sexta-feira, 18 de junho de 2021

Psicologia da democracia

Aprendemos que destruir o outro não faz preponderar nossas ideias, e o custo é alto

Daniel Kahneman, psicólogo Prêmio Nobel, teoriza que nossas decisões resultam de dois sistemas mentais independentes, em diferentes regiões do cérebro: um rápido, instintivo, emocional e outro lento, lógico, calculista, racional. O sistema lento é deliberativo, objetivo, preciso, mas demorado para decisões urgentes ou de rotina. Estas acionam o sistema rápido, que compara a situação a um catálogo pessoal de experiências e se apressa a propor uma decisão. O sistema rápido atua por analogias, simplificação e generalização, procura saltar logo para conclusões e tende a produzir decisões erradas se empregado em matérias que demandam aprofundamento analítico.

Qual sistema prepondera é função da urgência de cada decisão. Quando errar é menos grave que não decidir rápido, o sistema rápido decide.

Esse método decisório bifurcado, aparentemente confuso, é responsável pelo sucesso do Homo sapiens sobre espécies humanas extintas. Espécie que passasse por longa conjectura antes de reagir cada vez que uma fera atacasse seria/foi logo extinta. Por outro lado, até onde teríamos evoluído sem a capacidade de solução de problemas complexos, que o sistema analítico lento proporciona?

As pessoas têm diferentes tendências à angústia e à ansiedade e, portanto, diferentes percepções de urgência diante de situações objetivamente iguais. Sofrem também diferentes dificuldades para aprofundar-se em reflexões analíticas, conforme seus traumas, preconceitos, paixões, frustrações e recalques, que desencadeiam o ímpeto de decidir sem a devida deliberação racional.

Entre o indivíduo puramente racional, que pouco se apoia na intuição, e o que a quase tudo reage impetuosamente, inúmeras são as possíveis reações a informações e estímulos objetivamente idênticos.

Que isso tem que ver com democracia?

O ser humano vive agrupado por instinto. Como conviver com tantas variações legítimas da realidade?

A humanidade sempre se desentendeu, especialmente em sociedades em que todas as opiniões contam. Por milênios recorremos à guerra para impor nossa forma de pensar. A civilização avançou muito em tempos recentes (a 1.ª Guerra Mundial, há um século, nasceu de uma rixa!). Aprendemos que destruir o outro não faz preponderar nossas ideias, e o custo é alto demais. Aprendemos a argumentar e persuadir, a aceitar que nossa ideia nem sempre prevalece.

Chegamos enfim à democracia moderna como o pior sistema de governo, à exceção de todos os demais, conforme Winston Churchill.

Na democracia prevalece a maioria, mas protege-se a minoria. O poder é limitado e dividido. Eleitos, o Legislativo faz as leis e o Executivo dirige o governo. Cabe ao Judiciário soar o alarme quando, à luz da lei, outro Poder viola seu mandato. A Corte Suprema, guardiã da Constituição, é time formado ao longo do tempo por diversos presidentes da República e Senados, de forma a diluir a influência dos governantes sobre esse terceiro Poder.

A democracia brasileira é jovem. Estamos ainda experimentando a liberdade de opinião dos demais. Estamos aprendendo que, por melhores que nos pareçam nossas ideias e as do governante que elegemos, elas não podem ser impostas unilateralmente, por intimidação. Precisam passar por processo de escrutínio e aprovação que exige capacidade de persuasão.

Toda democracia – não só a nossa – é bagunçada, na medida em que, por definição, muitas vozes dissonantes devem ser ouvidas.

Há garantia de que o líder com as melhores ideias e a maior capacidade de executá-las seja eleito? Não! O ser humano se especializa em suas qualidades. É provável que o candidato mais carismático e persuasivo, portanto, com maior chance de ser eleito, não tenha de fato as melhores ideias nem grande capacidade executiva. A eleição de um candidato que reúna todas essas virtudes é excepcional.

Não devemos desesperar cada vez que um governante toma decisão de que discordamos, ou refutar instituições que sustentam o delicado equilíbrio democrático. Eles ou nós, ou nós e eles podemos estar errados.

Ao aceitar que não pensamos todos igual e que não sou necessariamente quem está sempre certo, abro brecha para aceitação e tolerância da ideia alheia. Percebo que a coexistência de ideias divergentes é essencial à nossa capacidade de vier em grupo, em paz.

Menos ruim que viver em conflito é viver sob comando de líderes escolhidos democraticamente que, apesar de pouco qualificados, estão sujeitos aos freios e contrapesos que protegem de abusos também as minorias.

Essenciais são a transparência das ações do governo, a ampla liberdade de imprensa para desafiar suas decisões, o império da lei acima de tudo, a prerrogativa de discutir abertamente e a cada quatro anos reformular a composição do governo pelo voto livre. Essa conscientização nos afastará do radicalismo que se apossou dos espíritos e nos levará a rejeitar a demagogia que nos usa como massa de manobra no embate de interesses que não nos pertencem. E dará espaço para a democracia amadurecer no Brasil.

Joca Levy, o autor deste artigo, é sócio de Levy@Salomão Advogados. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 18 de junho de 2021 

O Lula de sempre

Tuíte sobre o teto de gastos mostra que Lula não aprendeu nada e não mudou nada

Está em curso uma tentativa de construção de uma nova imagem do sr. Luiz Inácio Lula da Silva, alheia ao passivo de corrupção, incompetência e negacionismo que marca a trajetória política do Partido dos Trabalhadores (PT). O líder petista sabe que sua viabilidade eleitoral depende, entre outras coisas, de que o seu nome não esteja vinculado ao governo de Dilma Rousseff.

Esta é a tática: apresentar à população um novo Lula, supostamente moderado e responsável, a fazer contraponto ao desgoverno de Jair Bolsonaro. Não é tarefa simples realizar tal metamorfose. Vale lembrar que a carceragem da Polícia Federal em Curitiba nunca promoveu qualquer espécie de ressocialização política. O Lula continua o mesmo de sempre, como ele próprio faz questão de ressaltar.

No dia 17 de junho, com a verve populista de sempre, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva prometeu revogar a EC do Teto de Gastos. “A quem interessa o teto de gastos? Aos banqueiros? Ao sistema financeiro? Gasto é quando você investe um dinheiro que não tem retorno. Quando você dá R$ 1 bilhão para o rico é investimento e quando você dá R$ 300 para o pobre é gasto?! Nós vamos revogar esse teto de gastos”, escreveu em sua conta no Twitter.

Em 260 caracteres, o líder petista mostrou que, para fazer demagogia populista, não tem nenhum pudor de abraçar o negacionismo econômico e defender o retrocesso.

Resultado de um enorme trabalho de coordenação política do presidente Michel Temer, a EC do Teto de Gastos veio precisamente reverter a rota de irresponsabilidade fiscal implementada pelas administrações petistas – e que tantos males causou à população, com inflação, desemprego e retração da atividade econômica. Agora, ignorando todo esse esforço, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva anuncia que vai revogar a medida.

O tuíte do líder petista sobre o teto de gastos é revelador. Ele não apenas não reconhece os erros do seu partido – que gestaram e produziram a crise econômica que assola o País desde 2014 –, como prega abertamente o retorno à irresponsabilidade fiscal. 

Não há moderação em quem nega os fatos e a ciência econômica e opta por difundir desinformação. A mensagem do sr. Luiz Inácio Lula da Silva sobre o teto de gastos traz inequívoca manipulação da realidade, distorcendo fatos para obter proveito político.

Ao contrário do que disse o líder petista, o teto de gastos não faz discriminação entre ricos e pobres. Além disso, foi a limitação das despesas públicas que possibilitou a trajetória, desde o final de 2016, da redução das taxas de inflação e de juros.

É muito fácil vir a público criticar demagogicamente o ajuste fiscal. Difícil é conseguir reduzir de forma sustentável, sem truques nem pedaladas, a inflação e a taxa de juros. A depender do sr. Luiz Inácio Lula da Silva e do PT, essa tarefa não será apenas difícil, mas impossível. Sem nenhum rubor, o líder petista anuncia que sua proposta política não tem nenhuma novidade e não contém nenhum aprendizado. Seguirá cometendo os mesmos erros de sempre.

Logo após o tuíte do líder petista, o deputado Rodrigo Maia lembrou uma triste realidade sobre a responsabilidade fiscal do atual governo. “O próprio Paulo Guedes fez pior do que revogar o teto de gastos: ele descumpriu e desmoralizou o teto em troca da reeleição do Bolsonaro”, escreveu o ex-presidente da Câmara no Twitter.

Os fatos são evidentes. Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro não querem ajuste fiscal, não querem reformas, não querem debate público responsável, sem distorções ou negacionismos. O que lhes importa é a vitória eleitoral.

Não há moderação onde sobeja irresponsabilidade – a irresponsabilidade de pôr em risco avanços importantes, alcançados com o esforço e o sacrifício de toda a população, na tentativa de obter sucesso eleitoral.

Como hábil comunicador que é, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva reitera que não aprendeu nada e não mudou nada. Podia anunciar tanta coisa, pedir desculpas por tantos erros. Mas não. Anunciou que vai acabar com o teto de gastos.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de junho de 2021 

Bolsonaro, Lira e as reformas

Desde 2016, não se via essa convergência de Executivo e Legislativo na oposição às reformas

A desídia do Executivo federal na promoção das reformas administrativa e tributária não é segredo, tampouco novidade. A cada dia é mais evidente que o presidente Jair Bolsonaro não deseja nenhuma reforma. Seu objetivo é a reeleição e nada que possa significar alguma dificuldade eleitoral contará com o seu apoio.

A falta de compromisso com as reformas por parte do Palácio do Planalto é lamentável – e diz muito sobre as dificuldades que o País enfrenta. Governos que não deixam o palanque não enfrentam as causas dos problemas nacionais, antes tentam se aproveitar desses mesmos problemas para permanecer no poder.

Há, no entanto, uma situação ainda mais grave. Não é apenas o presidente Jair Bolsonaro que, com seu manifesto desinteresse pelo tema, dificulta o andamento das reformas. O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), vale-se da falta de coordenação política do Palácio do Planalto para inviabilizar qualquer possibilidade de melhoria legislativa e, no que estiver ao seu alcance, promover o que se pode chamar de verdadeira agenda antirreforma.

Desde 2016, não se via essa convergência de Executivo e Legislativo na oposição às reformas. Apesar das evidentes resistências do Congresso, o governo de Michel Temer foi capaz de promover reformas importantes, como a trabalhista, a do ensino médio e a PEC do Teto de Gastos.

A partir de 2019, a equação se inverteu. Apesar das resistências de Jair Bolsonaro, o Congresso, sob a liderança do deputado Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, foi capaz de aprovar, por exemplo, a reforma da Previdência. Agora, o interesse público está órfão. O presidente da República não faz o que lhe cabe e o presidente da Câmara faz apenas o que lhe interessa. Veja o empenho de Arthur Lira na alteração abrupta da Lei de Improbidade Administrativa.

A situação é constrangedora e, não raro, contraditória. Em setembro de 2020, o governo federal apresentou ao Congresso uma proposta de reforma administrativa. Acanhado e falho, o texto do Executivo deixou de fora pontos importantes, a começar pelo fato de não alterar o regime dos atuais servidores. Eram apenas mudanças para o futuro – 30 anos, pelo menos.

Mesmo com esses defeitos, diante da importância do tema – é urgente e essencial melhorar o funcionamento da máquina pública –, a proposta do Executivo foi vista como uma oportunidade para o Congresso enfrentar o assunto e aprovar, dentro do possível, uma redação final mais condizente com as necessidades do País.

No entanto, desde a apresentação do texto, o Palácio do Planalto não mostrou mais nenhum interesse em sua aprovação. A situação é tão contraditória que até o relator da reforma administrativa na comissão especial, deputado Arthur Maia (DEM-BA), tem pedido que o presidente da República dê algum sinal de apoio à proposta feita pelo próprio governo.

“Que ele (Jair Bolsonaro) manifeste claramente para a base dele aqui no Congresso Nacional que é a favor da reforma. (...) Quando eu fui relator da reforma da Previdência aqui na Câmara, o presidente Temer se engajou pessoalmente com toda sua força para que nós pudéssemos aprovar. Isso foi claramente manifestado. Ele cobrava dos líderes o empenho, procurava os deputados, pedia o voto”, disse Arthur Maia ao Estado.

No caso da reforma tributária, o Congresso trabalhou por mais de um ano na fusão das duas propostas em tramitação: a da Câmara (formulada pelo economista Bernard Appy) e a do Senado (de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly). Era uma oportunidade histórica de realizar uma mudança estrutural no sistema tributário do País.

O governo Bolsonaro, no entanto, não se interessou pelo assunto. Propôs tão somente criar um novo imposto a partir da união do PIS/Cofins e, sempre que pôde, defendeu a volta da CPMF. Nesse cenário, o presidente da Câmara extinguiu a comissão da reforma tributária, o que, na prática, extinguiu as possibilidades de uma mudança mais estrutural dos tributos.

Eis a nefasta parceria de interesses entre Jair Bolsonaro e Arthur Lira. Sem as reformas de que precisa, o País vê-se enredado no retrocesso.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de junho de 2021 

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Brasil registra mais 2.311 mortes por covid-19

Número acumulado de mortes passa de 496 mil. Total de casos notificados da doença passa de 17,7 milhões.

O Brasil registrou oficialmente nesta quinta-feira (17/06) 2.311 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 74.042  novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 17.702.630, e os óbitos somam 496.004.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 16.030.601 de pacientes haviam se recuperado da doença até quarta-feira, mas os números não apontam quantos ficaram com sequelas.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 600 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,5 milhões) e Índia (29,7 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 236,0 no Brasil, a 8ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 177,1 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,8 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 17.06.2021

‘Não vou me afastar do debate’, afirma Huck sobre 2022

Ao confirmar que permanece na TV, apresentador diz que continua na discussão política; ‘a fumaça não volta para dentro da garrafa’

O apresentador de TV Luciano Huck Foto: Werther Santana/Estadão

Aposta mais competitiva do centro para derrotar o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial de 2022, o apresentador Luciano Huck se retirou do jogo eleitoral para substituir Fausto Silva aos domingos na programação da TV Globo. 

Ao Estadão, Huck afirmou, contudo, que “não vai se distanciar do debate” e revelou que “vai atuar” na escolha de projetos para o País ao ser perguntado sobre de que forma irá participar da sucessão presidencial. “Não vou me distanciar do debate e da discussão política. Estou nela e vou ficar. A beleza da democracia é poder escolher entre projetos para o País e é onde vou atuar”, disse. “Vou continuar contribuindo até onde minha voz alcançar, juntando pessoas e buscando soluções.” 

Huck explicou a opção pela TV ao dizer que “nada conecta mais gente no Brasil”. Razão pela qual vai aproveitar nesse “novo ciclo na Globo a valiosa chance de canalizar esta força para iluminar caminhos, curar feridas e resgatar esperanças”. 

“Meu compromisso em melhorar a vida e resgatar a esperança dos brasileiros é para valer – e para sempre. A fumaça não volta para dentro da garrafa. Há mais de 20 anos venho rodando o Brasil e sendo impactado pela nossa realidade de enormes desigualdades sociais. Isso vem me transformando, mais e mais. A pandemia cruelmente acentuou essas desigualdades e nos mostrou (ou relembrou) que todos estamos conectados”, afirmou ao Estadão. 

O mesmo raciocínio o apresentador expôs no programa Conversa com Bial, da TV Globo, que na madrugada desta quarta-feira, 16, revelou que o novo projeto de Huck passa longe de Brasília. E assim a segunda aposta do centro para tentar furar a polarização Bolsonaro-Lula com um outsider abandonava o projeto. Antes dele, o ex-juiz da Lava Jato Sérgio Moro saiu de cena após uma frustrada tentativa de combater a corrupção no governo Jair Bolsonaro. 

Huck disse ao seu colega da Globo que votou em branco no segundo turno da disputa presidencial de 2018, quando Bolsonaro enfrentou o petista Fernando Haddad, e que seguirá o mesmo script em 2022 caso o cenário PT versus Bolsonaro se repita. O apresentador não nominou o presidente em suas críticas e não indicou, nem foi perguntado por Bial, quem levaria seu voto entre os quadros de centro que ainda restaram. Ciro Gomes (PDT), João Doria e Eduardo Leite, do PSDB, ou Luiz Mandetta (DEM)? Todos políticos profissionais. 

No diagnóstico do apresentador, em 2022 o eleitor, mais do que nomes, vai escolher de que lado está. “Esse momento a gente não está falando sobre A ou B. A gente está falando sobre quem defende e quem não defende a democracia. Quem defende a democracia estará de um lado e quem não defende estará do outro. E eu estarei sempre do lado da democracia.” 

Andreza Matais, O Estado de S.Paulo, em 17 de junho de 2021

Bucci: Bolsonarismo vicia

Milhões sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto

Em abril do ano passado, em artigo publicado na revista piauí (edição 163), Uma esfinge na presidência, o cientista político Miguel Lago propôs uma chave intrigante para interpretar o bolsonarismo. Segundo o autor, quanto maior e mais conflagrado for o confronto nas redes sociais, mais sustentação terá o presidente da República – e quanto mais baixo descer a reputação do governante, mais alto soará o alarido daqueles que o sustentam. Miguel Lago previu que a bandeira do impeachment não iria minar as bases de apoio de Bolsonaro; ao contrário, ajudaria a solidificá-las. Previu e acertou. A força política de Jair Bolsonaro tornou-se tanto mais determinada, embora minoritária, quanto pior ficou sua imagem perante a opinião pública minimamente esclarecida.

A explicação para essa modalidade pútrida de “quanto pior, melhor” vem da dinâmica peculiar das mídias sociais. As compactações das multidões virtuais seguem leis que pouco ou nada têm que ver com a política dita convencional. Enquanto na cartilha dos politólogos as alianças políticas resultam da negociação de interesses e se formalizam em programas propositivos, nos algoritmos das plataformas sociais tudo acontece de ponta-cabeça: o que rende audiência, empolgação e adesão não é o que pacifica, mas o que choca, ofende, escarnece – daí o sucesso das agressões, das manifestações de ódio e da infâmia. Se nos sindicatos ou nos partidos políticos o que reúne as pessoas são os acordos mais ou menos racionais, na internet o que as congrega é o êxtase de insultar e ultrajar um inimigo real ou imaginário, num fragor que não tem parte com a razão.

Quanto mais desaforado for, quanto mais animalesco e mais boçal, mais amado será o líder ciberpopulista – para usar aqui o conceito que Andrés Bruzzone apresenta no livro Ciberpopulismo: democracia e política no mundo digital, lançado no mês passado pela Editora Contexto. Quanto mais asqueroso e mais contrário aos bons modos, mais festejado. Essa é a receita seguida pelo presidente da República. As falanges virtuais o aclamam não apesar de sua falta de boas maneiras, mas justamente por causa delas. Quanto mais desclassificado ele for, mais idolatrado será.

Se levarmos essa perspectiva analítica um pouco mais longe, além daquilo que sustentam Miguel Lago ou Andrés Bruzzone, veremos que há um nexo nervoso, neuronal, entre a vileza dos discursos da extrema direita antidemocrática e o prazer das massas. Milhões de anônimos, encolhidos em suas misérias afetivas, sorvem a torpeza bolsonarista como quem degusta um cálice de absinto. Vão se entorpecendo de fluxos de gozo. Esses infelizes, tomados pela paixão da raiva e da intolerância, encontram nas barbaridades proferidas e alardeadas pelo fascismo de silício uma satisfação libidinal equivalente à que vai buscar nos sites pornográficos ou nos jogos online, que sabidamente exploram a dependência psíquica do freguês.

O caráter viciante das atrações da internet não é uma novidade. Em artigo para a edição 96 da revista Estudos Avançados (IEA-USP), em 2019, os professores Ricardo Abramovay e Rafael Zanata documentaram fartamente como as empresas de tecnologia administram suas funcionalidades para “gerar adição”. No ano passado, o filme O Dilema das Redes trouxe depoimentos de altos executivos da indústria confirmando a estratégia de causar dependência. A propósito, um deles lembra que o termo “usuário” só é utilizado para designar o consumidor de drogas e o frequentador das redes sociais, como a dizer que os traficantes e os gigantes da internet lucram com o mesmo negócio: o vício. E foi nesse negócio que o trumpismo e o bolsonarismo se deram muito bem, obrigado.

Quando confessa que veio para destruir, Bolsonaro diz a verdade. Ele é o herói da devastação, o ídolo dos que culpam o “sistema” por seus infortúnios pessoais. As almas viciadas na bestialogia querem varrer do mapa o saber científico, a imprensa crítica e as artes, pois essas instituições fazem doer, de forma humilhante, a ferida da ignorância bruta. Os adictos do bolsonarismo querem banir os jornalistas com a mesma sanguinolência com que os homofóbicos assassinam gays e os machistas espancam o feminismo, com a mesma tara mortífera com que os racistas proclamam que o Brasil é uma “democracia” racial. O ódio contra o tal “sistema” – que no fundo é o que nos resta de civilização – leva o sujeito a exterminar a própria liberdade para se entregar à tirania. Só aí deixará de padecer. A visão da beleza é insuportável para ele.

As massas dependentes no ciberbolsonarismo são descendentes diretas dos espectadores do circo romano, em que gladiadores e feras se retalham reciprocamente. O frêmito que experimentam é o mesmo. Apontando o polegar para o chão, plateia do horror, de ontem e de hoje, se imagina admitida na arena dos assuntos de Estado. A política vai se reduzindo à celebração gozosa dos linchamentos físicos e morais. Ser cidadão é esquartejar o outro. Por prazer. Esse vício vai nos matar a todos de overdose.

Eugênio Bucci, autor deste artigo, é Jornalista e Professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo - USP. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 17 de junho de 2021.

O jogo ainda vai começar

A mais de um ano da eleição, a projeção de que o cenário eleitoral terá apenas Bolsonaro e Lula da Silva é obviamente precipitada

“É Bolsonaro e Lula”, disse o ministro das Comunicações, Fábio Faria, ao avaliar o cenário para a eleição presidencial de 2022. A declaração taxativa, feita em entrevista à Jovem Pan, mistura análise política e torcida: no cálculo dos bolsonaristas, as chances eleitorais do presidente Jair Bolsonaro crescerão se o oponente mais viável na campanha do ano que vem for mesmo, como sugerem as pesquisas, o líder petista Lula da Silva, cujo passivo judicial e político resulta em considerável rejeição.

A mais de um ano da eleição, qualquer projeção como a do ministro Faria é obviamente hipotética e provavelmente precipitada, e mais ainda porque decerto haverá outros candidatos relevantes além de Bolsonaro e Lula.

Compreende-se a pressa dos bolsonaristas em delimitar o certame o mais rapidamente possível, não só para capturar apoio de forças políticas que ainda não se definiram, mas para desde já investir no antipetismo como arma eleitoral, cuja eficiência é comprovada desde as eleições municipais de 2016 e que foi diretamente responsável pela vitória de Bolsonaro em 2018.

Contudo, malgrado a barulheira que produzem, nem só de Bolsonaro e Lula se faz a política brasileira. Na terça-feira passada, o governador de São Paulo, João Doria, anunciou oficialmente que disputará as prévias do PSDB para ser o candidato do partido à Presidência em 2022. Já são bastante conhecidas as pretensões presidenciais de Doria, mas a formalização de sua disposição em concorrer ao Palácio do Planalto coloca no jogo um postulante que tem a enorme visibilidade do governo de São Paulo.

Argumenta-se que Doria, assim como os outros tucanos que se declararam candidatos, está muito mal posicionado nas pesquisas de intenção de voto. No entanto, uma vez definido o candidato tucano nas prévias, esse nome pode ganhar tração – afinal, uma candidatura se prova viável ao longo da campanha, e não em razão de pesquisas feitas quando ainda nem se sabe ao certo quem serão os candidatos.

No Brasil de Bolsonaro e Lula, contudo, campanhas eleitorais não têm hora e dia para acontecer: o presidente tem feito comícios praticamente desde o momento em que acorda, a exemplo do que Lula fazia quando esteve no Palácio do Planalto e jamais deixou de fazer nem mesmo quando esteve na cadeia.

Assim, é boa notícia que os nomes fora da polarização entre Bolsonaro e Lula comecem a se apresentar como candidatos de fato, atraindo, nessa condição, a atenção do vasto eleitorado que repele tanto o populismo bolsonarista como a demagogia lulopetista.

Nesse sentido, a informação de que o apresentador de TV Luciano Huck não será candidato à Presidência reduz o leque de opções do chamado centro democrático, mas ao mesmo tempo indica que a disputa tende a se concentrar em nomes já conhecidos e com alguma rodagem. Uma campanha contra adversários como Lula e Bolsonaro, que literalmente fazem o diabo para ganhar uma eleição, demanda couro grosso.

Também é boa notícia que estejam em curso conversas entre esses postulantes centristas. Não se trata de nutrir a ilusão de que desse diálogo possa surgir uma aliança em torno de uma candidatura única no primeiro turno, como se chegou a aventar, mas de esperar que pelo menos haja um acordo de civilidade e de propósitos comuns. A barbárie e a desfaçatez precisam ser seriamente desafiadas pelo bom senso e pela razão.

Ao contrário do que desejam fazer parecer os bolsonaristas e os lulopetistas, os finalistas da eleição do ano que vem ainda não foram definidos. E aproxima-se rapidamente a hora em que Bolsonaro e Lula não serão os únicos em campanha.

Quando outros nomes estiverem formalmente na disputa, o eleitor terá então condições de escolher se quer continuar com a mendacidade crônica de Bolsonaro, se quer recolocar no Palácio do Planalto a desfaçatez obscena de Lula ou se prefere a promessa de um governo que seja simplesmente normal – o que, num país às voltas há duas décadas com a corrupção e os delírios do lulopetismo e do bolsonarismo, seria algo revolucionário.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17 de junho de 2021

Waack: Não dá mais

Eleições não trarão solução para falência dos sistemas de governo e partidário

Coube a Jair Bolsonaro o duvidoso mérito de demonstrar que o atual sistema de governo não funciona. O perigo do desenho de um sistema que opõe o vencedor de uma eleição plebiscitária (portanto, uma figura forte) a um Parlamento fracionado e com baixa representatividade (o sistema proporcional de voto brasileiro garante a desproporção) já vinha sendo apontado há anos. Nem era preciso esperar a chegada de uma caricatura de homem de Estado como o atual presidente. 

Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos – sistema de governo e sistema político-partidário – é, ao mesmo tempo, causa e consequência da profunda crise atual. 

A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória – sequer com uma candidatura viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de reforma política. Desse cenário surgiu também a proposta do semipresidencialismo. 

A proposta vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência, significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo primeiro-ministro, mas não cai o presidente eleito diretamente. 

A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista pelo qual o chefe do Executivo começa o governo tendo então de buscar maioria no Legislativo num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro. 

A esperança é a de que a necessária redução do número de partidos – elemento essencial em qualquer reforma política – se daria na medida em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo, o da “situação” e o da “oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas não seria precondição para o semipresidencialismo. A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no Legislativo. 

De qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria – e aí há um involuntário componente de ironia política – tão radical diante do que já acontece. De fato, Jair Bolsonaro divide a chefia de governo não com um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado. Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de situação com uma notável diferença em relação à proposta do semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou seja, no semipresidencialismo Bolsonaro não precisaria ter medo de impeachment. 

Não importam os defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se vislumbra saída para a crise permanente. Provavelmente a discussão em torno de normas futuras surja para muitos como perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou tudo junto). 

Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que o Brasil enfrenta. Existe a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de consenso. E a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito.

William Waack, autor deste artigo, é Jornalista e Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 17.06.2021

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Bolsonaro, aprendiz de Lula

Como já ensinava o presidente Lula da Silva em 2006, “um homem público não precisa de época de eleição para fazer campanha”

O presidente Jair Bolsonaro ainda não tem partido político. Nem precisa: usa o Estado como sua máquina partidária e os recursos públicos como verba de campanha.

Sempre que resolve passear e fazer comício, o que tem acontecido com muita frequência, o presidente obriga o Estado a se desdobrar, a um custo em geral milionário, para lhe garantir segurança e bem-estar.

Todo chefe de governo, quando se desloca, requer esse tratamento, e é justo que seja assim: afinal, o presidente é o principal líder político e administrativo do País. Mas supõe-se que essa estrutura exista basicamente para dar conforto e proteção ao presidente sobretudo quando está a trabalho, como esperam os contribuintes de cujos impostos sai o dinheiro para bancá-la.

Vá lá que o chefe de governo também tenha direito a algum descanso, razão pela qual o Estado também deve lhe providenciar escolta e tranquilidade em seus momentos de relaxamento, pois o presidente não deixa de sê-lo só porque eventualmente está de folga.

O problema é que os momentos de refrigério do presidente se multiplicaram a tal ponto que hoje se tornou difícil dizer quando Bolsonaro está de férias e quando está trabalhando. Em meio à pandemia de covid-19, que tem obrigado os brasileiros em geral aos mais duros sacrifícios, o presidente, entusiasta do dolce far niente, achou que era o caso de mobilizar o aparato oficial, a um custo estimado em R$ 2,4 milhões, para se divertir em praias de São Paulo e em Santa Catarina entre os dias 19 de dezembro e 4 de janeiro.

Chamado pela Câmara para explicar a extravagância, o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, disse que o alto custo da viagem se deveu à estrutura necessária para atendimento dos protocolos sanitários em razão da pandemia – embora Bolsonaro tenha aparecido na praia sem máscara e provocando aglomerações. Ademais, disse o ministro Rosário, Bolsonaro estava ali a trabalho, pois “presidente da República não tem direito a férias”.

Pode parecer estranho que o ministro tenha chamado de “trabalho” uma viagem do presidente à praia, mas, do ponto de vista bolsonarista, o principal “trabalho” do presidente é fazer campanha por sua reeleição – e nesse labor Bolsonaro não descansa jamais, a ponto de transformar seus frequentes passeios em oportunidades para fazer comícios. Tudo bancado com dinheiro que deveria ser usado para financiar os gastos do presidente, e não as despesas da campanha do postulante à reeleição.

No fim de semana passado, Bolsonaro veio a São Paulo especialmente para participar de um passeio de motos. A presença do presidente obrigou o governo paulista a providenciar um enorme aparato de segurança, a um custo de R$ 1,2 milhão.

O Brasil é um dos poucos países do mundo que dispõem de uma Justiça Eleitoral, e são essas ocasiões que deveriam servir para justificar sua existência. Afinal, está claro que o presidente Bolsonaro está em plena campanha antecipada, proibida pela legislação eleitoral, fazendo de seus caríssimos “passeios” meros pretextos para reiterar promessas eleitorais e atacar adversários.

Muitas vezes é difícil distinguir o que é um ato de governo e o que é um evento eleitoral. No caso de Bolsonaro, contudo, está cada vez mais fácil: tudo se presta a lhe servir de palanque. Por isso, fez bem o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União ao encaminhar ofício ao Tribunal Superior Eleitoral questionando o caráter dos eventos protagonizados por Bolsonaro, pois são óbvios atos de propaganda eleitoral ilegal. Conforme lembra o ofício, noticiado pelo Valor, cabe ao TSE, “garantir a lisura e a paridade dos candidatos nas disputas eleitorais”. É o mínimo que se espera numa República decente.

Mas, como já ensinava o então presidente Lula da Silva, mestre da desfaçatez, quando fazia campanha antecipada à reeleição em 2006, “um homem público não precisa de época de eleição para fazer campanha, ele faz campanha da hora em que acorda à hora em que dorme: 365 dias por ano”. Bolsonaro é um aplicado aprendiz de Lula.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 16 de junho de 2021 

Brasil registra 2.997 mortes por covid-19 em 24 horas

País teve 95.367 novos casos da doença, o que eleva o total de infectados desde o início da epidemia para 17.628.588. Número acumulado de óbitos aumenta para de 493.693.

   

Enfermeiras atendem paciente acamado em hospital no Rio de Janeiro. Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos

Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos

O Brasil registrou oficialmente nesta quarta-feira (16/06) 2.997 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 95.367 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 17.628.588, e os óbitos somam 493.693.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 15.944.646 de pacientes haviam se recuperado da doença até quarta-feira, mas os números não apontam quantos ficaram com sequelas.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 600 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,4 milhões) e Índia (29,6 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 234,9 no Brasil, a 9ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 176,7 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,8 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 16.06.2021

Witzel acusa Bolsonaro de omissão e pede para ser ouvido em 'sessão reservada' da CPI

Em uma sessão tumultuada, o ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) disse nesta quarta-feira (16/6) à CPI da Covid que sofreu impeachment e foi perseguido por mandar investigar o assassinato da vereadora Marielle Franco.

Witzel foi eleito em 2018 fazendo campanha para Bolsonaro, mas se desentendeu com o presidente após assumir (Ag. Senado)

"Isso tudo aconteceu porque eu mandei investigar sem parcialidade o caso Marielle", afirmou o ex-governador, citando uma live de Jair Bolsonaro (sem partido) em que ele foi criticado pelo presidente.

O depoimento de Witzel foi marcado por troca de acusações e ofensas com senadores governistas, entre eles Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ), filho do presidente.

Witzel retirou-se antes do fim da sessão. Ele falou por 4 horas e meia antes de decidir deixar a comissão por se sentir desrespeitado por aliados do presidente.

Esse direito foi concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte deu um habeas corpus ao ex-governador, que é réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em fraudes que teriam sido cometidas na área da saúde durante a pandemia.

Witzel foi convocado à CPI justamente para falar sobre o uso de verbas federais na área de saúde do seu Estado. A comissão investiga se houve desvio de recursos destinados ao combate à pandemia.

O STF havia liberado o ex-governador de comparecer à comissão porque ele tinha sido convocado para falar sobre fatos sobre os quais já é investigado ou processado. Mesmo assim, Witzel afirmou que iria.

Mas, conforme a decisão do STF, o ex-governador não estava obrigado a falar a verdade e poderia ficar em silêncio quando achar conveniente ou se retirar, como acabou de fato fazendo.

O que Witzel disse

Witzel foi eleito em 2018 fazendo campanha para Bolsonaro, mas se desentendeu com o presidente após assumir.

Na campanha, o ex-governador notoriamente apoiava o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que quebrou a placa em homenagem a Marielle e hoje está em prisão domiciliar.

Witzel foi afastado do governo em 2019 e perdeu definitivamente o cargo de governador ao sofrer um impeachment em abril de 2020.

Ele está proibido de ocupar cargos públicos por cinco anos. Entre as acusações, havia denúncias de corrupção envolvendo propinas pagas por Organizações Sociais (OSs) na área de saúde.

Witzel, que sempre negou as acusações, disse à CPI que nunca recebeu dinheiro das OSs. "Eu quero saber para quem foi o dinheiro", afirmou. "Eu saí, e as OSs estão lá, operando livremente".

"Eu tenho certeza que tem miliciano atrás disso, e eu corro risco de vida", afirmou à CPI.

Witzel também declarou que não tinha como participar da gestão de leitos em hospitais federais do Rio de Janeiro, porque eles "têm dono".

"Os hospitais federais são intocáveis. Se a CPI quebrar os sigilos das OS que gerem os hospitais, vai descobrir quem é o dono dos hospitais", disse.

Questionado sobre quem seria essa pessoa e se Bolsonaro interferiu em seu governo, Witzel disse que só falaria em uma sessão reservada, porque as "acusações são gravíssimas". A cúpula da CPI ainda vai decidir como vai ouvi-lo reservadamente.

Respondendo ao senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ele afirmou que deputados federais e estaduais organizaram carreatas para pedir que comerciantes abrissem suas lojas no Rio de Janeiro, contrapondo medidas de restrição adotadas pelo governo do Estado. Ele não respondeu se tinha informações se milicianos participaram do movimento.

Depoimento de Witzel teve algumas discussões antes de ser interrompida a pedido do ex-governador

Witzel disse que os governadores "clamaram" ao governo federal por ajuda na pandemia, mas não houve cooperação. "O nível de cooperação foi praticamente zero. O que tivemos foi uma descooperação", disse.

Ele afirmou que foi um dos primeiros governadores a implementar medidas de restrição de circulação e que um dos pedidos centrais ao governo federal era pela aprovação do auxílio emergencial para que a população pudesse ficar em casa.

"Se você pede para a população ficar em casa, mas não dá condições, é mais difícil controlar a pandemia", afirmou à CPI.

Witzel declarou que houve perseguição do governo federal por causa das críticas que fez sobre o gerenciamento da pandemia e que foi retaliado por causa da investigação da polícia do Rio de Janeiro sobre o assassinato de Marielle.

"Depois disso eu nunca mais fui recebido no Planalto. Encontrei o ministro (da Economia Paulo) Guedes no avião e ele virou a cara. 'Não posso falar com você.'", disse Witzel.

O ex-governador falou que o ex-ministro da Justiça Sergio Moro disse a ele que "o chefe falou" para ele "parar de falar que quer ser presidente" senão eles não poderiam mais atendê-lo.

Depois disso, disse Witzel, o delegado federal que investigava a questão das OSs foi reconvocado pelo Ministério da Justiça e parou de atuar no caso.

Segundo ele, a gestão Bolsonaro tentou "criar uma narrativa" de que os governadores seriam os culpados pelos prejuízos econômicos da pandemia. "Houve uma perseguição aos governadores, e eu fui a primeira vítima", afirmou.

Presença de Flávio Bolsonaro causa confusão

A presença do senador Flávio Bolsonaro, que não é membro da comissão, gerou confusão durante a CPI. Ele interrompeu o depoimento de Witzel diversas vezes.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL) questionou se o ex-governador se sentia intimidado pela presença de Flávio Bolsonaro ali, ao que o filho do presidente protestou. "Seu pai parece que não lhe deu educação", disse Calheiros.

Senadores protestaram que Flávio estava interrompendo o depoimento sem se inscrever e sem esperar sua vez para falar. Flávio disse que estava se defendendo, porque seu nome "foi citado" e o de sua família.

"Aqui o senhor é senador, não filho do presidente", respondeu Rogério Carvalho (PT-SE).

Randolfe Rodrigues lembrou Witzel que ele poderia participar de uma sessão fechada se tivesse informações sensíveis para compartilhar.

"Eu não tenho problema com a presença do senador (Flávio Bolsonaro), eu o conheço desde garoto. Minha questão aqui não é pessoal, é de defesa da democracia", afirmou Witzel.

"Discurso bonito", ironizou Flávio Bolsonaro.

"Se o senhor fosse um pouquinho mais educado e menos mimado, o senhor teria um pouco de respeito pelo que eu estou falando", respondeu Witzel.

A sessão foi interrompida a pedido de Witzel, depois de uma discussão entre ele e o senador Jorginho Mello (PL-SC).

O ex-governador afirmou que Mello fazia acusações levianas. O parlamentar respondeu que "leviano é quem sofreu impeachment.".

Mais tarde, em entrevista à imprensa, Witzel explicou por que deixou o depoimento. "O senador se referiu a mim de forma leviana, até mesmo chula. Continuei enquanto a sessão foi civilizada. Quando isso mudou, eu e meus advogados decidimos que era melhor sair."

BBC News Brasil, em 16.06.2021

CPI da Covid não vai prender nem fazer impeachment

"Particularmente, acho que os fatos que estamos comprovando são gravíssimos, mas que a gente talvez tenha que caminhar para uma eleição. O eleitor, devidamente informado, vai fazer sua escolha. Democracia é isso", afirmou Vieira, em entrevista à BBC News Brasil.

Para senador Alessandro Vieira, CPI conseguiu comprovar que governo Bolsonaro fez de tudo para não comprar vacinas (Waldemir Barreto / Ag. Senado)

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos membros da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a atuação do governo de Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de coronavírus, não acredita que o trabalho da CPI vá terminar em impeachment do presidente. Para ele, a decisão de tirar Bolsonaro do poder deve ser da população.

"Tenho dito que a CPI não prende ninguém, não condena ninguém nem faz impeachment. CPI faz relatório."

Segundo ele, dificilmente o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), vai aceitar um pedido de impeachment, principalmente por fazer parte da base do governo.

Durante a entrevista, o senador afirmou que o governo Bolsonaro seguiu a orientação de "negacionistas" ao não responder às propostas de vacinas da Pfizer e cometeu crimes ao promover políticas de enfrentamento da pandemia que não seguem consensos científicos. "Não é crime ser negacionista nem defender coisas estúpidas, mas é crime fazer gestão pública com base nisso", afirmou.

Ele também criticou a postura de colegas que espalham desinformação nas sessões da comissão, como o senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS). "Não podemos ter um senador da República passando informação falsa em canal público, usando dinheiro público. Opinião é outra coisa. Se a gente não tiver ferramentas para filtrar isso, vamos deformar a sociedade", disse.

Ex-delegado, o senador sergipano, que já foi da Rede, partido de Marina Silva, hoje se declara independente. Ele conta ter se arrependido "profundamente" de ter votado em Bolsonaro nas eleições de 2018.

"Subestimei o mal que Bolsonaro poderia fazer", disse ele, que ressalta também não concordar com o projeto político do PT.

Confira a entrevista abaixo.

BBC News Brasil - Boa parte da CPI tem girado em torno da recusa do governo Bolsonaro de comprar vacinas da Pfizer. O governo apresentou como justificativa a questão das cláusulas leoninas e o fato de a vacina não ter na época aprovação da Anvisa. Acha que essa justificativa é suficiente?

Alessandro Vieira - As justificativas do governo não param em pé. O diretor-presidente da Anvisa, o almirante Antonio Barra Torres, esteve na CPI e foi taxativo: para fazer compras de vacinas, não precisa de registro na Anvisa nem autorização de uso. O que é necessário é que haja interesse e proteção. No caso da Pfizer, a empresa deixou muito claro o compromisso de pagamento mediante autorização da Anvisa.

Para senador, o presidente da Anvisa deixou claro que não havia motivo jurídico que impedisse governo Bolsonaro de comprar vacina antes de aval da Anvisa. (Ag. Senado)

Isso se repetiu com outras vacinas. Havia propostas de garantia de compra, e as empresas correriam atrás do desenvolvimento e produção. E, se desse errado e o registro não saísse, o governo seria ressarcido. Era uma compra garantida. Não há justificativa técnica para não fazer a compra a não ser uma escolha política.

A escolha foi por não comprar com base em uma orientação equivocada do chamado gabinete paralelo. E essa orientação fez com que o governo investisse em cloroquina e desinformação em vez de informar o cidadão e garantir vacinas.

BBC News Brasil - Muitos governistas têm dito que não há nenhuma irregularidade no fato do presidente ter se aconselhado com pessoas que não fazem parte do Ministério da Saúde, como o deputado federal Osmar Terra e a médica Nise Yamagushi. Qual é a irregularidade de fato?

Vieira - Tenho usado uma frase bem coloquial em relação a isso: não é crime ser negacionista nem defender coisas estúpidas, mas é crime fazer gestão pública com base nisso. O problema não está em o presidente ter um assessoramento paralelo, o problema é esse assessoramento ser incompatível com a gestão do Ministério da Saúde.

Criou-se a figura do ministro que é a "rainha da Inglaterra". Há um corpo de secretários e convidados que atendem a orientações políticas e pseudocientíficas. Até agora, eles não conseguiram apresentar um único estudo decente e que dê lastro ao que eles falam.

Então, essa turma tem interferência junto ao presidente da República, que impõe uma política equivocada.

Há inúmeras amostras. O próprio Eduardo Pazuello, com todos os defeitos dele, anunciou a compra de vacinas da CoronaVac, mas foi desautorizado pelo presidente instantaneamente. Dimas Covas, diretor do Instituto Butantã, disse que, depois da declaração do presidente, realmente as negociações esfriaram.

No final, o governo acabou comprando. Mas por quê? Porque João Doria iria aplicar a vacina e o STF cobrou o plano de vacinação.

Não podemos perder essa memória. A narrativa governista diz que o Bolsonaro fez tudo pela vacina. É mentira. Ele fez tudo para não comprar.

O problema-chave é que o Brasil investiu praticamente todas as linhas no sentido contrário ao consenso global. O mundo correu atrás de vacinas, e a gente parou. O mundo parou de falar em tratamento precoce, e a gente está falando até hoje. O mundo correu para informar as pessoas sobre a importância do isolamento social e eventualmente aplicou medidas como o lockdown, e o Brasil sabotou essa política o tempo inteiro.

O resultado está aí: quase 500 mil brasileiros mortos.

BBC News Brasil - Testemunhas como Pazuello, Queiroga, Mayra Pinheiro têm constantemente negado que o governo priorizou a cloroquina em vez da vacina. Que provas a CPI tem para apontar que o governo de fato escolheu um remédio sem comprovação científica como política de enfrentamento?

Vieira - Vou dar um exemplo. O setor jurídico do Ministério da Saúde começou a tratar das vacinas da Pfizer em dezembro de 2020, mas o primeiro contato da empresa é de março de 2020. Ela tentou por todos os meios possíveis fazer contato. E não teve respostas.

Pazuello disse que 'um manda e o outro obedece', mas que o presidente Bolsonaro não deu ordens para não comprar vacinas contra o coronavírus (Reuters)

Quando houve resposta, ela foi evasiva. Cada proposta da Pfizer tinha um prazo, como qualquer proposta comercial clássica. Ela dizia: 'essa proposta de 70 milhões de vacinas tem um prazo de 15 dias, se você não responder, vou mudar a proposta. Quero vender para você, mas se houver demora, a vacina vai ficar mais cara e a distribuição pode demorar um pouco mais.'

Foi exatamente isso o que aconteceu. As vacinas começaram a ser negociadas por US$ 10 a unidade, mas foram compradas por US$ 12. E o processo de entrega e logística foi retardado.

BBC News Brasil - Houve alguma ordem de cima para o Ministério da Saúde não responder às propostas da Pfizer?

Vieira - Vamos confiar nas quebras de sigilo e em mais depoimentos para conseguir responder essa pergunta. As pessoas que foram ouvidas negam ter recebido orientações nesse sentido.

Mas as manifestações públicas do presidente da República são no sentido de não comprar as vacinas, em particular as do Butantã, e de investir no tratamento com cloroquina. Há uma quantidade imensa de manifestações dele nessa direção.

Pazuello, naquele militarismo mais estreito, diz que não recebeu ordem de não comprar vacina do Butantã. Mas o próprio Pazuello, em uma live com Bolsonaro, disse que 'um manda e o outro obedece'. Ele argumenta que foi coisa de internet e que nunca houve um ofício do presidente a respeito.

Isso é chamar o brasileiro de burro.

BBC News Brasil - O sr. diria que um dos objetivos das quebras de sigilo é tentar encontrar evidências de que as decisões tomadas foram ordens do presidente Bolsonaro?

Vieira - Não só do presidente da República. O objetivo é entender os vínculos entre as pessoas.

É aquela coisa de depoente dizendo: 'nunca falei com fulano'. As quebras podem apontar que sim, eles se falaram.

BBC News Brasil - O que foi mais grave para o senhor: a demora em comprar vacinas ou o investimento em cloroquina?

Vieira - O conjunto. Há muitas falas do presidente e do deputado Osmar Terra, os mais vocais no sentido de diminuir a importância do que estava acontecendo, sobre a covid não ser grave, que iria morrer pouca gente e que não era preciso fazer nada.

Foi a tese da imunidade de rebanho, quanto mais as pessoas se contaminarem, melhor.

No começo da pandemia, alguns países discutiram isso, como a Suécia e o Reino Unido. Mas, em meados de 2020, todo mundo sepultou essa conversa e foi correr atrás de vacinas. O Brasil persistiu, dobrou a aposta, e insistiu nessa teoria maluca.

Essa tese não faz nenhum sentido a não ser que você considere razoável morrer uma enorme quantidade de brasileiros, porque o importante é não atrapalhar a reeleição do Bolsonaro. Para essas pessoas, o importante era não parar o país para não atrapalhar o projeto político do presidente.

Bolsonaro até verbalizou isso: 'se parar a economia, acaba meu governo'.

A Constituição é clara: o bem mais importante é a vida.

BBC News Brasil - Adianta a oposição reunir todos esses fatos se o presidente tem maioria no Congresso para evitar um impeachment?

Vieira - Acho que todos os presidentes que foram alvo de impeachment em algum momento tiveram maioria no Congresso, e a configuração histórica levou ao impeachment.

Tenho dito que a CPI não prende ninguém, não condena ninguém nem faz impeachment. CPI faz relatório.

Vamos fazer um relatório qualificado, com dados, que vai permitir que outros atores façam o que entender necessário. Vai ter espaço para apresentação de ação comum, de crime de responsabilidade e para fundamentar mais um pedido de impeachment.

A CPI vai errar se ela atropelar as coisas. Temos que fazer um bom relatório, para que pessoas isentas possam entender, mostrando que o Brasil poderia ter comprado 70 milhões de doses de vacina e não comprou. Pelo cronograma de entregas, poderíamos ter vacinado em torno de 64 milhões de pessoas, e não vacinamos.

BBC News Brasil - Quais os efeitos que o relatório pode ter? Embasar um pedido de impeachment? Influenciar as eleições de 2022?

Vieira - O grande efeito do relatório é informar a população sobre o que aconteceu no Brasil, por que as decisões foram tomadas e quais as consequências delas.

Pazuello e Queiroga não souberam nem dizer que são os profissionais de saúde que orientam as decisões do ministério, afirma senador (Reuters)

Perguntei a Queiroga e Pazuello quem são os profissionais de saúde que orientam as decisões do ministério. Nenhum dos dois teve capacidade de responder. É inacreditável.

Vamos fazer justiça ao presidente Bolsonaro. Ele sempre se apresentou como ignorante. Fez campanha falando isso, dizendo que tinha o Posto Ipiranga para cuidar da Economia, o Moro pra cuidar da Justiça… E que ele mesmo não entendia nada.

Mas alguém, em alguma etapa do processo, precisa entender da coisa para orientar a decisão. O Brasil não elegeu um ditador, que decide com o próprio umbigo. A República tem regras, Constituição, razoabilidade.

BBC News Brasil - O senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI, disse que Pazuello poderia até ser enquadrado por homicídio. O sr. é delegado, atuou muito tempo na Polícia Civil… O sr. acredita que isso possa acontecer? Quais crimes podem ser imputados a Pazuello e Bolsonaro?

Vieira - Há avaliações pessoais sobre isso. Apresentei um requerimento, que foi aprovado na semana passada, pedindo uma comissão de juristas e criminalistas que possa avaliar os fatos levantados e sugerir enquadramentos típicos.

O colega Randolfe falou em homicídio. É possível, sim. Alguém cuja atuação causou a morte de uma pessoa praticou um crime contra a vida. Não necessariamente um homicídio, mas há crimes contra a saúde pública. Há várias possibilidades.

No Direito há uma frase clássica: 'você me dá os fatos, e eu te dou o direito'. Essa deve ser a posição do julgador. Precisamos dos fatos bem narrados, comprovados.

BBC News Brasil - Como político, qual sua impressão sobre a possibilidade do impeachment? O relatório será capaz de reverter essa situação do governo do Congresso?

Vieira - O relatório é só uma peça que vai dar lastro para algumas coisas. O processo de impeachment no Brasil passa por uma decisão unilateral do presidente da Câmara dos Deputados, hoje Arthur Lira.

Quando você tem Arthur Lira (Progressistas) no centro da distribuição das emendas parlamentares e cargos, é muito improvável que ele vá ter a opção de deixar andar o processo de impeachment.

Executivo da Pfizer contou aos parlamentares que o governo federal ignorou diversas ofertas de compra da vacina (Ag. Senado)

Mas lembro que já tivemos nessa posição o ex-deputado Eduardo Cunha, e ele acabou fazendo uma escolha política de deixar o processo andar. É muito precoce falar sobre isso.

Particularmente, acho que os fatos que estamos comprovando são gravíssimos, mas que a gente talvez tenha que caminhar para uma eleição. O eleitor, devidamente informado, vai fazer sua escolha. Democracia é isso.

BBC News Brasil - Senadores governistas têm dito que a CPI não está interessada em investigar a corrupção nos Estados. O que o sr. tem a dizer sobre isso?

Vieira - Fico muito feliz quando vejo os (senadores) Ciro Nogueira (PP-PI) e Fernando Bezerra (MDB-PE) defendendo investigação de corrupção.

A segunda coisa é que um fato não apaga o outro. Já existem fortes indícios de desvios de parte da verba que foi para os Estados. A própria CGU (Controladoria-Geral da União) fez uma estimativa de valores. Eles são altos, mas, dentro do montante global, não representam tanto assim. A corrupção mata, mas a incompetência mata mais. Os erros técnicos matam mais. A gente tem que manter essas gradações.

BBC News Brasil - A CPI decidiu não pedir a prisão do ex-secretário de Comunicações Fábio Wajngarten e outros depoentes acusados de mentir. Isso não gera uma sensação de impunidade e de que então qualquer pessoa pode mentir à comissão sem sofrer consequências?

Vieira - O encaminhamento que o senador Omar Aziz (PSD-AM, presidente da CPI) deu foi razoável. Ele pegou os fatos e encaminhou para o Ministério Público avaliar se houve falso testemunho.

Não acho que isso tenha desmoralizado a CPI nem que tenha dificultado. Tem que ser muito inocente para achar que você vai colher um depoimento e as pessoas só vão falar a verdade, quando essa verdade tem repercussões jurídicas e políticas.

BBC News Brasil - Muita gente tem reclamado que os senadores não fazem perguntas objetivas o suficiente. Tem espaço para melhorar a forma como os seus colegas têm feito perguntas? Porque não há uma articulação para que o depoimento tenha um resultado mais efetivo?

Vieira - A CPI não é um instrumento usado cotidianamente, então as pessoas não se preparam para isso.

Fabio Wajngarten em depoimento à CPI; ele e Carlos Bolsonaro participaram de reunião com a Pfizer (Reuters)

Quando vocês, jornalistas, fazem uma entrevista, levam um roteiro inicial, mas vocês vão adaptando as perguntas conforme as respostas. Alguns senadores não entenderam essa dinâmica. Então, o senador vai lá, lê um roteiro de perguntas sem ouvir o que a testemunha está respondendo, desconecta uma coisa da outra e perde oportunidades.

Outros preferem fazer discurso político, o que também é compreensível: você está dando microfone, uma câmera de TV, 15 minutos em audiência nacional. Mas vejo todos, ou quase todos, tentando melhorar. Ninguém vai virar interrogador do dia para a noite.

E a sociedade está ajudando muito, especialmente por meio das redes sociais: há uma interação muito próxima e quase uma checagem de fatos em tempo real.

BBC News Brasil - Não poderia ter tido mais articulação entre os gabinetes com mais experiência e os que não tem experiência anterior? Por que não houve?

Vieira - A escolha dos espaços não se dá por uma competência específica para uma atividade, e sim pelo tamanho do político. MDB indicou o Renan, PSD indicou o Omar. E eles estão se esforçando e cumprindo um bom papel, mas nenhum dos dois tem histórico na área ou formação na área.

Talvez a dinâmica fosse melhor se a gente tivesse sentado uma semana antes e conversado: "Como a gente faz isso? Quem a gente precisa?"

As coisas estão acontecendo e a gente está corrigindo, vendo as falhas, sugerindo coisas. E, principalmente, tanto o Omar quanto o Renan estão muito receptivos.

BBC News Brasil - O sr. tem corrigido alguns senadores que fazem discursos com dados equivocados ou notícias falsas. Como tem sido lidar com isso?

Vieira - É uma situação tão surreal que faltam meios para conter. A gente convive hoje com um Presidente da República que usa a mentira como método. Jair Bolsonaro mente. E sabe que é mentira, mas sabe que essa mentira vai gerar o efeito que ele quer na militância. É um método.

E alguns colegas repetem isso na CPI. A única ferramenta que encontrei foi representar no Conselho de Ética do Senado para que chamem a atenção do senador (Luis Carlos) Heinze (PP-RS), com quem tenho uma relação pessoal muito boa, mas que repete a cada sessão dados falsos, que não correspondem à verdade.

Não podemos ter um senador da República passando informação falsa em canal público, usando dinheiro público. Opinião é outra coisa. Se a gente não tiver ferramentas para filtrar isso, vamos deformar a sociedade. As pessoas começam a achar que 'a imprensa é mentirosa, a universidade é mentirosa, os cientistas são mentirosos'. Só é verdadeiro o que o líder fala. Isso é a coisa mais autoritária e maluca que a gente pode imaginar.

BBC News Brasil - O sr. já disse que se arrependeu de ter votado em Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Por que o sr. votou? Já não havia indícios na campanha do governo que ele teria?

Vieira - Me arrependo profundamente do voto no Bolsonaro. Faço parte de um grupo de milhões de brasileiros que, primeiro, estava movido por um sentimento de não votar no PT.

Senador diz estar arrependido de ter votado em 2018 e que subestimou mal o que o presidente poderia fazer (Uslei Marcelino / Reuters)

Estar arrependido de ter votado no Bolsonaro não quer dizer que eu queria votar no Haddad. Para mim são dois projetos com problemas gravíssimos. Mas achei que o entorno ajudaria a conter aquelas falas histriônicas típicas do deputado Jair Bolsonaro.

Subestimei o mal que Bolsonaro poderia fazer. Imaginei que ele poderia ter um governo com uma equipe técnica forte que evitasse esses equívocos. E foi o contrário, temos ele submetendo a equipe técnica.

BBC News Brasil - Se a disputa em 2022 for entre Lula e Bolsonaro, o senhor vai declarar voto?

Vieira - Sim. Não fiz campanha para Bolsonaro, não sou bolsonarista, nunca fui. Mas também não sou de subir no muro: a maior vergonha que você pode ter é pedir voto para os outros e não declarar o seu voto. É uma coisa meio ridícula. E a passagem para Paris estava cara.

(Votar em Bolsonaro) Foi um erro de avaliação. E só merece respeito quem para e reconhece se acertou. Então em 2022, se acontecer essa tragédia de ter Lula e Bolsonaro, vou anunciar voto da mesma forma.

BBC News Brasil - Em quem?

Vieira - Vai depender do cenário, não posso antecipar assim. Posso dizer com certeza que não quero votar em nenhum dos dois. Lula e Bolsonaro não representam o que o Brasil precisa.

Leandro Machado e Letícia Mori, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 16 de junho de 2021

O presidente está com medo

O pesadelo de Bolsonaro é perder a reeleição, a imunidade e ser preso - tema do artigo de Rosângela Bittar n'O Estado de São Paulo hoje.      


O presidente Jair Bolsonaro, durante cerimônia no Palácio do Planalto  Foto: GABRIELA BILO/ESTADÃO

O agravamento do desvario que Bolsonaro está exibindo em praça pública não é gratuito e tem uma razão nem tão secreta. Esconde uma palavra que seu machismo não permite pronunciar, mas seu comportamento revela. Medo. O presidente está com medo. 

A autoconfiança, expressa em sinais de que pode tudo, é falsa. Acompanhamos sua performance como se ele estivesse no picadeiro. Ora engolindo fogo e soprando-o sobre a seleção brasileira de futebol, que obrigou a jogar a Copa América, competição refugada por três países mais responsáveis que o nosso. Resultado parcial: 52 infectados em apenas duas rodadas.

Ora no tiro ao alvo dos palanques eleitorais, nos quais nem a motocada de 12 mil fanáticos, nem a genuflexão de militares da ativa, conseguem lhe dar consistência. Como no globo da morte, irrompe em avião prestes a decolar lotado, onde colhe o fundo musical de sua campanha à reeleição, que não será aproveitado nos jingles: Genocida! 

Seu governo sobrevive, debilitado. A administração pública agoniza, contaminada pela gestão destruidora da pandemia, mais inflação, mais desemprego, mais colapso da educação e da saúde, mais destruição de florestas, mais desobediência civil, mais deboche, mais vulgaridade.

O problema que dá medo a Bolsonaro, porém, não é interno. É externo. E sobre ele não tem controle. 

O ex-primeiro ministro Binyamin Netanyahu avisou a Bolsonaro, em recado passado ao então embaixador do Brasil em Israel, Paulo César Meira de Vasconcellos, de que corre o risco real de ser investigado pelo Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. As denúncias que o atingem tipificam crimes contra a humanidade, em especial genocídio dos povos indígenas. 

São assinadas por associações de advogados de direitos humanos, Organizações Não Governamentais e, principalmente, pelo cacique caiapó Raoni Metuktire, 91 anos, curado da covid e da depressão que contraiu após a morte da mulher, no ano passado. No Brasil, Raoni é um índio, mas para as organizações internacionais, um protagonista, símbolo do fascínio mundialmente atribuído aos povos da floresta. 

Documentos diplomáticos sobre a denúncia foram enviados à CPI da Covid, cujo relatório deverá apontar a culpa de Bolsonaro em atos de transgressão do direito à vida. Representará, assim, um reforço institucional, o ponto de vista de um dos poderes da república, o Legislativo, para a análise do tribunal de Haia. 

Esta é a assombração que persegue o antes destemido Bolsonaro. Seu pesadelo é perder a reeleição, a imunidade, e ser preso.

O risco internacional encontra-o ainda órfão da proteção de Donald Trump, que sumiu de Bolsonaro logo depois da tresloucada invasão do Capitólio. Para completar, o amigo Netanyahu também perdeu a cobertura do poder. Perplexo, vê suas pirraças serem transformadas em agenda prioritária do Summit do G7. Da vacina contra a covid ao meio ambiente, questões de vida ou morte. Sem falar do paradoxal sentimento que ele causa à China. Uma avalanche que o obrigou a buscar na Rússia o aliado que resta, Putin.

Uma das dificuldades é que os pequenos recuos, antes constantes no repertório de Bolsonaro, perderam a eficácia diante da gravidade dos problemas que provoca. Para obter algum efeito novamente, seria preciso virá-lo do avesso e de cabeça para baixo. Isolado, como um pária descrito por seu ex-chanceler, atrai para sua casta o país refém. 

Mesmo assim, Bolsonaro não está internamente fraco. Controla, a peso de ouro, a Câmara dos Deputados, e usa e abusa do procurador-geral da República. São trunfos que lhe permitem deixar com os dirigentes dessas instituições a cobertura da retaguarda, inclusive legal, da sua sobrevivência no poder, e sair por aí. Resta, no entanto, o risco do relatório da CPI, com sua sólida maioria oposicionista. Os depoimentos e as provas colhidos até agora devem reforçar o processo do Tribunal Penal Internacional de Haia.

Rosângela Bittar é colunista d'O Estado de S. Paulo e analista de assuntos políticos. Este artigo foi publicado originalmente na edição de hoje, 16 de junho 2021.

terça-feira, 15 de junho de 2021

Brasil registra mais 2.468 mortes por covid-19

Número acumulado de mortes passa de 490 mil. Total de casos notificados da doença passa de 17,5 milhões.

O Brasil registrou oficialmente nesta terça-feira (15/06) 2.468 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 80.609  novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 17.533.221, e os óbitos somam 490.696.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 15.854.264 de pacientes haviam se recuperado da doença até segunda-feira, mas os números não apontam quantos ficaram com sequelas.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 600 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,4 milhões) e Índia (29,5 milhões).

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 233,5 no Brasil, a 9ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Ao todo, mais de 176,4 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,8 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 15 de junho de 2021

É tempo de revisitar a redemocratização, espetacular obra de engenharia política do Brasil

Sair da ditadura exigiu coragem e apoio de trabalhadores, empresários, estudantes, professores, médicos, advogados, jornalistas, Igreja Católica, os melhores cérebros militares e a classe média brasileira

O então vice-presidente Marco Maciel e Jorge Bornhausen, à época senador, ambos do PFL no ano de 2000  Foto: DIDA SAMPAIO/AE (1/2/2000)

Depois de apoiar a ditadura militar durante anos na Arena e no PDS, os então senadores Marco Maciel (PE), Guilherme Palmeira (AL) e Jorge Bornhausen (SC) tiveram um papel relevante ao liderar a dissidência parlamentar e aderir ativamente às “Diretas-Já” e à articulação para a eleição do oposicionista Tancredo Neves, do MDB, em 1984. 

Ex-governador de Pernambuco e vice-presidente nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel morreu no sábado de covid, agravada por uma longa doença. Ex-governador de Alagoas, Guilherme Palmeira morreu em maio do ano passado. Ex-governador de Santa Catarina, Bornhausen continua curioso e ativo, aos 83 anos, na iniciativa privada. 

Alinhados ao general e ex-presidente Ernesto Geisel, mentor e garantidor da “abertura lenta, gradual e segura”, e ao ex-governador de Minas Aureliano Chaves, vice do general João Figueiredo no último governo militar, os três, Maciel, Palmeira e Bornhausen, chacoalharam o PDS, abriram canais com setores militares insatisfeitos com o governo Figueiredo e integraram a heterogênea frente de resistência e de pressão pela redemocratização e as “Diretas-Já”. 

Com o fim da “emenda Dante de Oliveira” na Câmara, por 22 votos, o passo seguinte foi manter e ampliar a frente contra a eleição do ex-governador de São Paulo Paulo Maluf. Era certo e sabido que ele venceria a convenção do PDS, contra os candidatos do governo e da ala geiselista, mas a dissidência do partido foi decisiva para derrotá-lo no colégio eleitoral, ou seja, no Congresso. 

A derrota foi acachapante, o eleito foi o moderado Tancredo e assim o Brasil encerrou 21 anos de torturas, mortes e desaparecimentos, “sem um tiro, sem uma gota de sangue”. O fim do regime não foi em guerra, foi em festa. Maciel, Palmeira e Bornhausen, assim como Aureliano e senadores e governadores como Agripino Maia (RN) e Hugo Napoleão (PI), tiveram lugar assegurado. 

O maranhense José Sarney aderiu num estágio mais avançado e com estardalhaço, ao chegar à convenção nacional do PDS com um revólver na cinta. Governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, o ACM, só pulou no barco em segurança, com ventos mais amenos. Mas Sarney foi o vice na chapa e virou presidente porque Tancredo adoeceu antes da posse. E ACM se arvorou “dono” do grupo. 

Como os dissidentes liderados por Maciel, Palmeira e Bornhausen já tinham o carimbo de “Frente Liberal”, o partido criado por eles em 1985, primeiro ano da redemocratização, virou o Partido da Frente Liberal (PFL), que se afirmou a ponto de ter Marco Maciel na vice de Fernando Henrique. Um vice que todo presidente pediu a Deus: estudioso, discreto, trazia soluções, não problemas. 

Ex-senador, Guilherme Palmeira foi presidente do TCU após participar da redemocratização Foto: BETO BARATA/AE (5/9/2006)

A morte de Marco Maciel traz luzes sobre essa história, tão recente, mas tão esquecida, que contém bons ensinamentos a quem hoje tem liderança e enorme responsabilidade. O primeiro deles é tão velho e surrado quanto útil: a união faz a força, já o preconceito e os interesses puramente pessoais dividem e implodem as melhores estratégias. 

Sair da ditadura exigiu coragem e apoio de trabalhadores, empresários, estudantes, professores, médicos, advogados, jornalistas, Igreja Católica, os melhores cérebros militares e a classe média brasileira. A esquerda assumiu a linha de frente, mas a redemocratização foi uma obra de engenharia de esquerda, centro e direita responsável. 

Como toda obra, exige manutenção constante, principalmente em meio a tensões e riscos às instituições, com o populismo audacioso aglomerando incautos e combatendo não só isolamento, máscaras e vacinas na pandemia, mas a própria democracia. Não custa lembrar: democracia é cheia de defeitos, mas ainda não se inventou nada melhor.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do telejornal Globo News "Em Pauta". Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 15.06.2021

PSDB define modelo de prévias que impõe derrota a Doria

Proposta do governador que reforçava peso do votos dos filiados é derrotada em reunião da Executiva Nacional

O governador João Doria durante coletiva de imprensa no Palácio dos Bandeirantes Foto: Governo do Estado de São Paulo

A proposta do governador João Doria de reforçar o peso do voto dos filiados nas prévias do PSDB foi derrotada por 21 votos a 11 na reunião Executiva Nacional do partido realizada nesta terça-feira, 15, mas ele se diz confiante de que vai vencer a disputa interna. “Não fui eleito com o voto da máquina, mas do povo”, afirmou o tucano ao Estadão. 

Os aliados do governador queriam eleições diretas, mas diante da derrota iminente fizeram uma tentativa de redução de danos: dividir o colégio eleitoral em dois blocos, sendo que 50% dos peso seriam dos filiados e outros 50% dos mandatários e dirigentes. 

Pela resolução aprovada, o colégio eleitoral será formado por quatro grupos de votantes, com peso unitário de 25% do total de votos. Os grupos são: filiados (grupo 1); prefeitos e vice-prefeitos (grupo 2); vereadores, deputados estaduais e distritais (grupo 3); e governadores, vice-governadores, ex-presidentes e o atual presidente da Comissão Executiva Nacional, deputados federais e senadores.

“Se tem uma coisa que me estimula é quando há dificuldade para se alcançar um resultado. As prévias não dividem, mas estimulam a militância e consolidam a candidatura”, concluiu Doria.

A resolução, que segue a proposta apresentada pela Comissão das Prévias, foi defendida pelo presidente do partido, Bruno Araújo. “Esse modelo prestigia o equilíbrio entre os filiados e detentores de mandato, que são mais de 5.000. Dá chance real a todos”, disse o dirigente ao Estadão. 

Como São Paulo tem 22% dos 1,36 milhão de filiados do PSDB, o modelo que dava peso maior para a base favoreceria o governador. 

Quatro nomes já se apresentaram como presidenciáveis tucanos. 

Além de Doria, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. As primárias estão marcadas para 21 de novembro. 

De acordo com o novo calendário aprovado pela Executiva, os candidatos farão suas inscrições em 20 de setembro, com início dos debates em 18 de outubro. A comissão das prévias que elaborou o relatório inicial foi formada pela prefeita de Palmas, Cinthia Ribeiro; o presidente do PSDB-SP, Marco Vinholi; o senador Izalci Lucas (DF); os deputados federais Pedro Vilela e Lucas Redecker; e o ex-deputado Marcus Pestana, sob a coordenação do ex-presidente do PSDB, José Aníbal.

A leitura de tucanos ouvidos pela reportagem após a reunião da executiva é que o placar da votação simboliza as dificuldades de Doria na burocracia partidária e nas bancadas. O preferido nestas duas frentes, que representam a maioria do colégio eleitoral, é o senador Tasso Jereissati. O problema, dizem integrantes da cúpula do PSDB, é que Tasso não tem feito movimentos claros de que deseja realmente concorrer. 

Nesse cenário, o governador Eduardo Leite (RS) é visto como um “plano B”. Os “doristas” por sua vez, apostam na vacina como o “Plano Real” do governador paulista e acreditam que ele vai crescer nas próximas pesquisas. Para compensar a desvantagem na máquina, Doria vai fazer uma ofensiva junto aos mandatários do PSDB nos estados: vereadores, prefeitos, vice prefeitos, deputados estaduais, governadores e vices.       

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo, em 15.06.21, atualizado às 18h14

Sob o ataque do atraso

Congresso dá sinais de que também tem uma agenda do atraso em matéria eleitoral

Enquanto Jair Bolsonaro quer que as eleições voltem a ser decididas na contagem manual dos votos – pelo visto, como não houve fraude nos 25 anos de urna eletrônica, há quem queira restabelecer o velho e corruptível sistema –, o Congresso dá sinais de que também tem uma agenda do atraso em matéria eleitoral.

Instaurada pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), a comissão de reforma eleitoral tem sido, até agora, um laboratório de propostas retrógradas e perniciosas. Por exemplo, a comissão estuda a volta das coligações partidárias nas eleições proporcionais, proibidas pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017.

Aplicada pela primeira vez nas eleições municipais de 2020, a restrição de coligações é importante proteção do voto. Antes, o voto em determinado candidato podia eleger outro candidato, de outro partido, simplesmente em razão de um acordo entre as legendas. Não faz sentido rever a proibição das coligações antes de sua aplicação nas esferas federal e estadual.

Outra proposta da comissão é a criação do chamado “distritão”, sistema de eleição majoritária em grandes circunscrições – frequentemente iguais aos territórios dos Estados – que favorece personalidades, artistas, líderes religiosos e caciques políticos. Além de tornar mais difícil a renovação política, a proposta enfraquece a democracia representativa ao desvalorizar os partidos. Com o “distritão”, os eleitos representam apenas a si mesmos.

No mês passado, foi revelada a tentativa, por parte de alguns parlamentares, de viabilizar a volta das doações de pessoas jurídicas a candidatos e partidos políticos. Além de ser um deboche com a Constituição e com a lisura do sistema político-eleitoral, a manobra é mais um triste sintoma da agenda do retrocesso.

Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a doação de pessoas jurídicas a campanhas e partidos políticos é incompatível com a Constituição de 1988. Além de gerar conflitos de interesse e ser estímulo à corrupção, o financiamento de campanhas eleitorais por empresas representa grave distorção do sistema político.

Como se não bastasse, a Câmara aprovou, no dia 9 de junho, regime de urgência para um velho projeto de lei, apresentado em 2015 no Senado, que tenta burlar a cláusula de barreira. O Projeto de Lei (PL) 2.522/15 possibilita que dois ou mais partidos se reúnam em uma federação.

A manobra é evidente. Após o registro da federação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os partidos são tratados como se fossem uma única legenda, escapando dos efeitos da cláusula de barreira. No entanto, cada partido continua dispondo de identidade e autonomia próprias.

A cláusula de barreira fixa porcentuais mínimos de voto para que cada legenda tenha acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda supostamente gratuita de rádio e televisão. Ao limitar os incentivos a partidos nanicos, dá-se um importante passo para reduzir a fragmentação partidária.

A atual quantidade de legendas não contribui para a representação política. Há muitas siglas à escolha do eleitor, mas não há um aumento de opções políticas. Para ser minimamente viável, uma proposta política precisa ter um mínimo de representatividade.

Além disso, a diminuição do número de partidos contribui para um ambiente de negociação política menos fisiológico. A atual fragmentação partidária é um convite à transformação da política em balcão de negócios.

Diante desse quadro, é inacreditável que a atual legislatura, eleita com o declarado propósito de renovar as práticas políticas, aprove regime de urgência para um projeto de lei cujo objetivo é reduzir todos os benefícios decorrentes da cláusula de barreira.

Com a inédita renovação da Câmara e do Senado, realizada pelo eleitor em 2018, era de esperar que o Congresso fosse capaz, por exemplo, de extinguir o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. No entanto, em vez de assumir sua tarefa de promover uma genuína reforma política, a atual legislatura dedica-se a desfazer o pouco que há de positivo no sistema eleitoral vigente. Simplesmente não entendeu o seu papel na história.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de junho de 2021 | 03h00

Uma questão moral

Quem verdadeiramente preza os valores da cristandade deveria hoje estar em franca oposição a um presidente que desdenha da verdade e da vida

O presidente Jair Bolsonaro participou, no dia 9 passado, de um culto evangélico em Anápolis (GO). O evento contou com transmissão ao vivo da TV Brasil, que deveria ser pública, mas, a exemplo do que acontecia nos governos lulopetistas, tem feito serviços privados – no caso, divulgar a campanha antecipada de Bolsonaro à reeleição e privilegiar a religião do presidente. Além da violação de comezinhas normas republicanas, o evento ensejou um grosseiro atentado às normas morais, pois, como enfatizado ontem neste espaço (ver o editorial O ‘evangelho’ segundo Bolsonaro), o presidente mentiu do início ao fim de seu discurso, com a agravante de que o fez num templo religioso.

A exploração particular da TV estatal deve ser tratada no âmbito da Justiça. Já a mendacidade de Bolsonaro, em franco escárnio dos fundamentos da religião, está no terreno da moral, que é questão de consciência pessoal. Se o presidente consegue dormir tranquilo depois de mentir descaradamente, como fez naquele templo religioso em Anápolis, é questão para ser estudada por psiquiatras. Mas espanta que Bolsonaro, mesmo violando mandamentos religiosos de forma tão explícita, ainda tenha apoio entre aqueles que prezam esses mandamentos como pilares de sua fé e de seu comportamento em sociedade.

Como se sabe, os evangélicos formam uma parte importante da base de apoio de Bolsonaro. Consta que, no segundo turno da eleição de 2018, o presidente teve nada menos que 70% dos votos dos evangélicos. Isso significa que Bolsonaro, de algum modo, soube capitalizar as expectativas dessa parte do eleitorado, cujo tamanho cresce exponencialmente – hoje os evangélicos são 35% do total.

Bolsonaro tornou-se evangélico em 2016 e incorporou em seu discurso político a agenda de costumes tão cara aos evangélicos. Diferentemente de outros políticos – que buscam aproximar-se desse eleitorado e de seus líderes religiosos sem contudo se comprometer totalmente com essa agenda –, Bolsonaro apresenta-se como campeão inquestionável desses valores.

Assim, Bolsonaro fez sua campanha eleitoral enfatizando os fundamentos conservadores da família cristã tradicional, posicionando-se sem ambiguidades contra o aborto, contra as drogas e contra o ensino de questões sobre sexualidade e gênero nas escolas – tudo o que se vincula ao PT e aos “comunistas”. Obteve o voto majoritário dos evangélicos quando estes o identificaram como o único capaz de deter os petistas. 

Nos palanques, Bolsonaro prometia proteger “a inocência de nossas crianças”, ao mesmo tempo que falava palavrões e ofendia seus desafetos em público, além de defender a tortura e louvar a violência. Esse comportamento imoral e de ocasião, fosse como fosse, foi insuficiente para fazer os evangélicos mudarem de ideia em 2018, tamanha a ojeriza ao PT. No evento religioso de Anápolis, um pastor chegou a dizer a Bolsonaro que “foi Deus quem te colocou na Presidência”.

Ao contrário do que parece, contudo, o apoio evangélico a Bolsonaro vem diminuindo. O mais recente levantamento da XP/Ipespe mostra que a desaprovação ao governo de Bolsonaro entre os evangélicos cresceu de 31% para 38% entre maio e junho e está em seu ponto mais alto em um ano. Já a aprovação caiu de 44% para 34% no período. Ainda é o grupo religioso que mais apoia Bolsonaro, mas a fé no presidente parece ter limites, e muitos já começam a vê-lo como falso profeta.

O modo delinquente como o governo de Bolsonaro lidou com a pandemia de covid-19 pode ser uma explicação para essa erosão. Mais de 60% dos evangélicos pentecostais, segundo o Censo do IBGE, recebem menos de um salário mínimo por mês. São maioria entre os que mais sofreram com a doença, e não é por acaso que vários pastores evangélicos que antes apoiavam de forma entusiasmada o presidente hoje vêm expressando algum descontentamento.

Mas ainda é pouco. Quem verdadeiramente preza os valores da cristandade – sobretudo a verdade e a vida – deveria hoje estar em franca oposição a um presidente que desdenha desses valores como nenhum outro.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de junho de 2021 | 03h00