quinta-feira, 22 de julho de 2021

O médoto Bolsonaro: um assalto à democracia em Câmera lenta

Em quase três anos de Governo, presidente promove corrosão da democracia, quebra pactos sociais do Brasil e, seguindo o modelo ultradireitista de outros países, ameaça um legado de 36 anos de regimes democráticos

Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ―uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela no e-mail ao qual o EL PAÍS teve acesso. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.

Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.

“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ―o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.

O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.

Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.

Democracia verde oliva

Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.

O presidente Jair Bolsonaro durante formatura na Academia Militar dos Agulhas Negras, em Resende (RJ) em 24 de setembro de 2020. (Crédito da foto: Isac Nóbrega/PR)

O Governo federal já gastou o equivalente a 86,8 bilhões de reais em privilégios à categoria, uma alta de 17% nos anos Bolsonaro. Neste cálculo, estão os benefícios concedidos pela reforma da Previdência da caserna ―podem se aposentar com salário integral, por exemplo—; um reajuste salarial de 13% —enquanto o dos demais servidores públicos não superou os 8%— e a concessão de comissionamentos extraordinários aos militares que participam de conselhos administrativos de estatais. A conta foi feita, a pedido do EL PAÍS, pelo cientista político Willian Nozaki, que em maio publicou o estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?. Na equação não está inclusa a mudança na regra que permite que militares aposentados, como Bolsonaro ou seus ministros Walter Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) possam receber acima do teto constitucional de 39.293 reais.

Bolsonaro estende benefícios aos policiais militares das 27 unidades da federação. Os PMs são uma base natural do presidente, que poderiam jogar a favor dele, a despeito do comando dos governadores, a quem respondem. O presidente aprovou recentemente um programa de financiamento habitacional exclusivo para as forças de segurança. Também incluiu na reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados um artigo que entende que os policiais seriam carreira típica de Estado, portanto, não correriam o risco de demissão, como as demais funções.

2005
996
2010
1427
2015
1783
2016
2957
2017
3020
2018
2765
2019
3515
2020
6157

A pergunta é se todo esse prestígio alcançado pelos militares e PMs no Governo vai se converter em apoio em caso de uma tentativa de golpe do presidente no ano que vem. “Se isso acontecer, as Forças Armadas terão que tomar uma decisão. Se agirão dentro da legalidade, rompendo de vez publicamente com Bolsonaro ou não”, alerta Amorim Neto. As PMs, por sua vez, seguem a corrente que estiver mais forte. “As polícias no Brasil têm duplo comando. Elas obedecem aos 27 governadores e ao comandante do Exército. Se você perguntar para um oficial da PM quem ele irá seguir em caso de ameaça, a resposta que ele lhe dará será: quem estiver mais forte”, diz o professor Zaverucha.

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Celso Amorim, acredita que nenhum comandante das Forças Armadas está de acordo com uma intervenção. “Isso é uma discussão mais entre alguns generais da reserva. Por mais que boa parte da tropa concorde com as ideias do presidente, ela vai contra o que pensa o Alto Comando do Exército. Ela não vai ultrapassar essa linha”, diz. Para Amorim, o presidente não é bem visto na caserna, quando forçosamente leva a política para dentro dos quartéis, como no episódio que resultou na demissão coletiva do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em maio, por discordarem da linha de atuação do presidente. O ex-ministro lembra também que todo golpe requer apoio internacional, algo que o Brasil deixou de ter após o início do Governo Joe Biden.

Os militares, contudo, também vivem o desgaste do poder ao lado de Bolsonaro. Eles emprestaram sua imagem a um Governo que perdeu prestígio com os resultados desastrosos da pandemia, alto desemprego e agora acossado com acusações de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 que alcançam integrantes do Exército. As acusações de propina, investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, começam agora a levantar suspeitas sobre vários militares que ocupam ou ocuparam cargos no Ministério da Saúde.

Jair Bolsonaro não vive exatamente seu momento mais popular nem entre as instituições, nem junto à opinião pública. Rejeitado por metade da população pela gestão da crise sanitária, o mandatário tem encarado protestos puxados por partidos de esquerda contra sua administração desde maio. As pesquisas eleitorais já mostravam uma erosão do apoio popular pouco antes do noticiário brasileiro ser tomado pelas denúncias de corrupção no Ministério da Saúde na última semana de junho. Um levantamento feito pelo Instituto Ipec entre os dias 17 e 21 daquele mês revelava queda preocupante da sua popularidade diante do ex-presidente Lula: 49% a favor do petista, contra 23% do presidente, o que levaria Lula a ganhar em primeiro turno. Numa pesquisa mais recente, feita pelo instituto Datafolha entre os dias 7 e 8 deste mês, Lula aparece com 58% de apoio para sua candidatura presidencial contra 31% de Bolsonaro —a rejeição ao presidente chega a 59%, contra 37% do petista.

Combustível para se reerguer

Faltando um ano e três meses para as eleições presidenciais, Bolsonaro ainda tem tempo, eleitores e alianças fiéis, além da máquina pública a seu favor para navegar nestas águas revoltas até chegar a 2022 competitivo para se reeleger. Ao farejar o risco de perder as eleições, o presidente já plantou as sementes do caos ―assim como Trump fez no ano passado― inventando um risco de fraude. A verborragia calculada para atormentar adversários e incomodar as instituições ajuda a desviar a atenção. É o método adotado desde que assumiu a presidência.

E ―novamente seguindo o roteiro trumpista―, dia sim, dia não, submete o país a sobressaltos com seus discursos radicais e falas distópicas que confrontam a realidade e desafiam a Constituição. Enquanto distrai a opinião pública, muda leis por atos institucionais que não dependem do Congresso. No dia 19 de julho de 2019, por exemplo, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros, Bolsonaro afirmou que não existia gente passando fome no Brasil, apesar de 5,2 milhões de brasileiros que se encontravam nessa situação àquela altura, mais do que a população da Nova Zelândia. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, dizia enfaticamente na presença de jornalistas internacionais. “Passa-se mal, não come bem. Agora passar fome, não”, afirmou ele com veemência.

Enquanto a imprensa repercutia a sua fala, naquele mesmo dia foi publicado no Diário Oficial da União o decreto número 9.926/19 que promoveu um revogaço de 324 atos administrativos, incluindo o que determinava a criação de conselhos com a participação de representantes da sociedade civil em decisões sobre políticas públicas. Essa foi a primeira canetada para reduzir o controle social sobre o poder público. Outros vieram, diminuindo também a transparência dos atos públicos.os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovado pela Congresso em 2003. O Estatuto previa um referendo em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram contra a proibição da venda de armas naquele ano. As restrições à posse de armas, porém, continuaram valendo segundo a lei de 2003. Mas desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Os quatro decretos mais recentes foram assinados em fevereiro deste ano com o objetivo de facilitar ainda mais a venda de armas e reduzir a fiscalização pelos órgãos competentes. “Temos projetos antigos no Congresso do grupo pró-armas, mas eles sempre enfrentaram resistência. Nenhuma ação conseguiu desmontar o Estatuto do Desarmamento, por isso o Governo partiu para os decretos”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé. Risso explica que, apesar dos decretos poderem ser contestados mais facilmente na Justiça —a ministra do Supremo Rosa Weber suspendeu em liminar a eficácia de diversos dispositivos de quatro decretos presidenciais—, as armas que já foram vendidas durante a queda de braço jurídica não terão mais retorno. “A obsessão do presidente pelas armas foi o primeiro sinal de que o Governo iria mexer com o sistema democrático, uma vez que ele começa a fazer decretos para legislar. E uma vez derrubado o decreto, o Governo revoga e publica outros três. É uma forma de driblar os sistemas de controle”, afirma.

No início da pandemia, no ano passado, o Governo editou uma medida provisória suspendendo os prazos de respostas aos pedidos de informação enquanto durasse a crise sanitária para todos os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovado pela Congresso em 2003. O Estatuto previa um referendo em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram contra a proibição da venda de armas naquele ano. As restrições à posse de armas, porém, continuaram valendo segundo a lei de 2003. Mas desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Em um cenário hipotético em que Bolsonaro perde a reeleição e tenta se manter no poder, a existência de um grande grupo de simpatizantes que se muniram de armas de fogo durante seu Governo representa um cenário sinistro. Desse modo, contornar os limites impostos pelas leis cumpre uma dupla função: manter a lealdade de seu núcleo duro de apoio e, ao mesmo tempo, proteger seus próprios interesses.

Enquanto os atos facilitam a venda de armas, nenhuma outra área sofreu mais ataques do Governo Bolsonaro sob esse método do que a proteção socioambiental. Já são 1.112 atos voltados para alterar a legislação ambiental e facilitar a exploração das florestas, segundo o monitor Política por Inteiro, do Instituto Talanoa. A eficiência dessa estratégia é incontestável. O desmatamento na Amazônia bate recorde desde a chegada de Bolsonaro e o Governo faz vista grossa para a ação de garimpeiros e madeireiros. O Fundo Amazônia, que recebe doações estrangeiras com o objetivo de promover ações de controle e combate ao desmatamento na Amazônia, foi uma das vítimas desse revogaço. O fundo tinha um comitê técnico que, deliberadamente, não foi retomado. Assim, foi rompido o contrato, deixando 2,9 bilhões de reais acumulados no fundo até hoje.

Pesca
29
Meio Ambiente
21
Mineração
9
Agricultura
8
Energia
8
Florestas
7
Biodiversidade
6
Indígena
5
Institucional
3
Terras
3
Marinho
3
Águas
2
Turismo
1
Mudança do Clima
1
Quilombolas

Do total de atos, 107 tiveram como objetivo flexibilizar as normas vigentes de forma unilateral pelo Executivo. Foi assim que Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha: acabar com o que chamou de “indústria da multa no campo”. Um decreto de abril de 2019 passou a obrigar os órgãos de fiscalização a “estimular a conciliação” nos casos de infrações administrativas por danos ao meio ambiente. Na prática, os infratores passaram a ser convidados a participar das audiências, que não são obrigatórias. E mesmo os que são multados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) ganham descontos e maiores prazos para pagar. “A conciliação ambiental foi criada para travar as multas. Essas audiências não foram marcadas. Criou-se a indústria do perdão”, lamenta Natalie Unterstell, diretora-presidente do Instituto Talanoa.

Não por acaso os ruralistas interessados em ampliar seus domínios no campo em antítese à preservação são hoje uma base de sustentação do presidente. A bancada de deputados que representam o agronegócio é parte do grupo legislativo Centrão que garante ao presidente a sua estabilidade no poder, depois do acordo selado no ano passado. Essa convergência no Congresso levou à aprovação, em 13 de maio, de um projeto de lei que flexibiliza regras para concessão de licenciamento ambiental para determinados empreendimentos. E ao apoio à aprovação do projeto de lei 490, que dificulta demarcações de terras indígenas e abre espaço para que as terras sejam exploradas pelo agronegócio —foi aprovado no final de junho numa comissão da Câmara.

A intimidação pública de indígenas e ativistas também é parte do plano Bolsonaro. Em abril deste ano a Polícia Federal abriu inquérito para apurar a conduta dos líderes indígenas Sônia Guajajara e Almir Suruí por supostamente propagar “mentiras” contra o Planalto. O suposto crime foi veicular vídeos de uma campanha de preservação da memória dos povos indígenas, cujo fio condutor era o mote “Nenhuma gota a mais”, referente ao sangue derramado por ataques de invasores ou pela covid-19. O pedido de inquérito partiu da Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje dirigida por um ex-dirigente da PF, Marcelo Xavier, a pedido do presidente. Sem provas, o inquérito foi arquivado dois meses depois.

Em setembro de 2019, uma operação da Polícia Civil de Santarém, em Belém do Pará, mandou prender quatro brigadistas voluntários sob suspeita de terem promovido um incêndio criminoso em setembro em Alter do Chão, uma região paradisíaca no norte do país. Os quatro jovens tiveram as cabeças raspadas e foram acusados de provocar os incêndios para obter mais verbas de ONGs num inquérito cheio de falhas. Era tudo especulação, como apontou um inquérito da Polícia Federal concluído em 2020, que afirmou não haver evidências de que os quatro rapazes eram culpados. Foi um grande espetáculo que serviu para Bolsonaro se descolar da responsabilidade pelo chamado Dia do Fogo, organizado por fazendeiros bolsonaristas do Pará, com queimadas tão intensas que fizeram a fumaça chegar até São Paulo, a milhares de quilômetros de lá. As ações, no entanto, seguem a reverberar na rede de informações dos bolsonaristas até hoje com versões que culpam os brigadistas, as ONGs, e afirmam até que o ator Leonardo di Caprio financiaria essas organizações com intuito criminoso.

Notícias sob medida

As redes de comunicação do bolsonarismo são um capítulo à parte na fragilização da democracia brasileira. Desde que assumiu o poder, Bolsonaro faz uma live semanal nas redes sociais em que muitas vezes desdiz ―num espaço blindado para críticas― o que ele ou seus ministros afirmaram em público. No exercício de poder, o presidente mantém sua linha de intolerância com os jornalistas, em arroubos que já eram conhecidos desde seus tempos de deputado. E se multiplicaram com Bolsonaro presidente, incluindo milícias virtuais para atacar profissionais, especialmente mulheres, num assédio amplificado por seus seguidores. Não por acaso, o mandatário brasileiro entrou este ano para a seleta lista de protofascistas que perseguem a imprensa, segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras. Nessa lista de “predadores da imprensa” estão Nicolás Maduro, e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

Sua aversão à imprensa fez o presidente fechar um círculo com sites e redes de televisão que o apoiam incondicionalmente —e recebem melhores verbas publicitárias estatais por isso. São portais e TVs que reduzem o impacto da pandemia da covid-19, e ignoram as suas manobras casuísticas. Bolsonaro só dá entrevistas a esses meios afins. Parte da estratégia bolsonarista incluiu facilitar a venda de uma concessão pública de televisão à Rede Jovem Pan, o grupo com o maior número de comentaristas defensores de Bolsonaro na rádio e na internet.

É dessas fontes que seus mais leais seguidores se abastecem de informações. Vinicius Publio, de 45 anos, por exemplo, é um orgulhoso bolsonarista que não acompanha a imprensa e raramente assiste a um telejornal. Ele busca informações pelas redes que apoiam Bolsonaro e as que o presidente, sua equipe e seus ciberescudeiros alimentam com uma avalanche de conteúdos. Entre eles, vídeos com propaganda das ações do Governo, as visitas surpresas de Bolsonaro a pequenas cidades, balanços ministeriais triunfalistas, muitas vezes com meias verdades.

Publio admira o perfil do presidente. “É autêntico, fala claramente, diz o que o povo quer ouvir”, explica ele numa cafeteria em Barueri, na grande São Paulo. Publio compartilha com o presidente os valores, a ideologia, o gosto por armas e pelas motos potentes. A bordo de sua BMW, foi um dos que acompanharam o mandatário no comboio de motos num sábado de junho pelas ruas e estradas de São Paulo. Bolsonaro transformou os passeios de motos com seguidores em manifestações públicas de apoio popular, dentro de uma sofisticada estratégia de relacionamento com seus seguidores.

O bolsonarista Vinicius Publio, 45, posa com sua motocicleta em Barueri, cidade de São Paulo onde trabalha como policial militar, no dia 23 de junho. (Crédito da foto: Toni Pires)

Casado e pai de dois filhos adolescentes, Publio combina seu emprego na Polícia Militar com negócios imobiliários. Personifica o núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro, aqueles que permanecem leais a ele apesar de tudo. Mais de meio milhão de mortes por pandemia, inflação ascendente, incêndios na Amazônia ... “São cerca de 15% do eleitorado brasileiro, com presença destacada de homens brancos de certa idade e alta renda”, explica Isabela Kalil, coordenadora do Observatório de Extrema Direita.

É este grupo que endossa o presidente e propaga suas verdades sem questionar. Uma parte do Brasil que é imagem e semelhança com o presidente. Bolsonaro governa no caos para ganhar espaço político e implementar seu projeto de poder. Enquanto não alcança um novo mandato, usa os recursos disponíveis na legislação brasileira para intimidar adversários. Desde que assumiu, em 2019, seu Governo intensificou a perseguição a seus críticos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN).

Consolidada em 1983, dois anos antes do fim da ditadura, a LSN é mais um entulho da era militar no Brasil. É ela que tem embasado inquéritos abertos pela Polícia Federal e até pela Polícia Civil contra professores, artistas, ativistas. Foram vítimas de processos do Governo com base nessa lei desde o youtuber Felipe Neto por chamar Bolsonaro de “genocida” nas redes sociais, o cartunista Aroeira, que desenhou o símbolo do fascismo como se o presidente o tivesse pintado, até o jornalista Ricardo Noblat por ter partilhado a charge de Aroeira nas redes sociais. “Essa lei significou um dos elementos que mantinham o sistema ditatorial. Ela pune a crítica”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP. “Deveria ter sido revogada e não foi, mas em compensação existia um certo pacto na sociedade por não utilizá-la.”

O autoritarismo do presidente no emprego dessa lei contamina até “o guarda da esquina”, usando a expressão cunhada na ditadura pelo então vice-presidente Pedro Aleixo no Governo de Costa e Silva, em 1968, que temia o efeito da institucionalização do AI-5 sobre as tropas. No final de maio, o professor Arquidones Leão, de Trindade, região metropolitana de Goiânia, foi detido por um policial militar por supostamente caluniar o presidente. Leão tinha uma faixa colada ao capô do carro onde se lia “Fora Bolsonaro Genocida”. A justificativa do policial para detê-lo era o desrespeito à Lei de Segurança Nacional. Leão, que é também secretário estadual do Partido dos Trabalhadores em Goiás, teve de depor na Polícia Federal, e foi liberado horas depois.

As salas de aulas e as universidades têm sido uma frente de batalha para Bolsonaro desde que chegou ao poder. Segundo ele, estão cheias de esquerdistas pregando o comunismo. O Governo tentou interferir até nas eleições de reitores eleitos por seus pares com a edição de uma medida provisória que dava poderes ao ministro da Educação de eleger os nomes durante a pandemia. Passou a intimidar também professores que fizessem críticas ao Governo com processos na Justiça. Em janeiro deste ano os professores universitários Erika Suruagy e Tiago Costa Rodrigues foram alvos de inquérito da Polícia Federal por publicarem críticas ao presidente em outdoors de suas cidades. Suruagy vive em Recife, e Rodrigues, em Palmas, no Tocantins. Os inquéritos foram arquivados meses depois por falta de consistência nas acusações. Mas o estrago foi feito. “As portas se fecharam, não consegui mais trabalho”, conta Rodrigues, que teve de se mudar de cidade. “O clima é de medo”, resume a professora Erika Suruagy.

Tiago Costa Rodrigues foi indiciado pela PF depois de ter espalhado outdoors em Palmas (TO) com mensagens contra o presidente Jair Bolsonaro. O inquérito foi arquivado agora em junho. (Crédito da foto:Fernando Leite).

Também um grupo de professores e alunos da Universidade Federal do Ceará é alvo de inquérito da Polícia Federal por aulas sobre os riscos do fascismo. Alunos eleitores de Bolsonaro delataram os docentes do curso à polícia por um suposto assédio contra eles.

Dentro da sala de aula, há uma pressão para evitar assuntos ligados à política. Não foram poucos os casos de vídeos de professores filmados por alunos fazendo alguma crítica informal, mas que circularam nas redes bolsonaristas como uma conspiração comunista. “Se a universidade não pode falar, não pode discutir ideias, quem fará isso? Não existe democracia que se sustente sem as universidades”, diz Suruagy.

O presidente também mina os investimentos nas universidades, estrangulando ainda mais o já sufocado orçamento do ensino superior. De 2019 para cá, o corte da verba das universidades federais chega a 25%, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). O assédio não se restringe aos professores universitários. A Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), coalizão de entidades do setor público, por exemplo, identificou mais de 820 episódios de assédio. Segundo o levantamento, o Ibama encabeça a lista dos órgãos onde mais ocorreram essas intimidações.

Resistência

O Judiciário, em especial a Corte Suprema, tem sido uma barreira para inibir os abusos de poder do presidente. A Corte tem desarmado parte das bombas-relógios que o Governo cria com a promulgação de medidas provisórias, por exemplo. A Corte também liderou a investigação, conduzida pela Polícia Federal, sobre as redes digitais bolsonaristas que incentivaram a perseguição e assédio ao próprio Judiciário e a opositores do presidente. O chamado inquérito dos atos antidemocráticos encontrou indícios de “uma verdadeira organização criminosa” que ataca a democracia, e que conta com o trabalho de parlamentares, empresários que apoiam o presidente e blogueiros que espalham notícias falsas. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, abriu uma nova frente de investigação a partir de agora.

Hoje há mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já demonstrou não ter interesse em avançar com o assunto. O último, apresentado no final de junho como um superpedido reunindo todos os demais que já estão com Lira, trazia uma lista de 23 potenciais crimes de responsabilidade, incluindo o de prevaricação (um crime contra a administração pública, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal), uma vez que Jair Bolsonaro foi informado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda, sobre a pressão por propina na compra de uma vacina contra a covid-19. Embora tenha assegurado aos irmãos Miranda que iria investigar, o presidente não deu nenhuma ordem nesse sentido.

As ruas começaram a ganhar expressão em maio, especialmente com o papel que a CPI da Pandemia passou a exercer apontando as responsabilidades do presidente sobre o caos na saúde. Protestos organizados pela esquerda levaram milhares de brasileiros às manifestações, especialmente nas capitais do país, em três ocasiões, mas ainda sem a adesão de partidos de centro ou da direita. É nesta encruzilhada que o Brasil se encontra, com os maiores partidos resistindo a se unir aos protestos, hoje dominados por eleitores do ex-presidente Lula.

Em seu livro O povo contra a democracia, o professor Yascha Mounk lembra que na maioria dos países os populistas só alcançam o cargo máximo porque seus adversários fracassam em concluir um pacto eleitoral. “Embora seja natural presumir que a ameaça autoritária possa nos ajudar a enxergar as coisas com mais lucidez, o oposto também é verdadeiro: aflitos e apavorados, os adversários dos populistas começam a fazer o jogo político da pureza, impondo testes… recusando-se a abraçar antigos aliados do populista”, diz ele.

Um passo importante foi dado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que desde abril sinaliza que pode votar em Lula num eventual segundo turno com Bolsonaro. “Quem não tem cão caça com gato”, afirmou Cardoso. Nomes cotados para disputar as eleições de 2022 ouvidos pelo EL PAÍS nos últimos meses tinham claro que a união contra Bolsonaro é irreversível e não descartam abrir mão de candidatura em algum momento da corrida eleitoral para evitar que ele avance ao segundo turno.

O objetivo é evitar a reeleição de Bolsonaro, onde ele dobraria a aposta nas quebras democráticas, como aconteceu em outros países governados por líderes radicais. “Todos os Governos autoritários atuais, seja na Venezuela ou na Hungria, foram degradando aos poucos a democracia no primeiro mandato e o desmonte final veio no segundo”, lembra Pedro Abramovay, diretor da Open Society.

“Bolsonaro não tem convicção democrática, ele aceita [a democracia] por questão estratégica”, diz o cientista político Jorge Zaverucha, professor da Universidade Federal do Pernambuco. “Ele fica esperando para, se um dia os ventos soprarem para uma solução autoritária, ele embarcar nela”, acrescenta. À espera de tempestades, Bolsonaro avança em seus propósitos. Muitos brasileiros os percebem. E os temem.

AFONSO BENITES, CARLA JIMÉNEZ, FELIPE BETIM, MARINA ROSSI e NAIARA GALARRAGA GOR, de S. Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Genebra para o EL PAÍS, em 18 de Julho de 2021.

domingo, 18 de julho de 2021

Bolsonaro recebe alta e deixa hospital após tratar obstrução intestinal em SP

De acordo com boletim divulgado pela assessoria de comunicação do hospital, ele seguirá com acompanhamento ambulatorial da equipe médica assistente

Bolsonaro caminha no corredor do Hospital Vila Nova Star (Foto: Reprodução/Bolsonaro/AFP)

O presidente Jair Bolsonaro recebeu alta médica neste domingo, 18, no quinto dia de internação. Ele tratava um quadro de obstrução intestinal no Hospital Vila Nova Star, na zona sul de São Paulo, e vinha apresentando melhora gradativa desde a última quinta-feira. A informação é de um boletim divulgado pela assessoria de comunicação do hospital às 9h30.


Bolsonaro deixou o hospital pouco antes das 10h e parou para falar com a imprensa. "Comecei a passar mal depois de uma cirurgia de implante. E realmente é complicado saber a origem disso. Alguns dias depois agravou a crise de soluço, e parecia que estava pegando fogo o estômago. A causa disso era uma obstrução intestinal, porque a aderência é comum em quem já sofreu cirurgia, como eu sofri, após a facada do ex-psolista Adélio lá em Juiz de Fora", disse.

"Tive que me submeter a uma dieta, fiz o que tinha que ser feito. Queria ir embora desde o primeiro dia, mas não me deixaram ir embora. Espero daqui a uns 10 dias estar comendo aí um churrasquinho de costela."

Ainda de acordo com a nota divulgada pela assessoria, Bolsonaro seguirá com acompanhamento ambulatorial da equipe médica assistente. 

O médico-cirurgião Antonio Luiz Macedo, que acompanha o presidente desde 2018, quando foi vítima de um ataque a faca, já havia adiantado a previsão da alta na tarde de ontem, ao chegar no hospital. "O sistema digestivo de Bolsonaro está funcionando, já há passagem de alimentos, e está sem obstruções", informou.

Bolsonaro foi internado na última quarta-feira, 14, após sentir fortes dores na região do abdômen. Ele também se queixava de crises de soluço há pelo menos dez dias. De acordo com diagnóstico médico, ele sofreu uma obstrução no tubo digestivo por causa de dobra do intestino, o que impedia a passagem adequada de alimentos.

Em entrevista ao Estadão, o médico-cirurgião explicou que o quadro é "potencialmente grave", mas que a situação de Bolsonaro foi controlada rapidamente. O presidente foi transferido de Brasília para São Paulo para que o médico pudesse acompanhá-lo de perto, além da maior oferta de recursos para o tratamento. Uma nova cirurgia, porém, foi logo descartada pela equipe. "Novas cirurgias abririam espaço para novas obstruções", afirmou Macedo.

O processo de recuperação do presidente, no entanto, deve avançar cuidadosamente nos próximos dias. A equipe médica ainda irá definir a progressão da alimentação do presidente: a dieta deve passar de cremosa (consumida com colher) para pastosa (consumida com garfo), sem incluir alimentos fermentativos, que formam gases. 

Uma sonda neogástrica foi utilizada no presidente para levar alimentos e hidratação diretamente ao estômago. Ela foi retirada na quinta-feira, e desde então a alimentação via oral tem sido reintroduzida na rotina de Bolsonaro

Macedo afirmou também que outras recomendações a Bolsonaro incluam mastigar bem a comida, fazer refeições leves e praticar exercícios regularmente, como caminhadas.

Também segundo o médico, a depender da avaliação da equipe, Bolsonaro estaria apto para voltar ao trabalho amanhã.

Brenda Zacharias, O Estado de S.Paulo, em 18 de julho de 2021 | 09h41, Atualizado 18 de julho de 2021 | 10h29.

Semipresidencialismo vira tática contra impeachment

Presidente da Câmara, Arthur Lira articula emenda constitucional que muda sistema de governo; objetivo é aliviar pressão pela abertura de processo de impedimento de Bolsonaro

       O presidente da Camara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), defende 'pôr água na fervura' da crise, diante de 126 pedidos de impeachment  Foto: DIDA SAMPAIO / ESTADÃO - 31/3/2021

Disposto a esvaziar a pressão para autorizar o impeachment de Jair Bolsonaro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), articula com aliados a mudança no sistema de governo por meio de uma proposta de emenda à Constituição (PEC). A um ano e três meses das eleições de 2022 e sob a justificativa de que o presidencialismo virou uma fonte inesgotável de crises, a ideia apoiada por Lira e nomes de peso do mundo político e jurídico prevê a adoção do regime semipresidencialista no Brasil.

O modelo introduz no cenário político a figura do primeiro-ministro e aumenta o poder do Congresso. Embora a proposta determine que o novo sistema tenha início apenas no primeiro dia do “mandato presidencial subsequente” à promulgação da emenda, sem fixar datas, o presidente da Câmara, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e José Sarney, defendem o ano de 2026 como ponto de partida.

Lira apresentou a minuta na última terça-feira, em reunião do colégio de líderes, e obteve apoio da maioria para levá-la adiante, apesar das críticas da oposição, principalmente do PT, que chama a proposta de “golpe” e “parlamentarismo envergonhado”. A PEC é de autoria do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), ex-secretário da Casa Civil de São Paulo, e, para que comece a tramitar na Câmara, precisa de 171 assinaturas.

O Estadão apurou que a proposta, protocolada em agosto do ano passado, estava na prateleira e foi resgatada após o presidente Bolsonaro fazer uma série de ameaças, dizendo que o Brasil não terá eleições em 2022, se não houver voto impresso.  Nesta sexta-feira, 16, ao perceberem que seriam derrotados, aliados do governo promoveram uma manobra e conseguiram adiar para agosto, na comissão especial da Câmara, a apreciação do que definem como “voto auditável”.

Nos últimos tempos, afirmações do presidente na contramão da democracia serviram para acender a luz amarela no Congresso e no Supremo. O temor de ruptura institucional cresceu depois que o ministro da Defesa, Walter Braga Neto, e comandantes das Forças Armadas divulgaram nota atacando o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, Omar Aziz (PSD-AM).

Diante de 126 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, Lira afirmou que é preciso trabalhar mais para “pôr água na fervura” do que para “botar querosene” na crise. Cabe ao presidente da Câmara dar andamento ao processo, mas Lira disse não ver ambiente político para isso e reagiu às cobranças. “Não posso fazer esse impeachment sozinho”, afirmou o deputado, que comanda o bloco de partidos aliados, conhecido como Centrão.

Barreira

A proposta de semipresidencialismo que reaparece agora como uma barreira para enfrentar arroubos­ – por enquanto retóricos – de Bolsonaro prevê um modelo híbrido. Ao mesmo tempo em que mantém o presidente da República, eleito pelo voto direto, delega a chefia de governo para o primeiro-ministro. É ele quem nomeia e comanda toda a equipe, o chamado “Conselho de Ministros”, incluindo nesse rol até mesmo o presidente do Banco Central.

Inspirado em sistemas adotados em Portugal e na França, o regime sugerido para o Brasil em nome da estabilidade joga luz sobre um “contrato de coalizão”, com força de lei, para ser assinado por partidos que dão sustentação ao presidente. Ali devem constar as diretrizes e o programa de governo.

Na prática, é o primeiro-ministro que toca a administração do País e conduz o “varejo político” nas relações do Palácio do Planalto. Nomeado pelo presidente, de preferência entre os integrantes do Congresso, ele tem a obrigação de comparecer todo mês à Câmara para prestar contas.

A destituição do chefe de governo pode ocorrer pela aprovação de moção de censura apresentada pelo presidente ou por dois quintos de integrantes de cada Casa do Congresso. O gabinete não cai, porém, enquanto não houver outro primeiro-ministro, já que não existe vice-presidente.

“Hoje temos um presidencialismo de coalizão, mas o equilíbrio para o governo se manter no poder custa o que a gente não sabe. A fatura é alta e o Congresso não tem compromisso político. No semipresidencialismo, a governança muda e as composições são reveladas”, argumentou Moreira, o autor da PEC.

Desde a redemocratização, dois presidentes – Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff – foram afastados e todos os outros conviveram com a espada da interrupção do mandato sobre a cabeça. O Brasil já fez dois plebiscitos sobre sistema de governo: um em 1963 e outro em 1993. Em ambas as consultas, uma minoria demonstrou apoio à criação do cargo de primeiro-ministro e o parlamentarismo foi derrotado.

“Qual o problema aqui? O presidente da República já se elege com o impeachment do lado”, disse Lira ao Estadão. “Ninguém aguenta isso. Um processo de impeachment deflagrado a um ano da eleição é o caos. O semipresidencialismo é a forma de estabilizar a política dentro do Congresso”.

Para ser aprovada, a proposta precisa ter 308 votos na Câmara e 49 no Senado, em duas votações. “Semipresidencialismo é parlamentarismo disfarçado. Torna presidente eleito sem poder. É criar crise, colocar no comando do País quem não tem legitimidade do voto para tanto. Golpe na soberania popular. Regime e sistema de governo já foram decididos por plebiscito duas vezes no Brasil”, criticou a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), em mensagem postada no Twitter.

Na avaliação da cúpula petista, a proposta só ressurgiu para prejudicar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje está em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto e é o maior adversário de Bolsonaro para 2022. A PEC determina que o mandato do presidente é de quatro anos, com direito a apenas uma reeleição, consecutiva ou não.

“Eu acho que nós deveríamos implantar essa inovação para 2026, para que não haja mais nenhum interesse posto em mesa”, ponderou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luis Roberto Barroso.

Coordenador

Além da polêmica sobre o ano de instituição do novo sistema, caso haja apoio para a tramitação da PEC, o texto embute uma novidade. No período de transição do atual regime para o semipresidencialismo está prevista a criação do cargo de ministro coordenador, a quem caberá a articulação político-administrativa do governo.

“Isso é para colocar desde já o Centrão dentro do Planalto”, observou o ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira, que é parlamentarista. “Vejo essa proposta como um bode na sala, para distrair a população que enfrenta pandemia, inflação e desemprego. Adotar uma mudança tão profunda para resolver uma emergência pode ser uma emenda pior do que o mau soneto”.

A opinião é compartilhada pela senadora Simone Tebet (MDB-MS). Ao ser questionada sobre a proposta, ela respondeu: “Com esse Congresso? Mais poderes para o Centrão”.

Candidato à Presidência em 2014, tendo Aloysio como vice, o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) disse ser a favor do semipresidencialismo, mas afirmou que, antes de tudo, é necessário um enxugamento no número de partidos. “Para permitir que o Congresso tenha poderes fortalecidos é preciso que haja o mínimo de organização partidária. Não tem 30 ideologias para ter 30 partidos”, constatou o tucano.

Não é a primeira vez que o semipresidencialismo vira assunto na Praça dos Três Poderes. Em 2017, durante o governo Temer, o ministro do STF Gilmar Mendes, que à época era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), enviou uma minuta sobre o assunto para ser analisada pela Câmara. Para o magistrado, o presidencialismo dá sinais de exaustão.

“As sucessivas crises do nosso sistema, com incansáveis invocações de impeachment, reclamam uma reforma que garanta a co-responsabilidade do Congresso Nacional nos deveres de Governo. Representatividade e governabilidade podem andar juntas", escreveu Gilmar no Twitter.

O deputado bolsonarista Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP) tem receio da mudança e pondera que o efeito pode ser o inverso do pretendido. “O presidente vai nomear o primeiro-ministro, vai colocar um cara dele lá. Vai continuar concentrando poder e neutralizar o Legislativo", resumiu. Orleans e Bragança disse que prefere o parlamentarismo original, sem inovações.

O cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia, porém, que o semipresidencialismo permitiria remédios mais suaves e soluções menos traumáticas para instabilidades políticas e trocas de governo. “Teoricamente, é muito mais fácil você resolver isso no semipresidencialismo do que no presidencialismo. Assim como é mais fácil resolver no parlamentarismo”.

Mesmo assim, Couto também considerou que, antes de mudar o sistema, o Brasil precisa diminuir o número de partidos para permitir uma formação mais programática de maioria no Congresso. "O que às vezes se tem é o que a gente chama de coalizão de veto. Vários partidos que não se unem para construir alguma coisa, mas podem se unir para derrubar um governo”, destacou.

Vera Rosa e Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo, em 18 de julho de 2021 | 05h00

Como a devastação no Cerrado afeta a quantidade de água que corre na sua torneira

Bioma, que concentra 5% da biodiversidade do planeta e funciona como uma enorme caixa d’água que irriga quase metade do Brasil, agora sofre com um ritmo de desmatamento avassalador

Pôr do sol no Parque Chapada dos Veadeiros, em Alto Paraíso, no Goiás.( FREDERICO VIANA)

Pouca gente sabe, mas a soja, em termos de área ocupada, responde por 80% da agricultura do Cerrado. Aproximadamente 50% da produção desse grão está concentrada no bioma. Ou seja: são mais de 18 milhões de hectares ocupados com uma única espécie nessa savana, que é a mais biodiversa do mundo.

Aproximadamente 5% da biodiversidade do planeta estão concentrados no bioma, com uma alta taxa de endemismo, de cerca de 40%. Não precisa ser especialista em conservação para perceber que a expansão de uma única cultura sobre o Cerrado coloca essa riqueza natural em risco. O que talvez nem todos tenham percebido é que uma riqueza subterrânea também está ameaçada pelo avanço do agronegócio desordenado.

O Cerrado, que se estende por 2 milhões de quilômetros quadrados no Brasil, Paraguai e Bolívia, é uma região com alta concentração de águas, com nascentes, rios e reservas subterrâneas. Por isso, funciona como uma enorme caixa d’água, que irriga 40% do território nacional através de importantes bacias hidrográficas que, por sua vez, abastecem rios nas demais regiões do país. Sua topografia elevada facilita o escoamento dessas águas.

Para se ter uma ideia, essa região é o berço de nada menos do que oito das 12 principais bacias hidrográficas do país. São elas: Amazônica, Tocantins-Araguaia, Atlântico Nordeste Oriental, Bacia do Parnaíba, São Francisco, Atlântico Leste, Paraná e Paraguai.

Apostar apenas no agronegócio de escala industrial como única opção econômica para a região transforma o perfil da paisagem, reduzindo nascentes, assoreando rios e comprometendo o meio ambiente. Resultado: perspectiva de crises hídricas cada vez mais sérias e intensas no nosso país. E o sinal amarelo já foi dado: hoje restam apenas 50% da vegetação nativa do bioma.

Vejamos o exemplo da pequena Cristalina, em Goiás, um dos berços do sistema que leva água para 60 milhões de brasileiros, pois é cortada por mais de 200 rios e riachos que desembocam no Rio Paranaíba que, por sua vez, ajuda a formar o Rio Paraná.

O Rio Paraná com seus afluentes forma uma enorme bacia de drenagem que abrange cinco estados do país (São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal), parte da região central da América do Sul, norte da Argentina e sudeste da Bolívia. Além disso, é o que possui maior capacidade de produção e demanda de energia do país.

O que se observa nos últimos anos é a redução da vazão de água nessa importante bacia ―parte por causa do período de estiagem, mas também por algo que pode ser evitado: o desmatamento. Cristalina e os municípios vizinhos, perto de Brasília, perderam, entre 1985 e 2019, 33% de sua extensão na microbacia Paranaíba 3, segundo o MapBiomas (que faz o mapeamento dos biomas). Em toda a bacia do Paraná foram dizimados 4,2 milhões de hectares de mata nativa no mesmo período.

Diante da grave crise hídrica que afeta o Brasil e pode comprometer o abastecimento tanto de energia elétrica, como de água potável, é urgente que o país olhe com mais atenção para o Cerrado. Afinal, à medida que a interferência de grandes empreendimentos de maneira desordenada avança sobre esse bioma, além do inestimável prejuízo com a perda de animais e plantas, vamos comprometendo toda bacia hidrográfica do Brasil e de regiões vizinhas do Paraguai e da Bolívia.

Como se não bastasse o prejuízo claro às nascentes e aos rios, o Cerrado sofre com os incêndios ―e sofre mais até do que a Amazônia, pois metade de sua vegetação nativa já foi destruída. Dados do WWF-Brasil revelam que, apenas em maio, o número de queimadas sem planejamento e de desmatamento na região ultrapassou todos os recordes dos últimos anos.

O ritmo de desmatamento é avassalador e cresceu 16,9% em junho deste ano e 6,3% no acumulado do primeiro semestre, em comparação com 2020. A área natural perdida em junho foi de 511 km2. Nos primeiros seis meses do ano, foram devastados 2.638 km2 de mata nativa―um aumento de mais de 20% com relação ao mesmo período do ano passado.

Se olharmos detidamente para a importância desse bioma, considerando seu valor além das bacias hidrográficas, percebemos que essa é a savana mais biodiversa do mundo. Além disso, a destruição da paisagem do Cerrado pode favorecer os focos de incêndio em reservas naturais como o Pantanal, por exemplo ―a maior planície alagada do mundo. Com o impacto no Cerrado, os níveis de água no Pantanal são afetados e deixam essa área mais vulnerável a pegar fogo. E o desmatamento avançando sobre uma área tipicamente seca traz ainda mais insegurança hídrica. Tudo porque as raízes profundas da vegetação desse bioma funcionam como captadoras da água da chuva e abastecem os reservatórios subterrâneos. Com o desmatamento, interrompemos esse ciclo.

No meio desse cenário tão desafiador de incêndios e exploração intensiva, iniciativas como o Projeto Ceres (iniciais de Cerrado Resiliente) surgem como um sopro de esperança. Ao unir recursos robustos da União Europeia (serão 5,5 milhões de euros) e de organizações não governamentais do Brasil e Paraguai, como ISPN, WWF-Brasil e WWF-Paraguai, com coordenação do WWF-Holanda, a iniciativa pretende atuar com os diversos atores, como pequenos e médios produtores, entre outros, para buscar soluções mais sustentáveis de produção e uso dos recursos naturais, além de valorizar sua sociobiodiversidade.

O projeto vai concentrar recursos humanos e financeiros para encontrar, testar e alavancar soluções entre modelos e escalas que possam ser replicados em outros territórios pelo mundo. Na prática, vai unir as populações locais, guardiãs de segredos da terra e do cultivo de riquezas naturais como o buriti, o mel do Cerrado, o babaçu e o baru, entre outras, para fortalecer a conservação desse bioma.

Como o Cerrado sul-americano tem extrema importância para o equilíbrio hídrico do continente e, consequentemente, do planeta, os investimentos da União Europeia nessa região estão em consonância com as três áreas que foram eleitas como prioridade para receber recursos nos próximos anos: alimentação, biodiversidade e clima.

Ao mesmo tempo que é tão importante, esse bioma também apresenta vários desafios do ponto de vista da conservação porque exige diferentes soluções para que seu desenvolvimento seja inclusivo, de baixo carbono e sustentável. O projeto vai interagir com as comunidades locais e pequenos proprietários rurais para incluir modelos de produção para itens que hoje têm pouca visibilidade, mas são riquezas de alto poder comercial e de preservação do bioma.

Segundo o Censo Agropecuário Brasileiro de 2006, pequenos proprietários rurais detêm 69% das propriedades no Cerrado brasileiro. Oficialmente, existem ainda 83 comunidades indígenas na região e 667 comunidades tradicionais. Mas levantamento feito por organizações da sociedade civil, como a Tô no Mapa, mostram que há 3,5 vezes mais povos, comunidades tradicionais e agricultores familiares (PCTAFs) na região do que mostram os dados oficiais. A Tô no Mapa mapeou mais 1711 comunidades através de dados bibliográficos (65), parcerias (198) e oficinas (1448). Esses pequenos grupos são fundamentais para a segurança alimentar, pois respondem pela produção dos principais produtos alimentícios da dieta básica das pessoas, que vai além da proteína animal produzida pelas grandes monoculturas e pecuária.

O projeto não deixará de atuar nem mesmo com os produtores rurais da região que detém 70% da produção agrícola nacional e que respondem por 44% das exportações. Eles têm um papel estratégico como promotores da recuperação de áreas degradadas, para onde podem direcionar sua produção, assegurando que a expansão agropecuária se dê sem a conversão de novas áreas naturais do bioma.

Na prática, será um grande laboratório socioambiental, identificando e testando soluções com potencial de serem disseminadas para outras localidades. A proposta é deixar um legado permanente de valorização e respeito ao bioma e a seus produtos, fazendo com que o Brasil e o mundo conheçam e valorizem essa região que fornece água superficial, subterrânea e atmosférica para grande parte da América do Sul. É um projeto ambicioso, sem dúvida, e desafiador. Mas quando o tema é conservação, toda ação importa e faz a diferença.

Ana Carolina Crisostomo , a autora deste artigo, é analista de Conservação do WWF-Brasil e facilitadora regional do projeto Ceres, é especialista em conservação e desenvolvimento socioambiental. Publicado originalmente no EL PAIS, em 16.07.21