terça-feira, 30 de maio de 2023

Brasil legal e Brasil real

 Há uma incontestável verdade diante da dessintonia entre a Lei de Execução Penal e a realidade: a prisão se tornou um eficiente fator de aumento da criminalidade

Há um aspecto da vida nacional marcado pelo retrocesso e que gera profundo desalento quanto ao futuro do País. Refiro-me às condições de vida de milhões de brasileiros. Elas estão piorando a olhos vistos. Novas expressões da miséria estão chegando às nossas portas. Como exemplo, temos os moradores de rua e a chamada cracolândia.

Significativa parte da sociedade não se comove e vem se acostumando a conviver com toda sorte de mazelas que deveriam cobrir de vergonha especialmente os segmentos mais privilegiados.

Pode-se pensar que o ordenamento legislativo passou ao largo de todos esses problemas sociais e não editou normas a respeito das respectivas situações. Ao contrário, há leis – e boas leis. Basta citar duas: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Execução Penal, que rege o sistema penitenciário.

A questão crucial é precisamente a diferença entre o que é e o que deveria ser segundo o disposto pelas leis. O que está no mundo real é captado pelo legislador. Mas o que consta da lei não é aplicado à realidade. Daí a existência de dois países: o legal e o real.

Essa dicotomia entre o querer do legislador e a sua execução parece ter as suas raízes fincadas no próprio modo de ser do brasileiro. Temos dificuldade de nos submeter a normas e regras de conduta. O jeitinho virou uma prática nacional e criou uma verdadeira cultura da desobediência. Os pequenos e os grandes desvios de conduta nos levam a contornar o cumprimento das leis.

Não apenas as que impõem regras de condutas individuais são desobedecidas, mas também aquelas que são chamadas de leis programáticas. Estas são editadas para regrar situações específicas que necessitam de ter suas dificuldades superadas e as suas mazelas sanadas.

Nessas hipóteses, as razões do descumprimento são outras. Pode-se apontar a inércia do Estado e a insensibilidade da sociedade. O desinteresse histórico pelas carências sociais encontra as suas raízes na ausência de solidariedade, no individualismo egoísta e na rígida divisão das várias camadas sociais, que pouco se comunicam.

O sistema penitenciário é regido por uma dessas leis, a de Execução Penal. Pois bem, em seu artigo primeiro está gravado que o seu objetivo é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Inúmeros dos seus dispositivos estão voltados para o alcance daquele objetivo. Assim, a lei prevê: a existência de um Comitê de Classificação composto por psiquiatra, psicólogo e assistente social; assistências à saúde, jurídica, educacional, religiosa; trabalho interno e externo; preparação técnica do pessoal penitenciário; apoio ao egresso; e vários outros comandos voltados ao desiderato de inserção social de quem cumpriu pena. As normas contidas nessa lei têm como fonte a Constituição federal.

No entanto, o sistema de proteção ao encarcerado e ao egresso é sistematicamente descumprido sem nenhum escrúpulo ou sinalização de futura obediência à lei. Ao contrário, a situação carcerária se agrava e entra no rol já extenso das trágicas iniquidades sociais.

O Estado se empenha na construção de prisões, mas não investe no homem preso e não o prepara para a liberdade. A sociedade, por sua vez, em face do crime, exige o encarceramento como única resposta a ele. Este lavar de mãos coloca o detento no quase total abandono. Esquece-se de que as prisões não são perpétuas. O preso se transformará em egresso e voltará a conviver em sociedade, estando, em face do esquecimento, com uma carga criminógena superior a quando entrou no sistema. O corpo social deveria acolher o egresso ao menos por uma questão de autopreservação. Se não por solidariedade humana, por egoísmo.

Tanto os preceitos da Lei de Execução Penal não são cumpridos que, dos 900 mil presos no Brasil, 70% já foram clientes do sistema. Voltam ao cárcere porque a maioria não foi preparada para a liberdade. Sem apoio, o egresso encontra a família desagregada, são inexistentes as oportunidades de trabalho e o estigma de ex-presidiário o acompanha. Ele acaba por não resistir aos apelos do crime organizado e volta a delinquir. Note-se que, desse total, 45% não foram ainda julgados.

Há uma verdade incontestável em face da dessintonia entre a lei que regula o sistema penitenciário e a sua realidade: a prisão se transformou em eficiente fator de aumento da criminalidade. Há uma trágica equação: mais prisões, mais crimes. Mesmo sendo notória as suas inumanas e repugnantes condições, a cadeia não constitui fator de inibição da prática de novos crimes.

O brado da sociedade por mais prisões deve transformar-se em apelo humanitário para que o Estado atenda a todas as imposições legais de adequação do sistema penitenciário aos desideratos de reinserção do preso à sociedade. É imprescindível que o sistema não mais atue em sentido contrário aos seus próprios objetivos. O Brasil legal precisa se impor ao Brasil real.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é Advogado. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.23

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Acabou o presidencialismo?

Na intersecção dos planos externo e doméstico, o meio ambiente é símbolo dos percalços do governo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante evento da Fiesp, em São Paulo - (Bruno Santos/Folhapress)

Durante a campanha eleitoral, Lula referiu-se a Bolsonaro como um "bobo da corte". "Acabou o presidencialismo. Bolsonaro não manda nada, é refém do Congresso". Na primeira reunião ministerial do governo reconheceu o risco de tornar-se um: "nós não mandamos no Congresso, nós dependemos dele". Decorridos cinco meses, já vemos os sinais que o risco está se materializando.

Era previsível: trata-se de um presidente hiperminoritário cujo partido detém 13% da Câmara e que conta com um apoio leal de meros 130 deputados (1/4 da câmara). Essa configuração já existiu no passado. Mas muita coisa mudou: a economia, estressada; o Legislativo, muito mais centralizado (legado da pandemia e Bolsonaro), muito menos fragmentado, e com muito mais recursos; o país virando à direita.

Sim, as derrotas do governo foram muito além do esperado. Não se trata de batalhas perdidas em iniciativas pontuais: a sina da MP da reorganização do Executivo atinge a própria capacidade do governo de definir a estrutura ministerial e nela distribuir competências. É o núcleo duro da estratégia do Executivo na montagem da coalizão governativa. O malogro aqui é inédito no presidencialismo brasileiro. E surpreende sobretudo porque começou com um bônus inesperado (o 8 de janeiro).

A forma do Executivo acomodar uma maioria congressual com preferências distintas envolve antes de tudo a partilha do gabinete.

Por isso Lula criou 17 pastas novas. A reorganização é uma forma de acomodar inúmeros interesses. É por isso que em países hiperfragmentados os ministérios chegam a mais de 70, como já discuti aqui na coluna.

A estratégia global do governo é nova. Marcada por uma espécie de hiperdelegação no plano doméstico, ele subestimou enormemente as dificuldades potenciais. No plano externo os frutos mais fáceis de colher, o malogro virou vexame.

Na intersecção dos dois planos, o meio ambiente é crítico. O símbolo do fracasso.

Há dois cenários polares nas relações Executivo-Legislativo. O primeiro é ilustrado pelo cesarismo do presidente colombiano, Gustavo Petro, que, em resposta à derrota de sua reforma sanitária, destituiu titulares dos ministérios e ameaçou: "a tentativa de restringir as reformas pode levar à revolução. O que é preciso é que o povo esteja mobilizado". Chamemos de pesadelo de Juan Linz (1926-2013): a crise de legitimidade dual quando um presidente minoritário unilateralmente tenta impor a sua agenda ao Congresso. O segundo, seria um presidente que navega os mares da governabilidade em modelo pleno de partilha de poder, característico de frentes amplas.

Entre um e outro há um continuum de possibilidades intermediárias. Todos complicados.

 Marcus André Melo, o autor deste artigo. é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 28.05.23, às 15h23

Liberdade presa e corrupção solta

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por incrível arquitetura de narrativa visando à demolição da verdade e reconstrução da história

A sociedade assiste, atônita, a um fenômeno surreal patrocinado por altas autoridades da República. A liberdade de expressão, fortemente protegida no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, vem sendo fustigada e solapada. O constituinte, certamente movido por uma compreensível reação aos anos da ditadura militar, quis dar à liberdade um valor essencial e inegociável. O que se observa, no entanto, é a frequente negação do espírito e da letra da Constituição. Sempre em nome da defesa da verdade e da democracia.

O combate à mentira factual, que deveria se pautar pelo que Alexandre de Moraes chamou de “intervenção mínima”, com a posse do ministro na presidência da Corte Eleitoral acabou não tendo rigorosamente nada de mínimo. Em vez da ação pontual, destinada então a remover da propaganda eleitoral e das mídias sociais as informações factuais comprovadamente falsas, dezenas – talvez centenas – de cidadãos brasileiros tiveram tolhido o seu direito de se manifestar sobre qualquer tema, graças à exclusão de suas contas em mídias sociais, violando tanto a liberdade de expressão quanto o princípio de proporcionalidade. E este tipo de intervenção desproporcional cresceu muitíssimo, mesmo depois da realização do pleito.

Estamos assistindo, em nome do combate às fake news, à desconstrução programada da liberdade de expressão e à destruição das próprias normas constitucionais. Atualmente, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia, promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que estamos vendo no eterno inquérito das fake news.

Por outro lado, o ministro da Justiça reúne representantes das mídias sociais para dizer sem qualquer sutileza que a liberdade de expressão não existe mais. Está sepultada. Assume o papel de defensor da verdade, da liberdade e da democracia. Ele é, juntamente com o ministro Moraes, mais um tutor dos brasileiros. Julga-se responsável pelo que podemos ou não ler, falar ou comentar. O ministro, juiz e político, é um bom orador. Deveria, no entanto, medir as consequências das suas palavras e conter os arroubos de uma oratória claramente intimidatória.

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por uma incrível arquitetura de narrativa com o objetivo de demolição da verdade e de reconstrução da história. Alguém duvida de que a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, ex-procurador da Lava Jato, é mais um capítulo do desmonte da operação e um precedente preocupante na Justiça Eleitoral?

Uma decisão surpreendentemente unânime, que consumiu cerca de um minuto, foi vivamente comemorada por um governo que tem como projeto a vingança e como visão estratégica o olhar fixo no retrovisor. Ao longo de mais de 30 anos como ministro, Marco Aurélio Mello foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em três períodos diferentes. Para ele, o julgamento de Deltan deixa a Justiça Eleitoral “muito mal”. E prosseguiu: “Enterraram a Lava Jato, agora querem fazer a mesma coisa com os protagonistas. Isso, a meu ver, não é justiça, é justiçamento”, avaliou o ministro, conhecido pela franqueza. Eles esquecem algo que Machado de Assis ressaltou: o chicote muda de mão. É isso. Festejar o arbítrio hoje pode ser chorar o abuso amanhã.

Independentemente das razões jurídicas esgrimidas, a cassação de Deltan Dallagnol foi a cassação de 345 mil eleitores. Foi, sem dúvida, um triste capítulo na sequência de politização da justiça brasileira. Protegem-se os corruptos, sobretudo o líder inconteste da criminalidade. Descaradamente. Usam-se artifícios formais para deformar a justiça. Mas os que combatem os crimes são perseguidos e punidos. Trata-se de recado claro: o crime compensa.

Agora, numa tentativa de recuperação da imagem e depois de anos de silêncio, apresentam o julgamento do ex-presidente Fernando Collor como um troféu de firmeza contra a corrupção. Serão implacáveis. Como se isso apagasse uma história de assustadora leniência.

Armados de um cinismo cortante, argumentam que a Operação Lava Jato, “com sua sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para esta gente, no entanto, tudo precisa ser apagado. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte da falsidade.

O Brasil, não obstante os reiterados esforços de implosão da verdade, ainda conserva importantes reservas éticas. Apelo, por isso, aos homens de bem, aos cidadãos que têm brilho nos olhos. Eles existem. E são mais numerosos do que podem imaginar os voluptuosos detentores do poder.

Apelo, mais uma vez, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Respeito-os. Não julgo suas intenções. Conversem, façam uma autocrítica, revejam posições e pensem no bem maior do Brasil.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é Jornalista e consultor de empresas de comunicação. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.05.23

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O desencontro em Hiroshima

As chances de avançar na mediação da guerra na Ucrânia não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho


Assessor de Zelenski diz que fala de Lula distorce a verdade

Nos últimos anos de minha passagem pelo Congresso Nacional, percebi a crescente importância da política externa no Brasil pelo número grande de estudantes que vinham acompanhar as sessões da Comissão de Relações Exteriores. O Brasil se internacionalizava cada vez mais e o interesse dos jovens abarcava também novas chances no mercado de trabalho.

O governo que se instalou em 2023 talvez seja o mais voltado para uma política externa, desde o início da redemocratização. Isso também pode ser um reflexo dos novos tempos.

Dois importantes fundamentos de nossa inserção no mundo estão sendo enfatizados: a proteção dos recursos naturais, incluindo o desenvolvimento sustentável da Amazônia, e a luta pela paz mundial.

A política de meio ambiente foi esboçada pelo presidente Lula no seu discurso em Sharm elSheikh, no Egito. Foi uma espécie de passaporte para a volta do Brasil como protagonista no cenário internacional. Depende ainda de realização prática, mas as intenções foram claras.

O presidente Lula decidiu levar adiante nossa tradição de luta pela paz. No passado recente, já tivemos um papel importante mediando conflitos entre Equador e Peru e contribuindo, em 1988, para resolver uma disputa de quase dois séculos.

Mas agora, ancorado na nossa tradição diplomática, Lula decidiu elevar o sarrafo de nossa capacidade mediadora, tratando de um conflito na Europa, a guerra na Ucrânia, que envolve, de um lado, os principais países ocidentais e, de outro, a Rússia, que, além de europeia, tem raízes na Ásia. De um ponto de vista biográfico, é uma escolha inteligente. Mesmo em caso de fracasso, Lula passará à História como aquele que tentou, sem êxito, promover a paz numa Ucrânia devastada pela guerra.

Há muitos caminhos para quem se interessa em fortalecer o papel do Brasil no mundo. É possível criticar a iniciativa de Lula, da mesma forma que é possível aplaudi-la incondicionalmente. No entanto, há uma espécie de trilha entre esses dois caminhos que significa aceitar o grande desafio de mediar uma guerra desta proporção e, simultaneamente, contribuir para que a mediação seja muito bem feita, isto é, colocar o sarrafo mais alto ainda. Alguns erros foram cometidos no caminho. Mas ninguém pode afirmar que a mediação esteja irremediavelmente perdida.

A primeira dificuldade surgiu quando Lula afirmou a um jornal francês que a Ucrânia poderia abrir mão da Crimeia. Não se trata de uma tese estapafúrdia. Intelectuais como Edgar Morin a defendem abertamente. Morin, aos 101 anos de idade, acaba de lançar um livro sobre a guerra propondo que a Ucrânia abra mão da Crimeia, onde a população russa é maioria, seguida dos tártaros e ucranianos. O escritor francês vai além, propondo que a Ucrânia abra mão também de Donbass, região industrializada por Stalin, e se integre na Otan.

A diferença entre Edgar Morin e Lula é muito simples: um é potencial mediador, o outro, apenas um intelectual.

As declarações na China condenando a ajuda militar do Ocidente à Ucrânia também não foram bem recebidas, a ponto de muitos observadores afirmarem que Lula estava próximo de Vladimir Putin.

E, finalmente, na reunião do Grupo dos 7, em Hiroshima, Lula e Zelensky se desencontraram, o que torna ainda mais difícil a mediação.

Não se trata, aqui, de determinar a culpa a partir de relatos diferentes na imprensa. O importante é que o encontro tivesse acontecido. Outros líderes, inclusive mais próximos da Rússia, como o indiano Narendra Modi, se encontraram com Zelensky. O argumento de Lula de que o a reunião dos 7 não tratava de guerra não se sustenta: um potencial mediador precisa aproveitar todas as oportunidades para realizar sua tarefa.

As chances de avançar na mediação da guerra não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho e não se contentar apenas com a intenção mediadora, mas com a eficácia da iniciativa.

Em primeiro lugar, seria importante que Lula falasse desses temas a partir de um texto, nunca improvisando. Não há nada demais nisso, apenas um reconhecimento de que relações internacionais são delicadas e demandam uma cuidadosa escolha das palavras.

Em segundo lugar, seria importante que o governo brasileiro mostrasse alguma empatia com a Ucrânia, além, naturalmente, de condenar a invasão armada. Uma das hipóteses é receber para uma audiência os representantes da colônia ucraniana no Brasil. Existe uma falsa impressão de que os ucranianos são de direita e que a resistência é formada por fascistas. O presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, Vitório Sorotiuk, lutou contra a ditadura, se asilou no Chile e na Europa e mantém um bom nível de informações sobre o que se passa por lá.

É verdade que o ex-ministro Celso Amorim esteve na Ucrânia como enviado especial, mas, no pé em que as coisas estão, seria necessário reencontrar a aura de neutralidade.

O governo e seus apoiadores podem achar um pouco audacioso fazer sugestões não tendo nenhum tipo de vínculo ou de relação com eles. O problema central é que é muito difícil de se desvincular da condição de brasileiro e tratar nossa política externa como se fosse algo desenvolvido em outro país. Nada demais esperar dela que funcione na prática.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 26.05.23

"Saída de Marina seria desastre internacional para Lula"

Em entrevista à DW, ambientalista Pedro Roberto Jacobi diz que reorganização ministerial pode comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental e prejudicar a ministra Marina Silva, respeitada mundialmente.

Pedro Roberto Jacobi (Foto: Leonor Calasans/IEA-USP)

O Congresso impôs mais uma derrota à pauta ambiental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (24/05). Na apreciação da Medida Provisória (MP) 1.154/23, que reorganiza a estrutura ministerial, os parlamentares enfraqueceram o Ministério do Meio Ambiente (MMA), retirando da pasta chefiada pela ambientalista Marina Silva atribuições de fiscalização importantes, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional das Águas (ANA).

Além disso, o texto também transferiu a demarcação de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, de Sônia Guajajara, para o Ministério da Justiça.

A matéria se soma a outras que têm sido criticadas por ambientalistas, como o novo marco do saneamento e, mais recentemente, o embate entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério de Minas e Energia sobre a extração de petróleo pela Petrobras na foz do rio Amazonas, no Amapá.

Em entrevista à DW, o ambientalista Pedro Roberto Jacobi, professor titular do Instituto de Energia e Ambiente da USP, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e presidente do conselho América do Sul da instituição Governos Locais pela Sustentabilidade (ICLEI), considera que as mudanças podem comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental do governo.

Jacobi, no entanto, diz que o governo Lula está emparedado por um Congresso "conservador" e "negacionista", que tenta manter o esvaziamento do mecanismo de combate ao desmatamento que ocorreu nas gestões anteriores.

O ambientalista também vê a necessidade de o presidente Lula negociar a questão do clima internacionalmente, assim como tem feito com as tentativas de paz na Ucrânia.

Segundo Jacobi, as disputas na área ambiental, atualmente, são diferentes da questão de Belo Monte, que causou a saída de Marina Silva na segunda administração de Lula, em 2008. O ambientalista também não vê uma possível repetição das consequências políticas dentro do governo como naquela ocasião.

"Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga ‘tchau'", destaca, acrescentando que, se isso ocorresse, seria um "desastre internacional" para a terceira gestão do pestista.

Leia a entrevista na íntegra:

DW: O que essas mudanças previstas na MP representariam em termos de combate ao desmatamento?

São várias questões. No caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vai para o Ministério de Gestão e Inovação, é uma ferramenta fundamental de combate ao desmatamento. Mas é uma questão muito desafiadora que exige fiscalização, porque é autodeclaratório. E o que está colocado aí é que há um risco de que essa mudança afete diretamente a política de monitoramento e controle do desmatamento.

Já o tema da demarcação das terras indígenas, que vai para o Ministério da Justiça, a própria ministra [dos Povos Indígenas], Sônia Guajajara, afirmou que não é algo muito problemático, porque o ministro da Justiça, Flávio Dino, tem uma preocupação com esse tema. Mas, de qualquer maneira, se coloca uma questão real: se cria um Ministério dos Povos Indígenas e já se tira poder dele.

Temos também a Agência Nacional das Águas (ANA), que fica com o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional. É um órgão que está muito fragilizado, foi muito enfraquecido. Existe uma parcela considerável de pessoas sem acesso a água e sem acesso a saneamento.

O MMA estava totalmente fragilizado pela gestão desastrosa dos últimos anos e, com isso, vai perder um tanto da sua potência. Uma das grandes questões do MMA é que já não se tem muitos recursos financeiros, que agora estão indo para outras pastas.

É uma quantidade de problemas que se acumulam. Quando falamos do MMA, estamos considerando novamente a questão de não se ter recursos, e isso faz com que a pressão dos agentes econômicos fale mais alto – e eles estão representados no Congresso, essa é a realidade.

Quais interesses econômicos seriam esses? O setor ruralista, por exemplo?

Sem dúvidas, o setor ruralista. Mas também há os interesses econômicos por trás da privatização do saneamento. E acho que não dá para desconsiderar essa visão também economicista que está presente numa visão desenvolvimentista mais clássica. A palavra que temos que usar hoje é desenvolvimento sustentável, por mais que seja genérica. Isso é o que as Nações Unidas propõem, que é chegar a metas mais sustentáveis. Nem toquei no tema do clima porque ainda está indefinido qual será a autoridade climática dentro dos ministérios.

Esses interesses econômicos estão presentes nas câmaras municipais, nas assembleias estaduais, no Congresso. E, lamentavelmente, a sociedade tem escolhido cada vez piores representantes para a democracia, que são pessoas que têm um discurso falso, negacionista, e não estão enxergando questões muito concretas.

É preciso se adaptar a uma realidade que está colocada hoje. O tema clima é transversal a todos os outros temas, porque falamos em energias não renováveis, impactos sobre o clima. Falamos de água, do impacto no clima com excesso de água e falta de água.

Até que ponto o Congresso está impondo essa realidade ao governo Lula?

Temos que lidar com a realidade política, que não é nem um pouco favorável ao governo que foi eleito. Ele está altamente emparedado por um Congresso que é composto por um conjunto de partidos políticos que fazem parte dessa coalizão muito problemática que o governo conseguiu organizar, dentro das suas extremas precariedades, para garantir aprovações no Congresso, como no caso recente da área econômica.

É sempre bom lembrar que em qualquer governo, não há exceção no planeta, o que fala mais alto é a economia e, depois, o social.

É claro que, do ponto de vista internacional, para a imagem do Brasil, é extremamente importante o tema ambiental e da Amazônia. O que vai se ver depois de todo alarde, de toda a fala do Lula no G7 e em outros momentos no exterior. Está colocada uma questão que pode trazer enormes riscos, inclusive para os apoios e financiamento.

Mas nós temos que lidar com isso concretamente. É claro que há preocupação. Mas existe uma palavra-chave que é governabilidade, e essa realidade não podemos ignorar.

Até que ponto isso mostra um certo descaso de Lula com as questões ambientais, já que tivemos recentemente o Ibama proibindo, à revelia do governo, a exploração de petróleo no Amapá? O discurso internacional do Brasil como potência ambiental é só teoria?

Se for só teoria, vai ser muito ruim para nós. É a única coisa que posso dizer. O Lula se meteu a negociar a questão da paz na Ucrânia, mas ele também tem que negociar o clima, tem que estar em cima desse tema. O presidente foi um negociador a vida inteira, até mesmo pela sua história como sindicalista.

Acho que, neste momento, o Lula está tomando um pouco de cuidado, ao mesmo tempo em que está sinalizando vetar uma legislação predatória para a Mata Atlântica. Aí ele já diz "isso, não". Mas, na hora está se discutindo uma reorganização de ministérios a partir de uma proposta do Congresso, porque é assim que se vê – o governo não ia propor um ministério e desmontá-lo.

Essa é uma herança de todos esses anos, que vem desde o Michel Temer, aqueles atores que perderam espaço querem voltar a ganhar. Eu entendo um pouco dessa maneira.

Os próprios negociadores internos do Lula, o [ministro da Articulação] Alexandre Padilha e o [ministro das Cidades] Rui Costa não vêm de um histórico ambientalista. Inclusive o histórico do Rui Costa, na Bahia, como governador, não é dos melhores. O próprio [ministro da Fazenda] Fernando Haddad não foi um grande defensor do meio ambiente, é só ver na gestão municipal dele em São Paulo.

Eu diria que temos que esperar fatos concretos, o que vai ser vetado quando chegar a hora da aprovação da matéria. Vejo um pouco dessa maneira. Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga "tchau".

Seria uma catástrofe na área ambiental do governo caso Marina Silva deixasse o comando do Ministério do Meio Ambiente?

Seria um desastre, não do ponto de vista brasileiro, porque somos pouco preocupados com o meio ambiente. Mas, internacionalmente, seria um desastre. Não tenho dúvidas, porque houve todas essas promessas ambientais, e ela é uma pessoa que está ancorando, legitimando isso.

Quem é Alexandre Silveira [ministro de Minas e Energia] em termos internacionais? 

Mas quem é a Marina, já sabemos. É alguém que tem uma história que vai desde a época do Chico Mendes. Tem todo um reconhecimento, é uma pessoa íntegra, que conheço bem.

Em termos nacionais, [uma possível saída dela] não ia ser uma questão pesada, mas em termos internacionais, impactaria. E acho que o Lula deve estar medindo isso muito bem e conversando com ela.

O Congresso tem essa cara. Além disso, há um passivo terrível em todas as áreas [deixado do governo de Jair Bolsonaro]. Penso em uma perspectiva em que a Marina sabia em que encrenca estava entrando. Acho que ela vai ter que se acostumar a negociar, a ganhar os espaços de alguma maneira. Agora, não é uma questão interna do governo, como foi no caso de Belo Monte. É uma disputa diferente. Quem está emparedado é o governo, e a Marina faz parte do governo.

Fábio Corrêa para a Deutsche Welle Brasil, em 25.05.23

Símbolos importam

Governo Lula adota pragmatismo em estado bruto e abandona meio ambiente e povos indígenas

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em entrevista à Folha - Gabriela Biló - 12.jan.23/Folhapress - Folhapress

Um bom político é um ser medularmente pragmático, mas que conserva a capacidade de manipular os simbolismos a seu favor.

Na parte do pragmatismo, Lula dá sinais de que entendeu os últimos recados. É a curva do aprendizado. A correlação de forças entre Executivo e Legislativo não é mais a mesma de 20 anos atrás. Depois de algumas barbeiragens, em que amargou derrotas vistosas, há indicações de que o governo se conformou com o fato de que sua base parlamentar programática é diminuta e aceitou a ideia de que, nas votações importantes, é refém de Arthur Lira e seu centrão, o que envolve acertos "ad hoc", projeto a projeto.

Mais do que isso, a administração parece ter decidido centrar toda sua atenção na pauta econômica. A avaliação, da qual não discordo, seria a de que, se as coisas desandarem nessa seara, o mandato de Lula ficaria irremediavelmente comprometido. Mobilizou-se até para enquadrar os parlamentares da esquerda do PT e os fez votar a favor do arcabouço fiscal.

No que diz respeito aos simbolismos, porém, a trajetória foi a oposta. O governo que fizera de sua cerimônia de posse uma apoteose de alegorias, com Lula subindo a rampa ao lado de minorias, agora não parece dar muita trela para temas emblemáticos como meio ambiente e povos indígenas. Eu pelo menos não vejo outra maneira de interpretar as votações dos últimos dias que, entre outros retrocessos, esvaziaram significativamente os dois ministérios responsáveis por essas questões.

Era mais ou menos inevitável que a administração sofresse reveses impostos por bancadas poderosas como a ruralista. Mas ver parlamentares do PT votando a favor de pautas reacionárias só para acelerar os trâmites foi para mim chocante. Governo e partido deveriam ter demonstrado alguma contrariedade, nem que fosse só para constar. Símbolos, afinal, importam.

Marina Silva tem todos os motivos para sentir-se traída e abandonada.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião na Folha de S. Paulo.  É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na FSP, edição impressa, em 25.05.23, às 17h00.

Bolsonaro é condenado em 2ª instância por ataques à imprensa

Ex-presidente terá de pagar R$ 50 mil em indenização por dano moral coletivo. Ação aberta em 2021 pelo Sindicato de Jornalistas de SP exigia fim das ofensas e condenava falas misóginas e homofóbicas

O ex-presidente Jair Bolsonaro foi condenado em segunda instância na Justiça de São Paulo a pagar indenização no valor de R$ 50 mil por dano moral coletivo à categoria dos jornalistas.

A 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça confirmou a sentença proferida pela 24ª Vara Cível de São Paulo em junho de 2022, mas reduziu pela metade o valor da compensação, que havia sido estabelecido em R$ 100 mil na primeira instância.

O valor da indenização será revertido para o Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) entrou com uma ação civil pública contra Bolsonaro em abril de 2021, exigido que ele parasse de ofender, deslegitimar ou desqualificar a profissão de jornalista ou profissionais da imprensa e de vazar ou divulgar dados pessoais destes.

Para o advogado Raphael Maia, coordenador jurídico do SJSP, Bolsonaro tratava a imprensa "de forma hostil, desrespeitosa e humilhante, com a utilização de violência verbal, palavras de baixo calão, expressões pejorativas, homofóbicas, xenófobas e misóginas".

Tais manifestações "extrapolam seu direito à liberdade de expressão e importam assédio moral coletivo contra toda a categoria de jornalistas, atentando contra a própria liberdade de imprensa e a democracia", considerou.

"Incompatível com a dignidade do cargo"

A defesa de Bolsonaro argumenta que jamais houve censura por parte do ex-presidente e que suas declarações não se referiam à classe dos jornalistas como um todo, mas sim, a "determinados profissionais".

Em junho de 2022, na condenação em primeira instância, a juíza Tamara Hochgreb Matos, da 24ª Vara Cível de São Paulo, considerou que Bolsonaro abusou do direito à liberdade de expressão para ofender profissionais de imprensa.

Segundo a juíza, as ofensas se deram "de forma absolutamente incompatível com a dignidade do cargo" de presidente, "sob alegação de que essa liberdade lhe outorgaria, enquanto instrumento legal e necessário ao livre exercício da liberdade pessoal do Chefe do Poder Executivo Federal, verdadeiro salvo conduto para expressar as suas opiniões, ofensas e agressões".

"Com efeito, tais agressões e ameaças vindas do réu, que é nada menos do que o chefe do Estado, encontram enorme repercussão em seus apoiadores, e contribuíram para os ataques virtuais e até mesmo físicos que passaram a sofrer jornalistas em todo o Brasil, constrangendo-os no exercício da liberdade de imprensa, que é um dos pilares da democracia", afirmou a magistrada.

A juíza também mencionou declarações homofóbicas e misóginas de Bolsonaro contra jornalistas, como a de que "mulheres somente podem obter um furo jornalístico se seduzirem alguém", além de "comentários xenófobos, expressões vulgares e de baixo calão". E apontou que o então presidente ameaçou jornalistas e incentivou seus apoiadores a agredi-los.

"O réu manifesta, com violência verbal, seu ódio, desprezo e intolerância contra os profissionais da imprensa, desqualificando-os e desprezando-os, o que configura manifesta prática de discurso de ódio", concluiu.

Advogados alegam "defesa da reputação"

Ainda em primeira instância, os advogados de Bolsonaro afirmaram que seus comentários constituíam "apenas o seu direito de crítica a reportagens que, na sua visão, não representavam a verdade dos fatos, e que eram ofensivas e atentatórias à sua própria reputação", não sendo, portanto, ilícitos.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 557 agressões de Bolsonaro aos meios de comunicação e profissionais de imprensa em 2022, ano em que ele disputou a reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2021, foram contabilizados 453 casos, além de outros 130 em 2019.

Dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) utilizados pelo SJSP no processo apontam que em 2020 o ex-presidente fez 175 ataques à imprensa.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 26.05.23

Como funcionará programa do governo que pode baratear carros no Brasil

O governo federal anunciou nesta quinta-feira (25/5) que adotará medidas para baixar o preço de automóveis no país

Programa tem potencial de baratear um quarto dos modelos à venda hoje, dizem analistas

Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, afirmou que para isso haverá uma redução de impostos federais para carros de até R$ 120 mil.

A decisão foi comunicada após uma reunião no Palácio do Planalto entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e representantes da indústria automobilística.

Na mesma ocasião, Alckmin também anunciou que o governo disponibilizará uma linha de crédito de R$ 4 bilhões em dólares para financiamento de exportações, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A medida, segundo ele, serve como uma proteção cambial e abrangerá não apenas o setor automotivo, mas a indústria como um todo.

Lula já havia reclamado publicamente sobre os preços de veículos no país.

"A fábrica de automóveis não está vendendo bem, mas qual pobre pode comprar um carro popular de R$ 90 mil?", questionou Lula da Silva durante sessão inaugural do Conselho de Desenvolvimento, Econômico e Social, no início de maio.

No entanto, detalhes de como será o programa de fato ainda serão anunciados nos próximos 15 dias, após uma análise da Fazenda sobre o programa.

A BBC News Brasil conversou com analistas sobre o que foi divulgado até agora e os possíveis impactos destas medidas. Entenda a seguir.

O que foi anunciado?

O governo anunciou que fará uma redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), aplicado sobre a fabricação, importação e venda destas mercadorias, inclusive automóveis, e do tributos do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incidem sobre o faturamento das empresas e usados para financiar a saúde pública e Previdência Social.

O índice de redução ainda não divulgado pelo governo, mas o governo afirmou que a porcentagem do desconto será baseada em três critérios: social, eficiência energética e densidade industrial.

Isso significa que, na prática, automóveis mais baratos, menos poluentes e mais econômicos em gasto combustível, assim como os que possuem mais peças nacionais em sua composição, terão mais desconto.

De acordo com Alckmin, quanto mais critérios forem atendidos, maior será a redução no preço. Ele também sinalizou com a possibilidade de desconto maior por venda direta da indústria.

"Isso acontecerá para aqueles que têm um CNPJ de empresa e decidirem usar na hora de comprar o carro. A legislação brasileira permite que a montadora tenha uma taxa menor de impostos vendendo para empresas", explica Paulo Cardamone, presidente da Bright Consulting, especializada no mercado automobilístico.

Algumas duvidas continuam em aberto como por exemplo se a indústria será obrigada a repassar as reduções nos impostos para o consumidor final.

Ou, por exemplo, por quanto tempo essas medidas vão valer, já que o governo afirmou que se trata de um programa transitório que visa reduzir a ociosidade da indústria automobilística brasileira.

O preço dos carros vai cair?

A expectativa do governo é que a redução de impostos faça o preço dos automóveis cair entre 1,5% a 10,79%.

Cardamone avalia que a redução de impostos tem o potencial de baratear mais de um quarto dos modelos à venda atualmente.

"Para se ter uma ideia do tamanho da mudança, hoje nós temos aproximadamente 600 modelos de veículos sendo vendidos e cerca de 160 deles, 25%, estão dentro dessa faixa de preço passível de desconto, e representam 47% do volume de carros no mercado", diz o analista.

Cardamone afirma que, considerando o objetivo de tornar os veículos mais acessíveis para quem tem menor renda, o limite de R$ 120 mil é razoável.

"A redução para faixa de preço mais altas privilegiaria apenas quem tem renda muito alta."

No entanto, detalhes da fórmula que será aplicada ainda não são conhecidos para se poder precisar quanto o preço de cada modelo poderá cair.

Após o anúncio, o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio Lima Leite, pode levar o preço dos modelos mais em conta ficar abaixo de R$ 60 mil.

No entanto, os carros mais baratos hoje no Brasil, Renault Kwid e Fiat Mobi, ficariam acima disso com os índices anunciados pelo governo.

Se eles recebessem a redução máxima prevista, de 10,79%, por exemplo, passariam dos R$ 68.990 atuais para R$ 61.545.

Quais podem ser os outros impactos do programa?

Analistas apontam que uma redução de impostos que barateie os carros tem o potencial de aumentar as vendas e, portanto, reaquecer a produção indústrial.

Isso, por sua vez, aumentaria a oferta de empregos e a renda de parte da população, estimulando o consumo e aumentando a arrecadação do governo, beneficiando a economia de forma geral.

“Se bem desenhado, o programa do veículo acessível poderia trazer, inclusive, um equilíbrio na arrecadação, porque estaria substituindo veículos usados que geram imposto menor, com marginal impacto positivo nos empregos, agradando o governo em termos políticos", avalia Cardamone.

O faturamento do setor, que caiu 43% em dez anos, também é um fator importante por trás da medida.

"O Brasil já produziu cerca de 3,8 milhões de veículos em um ano, e hoje esse número está estagnado em um patamar de 2 milhões de veículos. É uma ociosidade de quase 50% da produção, o que não é normal no setor automotivo, que precisa ocupar ao menos 70% de sua capacidade produtiva", afirma Cardamone.

"O governo olha esse setor, que já teve grande contribuição tributária, e procura uma forma de tentar recuperar isso."

Cardamone aponta que um ponto importante a ser considerado é a duração do benefício. (Getty Images)

"A medida não pode ser eterna porque é uma renúncia fiscal importante. Não se sabe se vai durar seis meses, um ano… Particularmente, eu acho que em um intervalo entre julho a dezembro, por exemplo, funciona."

O analista calcula que o programa teria o potencial de aumentar as vendas em aproximadamente 120 a 130 mil automóveis em seis meses - um crescimento 6% acima do previsto atualmente para o setor.

Por outro lado, aponta o analista, a renúncia fiscal neste mesmo período deve girar em torno de R$ 4 bilhões.

"Se a medida durar um ano, já são R$ 8 bilhões a menos para um governo que não passa por um momento econômico fácil."

Antonio Jorge Martins, coordenador acadêmico dos cursos da área automotiva na Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que não vê estes impactos acontecendo "da noite para o dia" e acrescenta que pode ser necessário ir além do corte de impostos.

"Talvez não somente a redução dos preços, mas também as melhores condições de obtenção de financiamento, resultem em um cenário melhor para aumentar a produção do setor."

Lula tocou neste ponto horas depois do anúncio, em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), quando voltou a criticar o preço atual dos carros e os altos juros que impedem o consumidor de buscar crédito.

O presidente afirmou que a maioria dos carros vendidos no ano passado foram vendidos à vista, segundo ele, "porque não tem política de crédito para financiar. E a classe média baixa não está comprando mais carro, porque um carro popular de R$ 90 mil não é mais popular".

Martins ressalta ainda que o imposto que mais impacta o preço de veículos atualmente é o ICMS, cobrado pelos Estados.

"Eu não sei exatamente do entendimento do governo federal com os Estados no sentido de propiciar também a redução do ICMS, mas acredito, inclusive, que a redução desse imposto seria mais relevante do que os impostos federais."

O 'carro popular' vai voltar?

Embora haja uma expectativa de redução nos preços, a volta dos carros populares como os brasileiros já conheceram não deve acontecer, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Isso porque os veículos vendidos com este mote em épocas passadas, quando a indústria tinha números de produção e venda bem superiores aos atuais, se tornaram ultrapassados e não têm mais lugar no mercado hoje.

"O carro popular antes se caracterizava por um baixo nível de segurança e opções bastantes reduzidas de conforto e tecnologia. Não é mais possível usar esse termo - o que teremos daqui para frente são 'carros de entrada'", afirma Martins.

Cardamone explica que o aumento dos preços nos últimos anos se deveu a um processo de modernização dos modelos.

"É importante para o Brasil ter segurança em termos de menos acidentes e ser responsável com o meio ambiente. Ou seja, se juntar a regulação ideal com esse consumidor de maior poder aquisitivo, que quer tudo no carro, conectividade, infoentretenimento, ter o 'iPhone' dos carros, não tem o que fazer - o preço sobe."

Há também outros motivos, mais abrangentes, que afetaram os preços e a capacidade de compra da população.

Custos gerais de logística, frete e acesso à elementos de tecnologia encareceram no Brasil e no mundo afetados pela pandemia da covid-19, conforme apontado em uma reportagem da BBC News Brasil.

"Paralelamente, aqui no Brasil, nós tivemos uma desvalorização cambial e também tivemos a inflação. Isso tudo fez com que as empresas passassem a repassar esses custos aos seus consumidores finais", complementa Martins.

Giulia Granchi, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 25.05.23

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Lula e o ‘piston de gafieira’


As confusões dentro de um governo em disputa são o reflexo da ausência de coordenação

Era 1959 quando Billy Blanco compôs a música Piston de Gafieira. É aquela que retrata o que acontece quando o clima esquenta no salão: “A porta fecha enquanto dura o vai não vai, quem está fora não entra, quem está dentro não sai”. Nada mais parecido com o governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva.

Das confusões do ministro Juscelino Filho, passando pela titular do Turismo e pelas brigas entre as pastas de Minas e Energia e do Meio Ambiente e, agora, entre o Itamaraty e os militares, tudo parece lembrar o samba gravado por Silvio Caldas e Moreira da Silva. E qual o papel de

Lula, o presidente, nessa história? Na hora da confusão, o samba dizia que a orquestra na gafieira sempre tomava a mesma providência: tocava alto para a polícia “não manjar”. E concluía: “E nessa altura, como parte da rotina, o ‘piston’ tira a surdina e põe as coisas no lugar”.

Pela história do PT, Lula devia ser o “piston de gafieira” do governo. Em vez disso, passou cinco meses assistindo – quando não participava – ao vai não vai. Uma hora a briga era pelos juros, noutra por causa da Ucrânia e, por fim, até com quem o ajudou em sua eleição para se ver livre de Jair Bolsonaro. Pior. Quando devia tocar o trompete e mediar a briga entre o seu partido e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o presidente deixou a confusão rolar no governo até a oposição “manjar”.

As intrigas palacianas, os ciúmes e os egos terríveis vão desgastando ministros e secretários como Ariel de Castro Alves (Direitos da Criança e Adolescente), defenestrado após a primeira-dama Janja da Silva ter marcado um reunião com ele sem avisar seu chefe, o ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos). O titular da pasta não aceitava dividir os holofotes com Ariel. E ficou ainda mais contrariado porque teve de se deslocar até o gabinete do subordinado para se encontrar com Janja...

Foi ainda preciso que a disputa entre Marina Silva (Meio Ambiente) e Alexandre Silveira (Minas e Energia) ficasse exposta, sem falar nas consequências no Senado (Alcolumbre e Randolfe que o digam), para que Lula resolvesse ameaçar a tocar o trompete para defender a Petrobras. Mas, quando se tratava de vender blindados Guaranis como ambulância à Ucrânia, o presidente escutou as queixas do Itamaraty. Dará também ouvidos à base industrial da defesa? Qual a política do governo afinal?

No Congresso, petistas se somam a bolsonaristas para emparedar os comandantes das três Forças e o ministro da Defesa, José Múcio. Enquanto isso, Arthur Lira já prepara a campanha de 2026. Nela, talvez, não exista mais Bolsonaro para garantir uns 2 milhões de votos a mais ao PT. E, nessa altura, com o desgaste da rotina, nem o trompete vai pôr as coisas no lugar. •

Marcelo Godoy, ao autor deste artigo é repórter especial d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 24.05.23

Placebo fiscal

Com aumento de despesas e queda nas receitas, governo admite que déficit primário neste ano será pior que o projetado. Nova regra fiscal já parece insuficiente para estabilizar dívida pública

O governo reconheceu que o déficit fiscal deste ano será maior que o inicialmente projetado. A nova estimativa para o saldo negativo entre receitas e despesas subiu a R$ 136,2 bilhões, R$ 28,6 bilhões maior que os R$ 107,6 bilhões previstos em março, o que obrigou o governo a contingenciar um total de R$ 1,7 bilhão em gastos do orçamento. O valor também está muito distante da meta de déficit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), escolhida pelo Ministério da Fazenda na apresentação da proposta do arcabouço fiscal.

A piora nos números não surpreende, pois é mero reflexo das escolhas feitas do governo nos primeiros meses deste ano e do Congresso no ano passado. O salário mínimo já havia sido elevado em janeiro, mas o presidente Lula quis conceder um reajuste real a partir de 1.º de maio. Com aposentadorias, pensões, abono salarial e seguro-desemprego vinculados ao piso, era evidente que a projeção de gastos públicos também teria de ser elevada.

O governo também teve de aumentar o repasse a Estados e municípios para resolver o impasse do piso da enfermagem e as transferências para apoio do setor cultural no pós-pandemia, ambos aprovados pela Câmara e pelo Senado no ano passado sem que houvesse indicação das receitas que bancariam as propostas. Além disso, problemas climáticos no Sul do País prejudicaram os produtores rurais e elevaram os desembolsos com subvenções do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro).

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, afirmou que o déficit pode cair quando as regras do novo arcabouço fiscal entrarem em vigor. Mas há dúvidas sobre se a proposta terá tanto impacto quanto o governo diz esperar. Na tentativa de construir uma base de apoio sólida no Congresso, em vez de trabalhar para convencer os parlamentares a apoiar suas propostas, o governo tem apelado à liberação de recursos para emendas, o que amplia as despesas da União e, consequentemente, o déficit fiscal.

Para completar, o parecer do relator, Cláudio Cajado (PP-BA), diminuiu o espaço do governo para fazer contingenciamentos e limita os bloqueios a 25% dos gastos discricionários, justamente a rubrica em que as emendas se inserem. Cumprir a meta, portanto, exigirá necessariamente aumentar a arrecadação. Ceron disse que o Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do 2.º Bimestre ainda não incorporou decisões judiciais favoráveis ao governo na área tributária, que podem agregar receitas de R$ 50 bilhões ao orçamento deste ano, nem as alterações no voto de minerva do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que precisam do aval de um Congresso ainda reticente sobre o tema. Mas, passados os primeiros cinco meses do ano, tudo indica que o otimismo que o governo havia manifestado a respeito sobre a recuperação de até R$ 150 bilhões em receitas neste ano não vai se concretizar.

Apesar de o governo ter elevado a projeção do crescimento da economia de 1,61% para 1,91%, o que tende a aumentar a arrecadação, o relatório, ao contrário, revelou uma piora na projeção de receitas. Isso, por óbvio, fragiliza a credibilidade das metas fiscais e do próprio arcabouço, mas também alimenta as dúvidas a respeito do discurso da Fazenda sobre a reforma tributária. Com esses números, fica ainda mais difícil afirmar que a proposta não resultará em um aumento da carga e que se limitará a corrigir distorções legais e onerar setores que hoje pagam proporcionalmente menos impostos do que deveriam.

Com a estrutura de receitas atual e a rigidez das despesas públicas, a conta não fecha neste ano nem em 2024, o que dirá no médio e longo prazos. Em algum momento o País terá de encarar a realidade e rever o tamanho de suas despesas com reformas estruturais ou aceitar mais um inevitável aumento da carga tributária – quanto antes isso for definido, melhor. Com tantas incertezas, é hora de rever seus números e projeções com pragmatismo e transparência. Do contrário, estabilizar a trajetória da dívida pública, o verdadeiro objetivo do projeto do arcabouço fiscal, continuará a ser uma meta intangível. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.05.23

O mistério de Putin

Fora da Rússia, autocrata consegue cativar apoiadores tanto da direita como da esquerda

O presidente russo, Vladimir Putin, e o patriarca ortodoxo da Rússia, Kirill (à direita), participam de um culto ortodoxo de Páscoa na catedral de Cristo Salvador, em Moscou - Oleg Varov - assessoria de imprensa do patriarca ortodoxo russo Kirill/AFP) - AFP

Vladimir Putin é um mistério. Que ele agrade à maioria dos russos é explicado pelo fato de ser um autocrata com um pé fincado no populismo. O que surpreende é que, fora da Rússia, ele seja visto com simpatia tanto pela direita como por setores da esquerda.

O direitista Jair Bolsonaro foi visitá-lo às vésperas de ele ordenar a invasão da Ucrânia; o esquerdista Lula, embora tenha recentemente ajustado suas falas, já passou o pano para o ditador, dizendo que Kiev e Moscou tinham a mesma responsabilidade pela guerra.

O fascínio que Putin exerce sobre a direita tem a ver, acredito, com as bandeiras conservadoras que ele vem empunhando nos últimos anos, com destaque para a defesa da religião e a forte oposição ao chamado globalismo e a causas liberais como os direitos de homossexuais.

No caso da esquerda, parece haver um componente inercial. Os mais saudosistas veem a Rússia como sucessora da URSS, a pátria do socialismo. Mas o que mais pesa, creio, é o fato de Putin colocar-se como contraponto ao propalado imperialismo ianque. Os inimigos de meus inimigos são meus amigos. É fato que os EUA frequentemente agem de forma imperial, mas daí não decorre que estejam sempre errados. Há ocasiões, como a da Guerra da Ucrânia, em que a Casa Branca está do lado moralmente certo.

Procurar coerência nas posições clássicas da esquerda e da direita sempre foi tarefa difícil. Nunca entendi como a direita podia invocar o princípio da sacralidade da vida para condenar o direito ao aborto, mas varrê-lo para baixo do tapete na hora de defender a pena de morte. De modo análogo, tenho dificuldades para acompanhar o discurso da esquerda liberal que se socorre da autonomia individual para propugnar pelo direito de usar drogas, mas rejeita o argumento quando usado a favor da legalização do jogo.

A lição que fica é que devemos sempre desconfiar dos pacotes ideológicos que nos chegam prontos.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo e autor de "Pensando Bem..." Publicado originalmete na FSP, edição impressa, em 23.05.23, às 17h00

terça-feira, 23 de maio de 2023

O simbolismo de um chá de cadeira

Ao faltar a encontro com Lula no G7, Zelenski sugere que, por ora, não considera o Brasil confiável para mediar conflito com a Rússia; para EUA e Europa, este não é o momento para paz


Se algo sobressaiu da participação do presidente Lula da Silva na reunião de cúpula do G7, em Hiroshima, foi o fato de não ter se encontrado com o ucraniano Volodmir Zelenski. Esse episódio reforçou a opção do Brasil pela neutralidade diante do conflito entre Rússia e Ucrânia e pela criação de um grupo para iniciar a mediação de um acordo de paz. A questão de fundo exposta em Hiroshima é se vale a pena o País prosseguir nesse caminho, que inevitavelmente o aproxima de Moscou, por mais que Lula mencione o sofrimento dos civis ucranianos castigados pela guerra.

Para os Estados Unidos e a Europa Ocidental, este não é o momento para conversas sobre paz. A janela se abrirá somente quando os soldados russos forem empurrados fora do território ucraniano, graças, sobretudo, ao armamento fornecido pelos integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os riscos dessa estratégia estão calculados – no limite, o risco de Vladimir Putin responder à derrota nos campos de batalha acionando o arsenal nuclear.

Lula discorda dessa estratégia. Em sua vez de falar no G7, criticou a Rússia, mas insistiu na articulação de um processo de paz. Fora do púlpito, depois de dizer-se chateado com a ausência de Zelenski no encontro supostamente marcado para as 15h15 do último domingo no hotel em que se hospedara, o brasileiro criticou a intenção do Ocidente de forçar a rendição da Rússia. Vaticinou que levará a uma nova guerra fria e cravou que a Ucrânia e seus aliados “não querem a paz” neste momento.

O Brasil não está sozinho ao pregar a neutralidade e o início de um processo de paz. Índia e Indonésia mantêm-se na mesma linha e igualmente foram expostas ao constrangimento diplomático armado no G7 de Hiroshima. A presença de Zelenski não fora antecipada aos países convidados e elevou o grau de pressão das potências ocidentais para as nações neutras tomarem partido contra a Rússia.

O indiano Narendra Modi recebeu Zelenski reservadamente, mas não se dobrou aos seus apelos. O sul-coreano Yoon Suk Yeol manteve sua oposição ao envio de armas à Ucrânia depois de encontro bilateral. A colheita do ucraniano foi farta entre os que já apoiam sua causa. Joe Biden, dos Estados Unidos, prometeu o aporte de mais US$ 375 milhões para a ofensiva militar ucraniana e o treinamento de pilotos para o uso de caças norte-americanos F-16 – o que indica o envio também dos aparelhos.

Índia e Indonésia têm razões próprias para levar a ferro e fogo sua neutralidade e insistir no processo de paz. Em condições distintas da do Brasil, esses países estão no mesmo entorno geopolítico da Rússia na Ásia e mantêm com Moscou interação econômica e comercial em escala bem mais robusta que a brasileira. A neutralidade, para o Brasil, está calcada em princípios – paz a qualquer custo – e em uma indisfarçável resistência em se opor diretamente à Rússia, de quem é sócia no fórum Brics junto com China, Índia e África do Sul.

A ambição do presidente Lula da Silva de se alçar como protagonista de negociações de temas de interesse global não deixa de ter sua cota de relevância. Há de se levar em conta ainda o atual contexto político doméstico. Em certas áreas relevantes, como a econômica, o PT é o principal foco de oposição. É possível imaginar a insatisfação do partido de Lula se o presidente aceitasse se aliar ao esforço de guerra liderado pelos Estados Unidos, o vilão que o lulopetismo ama odiar.

O fato é que a diplomacia presidencial de Lula por ora obteve alcance raso e respostas vagas. No G7, tornou-se claro que sua insistência na neutralidade e na criação de um grupo de paz tem escassa chance de sucesso. O presidente, porém, diz que irá “até ao fim do mundo” pela paz entre Ucrânia e Rússia. Noves fora a loquacidade voluntarista de Lula, há de se pesar o gasto de energia e mobilização diplomática, o isolamento do Brasil de parceiros relevantes e a perda de potenciais benefícios. O deselegante chá de cadeira que Lula levou de Zelenski mostra que o Brasil, por ora, não é visto pela Ucrânia – e, por extensão, pelos aliados de Kiev – como um mediador confiável.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.05.23.

Entre o fisiologismo e a ideologia, o que se pode esperar do Congresso?

Apesar do retrospecto negativo, marcado pelo mensalão, pelo petrolão e pelo orçamento secreto, nem tudo é uma “questão de preço” para os parlamentares

Plenário da Câmara dos Deputados: no atual governo, Congresso terá nova oportunidade de mostrar se 'agrados' oficiais passam por cima de convicções de parlamentares 

No momento em que o Congresso se prepara para votar o novo arcabouço fiscal, em meio à instauração das CPIs dos atos de 8 de janeiro e do MST e à derrota sofrida pelo governo na Câmara dos Deputados, ao tentar alterar por decreto o novo marco legal do saneamento, a discussão sobre o fisiologismo dos parlamentares voltou a ganhar os holofotes.

Diante da fragilidade demonstrada no Legislativo pelo governo, que ainda teve de “agasalhar” o adiamento da votação do projeto das fake news e agora enfrenta a possibilidade de criação das CPIs das ONGs e do abuso de autoridade, articuladas pela oposição, prosperou por aí a ideia de que o Planalto terá de abrir ainda mais os cofres para adocicar os congressistas e conseguir ampliar sua base parlamentar – e não é para menos.

Visto pela população como uma das instituições de menor credibilidade no País, segundo as pesquisas de opinião, o Congresso fez do toma lá, dá cá um modo de vida. Do mensalão e do petrolão ao orçamento-secreto, que no governo Lula voltou a ser chamado de “emendas do relator”, seu nome de batismo, para suavizar a conotação negativa da farra promovida com o dinheiro dos pagadores de impostos, o Congresso tem estado no centro dos principais escândalos de corrupção e de mau uso do dinheiro público.

São Francisco de Assis

Ainda que existam as honrosas exceções que confirmam a regra, boa parte dos deputados e senadores, talvez a maioria, pauta suas ações de acordo com as benesses recebidas do Executivo. Como diz a oração atribuída a São Francisco de Assis, encampada pelos parlamentares na época da Constituinte, nos anos 1980, e ainda hoje uma síntese emblemática da relação incestuosa mantida entre o Legislativo e o Executivo, “é dando que se recebe”.

Em geral, os parlamentares de partidos reunidos no chamado Centrão acabam levando a fama sozinhos, mas o fisiologismo do Congresso não tem fronteiras ideológicas. Espalha-se pelas diferentes correntes de pensamento, como mostraram o mensalão e o petrolão, que envolveram o PT e outras siglas de esquerda que, desde sempre, procuram se apresentar como uma espécie de “reserva moral” da Nação.

Agora, mesmo levando isso em conta, será que, no Congresso, é tudo só uma questão de preço? Até onde vai o fisiologismo dos parlamentares e políticos do País? Até que ponto as “bondades” do governo são capazes de “comprar” os votos dos congressistas, fazendo-os passar por cima das ideias que dizem defender?

Considerando o retrospecto da turma, é provável que, para um número considerável de parlamentares, nada seja realmente inegociável. Para eles, qualquer convicção é passível de revisão, pelo devido valor. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em três instâncias na Justiça pelo envolvimento direto no mensalão e no petrolão, antes de as ações serem anuladas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por “irregularidades processuais”, parece acreditar que todo mundo está disposto a aceitar um “agrado”, em troca da sustentação do governo no Congresso.

Mas, ao contrário do que se imagina, nem sempre os congressistas agem pensando apenas no próprio bolso e em seus interesses particulares. Por mais ingênuo e inverossímil que possa parecer, diante das práticas pouco republicanas que prosperam no Parlamento, parece haver um limite para o apetite do pessoal em questões cruciais para o País.

Foi assim, por exemplo, com a derrota recente do governo na questão do novo marco do saneamento, que favorece a participação da iniciativa privada no setor e foi aprovado pelo Congresso em 2020, com o objetivo de universalizar o serviço até 2033. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considerado como o grande gestor do orçamento secreto, posicionou-se neste sentido recentemente.

“A principal reforma que o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente é a reforma de não deixar retroceder tudo que foi já aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é mais liberal”, afirmou Lira recentemente, ao participar de evento em Nova York com lideranças empresariais e investidores estrangeiros.

Voltando no tempo, foi assim também com a tentativa de Lula de prolongar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), em 2007, em seu segundo mandato, quando ele sofreu sua maior derrota até então no Congresso, depois de forte mobilização da sociedade contra a medida. Foi assim, ainda, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, acusada de promover “pedaladas fiscais” para contornar as restrições orçamentárias. Apesar de muitos analistas atribuírem o impeachment à resistência de Dilma em ceder às pressões fisiológicas do Centrão, o Congresso mostrou novamente, com amparo na Justiça, que nem sempre se curva ao Executivo.

Fraudes financeiras

O mesmo aconteceu com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, acusado de corrupção e envolvimento em fraudes financeiras, e com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência no Colégio Eleitoral, em 1985, ainda durante o regime militar, quando superou o ex-governador paulista Paulo Maluf, que não poupou esforços na época para “agradar” os parlamentares que decidiriam o pleito.

Muitas vezes, é certo, o Congresso age pressionado pela voz rouca das ruas, como na eleição de Tancredo Neves, na tentativa de prolongar a CPMF e nos impeachments de Dilma e de Collor. De um jeito ou de outro, porém, acaba mostrando que nem tudo está à venda e que é capaz de tomar decisões que estão à altura do que se espera dele.

Hoje, dominado pelas forças de centro-direita e de direita, o Congresso terá oportunidade de mostrar mais uma vez se a liberação de verbas bilionárias pelo governo fará os parlamentares deixarem de lado suas convicções para endossar o “revogaço” defendido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por muitos de seus aliados.

Está nas mãos do Congresso conter – ou não – o “retrocesso” de que fala Lira, com a rejeição de medidas como a liberação de despesas fora do Orçamento, prevista no novo arcabouço fiscal, a revisão da Lei das Estatais, da reforma trabalhista e da autonomia do Banco Central, a retomada do imposto sindical e a ampliação do poder da União na gestão da Eletrobrás, entre outras medidas do gênero.

As cartas estão dadas. Talvez, no fim, o Congresso confirme que o fisiologismo está acima de tudo e que qualquer expectativa em sentido contrário, mesmo em relação a medidas que podem selar o destino do País, condenando-o de vez ao atraso, é pura ingenuidade. Mas, como já mostrou em outras oportunidades, inclusive na rejeição recente do decreto presidencial que mudava o novo marco do saneamento, quem sabe o Congresso não mostre de novo que nem tudo é “uma questão de preço” para os parlamentares, como se tornou voz corrente na sociedade.

José Fucs, o autor deste artigo, é repórter especial do Estadão desde 2017. Jornalista desde 1983, passou por alguns dos principais veículos de comunicação do País. Foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da revista Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.05.23, às 13h16

Gabriela Hardt reassume Lava Jato

Juíza próxima de Sérgio Moro volta a atuar nas ações remanescentes da operação por ordem do TRF-4 que afastou Eduardo Appio, desafeto do senador, dos processos da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba

Gabriela Hardt substituiu Moro temporariamente na 13.ª Vara de Curitiba. Foto: Reprodução

A decisão do Tribunal Federal Regional da 4ª Região que afastou o juiz Eduardo Appio da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba colocou a condução da Lava Jato, temporariamente, nas mãos da juíza Gabriela Hardt, que já atuou Operação. A magistrada é substituta do ‘juízo da Lava Jato’ e já despachou ao lado dos dois antecessores de Appio: Luiz Antônio Bonat, alçado a desembargador da Corte Regional; e Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça e atual senador.

A magistrada inclusive já proferiu o primeiro despacho na Lava Jato após reassumir a Operação. Na manhã desta terça-feira, 23, determinou que o Ministério Público Federal se manifeste no bojo do processo em que Appio instou a Polícia Federal a apurar a escuta ilegal encontrada na cela do doleiro Alberto Youssef à época em que ele esteve preso na carceragem da corporação em Curitiba.

Se, desde fevereiro, os processos remanescentes da Lava Jato eram conduzidos por um juiz declaradamente crítico aos métodos da antiga força-tarefa, agora as ações passam para uma magistrada que proferiu despachos no auge da Operação e mantém bom relacionamento com Moro, desde o tempo em que ele era titular da 13ª Vara.

Gabriela chegou a sentenciar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenando o petista 12 anos e onze meses de prisão no processo do sítio de Atibaia. Posteriormente, a condenação foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para analisar processos envolvendo o presidente.

Em uma decisão recente, ligada ao ex-juiz da Lava Jato, Gabriela mandou prender núcleo do PCC que planejava o sequestro de Moro. A juíza acolheu pedido da Polícia Federal e autorizou a Operação Sequaz - deflagrada no dia 22 de março pela Polícia Federal.

À época, Gabriela Hardt estava cobrindo férias da juíza Sandra Regina Soares, titular da 9ª Vara Federal de Curitiba. O fato de a Operação ter sido deflagrada por ordem de Gabriela chegou a ser mencionado inclusive pelo presidente Lula, que teve a juíza como um de seus algozes na Lava Jato.

Os processos da Lava Jato, no entanto, podem ficar pouco tempo nas mãos de Gabriela e eventualmente serem analisados por outro magistrado. Isso porque Hardt atualmente participa de um concurso de remoção: seu objetivo primeiro é atuar em outros juízos, fora de Curitiba. O concurso ainda está em trâmite, ou seja, também não há definição sobre a futura atuação da magistrada.

A investigação do TRF-4 sobre Appio não tem data para terminar. Ao determinar o afastamento cautelar do magistrado, o TRF-4  deu 15 dias para que ele apresente defesa prévia sobre as suspeitas que recaem sobre ele - de suposta ligação com 'ameaça' narrada pelo advogado João Malucelli, filho do desembargador Marcelo Malucelli, do TRF-4.

Pepita Ortega, do blog do Fausto Macedo, texto reproduzido n'O Estado de S. Paulo, em 23.05.23, às 12h57

Lula volta do G7 percebido como menos neutro em relação à Guerra da Ucrânia

Pesquisadores veem petista ainda preso à política externa do início dos anos 2000 e apontam outras prioridades

De terno cinza, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminha em Hiroshima, no Japão, cercado por figuras como o premiê do Vietnã, Pham Minh Chinh; o premiê do Japão, Fumio Kishida; o secretário-geral da OCDE, Mathias Cormann; o presidente de Comoros, Azali Assoumani; o premiê da Índia, Narendra Modi; o secretário-geral da ONU, António Guterres; e o premiê da Austrália, Anthony Albanese - Takashi Aoyama/Pool - 21.mai.23/Reuters

Ao longo da cúpula do G7 realizada em Hiroshima, no Japão, neste fim de semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao defender a reforma de órgãos multilaterais —reivindicação histórica de sua política externa—, insistiu que é preciso deixar o passado.

Parte dos analistas ouvidos pela Folha após as declarações do petista afirma que ele está correto. Mas diz também que o mesmo conselho se aplica à sua própria conduta, que precisa atualizar prioridades em relação à política externa de seus outros mandatos.

Para pesquisadores, ao responsabilizar potências do Ocidente pela Guerra da Ucrânia e insistir em um papel de negociação da paz em relação ao qual Kiev e seus aliados mostram desconfiança, Lula perdeu a oportunidade de usar o espaço do G7 para pautar discussões em áreas em que o Brasil pode de fato fazer a diferença, como meio ambiente.

"Lula perde credibilidade e tempo com essa ideia de ser mediador", diz Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper. "Estamos assistindo a uma nova Guerra Fria, um conflito que é muito mais entre Ocidente e Oriente do que entre Sul e Norte. O Brasil está pautando suas ações por uma narrativa do início dos anos 2000 em um momento que pode definir as relações internacionais do século 21. Lula precisa perceber isso, sob a pena de se tornar uma liderança envelhecida."

Para ele, a proposta de Brasília de se apresentar como um mediadora para o conflito no Leste Europeu nunca foi crível, dadas as declarações de Lula culpando também a Ucrânia pela guerra ainda durante a campanha eleitoral e a proximidade do Brasil com a Rússia.

O pesquisador argumenta que, para convencer os países a se sentarem em uma mesa, era preciso alguém com equidistância em relação às partes, característica não atribuível a Lula.

Carolina Pavese, doutora em relações internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM, também diz acreditar que qualquer tentativa de negociar na guerra pelo Brasil estaria fadada ao fracasso. Para ela, o motivo é uma "clara incompatibilidade de abordagem e de estratégia" sobre como lidar com esse conflito pelos líderes do G7, que são também aliados de Kiev, e Lula.

Tanto ela como outros especialistas afirmam que o cancelamento da aguardada reunião entre Lula e Zelenski no evento no domingo (21) comprometeu a proposta de mediação de paz do petista —mesmo que o Itamaraty afirme que foi o ucraniano, e não o brasileiro, que não apareceu para o encontro marcado entre os dois.

Nesse sentido, a cúpula do G7 teria representado o fracasso de uma oportunidade de melhorar as relações entre os dois países, chacoalhadas desde que o petista sugeriu que a Ucrânia deveria considerar ceder território para a Rússia para dar um fim à guerra.

Pavese diz que, em especial para Lula, a ocasião seria bastante conveniente, uma vez que permitiria um encontro para o qual sofre pressão para realizar sem que precisasse fazer disso um grande evento.

O revés foi agravado por uma cena da única reunião compartilhada entre os dois chefes de Estado, uma sessão de trabalho sobre paz e prosperidade global dividida com líderes do G7 e convidados da cúpula que mostra que Lula não se levantou para cumprimentar o ucraniano quando este entrou na sala, ao contrário de vários dos presentes.

Em encontro com jornalistas ao fim da cúpula, o petista afirmou que, distraído ao rascunhar ideias para seu discurso, não viu a chegada de Zelenski, e que, quando a reunião terminou, ele já estava atrasado para outro compromisso.

O problema é que política externa é "basicamente simbólica", diz Consentino —embora, pela mesma via, Pavese argumente que o ucraniano tampouco fez qualquer esforço para se aproximar do brasileiro.

O resultado da soma desses eventos é, para alguns dos especialistas ouvidos pela reportagem, uma percepção por parte do Ocidente de que Lula sai do G7 representando não uma posição de neutralidade, como tanto busca enfatizar, e sim mais próxima de Vladimir Putin.

Anedoticamente, nesta segunda (22), o chanceler da Dinamarca, Lars Lokke Rasmussen, pôs o Brasil na mesma categoria que Índia e China, segundo ele países "não aliados" à Ucrânia, ao dizer que pretendia organizar um encontro para discutir opções de paz para o conflito no Leste Europeu às margens de um evento da União Europeia em Bruxelas.

As três nações, que dividem o Brics com a Rússia e a África do Sul, têm alegado neutralidade diante do conflito. Mas Pequim e Nova Déli são aliados estratégicos de Moscou e não condenaram a invasão russa de Kiev no âmbito das Nações Unidas, ao contrário de Brasília.

Vinicius Rodrigues Vieira, professor da Faap, avalia, porém, que é preciso levar em conta que o Ocidente tem uma predisposição a ver as coisas de um modo excessivamente binário e de desconfiar de qualquer um que não adere automaticamente a suas propostas.

Além disso, uma coisa é a narrativa, outra é a realidade: o G7 vem perdendo cada vez mais poderio econômico, e seus países, que somavam mais de metade do PIB global em 1980, este ano veem essa porcentagem corresponder a apenas um terço.

Vieira afirma que o Estados-membros G7 têm consciência disso e que precisam do apoio de países como o Brasil para não se isolar. Ele menciona, por exemplo, as reuniões de Lula com o premiê japonês, Fumio Kishida, que prometeu isenção de vistos para brasileiros e anunciou um empréstimo bilionário para o país para a saúde e outros setores, e com o premiê canadense, Justin Trudeau, que considera como êxitos da gestão do petista nos últimos dias.

Clara Balbi para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente na edição impressa, em 22.05.23, às 20h56.

Os rolos da família Bolsonaro

A impressão é que qualquer pessoa próxima do clã está sob suspeição

Em março de 2021, quando o presidente que se elegera com o discurso de combater a corrupção estava havia quase dois anos e meio no poder, os Bolsonaros bateram um recorde. Seguindo os passos do chefe do clã, os quatro filhos de Jair enfrentavam investigações da Justiça e da Polícia Federal. As rachadinhas de Flávio estouraram no início do mandato.

Hoje, com podres irrompendo a cada instante, a impressão é que qualquer pessoa que tenha tido um contato mais próximo com a família está sob suspeição. Uma amiga da ex-primeira-dama Michelle que emprestava o cartão de crédito a ela. Na hora de pagar a fatura, sempre em dinheiro vivo, entrava em cena o faz-tudo da Presidência, um tenente-coronel que está preso. A desculpa é que Bolsonaro é pão-duro. Mas só quando o capital sai do seu bolso. No cartão corporativo, chegou a gastar R$ 55,2 mil numa única padaria um dia após o casamento de Eduardo.

Segundo a CNN Brasil, o ex-presidente acumula quase 600 processos. Seiscentos, você não leu errado. O levantamento é do partido de Bolsonaro, o PL, que monitora os casos porque cabe aos cofres da legenda custear a defesa em grande parte das ações, que vão de graves crimes eleitorais a multas por não ter usado máscara na pandemia ou capacete nas motociatas. É um custo espantoso —advogados que o digam— para manter viva a estratégia de vitimização.

Talvez com inveja do pai, que trocou os passeios de jet ski por visitas obrigatórias à PF, ou da ex-primeira-dama, que tem conquistado nos rolos do marido um protagonismo tão brilhante como joias árabes, o vereador Carlos resolveu reagir.

A semana passada trouxe novidades ao inquérito que apura o esquema de desvio de dinheiro no gabinete do filho 02. Ana Cristina Valle, ex-mulher de Jair, era a líder de um grupo de nove servidores que movimentou mais de R$ 3 milhões entre 2005 e 2018. Deus, pátria —e a família em primeiro lugar.

Alvaro Costa e Silva, o autor deste artigo, é Jornalista. Atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.05.23, às 18h16


Vinicius Jr. defende sua integridade moral, esportiva e humana.

O @vinijr não se conforma com as seguidas manifestações de racismo pelos torcedores em Majorca, em Sevilha, em Madrid, em vários lugares da Espanha destacando uma tendência preocupante que eu gostaria de que a história contradissesse.

Gostaria que o povo espanhol mostrasse acolhimento e respeito a todas as raças, a todos os jogadores que vêm de todos os lugares do mundo. Virou uma queda de braço entre o jogador, um menino de 20 e poucos anos, e uma atitude confortável e intolerante por parte de muitos torcedores na Espanha, uma omissão por parte do próprio clube a que ele pertence, @realmadrid, da liga espanhola @LaLiga, enfim, que estão confortavelmente instalados nas suas posições de importância no futebol espanhol, do futebol mundial, enfim, não querem reconhecer o fato de que é imprescindível que se faça alguma coisa.

Que essas atitudes sejam enfim, desestimuladas através da lei porque já tá muito claro que parte da torcida espanhola vem se manifestando contra o Vinicius Junior, principalmente porque ele segue defendendo sua integridade moral, sua integridade esportiva, sua integridade humana.

É também um sinal dos tempos de hoje. O mundo de hoje tá muito difícil. O facismo ganhou muito espaço, as pessoas não se incomodam com as consequências de atitudes racistas, fascistas, reacionárias e etc. Não têm disposição para compreensão da profundidade desse problema.

É uma falta de responsabilidade dessa turma jovem. Racismo mesmo, racismo, nazismo, facismo, essas coisas que já se conhece muito bem. A história já registrou muito de tudo isso. Tá registrando agora de novo mais um fato ligado a esse lado terrível da humanidade.

Gilberto Gil, o autor deste artigo, é músico e poeta. Ativista das causs do meio ambiente e dos direitos humanos. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado em sua conta pessoal no Twitter, em 22.05.23

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Anistia a partidos é ataque à democracia

Vemos o avanço de ditaduras plebiscitárias, como Rússia e Hungria, e o crescimento irresistível do modelo chinês

Plenário  da Câmara do Deputados em Brasília.Plenário da Câmara do Deputados em Brasília. Brenno Carvalho / Agência O Globo

Quando Bolsonaro foi eleito, surgiu por aqui uma fornada de livros sobre a decadência da democracia e a ascensão do autoritarismo em várias partes do mundo. “Como as democracias morrem”, “O povo contra a democracia”, os novos títulos se sucediam, e havia neles alguns pontos convergentes. A globalização deixou muita gente para trás, criando ressentimentos. A confiança nas elites políticas se esvaiu diante de líderes preocupados com seu próprio interesse, de costas para a sociedade.

Neste momento, no Brasil, a democracia está próxima de receber um ataque que a enfraquecerá ainda mais. Trata-se de um projeto que anistia as transgressões dos partidos não só quanto ao respeito às cotas minoritárias, mas também quanto à prestação de contas de milhões de reais gastos: compra de avião, toneladas de carne e outras despesas extravagantes.

Os partidos criam regras e as transgridem. O TSE decide puni-los, e eles criam mais uma lei de anistia para suas próprias transgressões. Eles se dotam, simultaneamente, do poder de regular e de perdoar, incluindo no perdão gastos com o fundo eleitoral. Só com as eleições, os partidos em 2022 consumiram R$ 4,9 bilhões. O fundo partidário distribuiu um pouco mais de R$ 1 bilhão.

Interessante observar que a manobra da anistia envolve quase todos os partidos, deixando de fora apenas a coligação Rede-PSOL e o Partido Novo. A mais importante consequência de uma medida como essa é o abismo que se forma entre política e opinião pública, deixando o caminho aberto para oportunistas que eventualmente queiram inventar uma nova política.

O caminho econômico, além de difícil, não é o único. Não há sinais de que as elites políticas brasileiras tenham entendido a mensagem de 2018 e ignorem que soluções autoritárias continuam sendo atraentes à medida que se aprofunda a desilusão com a democracia.

Bolsonaro fez isso em 2018. A “nova política” se desmoralizou com a introdução do orçamento secreto. Os bolsonaristas agrupados no PL apoiam a anistia, logo não teriam condições de se diferenciar num futuro próximo. Mas a existência do abismo é um convite à aventura, e ela não tem de ser vivida necessariamente pelos mesmos personagens.

Num livro recente chamado “A crise do capitalismo democrático”, o jornalista Martin Wolf analisa não somente a globalização e suas lacunas, mas, apesar de sua ênfase na economia, destaca também a questão política. Assim como todos os outros autores, Wolf está longe do otimismo com o futuro da democracia, ressaltado num célebre ensaio de Francis Fukuyama, “O fim da História”.

Ninguém mais acredita que a democracia é para sempre, e muitos duvidam de sua capacidade de encarar as reformas necessárias para sobreviver. O que vemos no mundo é o avanço de ditaduras plebiscitárias, como na Rússia ou na Hungria, e o crescimento irresistível do modelo autoritário chinês.

Como jornalista econômico, Wolf ressalta que está na própria economia a explicação para a fragilidade democrática. Mas não deixa de avançar noutros pontos essenciais:

— Nem a política nem a economia funcionarão sem um substancial nível de honestidade, confiança, autocontenção e lealdade às instituições. Na ausência desses fatores, um ciclo de descrédito corroerá as relações políticas, sociais e econômicas.

Concordo com a ideia de que nenhum sistema político consegue sobreviver sem a prevalência de normas fundamentais de comportamento. Essa ideia, aplicada ao Brasil, mostra que a luta pela democracia está perdida em alguns fundamentos. Melhorar a economia é essencial. Wolf reconhece que as pessoas querem estabilidade e prosperidade para si e para os filhos. Na ausência disso, tornam-se ressentidas.

Há poucos sinais de que as elites políticas tenham aprendido as lições de 2018, não aparece nelas um simples núcleo destinado a salvá-las de suas próprias tendências à autodestruição. Digo autodestruição num contexto democrático; os piores vão sempre se adaptar aos regimes autoritários. Por enquanto, estamos apenas esperando o ataque que virá na forma de anistia.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 22.05.23