humana sob ameaça de extinção

O paleoantropólogo José María Bermúdez de Castro reúne em seu novo ensaio, ‘Deuses e mendigos’, todo o seu conhecimento sobre a evolução da humanidade. Podíamos ter desaparecido como os neandertais”, afirma.

O paleoantropólogo José María Bermúdez de Castro no Museu da Evolução Humana, em Burgos, em 16 de março. (Crédito da foto: Ricardo Ordóñez).

O paleoantropólogo José María Bermúdez de Castro, de 68 anos, codiretor do sítio arqueológico de Atapuerca (norte da Espanha) e primeiro diretor do Centro Nacional de Pesquisa da Evolução Humana, reuniu décadas de pesquisa e reflexão sobre a origem da humanidade em seu novo livro, Dioses y mendigos (Deuses e mendigos, ainda sem tradução no Brasil), lançado em seu país nesta quarta-feira. Esse pesquisador, com uma ampla experiência arqueológica, desvia-se muitas vezes dos caminhos mais batidos neste ensaio que, como ocorre sempre que se fala do passado remoto da humanidade, deixa mais perguntas que respostas. Seu objetivo é percorrer todas as teorias sobre a evolução. O resultado, como admite o próprio Bermúdez de Castro, acaba sendo “uma reflexão sobre a nossa existência”. A entrevista foi feita por videoconferência.

Pergunta. Em seu livro, há um momento em que você defende que a única certeza sobre a evolução humana é que sobrevivemos, que estamos aqui, porque relata que houve muitos momentos em que estivemos à beira da extinção. Realmente é tão extraordinária nossa presença na Terra?

Resposta. A única certeza que temos sobre nossa evolução é que a humanidade existe. Existe, mas poderia não existir. Poderíamos ter desaparecido como os neandertais. Tudo é muito aleatório. Passamos por crise tremendas. Podíamos ter desaparecido por qualquer razão, a que fosse: uma erupção vulcânica ou a endogamia. Entretanto, estamos aqui. Há uma coisa muito importante: somos os últimos de uma genealogia, de uma filogenia, uma única espécie. Tivemos uma filogenia muito florescente e houve muitas espécies humanas que conviveram ou coexistiram ao mesmo tempo na África, na Eurásia, espécies que estão sendo descobertas agora. Desse grupo restamos somente nós. Os neandertais provavelmente se extinguiram por culpa da mudança climática, por uma glaciação brutal, e tiveram um império. Como dizia um amigo cientista já aposentado, não somente estiveram na Europa e no Oriente Médio como também se banharam no Pacífico. E, entretanto, desapareceram. A glaciação que começa há 70.000 anos e termina há 29.000 foi terrível. Acabou com eles e acabou com os cro-magnons.

P. Isso quer dizer que acabou também com a nossa espécie na Europa?

R. Sim, assim como com os neandertais. Ou seja, nos expandimos para fora da África há 120.000 anos. Chegamos ao sul da China, a lugares tropicais, alcançamos o sudoeste da Ásia e a Austrália. Chegamos à Europa 40.000 anos atrás. E desaparecemos, fomos substituídos por outros sapiens, e estes por outros. Ou seja, somos descendentes de uma população bastante recente do Homo sapiens, que chegou no neolítico.

P. Então não somos descendentes dos humanos que pintaram as cavernas de Altamira, Chauvet e Lascaux?

R. Os humanos que pintaram Altamira não estão mais aqui. Embora sempre haja mestiçagem, possibilidade de hibridação. As populações não têm por que desaparecer totalmente. Os genes estão aí. Mas a maior parte dos genes que possuímos neste momento procede do neolítico.

P. Você defende em seu livro que não há uma origem única da humanidade, defendendo em vez disso a chamada hipótese asiática. Por que essa continua sendo uma teoria tão polêmica?

R. É uma hipótese que não está aceita pela comunidade científica, ainda que alguns colegas a defendam. Não se sabe exatamente quando ocorreu a divergência entre neandertais e Homo sapiens, embora a genética indique que foi entre 550.000 e 800.000 anos atrás. Estou convencido de que essa divergência não ocorreu na África, nem na Europa, e sim em um lugar intermediário, no sudoeste da Ásia, formado por estes países que conhecemos na atualidade como Israel, Líbano, Síria, Iraque, toda essa região. A origem do Homo sapiens está aí. Onde aparecemos como espécie? Na África. Daí se deduz que a origem de tudo é a África e que tudo sai da África. Alguns de nós estamos tentando sair desse impasse. Mas é muito difícil que um novo paradigma entre na comunidade científica.

P. Você sustenta que o momento mais importante da evolução humana foi o bipedismo, algo tão simples como começar a caminhar erguidos sobre duas patas. Entretanto, afirma que não está nada claro por que fizemos isso, que vantagem essa nova postura nos proporcionava para sobreviver. Seria esse o maior mistério do nosso passado?

R. Há pouquíssima informação, restam quatro ou cinco sítios arqueológicos com fósseis muito fragmentários que demonstram que fomos bípedes, mas nada mais. Começou-se dizendo que nos pusemos de pé porque saímos da floresta para a savana e tínhamos que olhar por cima do mato para ver se vinha algum predador. Mas se éramos tão baixinhos! Medíamos um metro, e a vegetação pode chegar a essa altura. Além disso, a postura bípede apareceu em áreas de floresta. Sabemos que surgiu há uns sete milhões de anos e que ocorreu quando ainda vivíamos na floresta, quando estávamos perto da linhagem dos chimpanzés. O problema fundamental é que, do ponto de vista da física, não se pode imaginar um ser que pudesse se movimentar pela metade, entre ser quadrúpede e ser bípede. Isso fisicamente não é possível. Mas é uma questão que continuará aberta enquanto não aparecerem fósseis, e isso é muito difícil.

P. De todos os mistérios acerca da evolução humana, qual mais o inquieta ou interessa? Como chegamos à Austrália 70.000 anos atrás, como povoamos a América? Acredita que a genética resolverá esse tipo de assunto em um tempo razoável?

R. A genética e a paleoproteômica [o estudo das proteínas antigas] esclarecerão muito essas coisas. A navegação me parece um tema apaixonante, surpreende-me muitíssimo. Mas provas são provas: se houver um sítio arqueológico na Austrália que tiver arpões e acúmulo de restos de atum, então não reste alternativa senão pensar que estávamos navegando há 20.000 ou 30.000 anos. E tivemos que navegar para chegar à Austrália, onde estamos há 40.000 ou 70.000 anos. Como saltamos para a Austrália? Como atravessamos esses mares que têm uma profundidade de 3.000 metros em alguns lugares? Não pudemos fazer isso a nado nem em uma travessia curta. É incrível a capacidade de nossa espécie de ir para lá, de fazer estas navegações tão incríveis. Tudo isso é surpreendente.

GUILLERMO ALTARES para o EL PAÍS, em 03 ABR 2021 - 10:01 BRT

Alberto Fernández, presidente da Argentina, contrai covid-19 dois meses depois de se vacinar

Fernández está em isolamento e suspendeu uma reunião neste sábado com o chefe do Governo de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que teria o objetivo de chegar a um acordo sobre novas medidas de prevenção para impedir a escalada de casos de coronavírus.

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, informou na noite de sexta-feira que foi infectado pelo coronavírus. (foto de arquivo, na Internet)

Em seu 62º aniversário, o presidente disse, nas redes sociais, que passou um dia "com uma febre de 37,3 e uma leve dor de cabeça". Por isso, acrescentou, "foi feito um teste de antígeno, cujo resultado foi positivo". Fernández foi o primeiro presidente da América Latina a tomar a vacina contra a covid-19: em 21 de janeiro, ele recebeu a primeira dose da Sputnik V e, em 10 de fevereiro, a segunda.

“Embora estejamos aguardando a confirmação pelo teste de PCR, já estou isolado, cumprindo o protocolo em vigor e seguindo as orientações do meu médico pessoal. Entrei em contato com as pessoas com quem estive me reunindo nas últimas 48 horas para avaliar se constituem um contato próximo para que façam o isolamento”, escreveu Fernández. “Para a informação de todos, estou bem fisicamente e, embora tivesse gostado de terminar o meu aniversário sem essa notícia, também estou de bom humor”, afirmou.

O contágio do presidente argentino coincide com o aumento de casos que assola toda a América Latina. A Argentina vive uma segunda onda da pandemia, com 14.000 infectados nesta sexta-feira e um pico de 16.000 na quarta-feira. Três semanas atrás, o número diário de infectados mal ultrapassava 6.000. Nos últimos 14 dias, o número de casos positivos cresceu 71%, atingindo 2,3 milhões de pessoas. A Argentina recebeu 6,7 milhões de vacinas, das quais mais de quatro milhões foram aplicadas. 7,6% da população já tomou uma dose e apenas 1,5% recebeu as duas doses.

Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 03.04.2021