quinta-feira, 1 de abril de 2021

Olga Maria Curado: Esquizofrenia da comunicação mostra confusão mental e Bolsonaro isolado

 A nau do capitão está desgovernada. E ele quer que o seu desgoverno chegue como um rastilho de pólvora nos fundões do país, nas cidades, e em seu nome instale o caos. 

Foi o que ele fez, pré-anunciando e torcendo para uma convulsão social. E reclamando que as pessoas ficam em casa como medida de precaução e preservação de contágio com o coronavírus.

28.mai.2020 - O presidente Jair Bolsonaro fala com simpatizantes e imprensa em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília - EDU ANDRADE/FATOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

O ex-deputado federal por 27 anos, morador dos fundos da Câmara Federal, quer agora que as pessoas voltem ao trabalho. É a resposta dele para o combate à pandemia. Ao prestar uma homenagem ao trabalho poderia dar o exemplo. Ele mesmo trabalhar.

Aqueles que hoje estão impedidos, pela inépcia do seu governo, de ir para as ruas, estão nessa condição porque o capitão ficou inerte, ficou passeando. Ele não trabalhou e, recostado indolente, estava ao lado dele um general da ativa que desmerece o Exército.

De um lado estão os que aceitam as respostas confirmadas pela ciência: máscara, distanciamento, restrição de circulação e, claro, vacina. O que há de concreto é que o capitão não concorda com nenhuma delas. Faz de conta que aceita a vacina e se vangloria de números de pessoas imunizadas, quando fez tudo para impedir que os imunizantes chegassem ao país.

O presidente do Senado, Pacheco, fala depois da primeira reunião do Comitê de coordenação de combate à pandemia. Só há duas possibilidades hoje: união ou caos. Ou seja, para um resultado que pretenda responder à ansiedade da população por medidas concretas para barrar a tragédia da Covid-19, é preciso unificação de ações e de discurso. Sem novidades em relação ao que todos pedem: leitos, medicação, centralização de distribuição de insumos, gestão mais eficiente na pandemia. E insistiu em que os governadores querem contribuir, somando-se aos agentes públicos.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, comemorou nesta segunda-feira a abertura de mais postos de trabalho formal e deu a receita para restabelecimento da atividade econômica: vacinação em massa. Portanto, parece que há convergência mínima entre algumas autoridades.

Nada disso funciona para o capitão reformado. Tem uma ideia fixa, aquela de que as pessoas querem ir trabalhar e, indo para o emprego, resgatar a economia e evitar a "convulsão social".

A opção dele é pela desconstrução. O imaturo e despreparado capitão não consegue escutar, não entende o que é dito, porque não tem repertório para realizar a escuta. A base da escuta é renunciar à autoridade total. O capitão, infantiloide, acha que o país é um brinquedo dele e dos filhos.

O capitão quis desafiar os generais. Achava que tinha um exército dele. Deu um tiro no próprio pé. Os generais mostraram que a porta de saída é serventia da casa, mas que não se rendem ao capitão expulso do Exército. Este terá que escutar o silêncio das casernas. E, talvez já sabendo disso, tentou um golpe de mão, com atrevida tentativa de sequestrar poder para si. Armou-se sorrateiramente de um requerimento, apresentado pelo preposto major, para passar por cima da Constituição e se tornar o senhor da guerra. O grito foi ensurdecedor. Não funcionou. Por enquanto.

Diante de gestos tão estapafúrdios, o Senado convocou o general Braga para explicar por que foi comprado tanto filé, salmão e outras iguarias pelo Ministério da Defesa. É um pretexto para contar também sobre a tentação do capitão em golpear a democracia. E lhe dar a oportunidade para que faça um exercício público de fé na democracia. Aguardemos.

Hoje o capitão discursou. Nervoso, cambaleante, dando um semi salto para um lado e outro, como quem procura terra firme, boca semicerrada pela raiva, acuado, cabelo na testa - sinal da pressa e dispersão -, inseguro, sem o apoio da sua plateia de ministros. Era o exemplo de um chefete que está bebendo café frio.

Mais cedo, o vice, general Mourão, fala com a imprensa. Enquanto se especula sobre as regras de ocupação dos cargos para comandar as Forças, o general reformado do exército manda um recado ao capitão: antiguidade é posto. A tentativa de subverter a ordem pode contar com o silêncio do Centrão, mas não terá a benção das Forças Armadas.

Vacina sim! Não importa a esquizofrenia do discurso.

Olga Maria Curado é colunista do UOL / Universo Online, em cujo saite este artigo foi publicado originalmente, ontem, 31.03.2021.

Reinaldo Azevedo: Há algo perturbador no olhar de Bolsonaro. Não é política. Não é economia

Jair Bolsonaro agiu de olho no calendário com seu marketing do terror. No melhor dos mundos para ele, esta quarta, 31 de março, seria por tropas nas ruas, em alguns locais simbólicos ao menos, indicando quem manda. Seria um feito e tanto. 

Jair Bolsonaro: sem o golpe para chamar de seu, restou desmoralizar seu ministro da Saúde e o Comitê contra a covid - Isac Nóbrega/PR

Nos 57 anos do golpe militar de 1964, as Forças Armadas voltariam a ser uma ameaça à segurança dos indivíduos, "celebrando", para usar um verbo da predileção de Braga Netto, mais um recorde de mortos por covid-19: 3.950 em 24 horas; 66 mil só no mês de março; 321.826 ao todo. Que feito! Quem não morresse em razão do vírus poderia morrer à bala.

É importante que tenhamos a clareza de que o presidente tentou desfechar um golpe. Eis o nome que se dá quando pessoas uniformizadas e armadas, que deveriam atuar como forças de Estado, resolvem ditar as regras da vida civil e da política. Não parece que seu novo ministro da Defesa seja do tipo que diz ao chefe: "Ah, melhor não..." Há um sinal de que, não fosse a resistência do Alto Comando das Forças Armadas, haveria general batendo às portas do Supremo para dizer: "Olhe, não se trata de um golpe, mas precisamos mudar isso..."

Não! Nunca achei, como escrevi aqui tantas vezes, que um golpe fosse viável ou factível. Isso não quer dizer que não se tenha tentado. Eis o ponto. Fosse o impeachment apenas matéria de merecimento, Bolsonaro teria de ser impichado 28 vezes. Mas, como se sabe, isso depende da política. As limitações de mobilização impostas pela pandemia também facilitam as tentativas de arruaça do mandatário.

Não pensem que Bolsonaro vai mudar. Uma das palavras de extremistas de direita, aqui e no mundo, é não recuar nunca. O presidente não é um teórico da coisa — como Filipe Martins —, mas é um intuitivo entusiasmado. O discurso negacionista encontra eco numa parcela significativa do país que, de verdade, está sendo ameaçada e lançada na insegurança econômica pela covid-19 e pela inépcia do governo.

E daí? Como de hábito, Bolsonaro atribui a terceiros os desastres provocados por seu governo e por ele próprio. Exerce, assim, o que tenho chamado aqui de estranho "populismo da morte". Muita gente que é prejudicada pelas medidas de restrição social — e existem aos milhões — prefere voltar a sua fúria contra governadores e prefeitos. Falta-lhes a clareza necessária para constatar que o caos é filho da indisciplina, que o alimenta.

Na fase em que estamos, quanto mais o presidente sabotar o distanciamento social, como voltou a fazer nesta quarta, mais prolonga a crise. E, assim, entramos no círculo vicioso desse populismo da morte: a conclamação à indisciplina, em nome do funcionamento da economia, contribui para aumentar a contaminação e os óbitos, o que, por seu turno, acaba paralisando a economia, o que alimenta o proselitismo funesto.

Nesta quarta, no tal comitê contra a covid, até Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, sugeriu que as pessoas evitem aglomerações no feriado de Páscoa. Bolsonaro concedeu uma entrevista em seguida em que pregou vida normal e volta ao trabalho, insistindo na comparação esdrúxula, segundo a qual toques de recolher e outras medidas restritivas são coisas ainda piores do que estado de sítio. A afirmação é tão estúpida que nem errada chega a ser.

O atual presidente e o pensamento lógico nunca foram íntimos. Nos últimos dias, ele tem insistido na tese mentirosa de que o colapso na Saúde evidencia a ineficácia do "lockdown" — que, insista-se, nunca existiu em dimensão nacional ou estadual. Quando muito, algumas cidades o aplicaram, a exemplo de Araraquara, no interior de São Paulo, e com bons resultados.

E daí? Bolsonaro fala o que lhe dá na telha e, com uma simples declaração, transforma em bobos aqueles que acreditaram que o comitê poderia significar um passo adiante no combate à doença. É um pesadelo sem fim. Como lockdown não há e como há serviços que não podem parar, então já se tem uma taxa inevitável de contaminação — e, por consequência, de mortos.

O presidente não faz o menor esforço, no que lhe diz respeito, para impedir a permanência e agudização da tragédia. Ao contrário: sabota aquele que é, na prática, um esforço, ainda que modesto, do comitê que ele próprio criou.

Tem a arruaça na alma. Seja ao tentar agitar quartéis, seja ao recomendar às pessoas um comportamento que, potencialmente — e com altíssima potência —, é tão suicida como homicida.

Não haverá golpe. Isso não quer dizer que a democracia não esteja sendo esgarçada um pouco por dia, todos os dias.

O Brasil mata mais de um World Trade Center por dia.

O Brasil mata 14,6 Brumadinhos por dia.

O Brasil derruba 6,6 Boeings 747 por dia.

Mas nada move o coração do faraó.

Vejam a imagem. Há algo de perturbador nessa obstinação. Nada tem a ver com política. Nada tem a ver com economia. O que o move?

Reinaldo Azevedo, que publicou no UOL o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa "O É da Coisa", na BandNews FM. No UOL, Reinaldo trata principalmente de política; envereda, quando necessário - e frequentemente é necessário -, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho

Metade dos internados em UTI covid no SUS morre; taxa é quase o dobro que em hospitais privados

Informações constam da plataforma UTIs Brasileiras, que reúne dados de 652 hospitais - o equivalente a cerca de 25% das unidades de terapias intensivas do País

Dados compilados pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) apontam que um a cada três pacientes de coronavírus (36,6%) morreu após precisar ser internado na UTI durante a pandemia. Proporcionalmente, a mortalidade é maior na rede pública, com taxa de 52,9%, conforme o levantamento. Já nos hospitais privados, o índice de óbitos é de 29,7%. No Brasil, o número de mortos pela doença a cada 24 horas já se aproxima de 4 mil e redes de saúde em várias regiões já entraram em colapso, com falta de leitos ou remédios para intubação. 

(Mais um horror-show: Governo autoriza reajuste dos preços de medicamentos em até 10%)

As informações sobre a mortalidade nos leitos de terapia intensiva constam da plataforma UTIs Brasileiras, com objetivo de orientar gestores de saúde, que reúne dados de 652 hospitais -- o equivalente a cerca de 25% das unidades de terapias intensivas no País. São 403 unidades da rede privada e 249 da pública, que correspondem a 20.865 leitos.

Hospitais da Grande São Paulo estão com alta ocupação de leitos em UTI e enfermaria Foto: Miguel Schincariol/AFP

Membro do Conselho Consultivo e ex-presidente da Amib, Ederlon Rezende é o coordenador da plataforma. Para ele, o fato de a rede pública estar recebendo doentes em situação mais aguda ajuda a entender a diferença entre as taxas de mortalidade. “Quando a gente fala de UTI pública e privada, a primeira coisa a se observar é o percentual de pacientes sob ventilação mecânica, ou seja, os casos mais graves”, afirma.

“Nos hospitais públicos, isso representa cerca de 65% das pessoas atendidas, enquanto que nas UTIs privadas é 40%. O dado, por si só, já explica por que a mortalidade é maior.” Ele pondera, no entanto, que também há discrepância quando se compara a letalidade apenas em pacientes intubados. Na rede pública, o índice é de 72,4%, segundo o UTIs Brasileiras. Na particular, fica em 63,6%. Para os pacientes que não precisam de ventilação, a taxa de mortalidade é, respectivamente, 17,1% (público) e 7,6% (privado).

“Se eu considerar que também é diferente nesse subgrupo, então devo admitir que há outras variáveis influenciando, embora não tenha como provar quais são elas”, diz Rezende. Entre os possíveis fatores, ele cita melhor infraestrutura da rede privada e maior dificuldade em conseguir vaga em hospital público.

“Quando há fila para conseguir uma vaga na UTI, especialmente agora com o sistema colapsado, o paciente chega com o quadro agravado”, afirma. “Isso compromete o desfecho, aumentando o risco de morrer.”

Ainda de acordo com a plataforma, o período de internação pela covid-19 é maior na UTI pública. Nessas unidades, 54,2% ficam mais de sete dias. O índice é de 48,6% no privado. No geral, o tempo médio de permanência é de 12,6 dias.

Houve também uma mudança na idade das pessoas internadas. Pacientes de até 45 anos, que entre o início de setembro e final de novembro do ano passado representavam 18% das internações, já ocuparam 20% dos leitos de UTI entre o início de fevereiro e o final de março. No movimento inverso, aqueles acima de 80 anos registraram queda no mesmo período, diminuindo a incidência em tranatamentos intensivos de 13,4 para 9,7%.     

Quanto pior, pior

O levantamento também mostra que, com a escalada de novos casos nas últimas semanas, a taxa de letalidade tem subido nas UTIs. Segundo Rezende, a sobrecarga nos hospitais diminui a capacidade de atender os pacientes com qualidade. Levantamento da Fiocruz esta semana mostrou 24 Estados e o Distrito Federal com taxas de ocupação superiores a 80% nas unidades de terapia intensiva. Para evitar o agravamento do colapso e frear as taxas de transmissão, governadores e prefeitos têm aumentado as medidas de isolamento e adotado até o lockdown. 

“Nos primeiros semestres, a mortalidade em geral era de 32%. Agora, entre dezembro e fevereiro, foi de 38%”, afirma o especialista. “Significa um aumento de 18,7% na mortalidade, o que é bastante expressivo.”

Para Rezende, “está claro que não adianta mais sair abrindo UTI” e é preciso “diminuir o número de casos e ser mais rigoroso na circulação de pessoas”. “Os novos leitos acabam sendo importantes para oferecer dignidade e a pessoa não morrer na UPA ou na rua”, diz. “Entretanto, deve ficar claro que já atingiu o limite. Há locais que triplicaram o número de UTIs e algumas não têm estrutura adequada, principalmente no que diz respeito à qualificação das equipes. Isso compromete o resultado", destaca ele. 

Felipe Resk, O Estado de S.Paulo, em 01 de abril de 2021, às 15h00 hs.


Bolsonaro gastou mais de R$ 2,3 milhões em férias de fim de ano, diz deputado

Valor foi informado pela Secretaria-Geral da Presidência e pelo GSI, após requerimento de Elias Vaz (PSB)

Presidente acompanhado de apoiadores em São Francisco do Sul Foto: Instagram/Luciano Hang

As férias de fim de ano do presidente Jair Bolsonaro custaram aos cofres públicos mais de R$ 2,3 milhões. O valor corresponde aos gastos no recesso do período de 18 de dezembro de 2020 a 5 de janeiro. O montante foi informado ao deputado federal Elias Vaz (PSB-GO), que solicitou em dois requerimentos informações à Secretaria-Geral da Presidência e ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

No fim do ano, Bolsonaro viajou para São Francisco do Sul, em Santa Catarina, e depois retornou para Brasília, onde passou o Natal. Ainda no período de festas, viajou para o Guarujá, onde passou o Ano Novo. Nas duas viagens, o custo com a equipe de segurança foi de R$202.538,21.

(Bastidores: Comandantes militares agem para acalmar tropa após demissão da cúpula)

O GSI informou que os gastos com transporte aéreo de Bolsonaro foram estimados, com base em tabelas do Comando da Aeronáutica, em US$ 185 mil. O Estadão/Broadcast estimou que, levando em consideração o dólar comercial médio no período das viagens (R$ 5,2615), o gasto total em reais foi de R$ 973,378 mil. O cálculo leva em conta a média da Ptax (a taxa calculada pelo Banco Central) entre 18 de dezembro de 2020 e 15 de janeiro. Em valores atuais para a moeda americana, a cifra chegaria a R$ R$ 1,052 milhão, com base na PTax desta quinta-feira, 1.º. 

Em ofício de resposta ao pedido do deputado, o GSI destacou que as despesas estão dentro do Orçamento Anual previsto para a pasta e para a Aeronáutica. A Secretaria-Geral informou ter gasto R$1.196.158,40 em despesas nas viagens do presidente. Neste valor estão incluídos o custeio com hospedagem de Bolsonaro e sua equipe, alimentação e despesas aeroportuárias, além de combustível de veículos terrestres. 

Os valores gastos em plena pandemia de covid-19 foram avaliados por Elias Vaz como um "tapa na cara do brasileiro". Em dezembro do ano passado, quando o presidente fez as viagens, o governo pagava a última parcela do auxílio emergencial no valor de R$ 300. Na época, o benefício não tinha perspectiva de ser renovado. Vaz destacou que, com o valor gasto nas férias do presidente, o governo poderia ter pago mais uma parcela do auxílio para quase 8 mil pessoas. 

Neste mês de abril, Bolsonaro retomará o pagamento do auxílio em quatro parcelas mensais, que variam conforme a condição familiar do beneficiário, podendo ser de R$ 150, R$ 250 e R$ 375. O benefício só pode ser concedido após o Congresso aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que abriu caminho para a nova rodada do auxílio, a ser paga a partir do próximo dia 6.

Emilly Behnke, O Estado de S.Paulo, em 01 de abril de 2021, às 17h54

Juan Arias: Bolsonaro defendia há 22 anos que o Brasil só se salvaria com uma guerra civil

Se na ocasião instituições do Estado tivessem intervindo, expulsando-o do cargo, hoje o Brasil certamente não teria acumulado mais de 300.000 mortos na pandemia

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em ato para lembrar o golpe de 1964, em Brasília, nesta quarta. (Crédito da Foto: Eraldo Peres / Associated Press)

Aqueles que, como este colunista, viveram durante a infância a Guerra Civil Espanhola, em que morreram quase um milhão de pessoas e cerca de 30.000 crianças, sentem calafrios só de falar sobre uma guerra entre irmãos. Lembro que minha mãe fechava as janelas que davam para a estrada para que eu não visse os fuzilamentos. Só ouvia os tiros dos fuzis e das metralhadoras. Era uma guerra entre irmãos. E lembro-me de quando alguns camponeses escondiam de noite o meu pai, que era professor primário, por medo de que viessem fuzilá-lo.

É isso que o presidente Bolsonaro deseja para o Brasil?

Sim, esse era o seu sonho há 22 anos, quando era deputado do chamado baixo clero sem que se destacasse por nada além de sua homofobia, seu desprezo pelas mulheres e a sua defesa da ditadura e da tortura. Em 1999, em uma entrevista ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, disse textualmente: “O voto não vai mudar nada no Brasil. Só vai mudar infelizmente quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30.000”.

Infelizmente o Congresso considerou então apenas como extravagâncias as ameaças do deputado militar. Se tivesse sido processado na época, hoje não seria presidente nem sofreríamos as contínuas ameaças de golpes autoritários. Em qualquer democracia do mundo, um deputado que defendesse uma guerra civil na televisão seria processado e destituído do cargo. A Bolsonaro permitiu-se desde o primeiro momento fazer todos os ataques mais ferozes à liberdade e aos valores democráticos e defender os torturadores durante a ditadura que, segundo ele, foi demasiado leve porque deveria ter matado muitos mais. E isso foi defendido em pleno Congresso.

Se na ocasião as instituições do Estado, o Congresso e o STF tivessem intervindo, expulsando-o do cargo, hoje o Brasil certamente não teria mais de 300.000 mortos na pandemia e teria poupado tanta dor.

Bolsonaro já deveria ter sido julgado por seu negacionismo da pandemia e por zombar daqueles que lutavam para salvar vidas. As consequências da inércia das instituições em enfrentar o defensor da ditadura fizeram com que o Brasil chegasse até a se perguntar se estamos na iminência de um novo golpe militar. Pelo que se sabe até agora, as Forças Armadas decidiram interromper essa narrativa quando o ministro da Defesa e seus comandantes deixaram seus cargos, sinalizando que para tudo há limites.

Aqueles que continuam defendendo que ainda não é hora de abrir um processo de impeachment contra ele deveriam pensar que amanhã pode ser tarde demais. Pois imaginar que o frustrado capitão ainda possa se converter à democracia é apenas loucura. Ele carrega no sangue o gosto pela morte e pelas armas.

Estes dias de convulsão política, às vésperas do aniversário do golpe de 1964, com a renúncia do alto comando militar, revelam a gravidade da situação do Brasil. Até quando esperarão os que detêm o poder constitucional para destituir do cargo o capitão do Exército, reformado por subversão? Enquanto isso, o presidente se prepara para dar força e poder às Polícias Militares e, se puder, transformá-las em sua milícia pessoal, um atalho para seus sonhos golpistas.

Até quando o Brasil, em que cerca de 80% da população quer viver em democracia, aceitará passivamente que o chefe do Estado, ao invés de governar o país em um de seus momentos mais dramáticos, trame todos os dias para dar um golpe autoritário? O fato de ter colocado um policial amigo da família do presidente como ministro da Justiça é de uma gravidade difícil de qualificar. É uma ofensa à Justiça e revela os instintos do capitão obcecado pelo mundo das armas, pelo desafio da vida e por tudo o que significa morte e violência.

Para alimentar seu rebanho de fanáticos violentos, o presidente esquece e despreza aqueles que preferem apostar na vida, na empatia e na solidariedade com todos aqueles que sofrem e choram com a dor própria e alheia. Para o presidente, hoje abandonado até pelo que chamava de “meu Exército”, quem se defende da pandemia ouvindo a ciência não passa de um bando de covardes com medo de morrer.

Até quando o Brasil são, o que anseia viver em paz e segurança e que não falte comida no prato de seus filhos, continuará ameaçado por fantasmas de golpes e guerras civis? O Brasil já sofre com seus índices de violência que ceifam mais de 40.000 vidas a cada ano, a maioria de jovens e negros.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway se perguntava por quem os sinos dobravam. Oxalá neste Brasil que sabe aproveitar a vida os sinos deixem de soar para anunciar mais mortos e repiquem para festejar de novo a vida.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse Grande Desconhecido’, ‘José Saramago: o Amor Possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 01.04.2021.

Brasil tem mais 3.769 mortes por covid-19 em 24h

País também contabilizou mais de 91 mil novos casos nesta quinta-feira. Total de mortes passa de 325 mil.

As horas do dia já são insuficientes para o trabalho nos cemitérios. Os enterros agora acontecem também à noite em São Paulo.

O Brasil registrou nesta quinta-feira (01/04) o terceiro dia consecutivo com mais de três mil mortes por covid-19. Em apenas 24 horas, foram contabilizadas 3.769 mortes associadas à doença, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram identificados 91.097 novos casos da doença. Com isso, o total oficial de infecções no país subiu para 12.839.844, enquanto os óbitos chegam a 325.284.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 11.169.937 pacientes haviam se recuperado até quarta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 154,8 no Brasil.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 30,52 milhões de casos e mais de 552 mil óbitos.

Ao todo, mais de 129,3 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,82 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle / Brasil, em 01.04.2021

"Nosso erro foi ter tido condescendência", diz Celso Amorim

Ex-ministro da Defesa no governo Dilma faz autocrítica sobre a falta de uma postura mais firme em situações de desrespeito de generais à prevalência do poder civil. "Eu não teria indicado o Villas-Bôas."

Celso Amorim chefiou Ministério da Defesa entre 2011 e 2015, no governo Dilma, e pasta das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, sob Lula

O ex-ministro da Defesa Celso Amorim, que ocupou a pasta no primeiro mandato de Dilma Rousseff, acredita que os governos petistas erraram ao ter "condescendência” com posturas consideradas inadequadas de generais da ativa.

Sem especificar quais teriam sido os comportamentos acima do tom, Amorim defende que uma posição mais firme deveria ter sido tomada em situações de desrespeito à prevalência do poder civil.

"Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT”, afirma, em entrevista à DW Brasil.

Em entrevista à DW Brasil, o ex-ministro afirma que não teria indicado o general Villas-Bôas para o comando do Exército. A nomeação ocorreu em fevereiro de 2015, quando já havia deixado o cargo.

"Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais”, comenta. "Acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado”.

Aos 78 anos, Amorim acompanha com preocupação o movimento "arriscado” do presidente Jair Bolsonaro que resultou na saída conjunta dos três comandantes das Forças Armadas. Ressaltando a dificuldade de decifrar as movimentações internas dos militares, ele não vê qualquer sinalização golpista entre os generais até agora.

Tendo chefiado o Itamaraty entre 1993 e 1995, no governo Itamar Franco, e nos dois mandatos do governo Lula, o ex-ministro diz acreditar que levará muito tempo para que o Brasil consiga reconstruir sua imagem internacional após os danos diplomáticos provocados no governo Bolsonaro, assim como se observou no pós-ditadura.

"Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito ‘governo Bolsonaro', está escrito ‘Brasil'”.

DW: O livro de memórias do general Villas-Bôas explicita que havia um desconforto interno com os governos petistas, que atingiu seu ápice com a Comissão Nacional da Verdade. Isso era sentido por você à frente da Defesa?

Celso Amorim: A Comissão da Verdade realmente mexeu muito com as pessoas da reserva, sobretudo por ser um tema que lida com relações humanas e parentesco. Tem muitos formados da mesma família, às vezes o professor. Sem querer de forma alguma justificar, foi um assunto que pegou nervos expostos em vários setores. Eu não sentia nos comandantes uma oposição à Comissão. Obviamente que eles talvez não fossem elogiar. Mas a questão principal deles era a barganha por um equilíbrio a partir da Lei de Anistia, de investigar a verdade sem punir. A lei que criou a Comissão da Verdade reafirma a Lei de Anistia. Eu acho que eles absorviam, mas sofriam pressões externas, de ex-chefes, e deixavam a coisa delicada.

Mas nunca perdemos o diálogo a esse respeito. Eu fui intermediário entre a Comissão e eles em alguns momentos. A coisa me parecia bem manejada, mas isso tudo aflorou porque as instituições civis se debilitaram, sobretudo com o impeachment da Dilma. Uma parte importante da elite econômica e da mídia brasileira foi atrás deles, aí eles apoiaram. Não acho que nasceu lá. Podia haver descontentamento, mas, pouco antes do fim da Comissão, os jornais trouxeram como manchete um documento muito importante, em que eles admitem que violações de direitos humanos podem ter ocorrido nas organizações militares. Não é tudo, quem conhece um pouco de psicanálise sabe que a não negação é o primeiro passo para você chegar ao entendimento.

Houve ingenuidade dos governos petistas em relação aos militares e ao próprio general Villas-Bôas, nomeado comandante do Exército pela então presidente Dilma?

Não vou criticar a Dilma nem meus sucessores, mas eu não teria indicado o Villas-Bôas. Menos por uma percepção política de que ele ia fazer o que fez, e mais por eu ver nele uma pessoa que queria aparecer um pouco demais.

O comandante do Exército naquela época, assim como o chefe do Estado Maior e o comandante de Operações Terrestres eram pessoas muito discretas. E acho que a discrição é uma qualidade de um general. O militar não pode falar muito, pois está armado. Mas é uma questão de julgamento, as pessoas podem errar, assim como podem ter visto outros méritos que eu pessoalmente não veria. Ao mesmo tempo, não teria certeza, não diria "não ponha de jeito nenhum”. Não tivemos qualquer problema pessoal. Quando ele era comandante da Amazônia e eu tiver que ir lá, fui muito bem tratado.

Fui surpreendido quando o general Sérgio Etchegoyen assinou um manifesto contra a inclusão do pai dele no relatório da Comissão, sem por o nome como general, e sim como familiar. Deixaram pessoas com uma visão menos afinada com a prevalência do poder civil. É uma dificuldade intrínseca deles, que se expressou não por ser governo do PT. Acho que muitos realmente guardaram um ranço, mas o governo do Lula e da Dilma investiram muitíssimo. É só pegar projetos como o submarino nuclear, os caças Gripen, tudo aconteceu no governo do PT. Não houve falta de atenção na tarefa organicamente importante deles que é defender o país. 

No conjunto da obra, sem pensar em uma ação específica, acho que o nosso erro foi ter tido um pouco de condescendência nesses aspectos. Não em temas como a remuneração e condições adequadas para defender o país. Isso é justo e tinha que ser reivindicado. Mas, em algum momento, você tem que adotar uma posição mais firme.

Como ex-ministro de duas pastas importantes em que ocorreram trocas no início da semana, como você observa essas mudanças?

Pensando internacionalmente, até, eu não me lembro de ver a demissão dos ministros da Defesa e das Relações Exteriores no mesmo dia. São dois pilares do Estado. E ainda trocaram o ministro da Justiça, o terceiro pilar. Este foi numa espécie de dança de cadeiras, mas não deixa de ser um fato importante. É um movimento muito ousado, que deve ser lido com atenção.

O Bolsonaro é uma pessoa que luta principalmente pela sobrevivência. Seu objetivo, como ele mesmo enunciou, é desconstruir a realidade. Não é só contra os governos petistas. O chanceler que acaba de sair critica a política externa dos últimos 45 anos, do período Geisel para cá já não serve. O presidente fala o que agrada ao clã. Ele fez isso num momento em que se sentiu enfraquecido, com o manifesto dos banqueiros, a volta do Lula, os efeitos da pandemia e a derrubada do ministro das Relações Exteriores pela unanimidade do Senado. Era uma pessoa de quem ele gostava, e não teve uma voz que se levantasse para o defender.

Com esse movimento super arriscado, o Bolsonaro pode achar que ganha tempo. E, talvez, tenha razão. Para ele chegar a 2022, tem que passar pelos meses que faltam. Nesse período, pode ser que a pandemia arrefeça, por força da natureza ou avanço da vacinação. A economia mundial pode progredir, já há um crescimento da China e há muita expectativa sobre os EUA. Tudo isso pode fazer o preço das commodities subir, o que já está ocorrendo. Na expectativa dele, pode ser que a situação não seja tão ruim após uns cinco, seis meses.

Com que grau de preocupação você acompanha a crise entre o comando das Forças Armadas e o presidente Bolsonaro?

É complicado, entrar lá exige uma senha especial. Como estive lá por três anos e meio, tive alguns desses códigos, mas é sempre um pouco difícil. Por exemplo, eu não tenho certeza sequer se eles foram demitidos porque se sabia que iriam renunciar, ou se renunciaram porque sabiam que seriam demitidos. É uma coisa intrincada. Seja como for, é uma crise muito grande. Nunca houve um fato como este na história do Brasil.

Ele sentiu que precisava ter uma iniciativa, numa área que para ele é fundamental, a da segurança. O Bolsonaro tem muita confiança que poderá usar as polícias e outras forças que possam surgir. Ele próprio mencionou que poderia haver no Brasil um episódio como a invasão do Capitólio, nos EUA. O Bolsonaro precisa das Forças Armadas para agirem em seu favor, em face de uma dessas situações, ou para ao menos estarem neutralizadas. Foi esse conjunto de coisas que o levou a esse gesto totalmente inusitado, que não ocorreu nos governos militares nem em qualquer governo civil.

Você concorda com a leitura de que o comando das Forças Armadas sinalizou que não haverá endosso a iniciativas golpistas?

Sim, mas só estou falando com base em informações que saem na imprensa. Não fico chateando os poucos militares que conheço, pois sei que é uma situação muito difícil para eles. Uma das coisas que dizem é que o Bolsonaro esperava uma manifestação da Defesa, do Alto Comando ou do Exército crítica ou manifestando preocupação sobre a decisão do Supremo que trouxe o Lula de volta ao cenário político. Aparentemente, teria havido uma negativa do general Pujol de ir nessa direção. Obviamente, é algo que o incomoda muito e denota o respeito à institucionalidade.

Por um lado, é verdade que muitos militares se deixaram envolver pelos cargos, benefícios, e isso obviamente acaba tendo um reflexo na postura deles, mas o Alto Comando teve a preocupação de manter uma certa independência. Minha leitura até agora é de que iria acabar como na fábula em que o coelho começa a bater para pegar o melado e, no final, acaba grudado no melado, sem ter mais como sair. Mas a visão que eu tenho com esses últimos acontecimentos é que ele não estava totalmente grudado.

Qual é o legado deixado pela política externa conduzida pelo ex-ministro Ernesto Araújo ao longo de mais de dois anos?

É um desastre absoluto, de qualquer ângulo que você puder olhar. A própria percepção do Senado, de que uma má diplomacia estava tendo efeitos danosos para a vida das pessoas, nunca se viu antes. Havia interesses específicos. Às vezes, a agricultura achava que você podia fazer uma coisa, e a indústria não. Mas nunca houve uma unanimidade como desta vez em relação ao efeito danoso. E este é só o efeito interno. Em termos de substância e posicionamentos internacionais, o Brasil vai levar muito tempo para recuperar a credibilidade. Eu digo isso com muito pesar, porque queria que recuperasse rápido. Mas não é assim, no dia seguinte.

Após a ditadura militar, até o Brasil voltar a ter um papel importante na área de direitos humanos e voltar a ter uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, levou um tempo. E olha que a ditadura, em matéria de política externa, não foi tão ruim assim, sobretudo do Geisel para cá. Basta lembrar o Acordo Nuclear com a Alemanha, à revelia dos EUA. Com um governo militar de direita, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo auto-proclamado marxista-leninista em Angola, pensando nos seus interesses estratégicos com este país, entre outros aspectos.

Agora, o problema é mais grave, porque se trata de um governo eleito. Certas posições afetam a credibilidade do país. Quando um representante nosso, seja um jovem embaixador ou secretário, levanta a plaquinha nas assembleias, ali não está escrito "governo Bolsonaro”, está escrito "Brasil”.

A política externa adotada pelos governos petistas, na qual você teve papel central, também é apontada como "ideológica” por grupos mais moderados, de centro-direita. Como você reage?

Não se trata apenas de uma interpretação errada. É uma mentira. Dizem que o Brasil virou as costas para os EUA e a Europa. O Brasil assinou uma parceria estratégica com a União Europeia em 2007, a convite deles, uma coisa que a Europa só tinha com quatro ou cinco países.

Tomamos inciativas conjuntas com França,  Noruega, Portugal e Espanha. Mantivemos, ainda, uma excelente relação com a Alemanha. A Angela Merkel me recebeu para conversar sobre a Organização Mundial do Comércio (OMC). Vá perguntar quantas vezes um chefe de Estado da Alemanha recebeu um ministro brasileiro. Não deve ter havido muitas. Eu não tenho registros. É porque davam importância ao Brasil nas negociações da OMC. O Brasil era central em muitas coisas que estavam acontecendo no mundo.

Com relação aos EUA, o Bush veio aqui duas vezes nos seis anos de coincidência de mandato, uma frequência incomum. E convidou o Lula também duas vezes, além das demais ocasiões em que o presidente foi lá por outros motivos. Um dos convites foi para Camp David, casa de campo do presidente norte-americano. Eu nem ligo para esses símbolos, mas quando as pessoas dizem que a gente virou as costas, é preciso lembrar essas questões.

No governo Dilma, por um bom trabalho feito pelos meus sucessores e ela própria, reflexo de um capital acumulado, elegemos os diretores-gerais da OMC e também da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). São inclusive organizações que se chocam, mas do primeiríssimo time do sistema internacional. Se você olhar, não vai encontrar com frequência duas pessoas da mesma nacionalidade exercendo esses dois cargos ou equivalentes ao mesmo tempo. Isso reflete o peso imenso que o Brasil tinha entre os países da África, Ásia e América Latina, sem perder prestígio com a Europa.

Deutsche Welle / Brasil, em 01.04.2021

Crise militar no Brasil entra no radar internacional por temor de ruptura democrática

Queda do ministro e de comandantes das Forças Armadas acende alertas sobre o tamanho do conflito institucional no país que já registra retrocessos significativos

Protesto contra Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro nesta quarta, data que marca os 57 anos do golpe militar. (Crédito da Foto: SILVIA IZQUIERDO / AP).

“Teste de estresse”. Esse é o termo que diplomatas estrangeiros passaram a usar para descrever a situação que vive a democracia brasileira. Os eventos dos últimos dias acenderam os alertas internacionais em relação a uma eventual crise institucional no país, enquanto governos buscam saber se os gestos políticos por parte do Palácio do Planalto representam um risco real de ruptura democrática.

Na terça-feira, Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) colocaram seus cargos à disposição, um dia depois da queda do Ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. O recado era claro: os militares não estão dispostos a participar de nenhuma aventura golpista. Apesar disso, o que serviços de inteligência no exterior buscam saber é se existe apoio ao presidente em grupos específicos dentro das diferentes forças que justifique o temor de uma sublevação incentivada pelo bolsonarismo mais radical. A nova cúpula foi anunciada nesta quarta, com a nomeação de Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Exército), Almir Garnier Santos (Marinha) e Carlos Almeida Baptista Júnior (Aeronáutica).

A declaração de uma comemoração do golpe de 1964 e um projeto de lei frustrado para dar maiores poderes ao presidente também aprofundaram os temores internacionais. Ao longo dos últimos dias, embaixadores do Brasil no exterior foram procurados por membros de governos estrangeiros que, de forma reservada, questionaram sobre o que o atual momento representa em termos institucionais. O risco de ruptura democrática foi negado por autoridades de patente, como o vice-presidente Hamilton Mourão. “As Forças Armadas vão se pautar pela legalidade, sempre”, afirmou o general da reserva em entrevista para a jornalista Andréia Sadi na terça. Ao nomear os novos comandantes das Forças, o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, declarou que “a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira se mantêm fiéis às suas missões constitucionais de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”. E acrescentou: “O maior patrimônio de uma nação é a garantia da democracia e a liberdade do seu povo”.

Relatores de Direitos Humanos das Nações Unidas já foram informados sobre os acontecimentos no Brasil e avaliavam solicitar oficialmente ao Governo de Jair Bolsonaro explicações sobre o que tal sinalização poderia significar em termos de violações da democracia. Em Washington, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também acompanha o caso, num sinal de que existe uma preocupação clara em relação ao destino do país. Há menos de um mês, a entidade publicou um amplo levantamento sobre todos os aspectos relacionados com os direitos humanos no Brasil e constatou que a democracia “vem enfrentando desafios e retrocessos”.

Outros institutos, como a Universidade de Gotemburgo, na Suécia, constatam que o Brasil foi um dos quatro países que viram o maior retrocesso em sua democracia na última década, principalmente nos últimos dois anos. Mesmo na cúpula da ONU, a crise brasileira é seguida de perto por António Guterres, secretário-geral da entidade e uma pessoa que, ao longo de sua história, sempre foi próximo dos assuntos do país. Nos últimos meses, o escritório da alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, alertou para o “encolhimento do espaço cívico” no país.

No Parlamento europeu, a fragilidade da democracia brasileira entrou no radar, principalmente diante da pressão que existe para que os eurodeputados considerem um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

Já a Comissão Europeia, órgão executivo da UE, insiste que não fala sobre assuntos internos de outros governos. Mas a percepção é de que o mundo, num momento de crise, não pode se dar ao luxo de ver mais um foco de instabilidade internacional. “O que estamos vendo é um teste de estresse da democracia brasileira”, disse um delegado em Bruxelas. O teste é para saber, segundo ele, se as instituições de fato estão funcionando ou se existe uma possibilidade real de ruptura.

Na Organização Mundial da Saúde, a preocupação central é de que, diante da crise institucional, o Governo acabe relegando a pandemia para um segundo plano. “Há uma sensação de que a prioridade hoje no Brasil é outra, mesmo com mais de 3.000 mortos por dia pela covid-19”, lamentou um alto funcionário da agência de saúde.

JAMIL CHADE, de Genebra para o EL PAÍS, em 31 de MAR 2021, às 23:06 hs

Fome e pandemia nas favelas: ‘Meus netos comem menos para eu almoçar’

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Discutir conflito entre 'saúde e economia' não faz sentido para governos, avalia economista


Netos de Josinete comeram menos para que sobrasse comida para ela no domingo

No último domingo, a empregada doméstica Josinete Antônia da Silva, de 64 anos, abriu os armários da casa onde mora na periferia de Recife, em Pernambuco. Destampou os potes de mantimentos e não encontrou nada. Não havia nada nas panelas também. A filha, ao saber que a mãe não tinha o que almoçar, pediu para que os filhos dela comessem menos para que sobrasse para a avó.

"Ela falou: hoje, cada um de vocês come um pouquinho menos para ter comida para a vó também. E me mandou carne moída, feijão e arroz. Se não fosse ela, não sei o que eu teria feito", contou Josinete em entrevista por telefone à BBC News Brasil.

De acordo com ONGs, líderes comunitários e empresas especializadas em doações ouvidas pela reportagem, o número de contribuições caiu drasticamente ao longo da pandemia e hoje, no auge da crise sanitária, muitas famílias que moram em comunidades não têm o que comer.

Nas últimas 24 horas, o Brasil registrou 3.869 mortes por covid-19, superando o recorde registrado na véspera, 3.780 vidas perdidas.

(Brasil registra 3.869 mortes por covid-19 em 24h, novo recorde diário)

Josinete recebe uma pensão no valor de um salário mínimo (R$ 1.100) e mora com as três filhas, que perderam o emprego na pandemia. Uma delas tem quatro filhos e está grávida. A outra tem dois.

Ela conta que o dinheiro da pensão é insuficiente para comprar comida para o mês. O único que trabalha na família é o filho dela, que mora de aluguel no mesmo bairro e faz trabalhos informais como pedreiro.

"Ele me ajuda como pode. Está tudo muito caro. Vou ao mercado comprar feijão, arroz, uns pedacinhos de galinha, macarrão e salsicha e não gasto menos de R$ 100. O que pesa é a carne, o arroz e o leite, ainda mais morando com uma criança de 3 anos e outra de 9 meses. Tem dia que dá para comprar pão, outros não", conta Josinete.

Além dela, na mesma casa moram três filhas e cinco netos. Ao todo, Josinete tem nove filhos (sete desempregados), 33 netos e sete bisnetos.

No início da pandemia, em 2020, ela recebeu cestas básicas e dinheiro para fazer a feira, mas no fim do ano essa ajuda diminuiu gradativamente até parar, conta ela.

O Instituto Casa Amarela Social foi um dos que ajudaram a família de Josinete na pandemia. O grupo faz diversas campanhas para arrecadar doações.

"Eu tenho vergonha de pedir para outras pessoas, mas não (quando é) para meus filhos. Eu só peço misericórdia para quem tem um pouco mais (de dinheiro) se unir com os outros e ajudar quem não tem condições de sair dessa sozinho. O governo poderia ter mantido o auxílio emergencial em R$ 600, mas a gente não tem escolha", afirmou.

O Congresso aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permite o financiamento do novo auxílio, que terá valor médio em R$ 250, mas as cotas devem variar entre R$ 150 e R$ 375.

Uma pesquisa feita pelo Data Favela, uma parceria entre Instituto Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa), em fevereiro, apontou que, entre os 16 milhões de brasileiros que moram em favelas, 67% tiveram de cortar itens básicos do orçamento com o fim do auxílio emergencial, como comida e material de limpeza.

Outros 68% afirmaram que, nos 15 dias anteriores à pesquisa, em ao menos um faltou dinheiro para comprar comida. Oito em cada 10 famílias disseram que não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas durante os meses de pandemia se não tivessem recebido doações.

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Um presidente por rua

O presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, Gilson Rodrigues, disse que a escassez de doações ocorre em favelas por todo o Brasil. Em Paraisópolis, a maior de São Paulo, um homem chegou a desmaiar na fila enquanto aguardava um prato de comida na última semana.

"Vejo um agravamento da situação em que o Brasil fala de um novo normal, com fome e desemprego. A fila de moradores por um marmitex começa às 9h, mas a gente só começa a entregar meio-dia. Eles fazem isso porque sentem medo de perder a única refeição do dia", afirmou.

Mulheres fazem protesto para simbolizar fome na favela de Paraisópolis em SP

Mulheres fazem protesto para denunciar a fome na favela de Paraisópolis em SP (Crédito ds foto: Daniel Eduardo).

Gilson conta que, no início da pandemia e auge das doações, eles conseguiam entregar 10 mil marmitas por dia. Hoje, são 700.

O G10 Favelas, grupo que reúne as 10 maiores comunidades do país, criou uma central de arrecadação para ajudar famílias de baixa renda de todo o país. Há um endereço específico para colaborar com moradores de Paraisópolis e outras favelas.

O líder comunitário afirmou que, na falta de poder público, a própria favela elegeu presidentes de rua. Cada um cuida de 50 famílias. Isso é importante para descentralizar os pedidos, já que ele conta que chegou a receber 7 mil mensagens de ajuda num único dia.

Ele disse que fazer os vizinhos cuidarem uns dos outros gera resultados mais contundentes que muitas políticas públicas. Gilson explica o valor da proximidade e humanização com que eles enxergam os problemas de quem mora ao lado.

"Na falta de um presidente para o país, temos um a cada 50 casas. Organizamos a sociedade para que ela tenha um papel real de transformação. Cada um desses presidentes acompanha de perto a situação dessas pessoas, as deficiências na saúde, alimentação. Damos protagonismo às pessoas e reaproximamos vizinhos", afirmou o líder comunitário de Paraisópolis.

Gilson explica que dessa forma as doações são distribuídas de maneira mais justa e os presidentes de rua fazem o máximo para ver quem mora perto dele numa situação melhor.

"Fizemos isso em 300 favelas de 14 Estados. Nossa intenção é salvar vidas. Produzimos mais de 1,4 milhão de máscaras, contratamos ambulâncias. Tudo graças ao protagonismo dos próprios moradores. O vizinho dos Jardins (área nobre de SP) também deve fazer isso. Conhecer quem mora na mansão do lado, estender as mãos para um irmão", afirmou.

Ele explicou que a favela sempre teve a cultura do apoio e que agora o Brasil precisa ativar esse movimento em todos os bairros e instâncias. O G10 Favelas criou um site para explicar como levar o projeto de presidente de rua para a sua região.

Marmitex na cracolândia

Há um mês, a universitária Alessandra Monteiro pensou em como poderia fazer ações sociais maiores e mais organizadas do que as doações que ela já costumava fazer

Alessandra, que entregou 50 marmitex há 15 dias quer ampliar para 200 refeições (Crédito da Foto: Arquivo Pessoal)


"Eu disse isso para a minha amiga Viviane porque pensei que estava na hora de sair da minha zona de conforto. Eu tenho uma vida muito boa e precisava fazer alguma coisa para alguém", afirmou.

Ela então mandou mensagem para uma professora que vende marmitas para as colegas e perguntou quanto ela cobrava para fazer 50 refeições. No dia seguinte, ela avisou aos amigos que faria uma ação e pediu uma colaboração de quem pudesse ajudar.

"Comprei as 50 e fiz as primeiras entregas no dia 19 de março na região da cracolândia, no centro de São Paulo. No mesmo dia, um rapaz pediu uma lona para se cobrir com a mulher dele e o cachorro porque eles estavam dormindo embaixo de um pedaço de madeira. Consegui a doação de uma barraca de quatro lugares para ele e vou agora comprar ração para o cachorro", afirmou.

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Moradores de rua recebem barraca doada em grupo de amigos (Crédito da foto: Arquivo Pessoal)

O sucesso da primeira entrega foi tão grande que os amigos criaram um grupo no WhatsApp com o nome "Faça o bem porque o mundo está mal". Na quinta-feira (1º/04) eles vão doar 100 marmitas e 100 garrafas d'água. Alessandra já planeja dobrar esse número.

"Daqui 15 dias, quero entregar 200. Nós somos pessoas comuns. Não somos ricos, mas damos um pouco do que temos para quem não tem nada", disse à reportagem.

"Eu não tinha o que comer"

Já em meio à pandemia, em 2020, a sogra da comerciante Luciene Alves da Silva, de 60 anos, morreu e deixou dois filhos com deficiência intelectual, com 54 e 50 anos de idade.

Após a morte da sogra, Luciene passou a cuidar dos cunhados que têm deficiência intelectual, com a ajuda do marido (camiseta listrada) (Crédito da foto: Arquivo Pessoal)

Imediatamente, Luciene se mudou para a casa da sogra para cuidar dos cunhados, no Itaim Paulista, no extremo leste de São Paulo. O marido dela parou de trabalhar para ajudar nos cuidados, pois um dos irmãos dele sofre ataques epilépticos e precisa ser socorrido constantemente.

A renda da família chegou a praticamente zero e junto vieram o desespero e a fome.

"Tem horas que eu penso o que eu vou fazer da minha vida. Eles comem muito e eu não tenho dinheiro nenhum. A geladeira só vive vazia. Eu estou num processo para que eles recebam pensão, mas hoje minha única renda é um Bolsa Família de R$ 89", contou, chorando, em entrevista à BBC News Brasil.

No momento de maior desespero nas últimas semanas, Luciene foi acolhida por uma igreja próxima da casa dela.

"Eu não tinha o que comer. Faltou tudo mesmo. Fui na casa de uma irmã minha da igreja e contei tudo. Ela falou para eu não me preocupar e ir para casa. Logo em seguida o pastor Radson Cavalcante trouxe duas cestas básicas para mim. Só de contar eu choro. Só vindo aqui para saber minha situação de desespero", disse Luciene por telefone.

O pastor Radson Cavalcante disse que as pessoas que quiserem fazer doações podem entrar em contato com ele pelo telefone (11) 95118-7773.

De R$ 58 milhões para R$ 800 mil

A diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), Paula Fabiani, explica que houve cenários diferentes de doação em cada momento da pandemia.

"Primeiro, tivemos uma perspectiva que não duraria muito tempo. Se envolver em campanhas de doação foi algo que deu esperança à sociedade. Agora, temos um retrato diferente porque não sabemos quando vai acabar e isso gera cautela por parte das empresas. Elas, que foram o grande motor das doações, estão focadas hoje em proteger a sua própria saúde financeira e seus funcionários", afirmou Paula.

Como exemplo, ela cita o movimento Unidos pela Vacina, que junta várias empresas para buscar uma maneira de vacinar seus próprios funcionários. Elas estão se engajando para doar mão de obra, não recursos, pois não conseguem comprometer parte do orçamento com doações enquanto não souberem quanto vai sobrar de dinheiro e até quando a pandemia vai durar.


Volume de doações para projetos sociais despencou no Brasil (Crédito da foto: Rovena Rosa / Agência Brasil).

Paula conta que o auge das doações ocorreu nos meses de abril, maio e junho de 2020. Segundo o monitor das doações de covid-19, balanço feito pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos, no período as empresas chegaram a doar em média R$ 58 milhões por dia.

Esse valor caiu para R$ 6 milhões de julho a setembro e para R$ 2 milhões de outubro a dezembro. A média de janeiro a março de 2021 é de cerca de R$ 800 mil.

Segundo Paula, as pessoas também estão num processo de cansaço, depois de um ano com restrições de circulação e numa situação constante de doações. Ainda assim, ela diz que as empresas precisam se esforçar para incluir nas suas práticas ações filantrópicas.

Uma pesquisa do Idis apontou que 86% dos brasileiros dizem que as empresas devem apoiar as comunidades e 71% afirmam ser mais propensos a comprar um produto de uma empresa que se engaje em causas sociais.

"Lá atrás, o governo demorou para agir e quem agiu foram as ONGs. A gente fez um fundo de arrecadação e mandou para empresas. Criamos um mecanismo para ajudá-las a apoiarem essas ONGs. Mas hoje as empresas estão tentando organizar suas próprias ações, na tentativa de ajudar o governo", afirmou a diretora-presidente do Idis.

"Vivo sem saber meu destino"

Luciene Silva, que cuida dos cunhados com deficiência, vendia cachorro quente antes do início da pandemia. Ela e o marido tinham uma independência financeira. Hoje, o casal está com duas contas de água vencidas e depende da ajuda principalmente de vizinhos para sobreviver.

Luciene vendia cachorro quente antes da pandemia, mas hoje o carrinho dela está parado (Crédito da foto: Arquivo Pessoal)

"Eu passo o dia cuidando dos meus cunhados. Um deles faz xixi na cama e até colocamos um plástico no colchão porque no posto de saúde não tem fralda. Eu estou tomando antidepressivos. Calmante forte mesmo porque eu não durmo à noite pensando o que será o próximo dia. Hoje eu não tenho um real no bolso", contou à reportagem.

Luciene também conta com a ajuda dos filhos, mas um deles ficou desempregado recentemente por conta da crise na pandemia.

"É muito difícil acordar e não ter mistura na geladeira. Hoje mesmo eu achei um pacote de flocos de milho no armário e fiz um cuscuz para a gente. Quando vou à feira, ganho uns tomates e cebola. Outro traz um pacote de arroz. E assim eu vivo sem saber meu destino".

Felipe Souza - @felipe_dess, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 01.04.2021, há 6 horas.

O preço da liberdade é a eterna vigilância

Jair Bolsonaro é incansável. Para liberticidas contumazes, leis nada dizem. Por isso, o preço da liberdade segue sendo a eterna vigilância

O firme repúdio dos comandantes militares à insolente tentativa de Jair Bolsonaro de envolver as Forças Armadas em seu projeto autoritário de poder foi a derradeira demonstração de que o presidente não conta com mais ninguém relevante – apenas com seus fanáticos camisas pardas bolsonaristas – para embalar seus devaneios golpistas.

Bolsonaro há tempos vem tentando caracterizar as Forças Armadas como milícias a seu serviço, com o óbvio objetivo de intimidar seus opositores. Mas nos últimos dias, diante da percepção de que seu governo vem perdendo sustentação, o presidente resolveu pressionar os chefes das Forças Armadas a escolher um lado – ou ele ou a Constituição.

Os militares obviamente escolheram a Constituição. Rejeitaram de pronto a ideia – expressa pelo novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, na reunião em que os comandantes foram demitidos por ordem de Bolsonaro – de que é preciso “realinhar” as Forças Armadas ao presidente.

Ora, a Constituição estabelece que as Forças Armadas são instituições de Estado, razão pela qual não podem ser “alinhadas” ao presidente. Mas Bolsonaro, sendo o mais antirrepublicano dos presidentes da República na história nacional, considera-se senhor do Estado, tendo assim o poder de submetê-lo integralmente a seu tacão e de explorá-lo para seu proveito pessoal.

Bolsonaro julga que, por ser presidente, deve ser tratado com subserviência por todos, a começar pelos chefes militares, que, segundo entende, devem lhe dar apoio político explícito. 

O capitão da reserva, desligado do Exército depois de uma trajetória de insubordinação e sedição, quer ser visto agora como generalíssimo.

Mas Bolsonaro não é apenas um mau militar a quem infelizmente coube o comando supremo das Forças Armadas; é um mau homem público, que vive a repetir que “o presidente sou eu” para ver se ele mesmo se convence desse absurdo. Sem a autoridade natural dos líderes que respeitam a inteligência alheia e as leis, Bolsonaro pretende impor seu poder na marra.

Não se sabe para quê. É um governo sem rumo, que conduziu criminosamente o País à tragédia de mais de 300 mil mortos numa pandemia, sem falar no colapso do sistema de saúde. Sua única competência tem sido o aparelhamento da estrutura estatal para defender os interesses do clã Bolsonaro. Vive de criar tumulto e estimular o golpismo para desviar a atenção de sua monumental inaptidão para o cargo.

Mas a estratégia do caos não tem funcionado mais. Muitos de seus antigos apoiadores, militares e civis, já não escondem o arrependimento. Empresários não o levam mais a sério. Um deles, ouvido recentemente pelo Estado, disse que não é possível aprofundar nenhum assunto com Bolsonaro porque ele “só faz piada e fala palavrão”. Por isso, banqueiros, donos de empresas e executivos têm preferido procurar os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, para encaminhar suas preocupações.

Bolsonaro já não pode contar nem mesmo com o apoio integral do Centrão, que hoje coloniza seu governo. Lira já advertiu o presidente sobre o risco de impeachment, e Pacheco disse que o Congresso “não vai transigir com qualquer iniciativa que vise a algum retrocesso no Estado Democrático de Direito”.

Mas Bolsonaro é incansável. Por intermédio de um bagrinho, tentou emplacar um projeto de lei que lhe daria a prerrogativa de convocar “mobilização nacional” a pretexto de combater a pandemia. Nessa mobilização, o presidente ganharia poder para intervir nos Estados e derrubar as medidas de distanciamento social, além de passar a controlar as Polícias Militares.

Se aprovado, tal projeto afrontaria o princípio da Federação inscrito na Constituição. Conforme o artigo 60, a Federação é cláusula pétrea, ou seja, não pode ser alterada nem por emenda constitucional. Ademais, intervir nos Estados ao arrepio da Constituição é ato qualificado como crime de responsabilidade pelo artigo 6.º da Lei 1.079/50, a Lei do Impeachment.

Para liberticidas contumazes, contudo, leis nada dizem. Por isso, mais do que nunca, o preço da liberdade segue sendo a eterna vigilância.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 01 de abril de 2021 | 03h00

quarta-feira, 31 de março de 2021

Governo Bolsonaro pagou influenciadores para defender atendimento precoce contra Covid-19, diz agência


Mais de R$1,3 milhão foi utilizado para ações de marketing


Bolsonaro tira a máscara em entrevista coletiva com jornalistas ( Crédito da foto: Ueslei Marcelino / Reuters) 

O Governo Federal investiu R$1,3 milhão em ações de marketing com influenciadores digitais sobre a Covid-19. O montante gasto pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Comunicação (Secom) inclui R$ 85,9 mil destinados ao cachê de 19 famosos contratados para divulgar as campanhas em suas redes sociais, segundo publicou a Agência Pública com dados obtidos através da Lei de Acesso a Informação (LAI).

Entre as ações, há uma contratada pela Secom que pagou um valor de R$23 mil para contratar quatro influenciadores para falar sobre "atendimento precoce". A verba saiu de um investimento de R$19,9 milhões da campanha "Cuidados Precoces COVID-19".

Segundo a reportagem da Agência Pública, a Secom orientou a ex-BBB Flavia Viana, além dos influenciadores João Zoli, Jéssika Taynara e Pam Puertas a fazer um post no feed e seis stories em suas contas no Instagram dizendo para os seguidores que, caso sentissem sintomas da covid, era "importante que você procure imediatamente um médico e solicite um atendimento precoce".

(Brasil:  25 estados têm mais de 80% de UTIs ocupadas)

Os quatro influenciadores foram orientados a se guiar por um texto que dizia: "Hoje quero falar de um assunto importante, quero reforçar algumas formas de se prevenir do coronavírus. Vamos nos informar e buscar orientações em fontes confiáveis. Não vamos dar espaços para fake news. Com saúde não se brinca. Fiquem atentos! E se identificar algum sintoma como dor de cabeça, febre, tosse, cansaço, perda de olfato ou paladar, #NãoEspere, procure um médico e solicite um atendimento precoce".

Ainda segundo a reportagem, o material contratado não trazia menção ao "tratamento precoce" para Covid-19 com uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina como já foi defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e apareceu numa orientação editada pelo Ministerio da Saúde, em maio de 2020, que indicava o uso de cloroquina desde os primeiros sintomas da doença.

(SP: Governo diz que entrega de cilindros de oxigênio é desafio para conter o avanço da Covid-19)

No próprio texto de orientação que está atualmente no ar no site do governo os termos "atendimento" e "tratamento" se confundem: "O tratamento precoce comprovadamente aumenta as chances de recuperação e diminui a ocorrência de casos mais graves e, consequentemente, o número de internações", diz a página do Ministério da Saúde.

O Globo, em 31/03/2021 - 19:10 / Atualizado em 31/03/2021 - 20:08 hs.

“O maior risco para a democracia no momento é de que revoltas nas polícias sejam incentivadas”

Para João Roberto Martins Filho, estudioso das Forças Armadas no Brasil, parte dos militares busca uma terceira via eleitoral alternativa a Lula e ao presidente Bolsonaro

João Roberto Martins Filho, autor do livro 'Os militares e a crise brasileira' (Crédito da foto: Gabriela di Bella/The Intercept Brasil).

O Brasil está diante de uma “crise militar grave”, que não teria ocorrido caso alguns generais do Exército não tivessem “se aventurado a fundo em um Governo tão instável”. Essa é a leitura de João Roberto Martins Filho, estudioso das Forças Armadas no Brasil e autor do livro Os militares e a crise brasileira (Alameda Editorial), sobre a demissão do ministro da Defesa Fernando Azevedo, e o afastamento posterior dos comandantes das três forças —Exército, Marinha e Aeronáutica. Isso escancarou “fissuras no grupo militar, que até então eram pouco visíveis”.

Apesar da turbulência na caserna provocada pela “bomba” lançada por Jair Bolsonaro, Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos, não vê risco de ruptura institucional com participação das Forças Armadas, mas mostra preocupação com o incentivo feito por bolsonaristas a motins e revoltas dentro das polícias estaduais: “Isso pode levar a um nível de violência difícil de prever”. Ele cita como exemplo o tratamento dado ao policial militar Wesley Soares Góes, morto por equipes da corporação após atirar contra agentes em Salvador. Ele foi chamado de “herói” por deputadas da base do presidente, que ainda incentivaram uma rebelião contra o governador baiano, Rui Costa (PT). Posteriormente elas apagaram as postagens. Confira abaixo a entrevista:

Pergunta. O que podemos esperar do general Braga Netto na chefia do Ministério da Defesa?

Resposta. Braga Netto tinha uma carreira militar bastante destacada. Ele foi comandante do Leste, na região do Rio de Janeiro, e depois passou a ser o chefe da intervenção militar no Estado, onde eles assumiram o poder de fato no Rio. Até então ele era um dos mais destacados de sua geração, que é a mesma do Bolsonaro. É um grupo de generais formados nos anos 1970, durante a Guerra Fria, e que tiveram algum contato com a realidade da época. Dizem que ele é um dos mais bolsonaristas dentre os generais. Então com a saída do Azevedo o presidente colocou em seu lugar um homem de confiança. É uma trinca de generais que estão bastante fechados com o Bolsonaro: Netto, na Defesa, Luiz Eduardo Ramos, na Casa Civil, e Augusto Heleno, no Gabinete de Segurança Institucional.

P. O que significa a saída dos comandantes das Forças Armadas?

R. Estamos acostumados a falar que não havia fissuras no grupo militar. Mas o contato com a política provoca fissuras com o tempo. Até então essa cisão era pouco visível, alguns chegavam a se referir a alguns generais do Governo como o “Partido Militar”. É importante dizer que estamos diante de uma crise militar, e que isso não teria ocorrido se não tivéssemos um militar à frente da Defesa. Não teríamos esse impacto se fosse um civil no lugar do general Azevedo. Essa aventura militar de entrar no Governo está saindo muito caro para as Forças Armadas. É proximidade demais com um Governo instável.

P. Bolsonaro foi eleito com forte apoio dos militares. Você acha que parte deles agora busca um outro candidato para 2022?

R. Existe sim a busca por parte dos generais de uma terceira via [nem Lula nem Bolsonaro]. Isso fica claro, por exemplo, quando alguns generais se manifestaram contra o julgamento que atestou a suspeição [parcialidade] de Sergio Moro, que seria uma opção de candidato do centro a ser apoiado no meio militar —e um rival do próprio presidente.

P. O presidente demitiu o ministro como uma reação a estas movimentações?

R. O Bolsonaro deve ter percebido esta operação, ele tem instinto de sobrevivência. Há algum tempo o Centro de Comunicação do Exército começou uma operação de relações públicas e psicológicas de tentar mostrar para a sociedade, após demissão do Eduardo Pazuello [ex-ministro da Saúde], de que eles teriam feito melhor. E Bolsonaro sentiu isso, e nesse processo jogou uma bomba no meio de tudo [ao demitir Azevedo].

Paralelamente a isso, o presidente não estava conseguindo fazer com que as Forças Armadas concordassem em participar de algumas de suas loucuras. Do ponto de vista eleitoral, ele também achou ruim que o ministro e os comandantes das forças não se manifestassem contra a decisão do ministro Edson Fachin que devolveu os direitos políticos ao Lula, por exemplo.

P. Qual o maior risco para a democracia neste momento?

R. O maior risco no momento é incentivar revoltas nas policiais estaduais. Ou por parte do próprio presidente Bolsonaro ou de seu estafe de inspirações neofascistas, como seus filhos dele, o assessor Filipe Martins e alguns deputados mais radicais da base aliada, como a Bia Kicis. Essa turma já tentou incentivar essa rebelião antes, e essa sempre foi na minha análise a pior hipótese possível, pois pode levar a uma situação de grande violência em uma país que já é violento. Mas é preciso frisar que há muita diferença entre os Estados. O apoio ao Bolsonaro nas corporações e a situação das policiais não é homogêneo. Mas com certeza ele gostaria de contar com essa possibilidade [de fomentar as revoltas].

P. O presidente teve algumas rusgas com o ex-comandante do Exército, o general Edson Pujol, principalmente no que diz respeito à condução da luta contra a pandemia. Agora existe a expectativa de que os indicados por Braga Netto para ocupar os cargos de chefia nas Forças Armadas serão pessoas mais alinhadas com o presidente. Esta possibilidade existe?

R. Se você me fizesse esta pergunta um ano atrás eu diria que ele conseguiria colocar gente flexível no comando das forças, gente que fosse mais palatável para ele. Acho que a situação agora é complicada. Não acho que o Bolsonaro conseguirá colocar quem ele quiser. É claro que o Braga Netto vai apresentar nomes que não sejam muito independentes, mas a questão é que o comandante de uma das forças precisa ter legitimidade [tradicionalmente o ministro da Defesa apresenta três nomes ao presidente para cada chefia das Forças Armadas, e o mandatário seleciona um]. Não pode ser alguém que o alto comando das não reconheça como um homem digno de comandar o Exército, por exemplo.

GIL ALESSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 30 MAR 2021, às 23:17 hs.

Brasil pode ter no fim de maio mesmo número de mortes por covid-19 registrado em 2020, aponta estudo

A informação consta de nota técnica do Instituto de Estudos e Pesquisas em Saúde (IEPS) e mostra a velocidade com que a epidemia se alastra pelo País

 Se o Brasil mantiver a média diária de mortes por covid-19 das últimas semanas, chegará  em 24 de maio a 195 mil óbitos - o mesmo número que registrou em 2020. Assim, o número de falecimentos pela doença dobrará em menos de cinco meses, em comparação com o ano anterior. A informação consta de nota técnica do Instituto de Estudos e Pesquisas em Saúde (IEPS) e mostra a velocidade com que a epidemia se alastra pelo País.

Assinada pelas pesquisadoras Beatriz Rache e Márcia Castro, a nota analisa os óbitos nos Estados e capitais e comprova a forte aceleração da pandemia nas semanas recentes no País. Até 27 de março, os números do ano passado já tinham sido ultrapassados no Amazonas, em Rondônia, no Rio Grande do Sul e no Paraná. Em meados de 2021, 14 estados já terão alcançado suas cifras de 2020. Em São Paulo, esse momento deve acontecer em 9 de junho.

Com transmissão descontrolada da doença, o País tem visto o colapso de várias redes hospitalares Foto: Wilton Junior/Estadão

Segundo as pesquisadoras, há vários motivos para a lentidão no ritmo da vacinação. Entre eles, os principais são as baixas quantidades de insumos, a falha na coordenação federal do Plano Nacional de Imunização (PNI), a falta de apoio às medidas locais de distanciamento social e o surgimento de novas variantes do vírus.

“Nosso objetivo não era discutir as causas, mas documentar essa aceleração”, explicou a pesquisadora do IEPS Beatriz Rache.

A nota sustenta que “configura-se um quadro de crise sanitária de extrema gravidade, levando ao colapso simultâneo do sistema de saúde em diferentes regiões do País”. As especialistas ponderam que, diante da falta de leitos e do esgotamento de recursos como oxigênio e remédios, um “lockdown imediato” se faz necessário.

“Estava fazendo outro trabalho e, quando comecei a comparar os números de óbitos por covid no ano passado com os deste ano, percebi que já estavam próximos”, explicou Márcia Castro, professora de demografia e coordenadora do Departamento de Saúde Global da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard. “Resolvemos fazer essa nota para chamar a atenção para esse crescimento rápido.”

A pesquisadora falou da chance de combater a pandemia, perdida no ano passado. “Quando os números começaram a cair (pouco antes do fim do ano passado), era a segunda chance que o Brasil teria para fazer o que não fez lá no começo”, disse Márcia. “Mas não aconteceu nada. Aí vieram as festas de fim de ano, as pessoas que achavam que a pandemia já estava acabando, aquelas outras que estavam tomando coisas que não servem para nada e se julgavam protegidos. Enfim, foi a tempestade perfeita.”

Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021, às15h00 hs.

Na contramão do comitê, Bolsonaro critica medidas de distanciamento contra a covid

Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, pediu para população evitar aglomerações no feriado: 'Não há o que se comemorar'

Ao fim da primeira reunião do comitê de crise, criado para avançar nas medidas definidas pelos Três Poderes contra a pandemia, ficou claro que Jair Bolsonaro mantém visão diferente dos demais membros do grupo. Menos de dez minutos após o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reforçarem a necessidade de uso da máscara e do distanciamento social, apelando para que isso fosse praticado no feriado da Semana Santa, o presidente falou na direção oposta, criticando lockdown e isolamento. Lira e Pacheco também defenderam maior participação da iniciativa privada na compra de vacinas. 

Queiroga pede para população evitar aglomerações no feriado: 'Não há o que se comemorar'

Ao reclamar das medidas mais restritivas adotadas por governadores e prefeitos, Bolsonaro afirmou que as pessoas querem voltar ao trabalho. “Não é ficando em casa que vamos solucionar esse problema”, disse. “Essa política continua sendo adotada, mas o espírito dela era se preparar com leitos de UTI, respiradores, para que as pessoas não viessem a perder suas vidas por falta de atendimento", criticou Bolsonaro, num pronunciamento feito sem máscara - só colocou depois da fala e após ser alertado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria.

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palacio do Planalto  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

O contraste de posições ficou mais nítido porque Bolsonaro acabou não participando da coletiva realizada pelos outros integrantes do Comitê de Crise, que falaram bastante alinhados. Na reunião entre os Poderes que definiu a criação do comitê, o presidente já tinha criticado a ação de governadores e de prefeitos que decidiram pela adoção do lockdown para tentar conter o avanço da doença. Agora, mais uma vez, disse que essas medidas impedem que as pessoas trabalhem e podem fazer com que passem fome. De novo, também usou a comparação dessas medidas com as de um estado de sítio.

Sem a presença do presidente, os integrantes do Comitê de Crise pareceram antever a trombada que iria acontecer. E defenderam que era importante um alinhamento na estratégia de comunicação social, justamente para garantir uma atuação uniforme na divulgação das informações necessárias para a população no combate da pandemia.

“É muito importante a comunicação. Que haja um alinhamento da comunicação social do governo, da assessoria de imprensa da Presidência da República, no sentido de haver uma uniformização do discurso”, disse Rodrigo Pacheco. “Que é necessário se vacinar, usar máscara, higienizar as mãos. Que é necessário o distanciamento social de modo a prevenirmos o aumento da doença no nosso País”, afirmou.

Já sabendo da posição de Bolsonaro, Queiroga usou jogo de cintura para não bater totalmente de frente com ele. O ministro admitiu que há dificuldade da população para seguir medidas extremas. Por isso, reforçou a defesa do distanciamento, do uso de máscaras e que cada um faça sua parte já na Semana Santa.

“No feriado, não pode haver aglomerações desnecessárias. É importante usar máscara, manter o isolamento. É importante fazer isso. Medidas extremas não são desejadas. Então vamos fazer isso", ponderou.

Na conversa, Bolsonaro acabou sendo surpreendido pela sugestão de que se vacinasse publicamente. Antes de sua “conversão” à defesa da vacinação, o presidente chegou a declarar que não se imunizaria é que já tinha anticorpos contra o coronavírus pois tinha contraído o vírus. Agora, acabou sem responder à sugestão, que ainda recebeu um acréscimo: a aplicação da vacina poderia ser feita pelo próprio ministro da Saúde, que é médico. Bolsonaro acabou mudando de assunto e não respondeu se toparia a ideia.

Mesmo sem conseguir o alinhamento do presidente, o Comitê de Crise vai tentar avançar em outros gargalos para frear a expansão da pandemia. Queiroga afirmou que vai discutir com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, medidas relativas aos transportes urbanos. Hoje, a proximidade entre esses passageiros, que precisam se deslocar diariamente para suas atividades, é vista como ponto de risco na transmissão do vírus.

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco aproveitaram a reunião para defender a atuação mais intensa da iniciativa privada no combate à pandemia e também para a compra de vacinas. “É importante que se comece um amplo diálogo, um debate que permita que empresas possam adquirir vacinas para seus funcionários, mesmo com o repasse obrigatório para o SUS. Cada brasileiro vacinado é um a menos que possa contrair o vírus”, defendeu.

Lira insistiu que a ampliação da vacinação e a garantia de que haverá mais leitos de UTI e medicamentos segue sendo prioridade. “O nosso problema é vacinar e esse é o nosso foco. A Câmara dos Deputados está discutindo soluções e votando projetos importantes para que se amplie a vacinação, leitos, insumos e toda a infraestrutura necessária no combate à pandemia”, disse.

Marcelo de Moraes, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021, às 14h49 hs

Seis presidenciáveis assinam manifesto conjunto pró-democracia

Manifestação ocorre um dia após Bolsonaro demitir os comandantes das Forças Armadas; texto é assinado por Doria, Eduardo Leite, Ciro, Mandetta, Amoêdo e Huck

Um grupo de seis possíveis candidatos à Presidência da República em 2022 lançou na noite desta quarta-feira, dia 31, um manifesto em defesa da democracia, da Constituição Federal de 1988 e contra o autoritarismo. O texto é assinado tanto por nomes da centro-direita quanto da centro-esquerda. 

A manifestação pró-democracia ocorre um dia depois de o presidente Jair Bolsonaro demitir o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva; e os comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. 

Governador de São Paulo, João Doria Foto: Governo SP

O texto é assinado pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM); pelo apresentador de TV Luciano Huck; pelos ex-candidatos presidenciais em 2018 Ciro Gomes (PDT) e João Amoêdo (Novo) e pelos governadores tucanos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS). Os seis são vistos como possíveis candidatos em 2022. 

Leia abaixo a íntegra do manifesto

Muitos brasileiros foram às ruas e lutaram pela reconquista da Democracia na década de 1980. O movimento “Diretas Já”, uniu diferentes forças políticas no mesmo palanque, possibilitou a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, a volta das eleições diretas para o Executivo e o Legislativo e promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Três décadas depois, a Democracia brasileira é ameaçada.

A conquista do Brasil sonhado por cada um de nós não pode prescindir da Democracia. Ela é nosso legado, nosso chão, nosso farol. Cabe a cada um de nós defendê-la e lutar por seus princípios e valores.

Não há Democracia sem Constituição. Não há liberdade sem justiça. Não há igualdade sem respeito. Não há prosperidade sem solidariedade.

A Democracia é o melhor dos sistemas políticos que a humanidade foi capaz de criar. Liberdade de expressão, respeito aos direitos individuais, justiça para todos, direito ao voto e ao protesto. Tudo isso só acontece em regimes democráticos. Fora da Democracia o que existe é o excesso, o abuso, a transgressão, a intimidação, a ameaça e a submissão arbitrária do indivíduo ao Estado.

Exemplos não faltam para nos mostrar que o autoritarismo pode emergir das sombras, sempre que as sociedades se descuidam e silenciam na defesa dos valores democráticos.

Homens e mulheres desse país que apreciam a LIBERDADE, sejam civis ou militares, independentemente de filiação partidária, cor, religião, gênero e origem, devem estar unidos pela defesa da CONSCIÊNCIA DEMOCRÁTICA. Vamos defender o Brasil.

André Shalders, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021, às 19h54 hs