quarta-feira, 7 de junho de 2023

Uso de aplicativos incrementou prática da conciliação, diz Paulo Sérgio Domingues

Apesar de todos os percalços vividos na crise da Covid-19, o uso das ferramentas digitais na prestação jurisdicional durante a epidemia incrementou a prática da conciliação ao facilitar o contato entre as partes, seus advogados e os conciliadores, disse o ministro Paulo Sérgio Domingues, do Superior do Tribunal de Justiça.

Justiça teve de ser criativa nas conciliações durante a crise da Covid, disse Domingues

Entusiasta do uso dos aplicativos eletrônicos desde os tempos em que, como desembargador, coordenou o gabinete de conciliação do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3), Domingues traçou um panorama do momento atual da prática conciliatória em sua entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos principais nomes do Direito sobre os temas mais importante da atualidade.

"A pandemia nos ensinou muito a respeito de como podemos incrementar a conciliação a partir da utilização de meios eletrônicos para a solução consensual de conflitos", disse o ministro, que é especialista no uso de tecnologia no Poder Judiciário, tendo chefiado a comissão de informática que cuidou da implantação do processo judicial eletrônico, da digitalização de processos físicos e da segurança cibernética no TRF-3.

Segundo Domingues, no auge da crise, a Justiça se viu obrigada a promover as conciliações de maneira criativa. Para isso, recorreu a aplicativos de videoconferência, como o Teams e o Zoom, como forma de conectar as partes, os advogados e os conciliadores.

"Nós fizemos muitas dessas conciliações sem nenhum problema depois em relação ao cumprimento dos acordos", contou o ministro. "Quando uma pessoa não podia sair de casa para assinar os acordos, uma foto com o RG, com o joinha, já funcionava como um 'OK' para uma conciliação. Da mesma forma, um advogado segurando sua carteira da OAB e dando um 'OK' também resolvia a conciliação."

Na visão do ministro, tudo isso serviu para mostrar, tanto para os jurisdicionados quanto para os advogados, que pode ser mais prático buscar a solução consensual já a partir da propositura de uma ação.

"Não há dúvida de que, com mais de um milhão de advogados atuando, apenas a propositura de ações judiciais não vai resolver os problemas, porque o Judiciário vai ficar congestionado e cada vez mais lento. Isso é inevitável. Então, é importante que os advogados tenham essa consciência de que a participação deles na conciliação não é algo ruim, e sim algo que contribui para uma solução mais rápida. E que permite que o Judiciário se ocupe de processos mais complexos", explicou Domingues.

O ministro considera que esse entendimento chegou às faculdades de Direito, que acordaram para a importância da solução consensual e já começam a oferecer matérias que tratam da prática.

"A gente espera que isso se dissemine, porque é algo que é necessário mesmo para a própria sobrevivência do advogado no futuro. Conciliação e tecnologia: sem essas duas ferramentas o advogado provavelmente não vai conseguir sobreviver no mercado."

Por fim, Domingues disse que há espaço para a conciliação em todos os tribunais, inclusive nos superiores. "Isso pode ser realizado de uma maneira institucional, com a participação de grandes litigantes, sejam públicos, sejam privados, de maneira que o alcance das conciliações alcançadas acabe se disseminando para os tribunais do país inteiro."

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 07.06.23

'Menos juridiquês': o projeto que defende linguagem simples para Justiça ser mais democrática

Linguagem mais simples aproxima as pessoas da Justiça


Ei Thêmis! Fala claro e simples que eu te entendo.

Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente.

São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: "cônjuge supérstite" é o mesmo que viúvo, "hialinamente" quer dizer "claramente".

Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais - em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados.

É o famoso "juridiquês" - uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais.

O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos. O problema não uso desses termos técnicos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever - nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário.

Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral.

"Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade", diz o conselheiro do CNJ Mário Maia.

"E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível - a linguagem é uma delas."

"Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender."

Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de "traduzir" o processo para quem não é da área.

"Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo", diz Maia.

"Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico."

Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele.

O acesso à Justiça ainda é muito restrito no Brasil

Linguagem simples

O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem.

"Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível", defende Maia.

Essa "tradução" seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio - acessível por QR Code, por exemplo - pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler.

"Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler", diz Maia.

"Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção."

A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro.

Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável.

"Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender", diz Maia. "Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo."

A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal - é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios.

"É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil", diz Maia.

A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras.

"Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos", diz.

Letícia Mori, originalmente, de S. Paulo - SP para a BBC News Brasil, em 06.06.23. (Twitter,@_leticiamori)

terça-feira, 6 de junho de 2023

O arriscado ‘negócio da China’

Programa chinês para financiar projetos mal planejados e possivelmente explorados por corruptos locais na África, Ásia e América Latina ameaça asfixiar países em desenvolvimento

Em 2013, o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou um vasto programa de financiamento de infraestrutura em economias emergentes. A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), disse ele, era o “projeto do século”. Com efeito, a China se tornou o maior credor bilateral do mundo, especialmente para os países em desenvolvimento, eclipsando até o Banco Mundial e o FMI. Dez anos depois, as falhas no programa – incluindo a sua opacidade, gerenciamento de risco insuficiente e a participação de algumas das nações devedoras menos confiáveis do mundo – estão forçando Pequim a uma operação para apagar incêndios, com o risco de precipitar uma “crise da dívida do século” para o mercado emergente.

A China financiou projetos de infraestrutura em dezenas de países, desde ferrovias na África, portos na Ásia e estradas na América Latina, que, somados, beiram US$ 1 trilhão. Os críticos chamaram a iniciativa de “diplomacia de armadilha da dívida”, para forçar os devedores a ceder ativos estratégicos, como portos e minas. Uma vez que os termos e condições dos empréstimos são sigilosos, é difícil avaliar se e até que ponto foi esse o caso. Especialistas apontam que os empréstimos vêm de dúzias de bancos espalhados pelo país e são aleatórios demais para serem coordenados de cima. De acordo com o centro de pesquisas AidData, do College of William and Mary, na Virgínia, os contratos iniciais estavam em linha com os preços de mercado. Na maioria dos casos, os bancos chineses não exigiam dos tomadores de empréstimo a penhora de ativos físicos. No entanto, os bancos chineses exigiam que os países mantivessem uma conta separada a ser tomada ou bloqueada em caso de disputa, o que, somado às condições de confidencialidade, tornava difícil para outros credores e os próprios cidadãos desses países monitorar as condições financeiras do governo.

Já no final da década passada, o pagamento das dívidas começou a escassear. Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, os riscos de calotes se multiplicaram. Novos empréstimos foram feitos pela China, mais para evitar novos calotes, especialmente na África, do que em novos projetos. Esses empréstimos, segundo o Kiel Institute for the World Economy, tomaram novas formas. Eles seguem opacos, mas, além disso, comportam juros inusualmente altos. De resto, não são canalizados para todos os participantes da BRI, mas exclusivamente para os que representam riscos para os bancos chineses. É difícil contornar a suspeita de agiotagem em escala internacional.

Obviamente, os países estrangulados pelo garrote chinês não são meras vítimas inocentes. É mais do que plausível supor que boa parte dessas obras foi feita sem planejamento adequado e se tornou campo fértil para esquemas de corrupção das elites locais. Mas o fato, como disse o premiê alemão, Olaf Scholz, é que “há um perigo sério de que a próxima grande crise do Sul Global seja alavancada pelos empréstimos que a China distribuiu pelo mundo”.

Esforços do G-20, do qual a China faz parte, para criar um “Quadro Comum” de reestruturação da dívida provaram-se letra morta. A cooperação exigiria compartilhar informações, mas a China prefere conduzir suas negociações em privado, frequentemente exigindo pagamentos em commodities ou seus ganhos futuros, e “furando a fila” dos outros credores.

“Na minha visão, nós temos de arrastá-los – mas talvez esse termo seja rude. Nós precisamos caminhar juntos”, afirmou a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, a respeito da China. “Porque, se não o fizermos, haverá catástrofe para muitos, muitos países.”

É do interesse de todo o mundo, incluindo Pequim, criar um sistema eficiente de resolução de dívidas e empréstimos emergenciais para conter a crise dos mercados emergentes que se avizinha. Em alguns casos críticos, como na Zâmbia ou Sri Lanka, a China chegou a cooperar com o FMI em pacotes de resgate. Mas, para ampliar essa cooperação, será indispensável que os credores chineses tragam à luz os termos de seus empréstimos e aceitem soluções multilaterais equânimes para todos os credores.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.06.23

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Três vezes Brasil

O País hoje: uma mediocridade política só comparável, no passado, às ‘ditaduras estaduais’, uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte e uma sociedade desordeira

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse.

 “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazerpolítico, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, exescravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos. 

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio-diretor da Augurium Consultoria. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.06.23

Ministros alemães buscam mão de obra qualificada no Brasil

Annalena Baerbock, do Exterior, e Hubertus Heil, do Trabalho, querem atrair enfermeiras e enfermeiros para compensar falta de profissionais na Alemanha. Cooperação sobre clima e paz também na agenda de encontros.


O ministro alemão do Trabalho, Hubertus Heil, e a ministra alemã do Exterior, Annalena Baerbock, falam com jornalistas em frente à sede do Itamaraty, em Brasília (Foto: Annette Riedl/dpa/picture alliance)

Os ministros alemães do Exterior, Annalena Baerbock, e do Trabalho, Hubertus Heil, chegaram ao Brasil nesta segunda-feira (05/06), como parte de uma iniciativa oficial visando trazer profissionais brasileiros da área de saúde para trabalharem em seu país.

Com duração total de seis dias, a viagem pela América Latina para recrutamento de mão de obra qualificada prosseguirá pela Colômbia e Panamá. "Enfermeiras/os brasileiras/os e eletricistas colombianos já são recebidos de braços abertos na Alemanha. Queremos ampliar essa parceria", declarou Baerbock.

No seu primeiro dia em Brasília, ela se encontrou com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Em declaração conjunta, as chefes de pasta acentuaram a vontade de seus países de avançarem lado a lado na política climática.

Melhores salários e condições: uma meta comum

Segundo a Agência Federal de Trabalho da Alemanha, há no país "uma óbvia falta de profissionais de cuidados", com três vagas livres para cada enfermeira em busca de emprego. E a Fundação de Proteção dos Pacientes alerta que nos próximos anos se aposentam 500 mil funcionários de hospitais clínicas e ambulatórios.

Em contrapartida, o Brasil conta com 2,5 milhões de cuidadoras/es formada/os, e em 2021 a taxa de desemprego no setor era de 10%, registra o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Ainda assim – e apesar de o Brasil ser o principal parceiro comercial da Alemanha na América Latina – Heil afirmou que menos de 200 enfermeira/os brasileira/os estão atuando atualmente em seu país. A Agência Federal de Trabalho calcula que será possível contratar até 700 profissionais por ano.

Em visita ao curso de enfermagem da Universidade Católica de Brasília, Heil pronunciou-se a favor do aumento da imigração, ressaltando que em ambos os países é necessário melhorar as condições de trabalho e salariais para a classe.

A pró-reitora acadêmica da universidade, Adriana Pelizzari, mostrou-se aberta para o intercâmbio de estudantes e cooperação na pesquisa – em que a Universidade de Göttingen está interessada, de acordo com o ministro alemão.

Juntamente com o ministro brasileiro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, Heil assinou uma declaração de intenção pela "imigração justa", com o fim de criar estruturas mais simples para incentivar o intercâmbio de mão de obra.

Unidos no clima, descompasso na guerra da Rússia
Antes de iniciar o giro pela América Latina, Baerbock definira a região como "parceira natural da Europa", que "nem mesmo um oceano pode separar": "Muito nos une: vivemos em democracias, somos próximos culturalmente e lutamos por um sistema internacional baseado em regras e direitos humanos."

Marina Silva cumprimenta Annalena BaerbockMarina Silva cumprimenta Annalena Baerbock
Baerbock também reuniu-se com Marina Silva e ambas reforçaram intenção de avançarem lado a lado na política climáticaFoto: Kira Hofmann/photothek/IMAGO
"Isso vale tanto para a Colômbia e Panamá quanto para o Brasil, nosso parceiro estratégico que ocupará a próxima presidência do G20", acrescentou, frisando a intenção do governo de Luiz Inácio Lula da Silva de contribuir para a solução dos desafios globais mais urgentes, pois "sem a América Latina não será possível aliviar a crise climática”.

Quanto ao desmatamento na Amazônia por queimadas e exploração madeireira: "Isso afeta a todos nós: se as árvores continuarem caindo, todo o ecossistema entrará em colapso. Por isso, compartilhamos da ambição do presidente Lula de oferecer perspectivas a quem vive próximo à selva, não contra a selva, mas com ela."

A chefe da diplomacia alemã acrescentou: "Estamos unidos na nossa firme convicção de que só pode haver prosperidade se a liberdade e a paz prevalecerem. Embora ocasionalmente, como na guerra de agressão russa contra a Ucrânia, tenhamos perspectivas diferentes." Por esse motivo, é "tão importante que países como o Brasil também ergam sua voz pela imposição do direito internacional", reforçou Baerbock.

Publicado originalmente por Deustche Welle Brasil, em 05.06.23

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Lula e Maduro, o amor é lindo

Narrativa é uma história que cada um conta como quer e cuja veracidade depende de quem a escuta

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro em Brasília - (Ueslei Marcelino - 29.mai.23/Reuters)

Entre as várias besteiras que tem cometido em vez de dedicar-se a reconstruir o país, Lula embarafustou-se por uma mixórdia verbal na segunda-feira (29) ao receber em palácio um convidado que entrou em surdina, quase que pelos fundos e sem limpar os pés: o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Lula chamou de "narrativa" as acusações que pesam sobre Maduro e sua maneira de tratar os opositores —com prisões, sequestros, desaparecimentos, afogamentos, tortura, estupros e execuções, tudo isso possibilitado por asfixia da imprensa, degola do Poder Legislativo, pesada corrupção de militares e eleições de araque.

Esse é o violento diagnóstico contra Maduro pela Anistia Internacional, a Human Rights Watch, a Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional de Haia, entidades a que apelamos contra Bolsonaro por incitação a golpe de Estado, charlatanismo na pandemia e genocídio dos povos indígenas. Não por acaso, Bolsonaro também chamou a isso de "narrativa".

Narrativa, como se vê, é uma história cuja veracidade depende de quem a conta —ou de quem a escuta. Lula instou Maduro a "construir sua narrativa, para que possa efetivamente fazer as pessoas mudarem de opinião". Jurando por essa narrativa antes mesmo de ouvi-la, carimbou: "A sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contra você". O amor é lindo, não?

E então vem a mixórdia verbal: "Está nas suas mãos construir a sua narrativa e virar esse jogo, para a Venezuela voltar a ser um país soberano, onde somente seu povo, por meio de votação livre, diga quem vai governar o país".

Pois não é exatamente o que o mundo espera da Venezuela? Que volte a ser um país soberano, onde somente o povo, através de eleições livres, sem as mentiras, as gambiarras econômicas e o uso da máquina do Estado praticados por Bolsonaro, digo Maduro, escolha quem irá governá-lo.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 31.05.23, às 7h30.

Lula se julgou senhor dos senhores, mas vem colecionando malfeitos

Presidente dá a impressão, neste início de mandato, de que foi tomado por uma espécie de síndrome de onipotência

 (Foto: Wilton Junior/Estadão)

Desde Hesíodo, sabemos que o castigo é cruel. O titã Prometeu se julgou tão poderoso que roubou o fogo do céu. Foi punido por Zeus, que o acorrentou a um rochedo onde águias vinham comer-lhe o fígado.

Lula ganhou uma eleição apertada, mas se julgou senhor dos senhores. Por conta disso, vem colecionando malfeitos.

(Emendômetro: Lula já pagou mais de R$ 5 bilhões em emendas, mas Congresso cobra mais)

Governo libera verbas do orçamento secreto deixadas por Bolsonaro e dá mais recursos para acalmar parlamentares; deputados e senadores exigem maior controle sobre verbas

Achou-se em condições de mediar a paz no coração da Europa em uma guerra que tem raízes milenares. Na cúpula do G-7, chegou a condenar a invasão de países vizinhos pela Rússia e depois quis que a Ucrânia aceitasse entregar território ocupado nessas condições, em troca de uma paz incerta. Foi ignorado. Também no G-7, entendeu que devia dar um pito no Fundo Monetário Internacional (FMI), por não atender aos reclames da caloteira Argentina. Também foi ignorado.

No encontro dos presidentes da América do Sul, tentou ressuscitar a Unasul, um clube marcado pela ideologia, mas não obteve sucesso. Recebeu o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, com salamaleques e honras militares. Em seguida, expôs a teoria de que ditadura e democracia são questões de narrativa: os fatos se submetem a quem consegue impor a versão desejada.

Internamente, certos problemas começaram quando o presidente Lula deixou o “exército do Stédile” solto para invadir terras e ainda o presenteou com sua companhia na viagem à China. Foi o que bastou para que as águias do agronegócio avançassem sobre seu fígado.

O esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e Mudanças do Clima e dos Povos Indígenas veio em seguida, até mesmo com o voto dos petistas, que tiveram de conformar-se com perder menos. O projeto que define um marco temporal para demarcação de terras indígenas passou na Câmara por falta de empenho do governo para rejeitá-lo. E o governo corre contra o tempo e distribui emendas e cargos para aprovar a MP de organização dos ministérios ou o Executivo volta a ter a estrutura do governo Bolsonaro.

O anúncio do “Novo Carro Popular” foi cabal demonstração de amadorismo político. Foi tanto uma decisão quanto uma elaboração açodada, baseada em renúncia fiscal, cujo único objetivo é esvaziar os pátios lotados das montadoras. Até agora não se sabe nem quanto vai custar nem quanto tempo vai durar. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que não ultrapassará “três ou quatro meses”. O secretário do Desenvolvimento Industrial, Uallace Lima, fala em “até um ano”. É um programa que vai na contramão do objetivo principal da Fazenda, que é eliminar subsídios e perdas de arrecadação.

E tem outras coisas importantes a serem decididas, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária.

Falta um Hércules para livrar Prometeu do seu suplício. Mas, antes, ele precisa se dar conta que não pode tudo, especialmente não pode enganar-se a si próprio. Fatos são fatos, versões são versões.

Celso Ming, o autor deste artigo, é comentarista de economia n'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 01.06.23

Agressão a jornalistas no Itamaraty exige mais que protesto contra Maduro

Truculência dos seguranças do ditador da Venezuela contou com apoio de profissionais brasileiros

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro (Sérgio Lima/AFP)

Em qualquer democracia, é inaceitável que jornalistas sejam agredidos em pleno exercício da profissão. Pior ainda quando a agressão é cometida por agentes de um país estrangeiro em território nacional, em parceria com integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Foi o que aconteceu na terça-feira no Palácio Itamaraty, em Brasília, durante entrevista do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Entre as vítimas, a repórter Delis Ortiz, da TV Globo, levou um soco no peito.

“É lamentável que, após todos os casos de violência contra repórteres brasileiros que faziam a cobertura em Brasília nos últimos anos, um episódio semelhante se repita”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech. “Esperamos que os compromissos públicos de apurar as responsabilidades e evitar que tais agressões jamais ocorram novamente se tornem realidade daqui para a frente.” ANJ, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) emitiram notas de repúdio contra o episódio.

No último ano do governo Jair Bolsonaro, as agressões físicas a jornalistas cresceram 38%, segundo pesquisa da Abert. Entre janeiro e dezembro de 2022, houve 47 episódios envolvendo 74 repórteres. Os alvos mais frequentes foram profissionais da televisão. Dois jornalistas foram mortos, o mais conhecido deles, Dom Phillips, assassinado na Amazônia. Com a derrota da extrema direita em outubro, muitos acharam que a hostilidade do público e de agentes de segurança contra a imprensa diminuiria. Por isso a surpresa com o comportamento dos seguranças brasileiros.

Dos que cercam o ditador Maduro não se esperava nada distinto. A Venezuela ocupa a 159ª posição entre os 180 países do ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteira. Depois de assumir o poder em 2013, Maduro adotou postura ainda mais autoritária que Hugo Chávez diante do jornalismo profissional. Um jornalista chegou a ser preso durante entrevista com ele em 2019 no Palácio de Miraflores, sede do governo. Prisões arbitrárias são corriqueiras. Nesse capítulo, a Venezuela não está longe da Rússia de Vladimir Putin.

A promessa do governo brasileiro é “apurar responsabilidades”. Pela gravidade do ocorrido, é pouco. É urgente punição exemplar para os agressores. Não há imagens do momento da agressão, mas há várias testemunhas da truculência dos seguranças, capazes de apontar quem praticou os atos violentos. É preciso haver treinamento de todos os demais para evitar que tais cenas se repitam. Por fim, mas não menos importante, o governo Lula deveria pensar duas vezes antes de voltar a receber ditadores como o venezuelano em solo brasileiro.

Editorial de O GLOBO, em 01.06.23

Maduro no Brasil: 'Declarações de Lula foram tapa na cara dos venezuelanos', diz Capriles, líder da oposição na Venezuela

Candidato para as presidenciais de 2024 na Venezuela, Henrique Capriles afirmou que o presidente, após defender que há "narrativa antidemocrática no país vizinho", deve decidir de que lado está

Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016  (André Coelho / O Globo)

A visita do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, ao Brasil e, sobretudo, as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o país, causaram profundo mal-estar entre líderes da oposição venezuelana. Em entrevista ao GLOBO, o ex-candidato presidencial Henrique Capriles, que pretende disputar novamente a Presidência do país em 2024, afirmou que as falas de Lula foram "infelizes" e "um tapa na cara de milhões de venezuelanos", sobretudo dos setores mais vulneráveis e entre os que tiveram de abandonar o país para sobreviver. Ao receber Maduro com pompa na segunda-feira em Brasília na véspera de uma cúpula de líderes sul-americanos, Lula chamou o encontro de "histórico", responsabilizou os EUA pela derrocada econômica venezuelana e disse que as acusações de que a Venezuela não vive sob uma democracia são uma "narrativa".

"Gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês", afirmou Capriles, que nas eleições de 2013, as primeiras após a morte do presidente Hugo Chávez, foi derrotado por Maduro por menos de dois pontos percentuais (50,61% contra 49,12%), resultado questionado até hoje por setores da oposição.

Como o senhor analisa a visita de Maduro ao Brasil?

Bom, Maduro estava exultante por poder estar no Brasil. Ele funciona assim, sempre com dezenas de funcionários e sempre tentando mostrar que é muito bem recebido onde vai. Mas nada disso melhora sua imagem perante os venezuelanos.

Qual a sua opinião sobre as declarações do presidente Lula sobre a Venezuela e sobre Maduro?

Para mim, as declarações de Lula foram infelizes, absolutamente infelizes. Aqui não se trata de um tema de discurso. É preciso mexer no tabuleiro político, mas isso não significa desconhecer o problema que a Venezuela vive, em matéria econômica, social, direitos humanos e uma longa lista de problemas. Que Lula diga que a situação da Venezuela é um discurso repetido no exterior, e que a realidade da Venezuela não é a que se diz, isso é uma declaração infeliz e que merece a rejeição dos venezuelanos.

Lula vem da luta dos trabalhadores, e eu gostaria de perguntar a ele sua opinião sobre os milhões de venezuelanos que tiveram de sair do país. O Brasil não é um dos países que mais recebem venezuelanos que sofrem a migração forçada, então eu diria a Lula que desse uma volta na Colômbia, Equador, Peru. Os venezuelanos nunca foram um povo que emigrava para outras terras, então, por que existem tantos venezuelanos espalhados pelo mundo? A resposta é porque não podem ter na Venezuela um trabalho estável, bem pago, para poder comer, pagar um remédio, porque o sistema de saúde pública não te dá. Gostaria de saber a opinião de Lula sobre tudo isso.

Também gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês. Um litro de gasolina custa US$ 0,50. Se você vier a Caracas, verá carros importados, lojas com produtos importados, e tudo isso é consumido pelos funcionários de alta hierarquia do governo. Tudo isso é transportado em barcos, ou seja, não existe bloqueio na Venezuela.

O que opina Lula sobre isso? O que opina Lula sobre os venezuelanos que atravessam o Darién [selva na fronteira entre Panamá e Colômbia], sobretudo jovens, porque não têm possibilidade de se sustentar em seu país? De que lado está Lula? Do lado de Maduro, ou do lado do sofrimento dos venezuelanos? Sobre as sanções, podemos abrir um debate sobre se são eficientes ou não. Mas esta crise é responsabilidade de Maduro. De que país está falando Lula?

Como foram recebidas as declarações do presidente brasileiro na Venezuela?

Acho que Lula não entendeu que os tempos mudaram. A retórica da época em que eram presidentes [o equatoriano Rafael] Correa, Cristina [Kirchner, da Argentina], Lula, Evo [Morales, da Bolívia], [o venezuelano Hugo] Chávez, que era um permanente confronto com os que estivessem em desacordo com eles, dividiu seus países. O Brasil é um país dividido. Lula, pelo visto, não entendeu o que aconteceu na Venezuela. Não sou extremista, mas sua declaração foi infeliz. Lula foi eleito democraticamente, como [o colombiano Gustavo] Petro, [o chileno Gabriel] Boric, [o uruguaio Luis] Lacalle Pou. Onde não houve eleições democráticas na América do Sul? Na Venezuela.

Quem está apegado a uma retórica é ele, Lula, com desconhecimento sobre nossa realidade. Foi um tapa na cara nos milhões de venezuelanos que estão espalhados pelo mundo. Você sabe a dor que significa para a família venezuelana, os pobres, os avós que ficaram com seus netos, enquanto seus filhos trabalham em outros países? Esses venezuelanos vivem graças a remessas que chegam do exterior e já totalizam cerca de US$ 4 bilhões. Lula não percebeu isso? O que defende Lula, o status quo representado por Maduro ou a possibilidade de que a Venezuela possa se estabilizar economicamente?

Fontes do governo Lula informaram que o presidente brasileiro disse a Maduro, numa reunião fechada, que a eleição presidencial de 2024 deve ser competitiva, justa e transparente, com participação da oposição e observação internacional. Para a oposição que o senhor integra, Lula continua sendo um ator externo importante que poderia contribuir com o processo eleitoral?

Essa pergunta quem deve responder é Lula. Nós já dissemos até o cansaço que os venezuelanos acreditam no voto, somos democratas, acreditamos na expressão democrática do voto. Mas a democracia não é apenas votar. Eu votei nas últimas eleições, defendi voltar ao caminho eleitoral, estou nessa luta desde 2020. Fui crítico do governo interino [de Juan Guaidó], porque no caminho perdeu sua razão de ser e o objetivo de ter eleições, porque parece que nunca acreditaram na bandeira eleitoral.

A eleição deve ser competitiva e servir para que a Venezuela resolva sua crise política. Não pode ser uma eleição manipulada, como foi em 2018. Espero que essa luta nos aproxime de presidentes eleitos democraticamente, que lutem para que a Venezuela tenha uma solução democrática. Mas Lula só só faltou dizer que aqui existe uma campanha midiática, não correspondente com a realidade. Campanha midiática é a que sofremos todos os dias nos canais públicos, que ignoram os problemas do país. Segundo eles, não acontece nada na Venezuela. São campanhas de desinformação permanentes.

Convido Lula a estar do lado da solução, e não do problema. Esperamos do Brasil, e da região, ajuda, não ingerência, que facilitem o caminho para termos uma eleição democrática e também para a recuperação do país, que hoje é o mais desigual do continente.

A porta de diálogo com o governo Lula continua aberta?

Nós nunca nos negaremos a falar com alguém que queira ajudar o país. Não tenho preconceitos, nem uso cortinas ideológicas.

Nos últimos tempos, alguns economistas apontaram uma melhora dos indicadores econômicos do país...

A situação social é catastrófica, a ajuda do governo aos mais pobres é precária. Não se cria emprego. Depois da queda forte durante a pandemia, houve uma recuperação esperada, alguns empresários fizeram alguns investimentos, e o que Maduro fez foi não os assediar. Suspendeu a política de confisco e expropriação, que reinou no passado, na época da bonança petroleira. Como destruíram a estatal Petróleos da Venezuela, entenderam que não podiam continuar assediando o setor privado. Mas no primeiro trimestre deste ano, o consumo caiu 30%, a inflação caiu como consequência da queda do consumo, da retração da economia, e os números são muito negativos. Alguns são mais otimistas, continuam apostando, e eu digo que são heróis. Por isso digo que o país tem futuro.

Qual é sua expectativa sobre o processo de diálogo entre governo e oposição no México?

O processo de negociação está paralisado. Os Estados Unidos poderiam ajudar para que o processo possa ser retomado.

Como os EUA fariam isso?

A expectativa que existia sobre a administração [Joe] Biden era de que as políticas do governo de [Donald] Trump sobre a Venezuela fossem revisadas, porque essas políticas não deram certo. Ficar preso nisso é um erro. Não significa ignorar as violações dos direitos humanos, pelo contrário. Significa ver a situação que vive o povo venezuelano e liderar soluções para o povo venezuelano. Discursos são discursos, e o país precisa de soluções. A administração Biden tem um peso importante sobre a negociação no México.

O senhor pretende ser candidato nas eleições presidenciais de 2024?

Eu fui inabilitado pelo regime de Maduro, sou um dos inabilitados. Quase todos estamos nessa condição. Decidi concorrer, pela causa dos venezuelanos, principalmente os mais vulneráveis. Ainda não sabemos como serão as primárias. Se haverá uma primária ampla, aberta, ou mais fechada. Uma primária mais fechada iria contra minha luta de todos estes anos, a favor de uma Venezuela inclusiva.

A Venezuela precisa de um governo profundamente popular, que atenda a gigantesca dívida social que temos. Depois dos bilhões de dólares que entraram no país, hoje estamos numa situação de caos econômico e social. E isso não tem a ver com as sanções, a destruição econômica do país é responsabilidade do governo. As sanções devem ser revisadas, não ajudaram a mudar as coisas no país. Mas a destruição começou antes das sanções. No Brasil, até doamos dinheiro para uma escola de samba. Bilhões de dólares dados de presente.

Se o senhor ganhar a primária, poderá ser candidato?

Bom, isso forma parte da discussão das condições eleitorais. Para que uma eleição seja legítima e competitiva não podem existir políticos inabilitados. Petro estava inabilitado e teve uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos que foi respeitada pelo Estado colombiano. Eu também tenho uma decisão favorável a mim, adotada antes da Venezuela sair da comissão. O problema é que Maduro não respeita essas decisões, como não respeita as leis e a Constituição, porque na Venezuela não temos uma democracia.

O regime de Maduro continua violando os direitos humanos?

As organizações de defesa dos direitos humanos são permanentemente assediadas pelo governo. O acesso a informações oficiais é muito difícil. Temos exemplos, inclusive de amigos próximos como Fernando Albán, que foi atirado de um dos andares do prédio do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), na Praça Venezuela. Ele é um dos casos em mãos do Tribunal Penal Internacional (TPI). E se as pessoas chegaram até o TPI é porque não encontraram Justiça em seu país. E a Justiça na Venezuela não melhorou. As mudanças na Corte Suprema foram cosméticas. O problema de fundo continua existindo. E sobre isso, pergunto a Lula: você acredita ou não na defesa dos direitos humanos? Se você é um democrata, não podem existir nuances.

Janaína Figueiredo, correspondente, de Buenos Aires (Argentina) para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23.

O bicho

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático

Congresso empareda governo e dificulta aprovação de projetosCongresso empareda governo e dificulta aprovação de projetos Brenno Carvalho / Agência O Globo

Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Nada melhor para definir a situação política do governo hoje que o título da peça de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, de 1966. Não havia saída. A decisão da Câmara, já tomada, de alterar a estrutura organizacional imaginada pelo presidente eleito é um duro golpe político, uma intromissão indevida que deveria ser contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas Lula não tem apoio político para tanto.

Obrigar um governo de esquerda a se organizar dentro do conceito de extrema direita, esvaziando as políticas públicas do meio ambiente e indigenista, fazendo desaparecer ministérios como Planejamento e Cultura, já é uma sublevação, negação do que o eleitorado de centro democrático aprovou nas urnas, embora por pequena margem, que sugeria que o governo saído dela fosse de união nacional.

Não é — e por culpa de Lula. O Congresso está, como sempre esteve, no conservadorismo. Ao contrário, o governo montado até agora é um simulacro de união nacional, na verdade uma hegemonia da esquerda, principalmente do PT. Enquanto os partidos de centro-direita reagem rejeitando as políticas esquerdistas, mesmo as necessárias como as ambientais, o governo acelera na direção da esquerda, e a distância entre os espectros políticos se amplia.

O governo Lula não está agindo com presteza para aprovar suas teses no Congresso; só se preocupa quando perde. A negociação do marco temporal deveria ter sido feita há muito tempo, especialmente depois da derrota das políticas indigenistas. Não quer dizer que a disputa se dê apenas no campo ideológico, mas esse fator é a grande diferença entre Lula 3 e Lula 1 e 2. Naquele tempo em que Lula era quase imbatível, os partidos de centro ou centro-direita se contentavam com as migalhas do mensalão e do petrolão. E que migalhas.

Hoje continuam querendo as migalhas milionárias das emendas e fundos financeiros, mas querem mais. Acostumaram-se a definir as políticas públicas durante o período em que Bolsonaro rendeu-se à maioria de que sempre fez parte: o Centrão. Bolsonaro tentou fazer política pessoal, jogando seu prestígio contra as estruturas partidárias, e deu com os burros n’água. Docemente constrangido, aderiu ao que era seu passado político no baixo clero e dedicou-se apenas a montar um golpe ditatorial.

Lula gostaria de controlar as emendas parlamentares, controlando assim o Congresso, e de cuidar de um governo com fortes cores de esquerda. Uma das queixas dos líderes rebelados contra o governo é que as emendas são negociadas individualmente, assim como Bolsonaro tentou negociar com “bancadas suprapartidárias”, esvaziando as lideranças. O resultado está aí.

Na Câmara, toda vez que quer negociar, o governo tem de dar algo em troca. Quanto mais difícil a aprovação, mais caro fica. Os deputados estão emparedando o governo e não querem conversa. Os dois lados estão assim. Se Lula tivesse feito realmente um governo de união nacional, de forças partidárias equivalentes, esse problema não estaria acontecendo.

O Congresso está claramente resolvido a aprovar só o que considera de interesse do país, como fez com o arcabouço fiscal, mas, quando a disputa é ideológica, vence a direita, que domina o debate. Cada vez que Lula mexe com ideologia, como aconteceu dias atrás na vergonhosa recepção ao ditador venezuelano Nicolás Maduro, mais atiça a direita no Congresso, que mostrará força para derrotar o governo.

A direita, que tinha vergonha de existir quando Lula e Dilma governaram, agora não tem mais. Foi avançando com Temer e fez um strike com Bolsonaro, sem possibilidade de controle. Lula só ganhou a eleição porque o eleitorado de centro se decepcionou com Bolsonaro. Na campanha, fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 01.06.23

Em menos de 6 meses, Lula enfrenta tempestade perfeita

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala no Palácio do Itamaraty, em Brasília, após reunião com presidentes da América do Sul. (Brenno Carvalho/O Globo)

Não havia dúvida em Brasília de que Luiz Inácio Lula da Silva enfrentaria testes de estresse com o Congresso Nacional, nem de que o resultado seria decisivo para seu governo. Quem analisava a discrepância entre o discurso de campanha e a prática das gestões petistas também podia prever, sem grande dificuldade, que em algum momento a “frente ampla” formada para derrotar Jair Bolsonaro começaria a claudicar.

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.

O governo ainda nem completou seis meses e, só na última semana, já foi derrotado na votação do marco temporal das terras indígenas, e sua proposta de reorganização da Esplanada dos Ministérios foi desfigurada — especialmente na área ambiental, grande diferencial de Lula, que ajudou a lustrar sua reputação de “reconstrutor” das instituições brasileiras.

Como se não bastasse, ele aproveitou um encontro de presidentes para empenhar seu capital democrático em aval entusiasmado à ditadura de Nicolás Maduro. Num discurso repleto de elogios, exortou o colega a falar para sua “imprensa livre”, como se tal coisa existisse na Venezuela. Afirmou sem corar que não é possível que o regime de Maduro “não tenha um mínimo de democracia”.

Calou-se quando os seguranças do Planalto agrediram a repórter Delis Ortiz em meio à confusão provocada pela tentativa de blindar Maduro do acesso da imprensa. E acabou criticado por quatro outros presidentes latino-americanos, do esquerdista Gabriel Boric ao direitista moderado Lacalle Pou, todos reconhecendo que as violações de direitos humanos sob o regime venezuelano não são narrativa, e sim realidade.

Enquanto o mico internacional se desenrolava, na seara doméstica a coisa ficou tão desorganizada que o Palácio do Planalto chegou ao final do prazo de vencimento da MP reconfigurando toda a máquina federal sem saber com quantos votos poderia contar — e sem saber, portanto, quantos ministros teria no final da semana.

No Centrão, proliferavam queixas sobre verbas represadas, pedidos de cargos e chantagens variadas, mas também imperava o diagnóstico de que falta a Lula conversar com os parlamentares. “ O problema está no governo, na falta ou ausência de articulação”, resumiu o presidente da Câmara, Arthur Lira, cara e voz do Centrão.

Diante de tamanha confusão, o que mais se perguntava, tanto no Planalto quanto na oposição, era o que teria levado o presidente da República, do alto da experiência de um terceiro mandato e reconhecido pelo tirocínio político, a cometer tantos erros em série. Como Lula deixou as coisas chegarem a esse ponto?

Da mesma forma que nas tempestades perfeitas, crises assim nunca têm uma única razão ou um único culpado. Mas não estará errado quem disser que, se Lula 3.0 estivesse em plena forma, o cenário provavelmente não seria tão caótico. Tampouco estará enganado quem concluir que, assim como o Lula que assumiu em 2003 era bem diferente da campanha de 2002, não se deve esperar que o Lula de 2023 seja o dos palanques de 2022.

Quem conhece a trajetória do petista sabe que, quando se instala o conflito entre as forças econômicas e as autoridades ambientais, ele costuma desempatar a favor dos empresários. Da mesma forma, apesar de sempre ter respeitado as regras do jogo democrático em seus dois mandatos, nunca se furtou a elogiar os ditadores de países amigos.

E, se o assunto é Centrão, Lula também nunca se furtou a negociar. Em 2004, quando seu governo ficou emparedado pelo mesmo PP hoje comandado por Lira, ele baixou uma ordem na Petrobras para que se entregasse logo a diretoria que o partido queria — e foi governar. O resultado foi o petrolão, mas isso é outra história.

É claro que os tempos hoje são outros. O Centrão se acostumou a Bolsonaro, que lhes entregou o orçamento secreto e a gestão de sua articulação política, e agora quer compensar as perdas. Mas Lula também é outro.

Tem cada vez menos paciência para a política do dia a dia de Brasília e parece convencido de que atingiu um status extraordinário, como se tivesse recebido nas urnas um salvo-conduto para dizer o que pensa sem se preocupar com as consequências, ou para delegar aos auxiliares negociações complexas.

Infelizmente para Lula, o eleitorado está cada vez mais radical, mas a política de cada dia continua necessária, por mais repugnante que possa se apresentar. Negar isso não só não levará seu governo muito longe, como poderá empurrá-lo para novas crises e tempestades.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é comentarista de política d' O GLOBO. Publicado originalmente em 01.06.23.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Por que Venezuela tem dívida bilionária com Brasil — e quem paga a conta

Após oito anos, Nicolás Maduro veio ao Brasil para encontro com Lula e reunião com outros líderes sul-americanos

Lula e Maduro em Brasília (CRÉDITO,EPA)

A visita de Nicolás Maduro ao Brasil após um hiato de quase oito anos não só gerou polêmica pelas acusações que pesam contra o presidente venezuelano e pelas falas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o país vizinho, mas também pela dívida bilionária que a Venezuela tem com o governo brasileiro.

Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula.

A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).

Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil.

Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia.

Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada.

Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?".

O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos".

De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento.

Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto.

Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta?

Qual o tamanho da dívida da Venezuela?

Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões).

"Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE".

O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE).

O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais.

Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor.

O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações.

De onde vem a dívida da Venezuela?

Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação.

"As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota.

O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal.

Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros.

No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil.

Como o próprio banco explica em seu site, "nessas operações, assim como em todas as outras que o banco realiza, o BNDES desembolsa os recursos exclusivamente no Brasil, em reais, para a empresa brasileira, à medida que as exportações vão sendo realizadas".

Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso.

Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros.

Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE.

A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato.

Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES.

"Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco.

O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote".

No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal.

"Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz.

O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países.

Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015.

Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente".

"Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista.

"Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote."

Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora.

Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo.

"Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.

Luís Barrucho, de Londres para a BBC News Brasil, em 31.05.23

Lula envergonha o Brasil

Para petista, inúmeras evidências de atrocidades na Venezuela não passam de ‘narrativas’ contra o ‘companheiro Maduro’; vexame rasga de vez a fantasia da ‘frente ampla democrática’

O presidente Lula da Silva envergonhou o Brasil de uma maneira como poucas vezes se viu nos últimos tempos – e olhe que o País passou muita vergonha durante o mandato do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Depois de estender o tapete vermelho para Nicolás Maduro, pária mundial por razões óbvias, o petista declarou que o tirano venezuelano é um governante legitimamente eleito e que a Venezuela, portanto, é uma democracia exemplar.

Na opinião de Lula, todas as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”.

“Eles”, no caso, são os “nossos adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7 milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais, e não da ruína do país promovida pelo chavismo.

Não há dúvidas de que o Brasil deveria restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de 2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no Brasil.

Nada disso significa, no entanto, que o Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um “companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que, por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.

É difícil saber o que governou a decisão de Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de construir governabilidade.

Nada disso parece importar para Lula. Em seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China, junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como grande líder desse tal “Sul Global”.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.05.23

Lula tapa o sol com a peneira

 Lula pediu que fosse cobrado; pois vamos cobrá-lo


Maduro e Lula no encontro da Unasul - (Ueslei Marcelino/Reuters)

Ao ver Lula e Maduro na maior confraternização, não há como não pensar: cadê um amigo para dar um toque? Não tem. Apoiadores e aliados políticos tratam o presidente como uma criança mimada que não deve ser contrariada. Imaginam que, com o silêncio, conseguem falsear apoio irrestrito do eleitorado às ações do presidente, quando, de fato, servem de trampolim para que ele se jogue na fogueira.

Lula, por sua vez, usa a Presidência em situações delicadas para fazer seu próprio cercadinho para o militante incondicional. Sabemos o que acontece com quem governa assim. Não pegou bem nem entre os líderes no encontro de sul-americanos. O uruguaio Luís Lacalle Pou, por exemplo, estranhou o encontro bilateral antecipado e o endosso de Lula de que a crise democrática na Venezuela é "narrativa": "É tapar o sol com a mão", disse Pou.

O festerê em torno do ditador venezuelano é um vexame mundial, mas principalmente um escárnio diante dos brasileiros que só apertaram 13 contra a ameaça de que o Brasil virasse exatamente o que foi feito no país vizinho, uma ditadura. A bajulação com a qual Maduro foi recebido parece desdém em relação a um momento em que os alicerces da nossa própria democracia ainda estão fragilizados depois do último governo e sua agenda golpista.

Os eleitores preferem tapar o sol com a peneira e se calam, porque criticar Lula seria engrossar o coro da oposição, que deita e rola. Mas silenciar diante do enaltecimento de um ditador é assumir a própria falta de compromisso com o fortalecimento de nossas instituições.

Em dezembro, ao anunciar seu ministério, Lula pediu que fosse cobrado. "Não deixem de cobrar, porque se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando. Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia."

Pessoal, está liberado.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 19h15.

Mesuras ao ditador

No afã de apoiar autoritarismo da Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira

Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - (Gabriela Biló/Folhapress)

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política —mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.

Não chegaram a surpreender, portanto, as mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes da América do Sul.

Nada há de errado, do ponto de vista diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação por liberdade e direitos humanos.

Nesse sentido, a política de enfrentamento a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o discurso persecutório do vizinho.

Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a defender o regime chavista.

De acordo com o mandatário brasileiro, a caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma "narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".

Há zonas cinzentas entre uma democracia plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há muito cruzou essa fronteira. Esta Folha considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria oposicionista.

Mas o processo de degradação da democracia venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a 2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios poderes.

Maduro assumiu quando os ventos econômicos já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa crise humanitária comparável aos impactos de guerras.

No afã de defender uma esquerda arcaica, obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas. Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de cidadãos em um país devastado.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 22h00 (e-mail: editoriais@grupofolha.com.br)

Pressionado na Câmara, governo Lula bate novo recorde e libera R$ 1,7 bilhão em emendas em um dia

Autorização para pagamentos ocorreu nesta terça-feira, dia da votação do Marco Temporal na Câmara dos Deputados


Arthur Lira e LulaArthur Lira e Lula (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Em meio a uma semana conturbada nas relações com o Congresso Nacional, o governo Lula empenhou nesta terça-feira mais R$ 1,7 bilhão em emendas para os parlamentares. O governo enfrenta dias decisivos na Câmara dos Deputados, que ontem aprovou, contra os interesses do Palácio do Planalto, o PL do Marco Temporal. Nesta quarta-feira, deputados e senadores irão votar a MP da Esplanada, outro projeto prioritário para o governo, já que define a organização dos ministérios.

Essa liberação de recursos é a maior, em um só dia, de todo o governo Lula. No início de maio, o GLOBO revelou que o governo tinha realizado empenhos de R$ 700 milhões em um só dia. O governo decidiu acelerar a autorização de pagamento após a derrota na votação que derrubou os decretos de Lula sobre o Marco do Saneamento.

Boa parte do valor saiu dos cofres do Ministério da Saúde. A liberação ocorre também no prazo final programado pelo Fundo Nacional da Saúde, que executa esses pagamentos. O envio de propostas de trabalho pelas prefeituras e governos que receberam os valores terminou nesta semana.

Nesta quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu com seus principais líderes no Congresso e com os ministros da Casa Civil e das Relações Institucionais, Rui Costa e Alexandre Padilha, respectivamente. Após o encontro, o presidente ligou para Arthur Lira, presidente da Câmara. Na conversa, segundo interlocutores do parlamentar, Lira reclamou de dificuldades na articulação do governo. Há a possibilidade de os dois se reunirem ainda hoje.

Incômodos de Lira

Na conversa com o presidente, Lira também relatou incômodo com ataques que tem recebido do senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado do Planalto, nas redes sociais. Os dois são adversários políticos em Alagoas. O presidente da Câmara disse ser preciso "respeito" na política.

A ligação de Lula ao presidente da Câmara acontece na véspera de os deputados votarem a Medida Provisória que reestruturou os ministérios do governo. O texto foi alterado pelo relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), esvaziando as pastas do Meio Ambiente e Povos Indígenas.

Dimitrius Dantas, de Brasília - DF, para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Política externa de Lula tem tom passadista

Presidente brasileiro teve de ouvir, ‘em casa’, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric

Lula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privadaLula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privada Brenno Carvalho/Agência O Globo

Em poucas áreas o governo Lula dá tantos sinais de envelhecimento de ideias quanto em política externa. Aguardado por governos do mundo todo e de diferentes matizes políticos com a expectativa de uma nova fase de inserção global do Brasil graças às novas diretrizes, sobretudo concernentes à política ambiental, o presidente decidiu tomar o caminho, também nesse front, de revisitar um passado que a ele parece mais glorioso que aos que olham de fora. O resultado tem sido frustração e um grande grau de constrangimento.

Depois do vaivém retórico relativo à possibilidade, nunca transformada num plano de ação factível, de que o Brasil liderasse um grupo de países para buscar o fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que teve no desencontro com Volodymyr Zelensky no Japão um último capítulo meio pastelão, Lula resolveu usar uma cúpula de que era anfitrião para lustrar a biografia de Nicolás Maduro e reescrever a História atual da Venezuela, produzindo justamente aquilo que apontou nos críticos ao ditador vizinho: uma narrativa falsa.

O resultado não poderia ser mais embaraçoso. Lula teve de ouvir, “em casa”, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric. Não há nem espaço para que se dê de ombros para a admoestação de Lacalle Pou, pela simplificação de que se trata de um político de direita: as frases duras de Boric frustraram essa saída, sempre conveniente.

O episódio evidencia que, nos sete anos em que esteve longe do poder, o PT perdeu a oportunidade de promover uma atualização da sua diretriz de política externa. Não para se tornar menos progressista ou deixar de ser um partido de esquerda.

Mas para travar contato com e se aprofundar no que a esquerda progressista mais moderna professa em termos de defesa da democracia sem alinhamentos ideológicos automáticos e de prevalência de agendas como a ambiental sobre outras que fizeram mais sucesso no século XX, às quais o presidente brasileiro e seu entorno para temas internacionais permanecem atados.

Boric faz parte dessa nova safra de políticos de esquerda, para os quais não apenas não é tabu chamar ditadores do “mesmo campo” por aquilo que são, como também é necessário diante da ameaça de autocratas de extrema direita em várias partes do mundo. Para ter legitimidade, coerência e sobretudo inteligência para lidar contra o avanço desses ditadores, é preciso não estar comprometido com outros que apenas trocam o garfo de mão.

E, vamos e venhamos, chega a ser difícil mesmo por qualquer viés chamar Maduro ou o ditador nicaraguense Daniel Ortega de políticos progressistas ou de esquerda, dadas a perseguição a inimigos políticos, a violação sistemática de direitos humanos, a opressão a povos originários e a grupos como mulheres e comunidades LGBTQIA+ nos dois países e noutras ditaduras camaradas.

Enquanto insiste em tirar do armário uma roupa cheia de naftalina que, como cantou Belchior, não nos serve mais, Lula vai perdendo também seu grande passaporte para ser o líder que almeja aos olhos do mundo: o protagonismo na agenda verde.

O avanço do Congresso e de setores do próprio governo sobre o Ministério do Meio Ambiente e sobre a política voltada aos povos indígenas tem o potencial de levar o Brasil de volta à condição de pária internacional que gozou nos anos Jair Bolsonaro e de evidenciar a contradição entre o discurso enfático da campanha e a ação dúbia da gestão.

É preciso calcular melhor o poder de estrago das falas de Lula em temas de política externa, sob pena de queimar muito cedo o cacife que ele reuniu ao vencer, que pode, mesmo, ser um ativo importante para ele e para o Brasil. Um chefe de Estado não deve confiar apenas no passado e em sua intuição para falar de temas complexos. Porque aí quem produz narrativas vazias é ele.

 Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Com oito palavras, Boric desmontou discurso de Lula sobre Venezuela

Presidente teve chance de se corrigir, mas insistiu em negar fatos para defender Maduro

O chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em BrasíliaO chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em Brasília (Evaristo Sá / AFP)

Gabriel Boric tem 37 anos. É o presidente mais jovem da América do Sul. Quando nasceu, em fevereiro de 1986, Lula já iniciava sua segunda campanha. Nove meses depois, seria eleito o deputado mais votado da Assembleia Constituinte.

A julgar pela experiência de cada um, o brasileiro teria lições a dar ao chileno. Não foi o que ocorreu na cúpula de ontem em Brasília. Diante de uma dúzia de chefes de Estado, Boric desmontou o discurso de Lula sobre a Venezuela. Ao fim do encontro, resumiu a questão em oito palavras: “Não é uma construção narrativa. É uma realidade”.

Lula acertou ao restabelecer relações diplomáticas com Caracas. Em seguida, errou feio ao relativizar o autoritarismo no país vizinho. Nicolás Maduro sufocou a oposição, amordaçou a imprensa e produziu um êxodo de 7 milhões de refugiados. Seus abusos foram documentados pelas Nações Unidas e são investigados no Tribunal Penal Internacional, que apura crimes contra a Humanidade.

O presidente sabe de tudo isso, mas preferiu apresentar o aliado como vítima de “narrativas”. “O preconceito contra a Venezuela é muito grande”, disse. “Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela”, emendou.

Boric não foi o único a contestar as declarações de Lula. Os presidentes de Uruguai, Paraguai e Equador também usaram a cúpula para condenar o regime de Maduro. A crítica do chileno chamou mais atenção porque ele é um político de esquerda. Apesar disso, recusou-se a fazer vista grossa aos desmandos na Venezuela.

Ontem Lula teve uma chance de se corrigir, mas insistiu em negar os fatos. Ainda cobrou respeito à “soberania” venezuelana, como se criticar um autocrata fosse equivalente a desacatar o país que ele subjuga.

O petista alegou que não pode avaliar a situação no país porque não pisa lá há dez anos. Bastava ler o relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, assinado por outra socialista chilena. No texto, Michelle Bachelet empilha casos de “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura” contra críticos de Maduro.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Recepção de Lula a Maduro foi vexatória

 Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

O presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia FloresO presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia Flores (Evaristo Sá/AFP)

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

Editorial de O Globo, em 31.05.23