sexta-feira, 30 de abril de 2021

Eurodeputados criticam "necropolítica" de Bolsonaro

"Negacionismo" e "irresponsabilidade" são algumas das expressões usadas durante sessão no Parlamento Europeu para classificar gestão da pandemia do coronavírus pelo presidente brasileiro.

"Por ação ou omissão, a necropolítica de Bolsonaro constitui um crime contra a humanidade", disse eurodeputado espanhol

Em debate nesta quinta-feira (29/04) sobre a crise de covid-19 na América Latina, eurodeputados criticaram duramente o presidente Jair Bolsonaro. O objetivo da sessão no Parlamento Europeu era discutir o impacto da disseminação do coronavírus na região e as possibilidades de ajuda da União Europeia aos esforços dos governos latino-americanos.

Em particular, as discussões buscaram analisar a relação entre o alto nível de desigualdades sociais e econômicas no continente e o avanço da pandemia, mas as denúncias contra o presidente brasileiro dominaram a sessão.

"Por ação ou omissão, a necropolítica de Bolsonaro constitui um crime contra a humanidade que deve ser investigado", disse em plenário o eurodeputado espanhol Miguel Urbán Crespo, do partido de esquerda Podemos.

"Incubadora de cepas"

Outro eurodeputado espanhol, Jordi Solé, do partido Esquerda Republicana da Catalunha, alertou que a gestão da crise sanitária pelo presidente brasileiro pode "transformar o país numa incubadora de novas cepas" do coronavírus.

A portuguesa Isabel Santos, do Partido Socialista, disse que a situação no Brasil é mais difícil por causa da "negação irracional" de Bolsonaro, a quem acusou de fazer "de tudo para que a população não se vacine".

"Não é um erro, mas uma irresponsabilidade deliberada", acrescentou.

Eurodeputada Isabel Santos: atitude de Bolsonaro é "uma irresponsabilidade deliberada"

Críticas do bloco conservador

Os parlamentares conservadores que participaram do debate também fizeram críticas, mas muitos deles evitaram citar o nome do presidente brasileiro. Para o português Paulo Rangel, do centrista Partido Social Democrata, o impacto da pandemia foi agravado "por erros políticos e visões negacionistas, como é o caso do Brasil".

Já o legislador hispano-venezuelano Leopoldo López, do conservador Partido Popular, afirmou que é necessário "destacar a negação da seriedade por parte dos dirigentes de alguns dos países com maior população".

"O negacionismo de Bolsonaro ajuda o vírus a matar ", afirmou Izaskun Bilbao, do Partido Nacionalista Basco, que integra o bloco liberal do Parlamento Europeu.

A Comissária Europeia para a Estabilidade Financeira, Mairead McGuiness, ressaltou na sessão plenária que a União Europeia já destinou 38 milhões de doses de vacina contra a covid-19 a 30 países latino-americanos através do consórcio Covax Facility, um programa apoiado pelas Nações Unidas que visa um acesso mais igualitário aos imunizantes.

As críticas dos eurodeputados a Bolsonaro ocorrem na semana em que o Senado brasileiro instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do governo em meio à pandemia e no dia em que o país superou as 400 mil mortes em decorrência da covid-19.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.2021

Brasil registra mais 2.595 mortes por covid-19 em 24 horas

País também contabilizou 68.333 novos casos. Total de óbitos já ultrapassa 403 mil e infecções superam 14,6 milhões. Por problemas técnicos, os números desta sexta-feira não incluem os dados do Ceará.    

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 192,1

O Brasil registrou oficialmente 2.595 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta sexta-feira (30/04). 

Também foram confirmados 68.333 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 14.659.011, e os óbitos somam agora 403.781. Por problemas técnicos, os números não incluem os dados do Ceará. 

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 13.152.118 pacientes se recuperaram da doença até esta quinta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 192,1 a 14ª mais alta do mundo, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mund19:37 30/04/2021o com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 32,3 milhões de casos, e da Índia, com 18,7 milhões de pessoas infectadas. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 575 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 150,8 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e mais de 3,1 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.2021

'Pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo', diz diretora de Médicos Sem Fronteiras

O Brasil atingiu a marca de 200 mil mortes por covid-19 no dia 7 de janeiro de 2021. Os 300 mil óbitos foram registrados 77 dias depois, em 25/03.

Para alcançar as 400 mil vítimas da infecção pelo coronavírus, o prazo foi cortado pela metade: bastaram 35 dias para que, neste 29/04, o país fatalmente se aproximasse do número e ficasse à beira de se tornar o segundo lugar do mundo a quebrar essa barreira (após os Estados Unidos).

Na visão da diretora-executiva da ong, pandemia no Brasil teve características totalmente diferentes em relação ao que aconteceu no resto do mundo. (Crédito da foto: Diego Baravelli / MSF)

Enquanto mundo mira Índia, 'efeito sanfona' põe Brasil na rota de 1 milhão de mortes, apontam especialistas

Três efeitos para o Brasil do descontrole da covid-19 na Índia

Para Ana de Lemos, diretora-executiva da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, a pandemia no país é completamente diferente do que acontece no resto do mundo.

"A situação é extrema e, um ano depois que tudo começou, ainda não temos uma resposta nacional. As unidades de saúde são deixadas à própria sorte, sem protocolos de prevenção, equipamentos de proteção, oxigênio, insumos e remédios", aponta.

"Muitas vidas que perdemos poderiam ter sido salvas se tivéssemos estrutura e organização", completa.

Nascida em Angola e cidadã portuguesa, Lemos é formada em Publicidade e Relações Públicas e fez pós-graduação em Gestão Ambiental, Estudos de Paz e Resolução de Conflitos, Relações Internacionais e Geopolítica.

Ana de Lemos já trabalhou em nove países e é diretora-executiva do MSF no Brasil desde 2018 (Crédito da foto: MSF)

A especialista entrou para o MSF em 2000 e trabalhou em crises sanitárias e humanitárias em várias partes do mundo, com passagens por Hungria, Libéria, Moçambique, Nigéria, Palestina, Quênia, Sudão, Tanzânia e Zimbábue.

Ela está desde 2017 no Brasil, quando passou a atuar como diretora de comunicação da ONG e foi promovida ao cargo de diretora-executiva a partir de 2018.

Recado que vem de fora

O posicionamento de Lemos está em consonância com um manifesto internacional, que foi assinado pelas altas esferas do MSF.

O texto, divulgado no site e nas mídias sociais da entidade, critica duramente a atuação do governo brasileiro durante a pandemia e classifica a situação no país como uma "catástrofe humanitária".

"Mais de um ano desde o início da epidemia de covid-19 no Brasil, ainda não foi colocada em prática por parte do poder público uma resposta efetiva, centralizada e coordenada à doença. A falta de vontade política de reagir de maneira adequada à emergência sanitária está causando a morte de milhares de brasileiros", escrevem os autores.

Em outro trecho, os líderes da entidade fazem um apelo urgente para que as autoridades nacionais reconheçam a gravidade da crise e organizem uma "resposta centralizada e coordenada".

"O governo federal praticamente se recusou a adotar diretrizes de saúde pública de alcance amplo e com base em evidências científicas, deixando às dedicadas equipes médicas a tarefa de cuidar dos doentes em unidades de terapia intensiva, tendo que improvisar soluções na falta de disponibilidade de leitos", aponta no texto o médico grego Christos Christou, presidente internacional do MSF.

"Isto colocou o Brasil em um estado de luto permanente e o sistema de saúde do país à beira do colapso", completa o especialista.

Mais à frente, a carta critica a politização das medidas preventivas cientificamente comprovadas, como o uso de máscaras e o distanciamento físico.

"Alimentando o ciclo de doença e morte no Brasil está o grande volume de desinformação que circula pelas comunidades do país. Uso de máscaras, distanciamento físico e restrição de movimentos e de atividades não essenciais são rejeitados e politizados".

Brasil será o segundo país do mundo a superar a marca das 400 mil mortes por covid-19 (Crédito da foto: Reuters)

Christou finaliza pedindo um "recomeço" no enfrentamento da pandemia:

"A recusa em colocar em prática medidas de saúde pública baseadas em evidências científicas resultou na morte prematura de muitas pessoas. A resposta à pandemia precisa urgentemente de um recomeço, baseado em conhecimentos científicos e bem coordenado, para evitar mais mortes desnecessárias e a destruição de um sistema de saúde conceituado e prestigiado."

Lemos revela que a carta teve uma grande repercussão internacional. "Recebemos ligações e contatos de pessoas de vários países, que se mostraram bastante preocupadas com a situação".

Já no Brasil, não houve nenhuma resposta formal do Ministério da Saúde ou do Governo Federal.

"Já havíamos enviado outros comunicados para o ministério e tentamos reuniões. Mas entendemos que as autoridades devem estar bastante ocupadas neste momento e esperamos que estejam trabalhando para resolver os problemas", diz.

Crise sem precedentes

Lemos, que acompanha de perto o trabalho dos voluntários do MSF e tem a experiência de atuar em outros nove países , diz que não consegue comparar a situação brasileira com outros lugares do planeta.

"A sensação que tenho é que a pandemia no Brasil foi diferente do resto do mundo", avalia.

A diretora relata que a ONG começou a reforçar o enfrentamento da covid-19 no Brasil ainda em abril de 2020, com foco na população de rua, migrantes, refugiados, usuários de drogas, idosos e pessoas privadas de liberdade da cidade de São Paulo.

Em 2021, o trabalho dos voluntários está mais focado na Região Norte, especialmente em Rondônia, Roraima e Amazonas.

"Damos apoio ao Sistema Único de Saúde, o SUS, especialmente em áreas de comunidades indígenas e imigrantes", diz.

No momento, o MSF foca seus esforços em três estados da Região Norte do país. (Crédito da foto: Diego Baravelli/MSF)

Nos últimos meses, um dos focos do trabalho é justamente fomentar o treinamento dos profissionais da saúde que estão na linha de frente.

"Muitos médicos e enfermeiros que atuavam nas Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) tiveram que transformar rapidamente as instalações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Só o fato de ter uma equipe extra ajudando a organizar os fluxos, os protocolos de atendimento e toda essa estrutura, já faz toda a diferença", acredita.

Oportunidades desperdiçadas

Lemos é testemunha ocular de como as informações fazem toda a diferença durante uma crise sanitária.

A diretora lembra que o MSF foi fundado em 1971 na França por um grupo de médicos e jornalistas.

A entidade, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999, sempre entendeu a comunicação como um dos pontos-chave de sua atuação.

Ela se recorda que, durante experiências passadas, as equipes e as instalações da entidade chegaram a ser atacadas pela população local durante surtos e epidemias.

"Em muitos locais, tínhamos que restringir o acesso aos centros de tratamento ou aos funerais, pois a transmissão de doenças infecciosas era dramática", relata.

"Se as pessoas não forem comunicadas e não entenderem a importância daquelas medidas, fica impossível trabalhar durante essas crises", ensina.

E, de acordo com a visão dela, foi justamente isso o que não ocorreu no Brasil durante os últimos meses: sem uma coordenação nacional e com tantas mensagens contraditórias, as pessoas não captaram a real gravidade da covid-19.

"Ainda hoje vemos indivíduos que acreditam e usam cloroquina e ivermectina, como se elas pudessem ter algum efeito contra o coronavírus. As UTIs estão cheias de pacientes que acreditaram no kit covid", observa.

"Enquanto isso, sofremos com a falta de oxigênio, sedativos e outros remédios tão necessários para os casos mais graves", lamenta.

Aprendizados e próximos passos

A diretora do MSF no Brasil espera que as autoridades tenham entendido que a prevenção da covid-19 depende mais de ações comunitárias do que da abertura de novos leitos hospitalares.

"Não se para uma pandemia na UTI, porque os hospitais são sempre o último recurso. Precisamos atuar contra a transmissão de pessoa para pessoa, com restrição da mobilidade e fechamento de todas as atividades não essenciais", sugere.

A especialista também aponta a necessidade de reforçar o uso de máscaras e de criar políticas massivas de testagem e isolamento de casos confirmados.

"Boa parte do mundo já faz isso há tempos e os resultados são claros", atesta.


Profissional de saúde atende paciente com covid-19

Ana de Lemos aponta que falta de comunicação foi fator decisivo para agravamento da pandemia no país (Crédito da foto: Diego Baravelli / MSF)

E os exemplos positivos não vêm apenas de lugares ricos ou desenvolvidos: a diretora do MSF destaca o trabalho feito em nações africanas durante os últimos meses.

"A despeito da subnotificação e da existência de outras doenças infecciosas impactantes, os países da África tiveram governos e políticas muito bem coordenadas, com o fechamento de fronteiras, o incentivo ao uso de máscaras e uma comunicação muito clara com os cidadãos", descreve.

Por fim, Lemos entende que o encerramento da pandemia está necessariamente vinculado à vacinação e aposta que não há solução sem cooperação internacional.

"Nós defendemos, inclusive, a quebra temporária das patentes de vacinas, tratamentos e testes de diagnóstico para que se amplie o acesso a esses recursos", revela.

"Espero que as pessoas entendam que a covid-19 só estará controlada quando houver imunidade global. Enquanto tivermos pessoas desprotegidas, ninguém estará verdadeiramente a salvo", finaliza.

André Biernath, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 29 abril 2021

Enquanto mundo mira Índia, 'efeito sanfona' põe Brasil na rota de 1 milhão de mortes, apontam especialistas

Percepção de recuo da pandemia no Brasil seria precipitada, falha tecnicamente e perigosa, alertam cientistas, porque dados sem contexto estimulam relaxamento de medidas necessárias de isolamento, prolongam o pico da doença no país, e podem resultar em novos recordes de casos e mortes.

Nos últimos dias, boa parte do mundo desviou sua atenção para a Índia, que desponta como novo epicentro global da pandemia da covid-19, com cenas trágicas de cremações em estacionamentos e doentes morrendo na porta de hospitais por falta de oxigênio.

Enquanto os holofotes estrangeiros saem do Brasil, hospitais em alguns Estados celebram quedas nas internações em UTIs. É o caso de São Paulo, que na quarta-feira (28/04) apontou baixa de 26,9% nas internações de pessoas com o novo coronavírus em um mês.

Para muitos, os dois movimentos trazem impressão de suposto controle da doença no Brasil, mesmo com o país registrando 3.019 mortes só nas últimas 24 horas, com um total de 398.343 óbitos desde o início da pandemia.

Com uma população seis vezes maior que a brasileira, a mesma Índia que agora ocupa o lugar do Brasil na imprensa internacional teve 3.645 mortes no mesmo período, com um total de 204.832 óbitos.

Nos dois países, segundo especialistas, a subnotificação da doença mascara o real alcance da pandemia.

A percepção de recuo da pandemia no Brasil seria não apenas precipitada e falha tecnicamente, mas também perigosa, alertam cientistas.

Para membros de alguns dos principais grupos de estudos investigando a pandemia no país, a falta de uma resposta centralizada pelo governo federal e o uso de dados de internações fora de contexto estimulam o relaxamento precipitado de medidas ainda necessárias de isolamento social, o que prolonga o pico da doença no país e pode resultar em novos recordes de casos e mortes.

E o problema brasileiro pode ir além, como explica o neurocientista Miguel Nicolelis, que coordenou o Comitê Científico do Nordeste, criado em março de 2020 para organizar a resposta dos nove Estados da região à pandemia.

"Quando eu estava no comitê, no ano passado, apareciam números estáveis durante a semana e governadores já me ligavam dizendo que a pandemia tinha acabado", conta o cientista por telefone à BBC News Brasil.

"Houve uma queda porque medidas mínimas foram adotadas em alguns lugares, (...) mas essas quedas são temporárias. Essas mudanças estão dentro da margem de variação estatística e só servem para políticos brasileiros as usarem como desculpa pra relaxarem medidas", diz.

"Isso não é sustentável."

No fim de março, o mesmo cientista chamou atenção ao prever que o Brasil chegaria a 500 mil mortes até junho. Semanas mais tarde, a universidade de Washington fez estimativa semelhante, levando em conta uso de máscaras pela população, mobilidade social e ritmo da vacinação, e disse que, até 30 de junho, o país chegaria a um total de 562,8 mil mortes.

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Ao se debruçar sobre os números atuais no Brasil, Nicolelis não só mantém a aposta, como vai além.

"No ritmo atual, nós não vamos nem conseguir vacinar as pessoas antes que alguma variante brasileira, ou da África do Sul, ou da Índia, ou da Inglaterra, escape às vacinas. Essa variante indiana é assustadora. Se as variantes entrarem aqui e passarem a competir com a P-1 (variante brasileira), e as vacinas que temos não derem conta, podemos ter um milhão de óbitos até 2022", diz.

Além de Nicolelis, a BBC News Brasil ouviu outros cientistas que haviam previsto nos últimos meses um cenário possível de 5 mil mortes diárias no Brasil.

Todos concordam que os índices no país continuam acima de limites aceitáveis, reiteram a gravidade da pandemia no Brasil e apontam que as quedas em internações podem ser reflexo imediato de medidas de distanciamento adotadas irregularmente em alguns Estados, além dos primeiros efeitos práticos da vacinação no país.

Apesar de ter população 6 vezes maior, Índia tem até o momento quase metade do total absoluto de mortes registrado no Brasil. (Crédito da foto: AFP)

"Método sanfona"

Dados do boletim epidemiológico mais recente do Observatório da Covid da Fiocruz, com base em números oficiais de 19 de abril, mostram que 17 capitais brasileiras tinham taxas de ocupação de leitos de UTIs em hospitais públicos superiores a 90%. Outras cinco tinham taxas superiores a 80%.

Só cinco capitais - Manaus (73%), Macapá (74%), Salvador (77%), Boa Vista (38%) e João Pessoa (59%) tinham ocupação menor do que 8 a cada 10 leitos.

Em semanas anteriores, o país chegou a ter recorde de 21 capitais com mais de 90% de ocupação.

Essa queda de 21 para 17 capitais, no entanto, significa pouco quando o tema é a gravidade da pandemia, já que a referência para estado considerado crítico na lotação de UTIs adotada por organismos internacionais e nacionais, como a Fiocruz, é de 80%.

Assim, apesar da oscilação, o Brasil continua com 21 dos 26 Estados, mais o Distrito Federal, nesta situação considerada alarmante.


Miguel Nicolelis: "Se variantes entrarem no Brasil e passarem a competir com variante brasileira, e as vacinas que temos não derem conta, podemos ter um milhão de óbitos até 2022". (Crédito foto: Arq. Pessoal)

"Muita gente está usando esses números pra argumentar contra o lockdown, mas isso é completamente ridículo", avalia Miguel Nicolelis. "Você tem 21 de 26 capitais em nível crítico de leitos de UTI, sem medicamentos, sem médico, com gente jovem morrendo com um dia de internação."

Ele continua: "O Brasil está se especializando no método sanfona de controle da pandemia. Fecham quando está altíssimo por uma, talvez duas semanas, e aí, quando cai 4 pontos, abrem tudo de novo e volta (a subir)".

Para a pesquisadora Margareth Portela, especialista em políticas e administração em saúde e uma das responsáveis pelo monitoramento do Observatório Covid-19, da Fiocruz, o país "está longe de uma situação de controle real".

"As últimas duas semanas mostram que estamos vivendo um cenário de desaceleração. Mas os dados em relação às taxas de ocupação de UTIs continuam muito elevados", ressalta.

Em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, em 25 de março, um dos colegas de Portela no Observatório da Fiocruz, o professor Carlos Machado, afirmou que "se nada for feito, nada nos impedirá de chegar a quatro ou cinco mil óbitos por dia".

Para cientista, mortes podem voltar a crescer após interrupção 'prematura' de medidas restritivas em Estados. (Crédito da foto: Reuters)

Ele se referia ao pior cenário e à necessidade de um lockdown mínimo de duas semanas, coordenado entre os governos federal, estadual e de municípios.

"De lá pra cá, vários Estados e vários municípios adotaram medidas restritivas mais rigorosas", pondera hoje a pesquisadora, "o que com certeza deve ter tido um impacto e deve explicar um pouco dessa redução que de fato se observa".

Entre os Estados que se destacaram com medidas de restrição, Portela destaca Bahia e São Paulo.

O primeiro vem implementando medidas restritivas desde 26 de fevereiro e, depois de algumas tentativas de reabertura, prorrogou toque de recolher e proibição de eventos públicos até 3 de maio.

Já o governo de São Paulo manteve o Estado em "fase emergencial" entre 15 de março e 9 de abril, o nível mais restritivo de controle da pandemia, quando locais e serviços não-essenciais como academias, salões de beleza, templos religiosos, cinemas, shoppings e lojas de rua foram fechados.

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O fantasma dos repiques

A BBC News Brasil também conversou com o professor do departamento de Estatística da UFF (Universidade Federal Fluminense) Marcio Watanabe.

Ele assina um estudo, publicado em 24 de abril, que estimava mortes diárias no Brasil a partir de um modelo matemático que analisava números de mais de 50 países afetados pela pandemia, coletados entre setembro de 2020 e março deste ano.

O levantamento apontava que o pico de óbitos no Brasil aconteceria "provavelmente em abril ou início de maio, com um número calculado entre 3 mil e 5 mil mortes por dia".

À epoca, Watanabe destacou que os números reais eram sujeitos ao ritmo de vacinação e à aplicação de medidas restritivas nos Estados.

A BBC News Brasil perguntou se os novos números que sugerem desaceleração em internações surpreeendem o pesquisador.

"Houve uma série de medidas ali no final de março pra tentar conter aquele aumento explosivo. As medidas, muitas, tiveram visivelmente impacto na curva de casos e de óbitos, e agora a gente vai ter que ver qual vai ser o impacto dessa reabertura que já está ocorrendo em muitos lugares", diz.


"Brasil nunca teve lockdown real", diz coordenadora de Observatorio da Covid-19 da Fiocruz à BBC News Brasil. (Crédito da foto: EPA)

Mas, ele ressalta que não é momento para relaxamento.

"Pode ser que tenhamos repiques, ou seja, depois de ter essa pequena queda, que a gente volte a ter aumento de casos em alguns lugares, principalmente os mais povoados", prevê.

Ele explica que o impacto das medidas de distanciamento social nas taxas de contágio depende diretamente da duração das medidas.

"No caso do Brasil, as medidas foram retiradas de maneira prematura, no sentido de que a gente via uma pequena diminuição nas internações, e assim que se viu essa pequena diminuição as medidas foram retiradas. Então, existe uma tendência de o contágio voltar a aumentar."

A maior parte dos países que conseguiram reduzir drasticamente o número de internações e mortes investiu em longos períodos de lockdown nacional. No Reino Unido, por exemplo, a população enfrentou no começo de janeiro o terceiro lockdown rígido desde o início da pandemia. Na época, o país tinha, proporcionalmente, quase 30% de mortes a mais que o Brasil tem hoje.

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Com mais de 3 meses de novo isolamento total, associado a auxílios financeiros para pessoas e empresas e um plano robusto de vacinação, o país viu as mortes despencarem para um total de 6, no último dia 26.

"É muito importante que todos entendam que a redução em hospitalizações, mortes e infecções não foi por causa do programa de vacinação", justificou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, na primeira quinzena de abril, quando uma reabertura gradual foi autorizada.

"As pessoas não se dão conta que o lockdown foi extremamente importante pra que tivéssemos essa melhora."

Ponto para a vacinação

Para a pesquisadora da Fiocruz, Margareth Portela, o avanço da vacinação no Brasil, ainda que lento, também pode ter influenciado positivamente nas quedas em internações notadas nas últimas semanas.

"No histórico brasileiro de enfrentamento à covid, não há muitas experiências de lockdown no sentido próprio da palavra, mais restritivo. Então você continua tendo circulação de pessoas, transporte público lotado. A gente nunca teve um lockdown real e não estamos em uma situação tranquila", diz.

"Mas a questão da vacinação, ainda que lentamente, está avançando."

Segundo a pesquisadora, o país "já começa a ver redução nas internações de pessoas mais idosas, que já estão vacinadas no Brasil".

"Isso está fazendo diferença", ela comemora. "Entre pessoas mais idosas, por exemplo, a partir de 70 anos, já se observa, sim, uma queda importante."

Até a publicação desta reportagem, 30,7 milhões de brasileiros (ou 14,5% da população) haviam tomado a primeira dose de vacinas, enquanto 14,6 milhões (6,6%) receberam a segunda.

O ritmo da vacinação no país e a atuação do governo no combate à pandemia de modo geral, colocaram a administração do presidente Jair Bolsonaro no centro de uma CPI, que neste momento apura "ações e omissões" do governo federal na pandemia.

A compra de vacinas é um dos pontos mais sensíveis da investigação.

Ricardo Senra - @ricksenra, da BBC News Brasil em Londres, 29 abril 2021

400 mil mortes por covid-19? Total já pode ter passado de 514 mil no Brasil, apontam pesquisadores

Oficialmente, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29/04) a marca trágica de 400 mil mortos por covid-19 durante a pandemia. Mas registros hospitalares brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram em decorrência de casos confirmados ou suspeitos da doença no país pode já ter passado de 514 mil.

Cemitério no Brasil (Crédito da foto: Getty Images)

Essa estimativa aparece em duas análises distintas, uma liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e outra pelo engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Ambas se baseiam em dados oficiais de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), um quadro de saúde caracterizado por sintomas como febre e falta de ar.

A legislação brasileira estabelece que todo paciente que é internado no hospital com SRAG precisa obrigatoriamente ter seus dados notificados ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (conhecido como Sivep-Gripe). Esse sistema é utilizado há anos e permite saber quantos casos de infecções respiratórias necessitaram de hospitalização e evoluíram para óbito no país.

No ano inteiro de 2019, foram registrados 5.342 óbitos por síndrome respiratória aguda grave. Em uma semana de abril de 2021, foram registrados 86.651. Até o momento, de todas as pessoas com SRAG e resultado laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com covid. Ou seja, SRAG e covid-19 são praticamente a mesma coisa na pandemia.

Esses dados são considerados bons indicadores por não sofrerem tanto com a escassez de testes ou resultados falsos positivos. Mas há alguns problemas, entre eles o atraso: pode levar bastante tempo até uma internação ou uma morte ser contabilizada no sistema.

Então, como saber o número atual mais próximo da realidade? Como os pesquisadores chegaram à estimativa de 514 mil ou de 540 mil (no caso de Buelta) mortes por doença respiratória grave, ou melhor, mortes por covid-19?

Projeção do agora

Bem, os cientistas fazem o que se chama de nowcasting, que grosso modo é uma projeção não do futuro (forecasting), mas do agora. Isso se faz ainda mais necessário durante a pandemia por causa dessa demora da entrada dos registros de hospitalizações e mortes no sistema digitalizado.

É como se os dados disponíveis hoje no sistema oficial formassem um retrato desatualizado e cheio de buracos. Para preencher e atualizar essa imagem, é preciso calcular, por exemplo, qual é o tamanho desse atraso, de uma morte de fato à entrada do registro dela no sistema, a fim de "prever" o que está acontecendo atualmente.

Bastos lidera análises de nowcasting numa parceria que envolve o Mave, grupo da Fiocruz de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica, e o Observatório Covid-19 BR, grupo que reúne cientistas de diversas instituições (como Fiocruz, USP, UFMA, UFSC, MIT e Harvard).

"(O nowcasting) corrige os atrasos do sistema de notificação vigente, isto é, adianta-se as notificações oficiais futuras pelo tempo médio entre a ocorrência dos primeiros sintomas no paciente e a hospitalização, quando há o registro dos seus dados no sistema de vigilância. Esse tempo abrange várias etapas: desde procurar um hospital, coletar o exame, o exame ser realizado e o resultado do teste positivo para covid-19 estar disponível para ser incluído no banco de dados. O tempo acumulado entre essas etapas do processo causa atrasos de vários dias entre o número de casos confirmados no Sivep-Gripe (plataforma oficial de vigilância epidemiológica) e os casos ainda não disponíveis no sistema, que são compensados somando aos casos já confirmados uma estimativa de casos que devem ser confirmados no futuro", detalha o Observatório Covid-19 BR.

A dificuldade de monitorar em "tempo real" o que acontece durante epidemias é global, e diversos cientistas ao redor do mundo tentam achar soluções para esse problema.

Os cálculos atuais sobre a pandemia no Brasil liderados por Bastos foram feitos a partir da adaptação de um modelo estatístico proposto em 2019 por ele e mais oito pesquisadores.

Para apontar um retrato atual mais preciso da pandemia, essa modelagem estatística (hierárquica bayesiana) corrige os atrasos dos dados incorporando nos cálculos, por exemplo, a partir do conhecimento prévio da ciência sobre o que costuma acontecer durante o espalhamento de doenças como gripe. Mais detalhes no artigo disponível neste link aqui.

Para chegar até o número de 514 mil mortes por SRAG, Bastos explica à BBC News Brasil que são analisados primeiro os dados da semana atual e da anterior, a fim de identificar quantos casos e óbitos tiveram uma semana de atraso.

"Assim, aprendemos a respeito do atraso e usamos isso para 'prever'/corrigir a semana atual e as últimas 15 semanas. O total de 514 mil mortes por SRAG é a soma dos casos observados acumulados até 15 semanas atrás com as estimativas mais recentes corrigidas."

Cemitério no bairro Bom Jardim, em Fortaleza (Crédito da foto: Jarbas Oliveira)

Em sua análise, Miguel Buelta, professor da USP, aponta um número próximo, de 540 mil mortos, ou seja uma diferença de cerca de 140 mil mortes entre o dado oficial divulgado hoje pelo governo federal e o número corrigido (sem atraso) dos óbitos por síndrome respiratória aguda grave.

A subnotificação do atraso, nesse caso, gira em torno de 35%. O cálculo dele se baseia, entre outros pontos, na análise do número de mortes em uma data específica, mas capturada em dois momentos distintos. Ou seja, em 28/2, por exemplo, Buelta registrou o número de mortes naquele dia e fez o mesmo dois meses depois (quando os registros parecem já "normalizados") para saber quantas mortes ocorreram de fato naquele dia.

O professor explica que o fator atual de subnotificação é de 1.33. Ou seja, para saber qual é o número de mortes atualizado hoje, é preciso multiplicar o dado do registro oficial pelo fator. Por exemplo, em 28/04 constavam 398.185, mas o estimado atualizado sem atraso é de 529.533.

Buelta acredita que o valor pode ser ainda maior por causa do caos nos hospitais vivido pelo país nas últimas semanas, quando o número de mortos passou de 4.000 por dia. "A situação atual é muito mais emergencial. É uma tragédia. Vamos todos lutar contra isso. Isolamento social e ajuda emergencial. Fora disso não há solução." Mais detalhes sobre o modelo estatístico usado por ele aqui neste link.

1,9 milhão de internados

Na análise liderada por Bastos, da Fiocruz, estima-se que o Brasil tenha registrado mais de 1,9 milhão de internações durante a pandemia de coronavírus por causa de doenças respiratórias graves. Na pandemia de H1N1, em 2009, o total foi de 202 mil hospitalizações.

Segundo análise da Fiocruz com base em registros de casos de síndrome respiratória aguda grave entre 18/4 e 24/4, há pelo menos cinco estados no país com regiões com tendência de alta nas infecções por covid: Mato Grosso do Sul, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.

Na Bahia, o avanço da doença ocorre nas regiões de Jacobina e Ilhéus. No Ceará, na região do Cariri. O mesmo ocorre no sertão de Pernambuco. Minas Gerais enfrenta situação semelhante no Triângulo Sul e Mato Grosso do Sul em torno de Dourados.

A Fiocruz afirma que começou a desacelerar a queda nas internações por casos confirmados ou suspeitos de covid em estados como Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

"Tais estimativas reforçam a importância da cautela em relação a medidas de flexibilização das recomendações de distanciamento para redução da transmissão da covid-19 enquanto a tendência de queda não tiver sido mantida por tempo suficiente para que o número de novos casos atinja valores significativamente baixos."

Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres, - 25 março 2021, atualizado 29 abril 2021

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Brasil supera os 400 mil mortos por covid

Marca foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país. Normas de distanciamento foram relaxadas e risco segue muito alto, dizem especialistas. Vacinação também segue lenta após governo demorar para comprar doses.

Últimas 100 mil mortes foram registradas no país em apenas 36 dias

O Brasil alcançou nesta quinta-feira (29/04) a marca dos 400 mil mortos por covid-19, equivalente a nove vezes o número de pessoas assassinadas no país no ano passado, ou onze vezes o de pessoas mortas em acidentes de trânsito. Foram 3.001 mortes registradas nas últimas 24 horas, o que elevou o total de óbitos para 401.186, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

A cifra foi alcançada no mês mais mortífero da doença no país, apenas 36 dias após o Brasil ter registrado 300 mil mortes, e na mesma semana que o Senado instalou a CPI da Pandemia para investigar a atuação do governo Jair Bolsonaro no enfrentamento da covid.

O registro das 400 mil mortes ocorre em um momento da pandemia que pode ser traiçoeiro para o país. Os números mais recentes indicam leve desaceleração do contágio, o que incentivou parte dos governantes e da população a relaxar o distanciamento social. Mas o número de novos casos e mortes segue em patamar muito elevado, assim como a ocupação das UTIs na maior parte do país.

Como resultado, o aumento na circulação de pessoas, enquanto a vacinação completa chegou a apenas 9% da população, tem potencial para reverter a tendência de queda e elevar rapidamente o número de mortes diárias acima do patamar de 4 mil, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Momento da pandemia

Diversos indicadores mostram uma desaceleração recente na contaminação pelo vírus. A média móvel de novas mortes por dia, que nesta quarta era de 2.379, vem em tendência de queda desde 12 de abril, quando estava em 3.125.

A média móvel de novos casos por dia também registrou queda desde 11 de abril, quando era de 71.283, e desde o início desta semana estabilizou-se ao redor de 57 mil novos casos por dia.

A taxa de transmissão (Rt), que chegou a 1,23 em março – o que significa que 100 pessoas com a covid infectavam outras 123 – caiu e está agora em 0,93, segundo monitoramento do Imperial College de Londres. Foi a primeira vez que o número ficou abaixo de 1 em cinco meses.

Boletim divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na quarta também informou que há tendência de "ligeira queda" no número de casos e mortes. No último domingo, o estado de São Paulo registrou redução de 27% no número de pessoas internadas com covid comparado com o mês anterior.

Essa desaceleração se deve a medidas mais duras para restringir a circulação social adotadas por alguns prefeitos e governadores em março, e à parcela da população que, assustada com a escalada da pandemia, reduziu ainda mais as aglomerações.

Em 15 de março, por exemplo, o estado de São Paulo entrou na fase emergencial da restrições, com toque de recolher noturno, proibição de cultos religiosos presenciais e home office obrigatório. Em 26 de março, a cidade do Rio de Janeiro também determinou o fechamento do comércio e de serviços não essenciais.

 "É claro que isso teve algum efeito: há menos gente circulando e menos contatos, e começa a arrefecer a subida no número de casos e mortes", diz Roberto Kraenkel, membro do Observatório covid-19 BR.


Risco alto

Diante da tímida melhora, autoridades começaram a relaxar as normas de distanciamento. Em 12 de abril, o estado de São Paulo saiu da fase emergencial, e no último sábado iniciou a transição para a fase laranja, que autoriza inclusive o funcionamento de bares, restaurantes, academias e cinemas. Desde 9 de abril, bares e restaurantes também podem funcionar na cidade do Rio de Janeiro.

O relaxamento das restrições, associado ao cansaço das pessoas com a necessidade de isolamento, é perigoso neste momento, pois o nível de novos casos e mortes segue muito alto, afirma Marcelo Bragatte, um dos coordenadores da Rede Análise covid-19.

"Estabilizar em 3 mil, 2,5 mil mortes por dia, e normalizar isso, não é normal. Afirmar 'estamos desacelerando, vamos retomar as aulas, flexibilizar o comércio', é uma loucura. Tu estás se afogando numa piscina de dez metros de profundidade, tu tens 1,70 de altura e o nível da piscina baixou para cinco metros. Não vai te salvar", compara.

Na avaliação de Bragatte, se o roteiro de flexibilizações pelo país for mantido, o número de casos e mortes logo voltará a subir e o Brasil voltará a registrar mais de 4 mil novas mortes por dia em junho. "As tendências são muito ruins, estamos num patamar muito alto", diz.

UTIs cheias, mortalidade crescente

Um dos indicadores do perigo da flexibilização neste momento é a taxa de ocupação de UTIs. Nesta segunda-feira, 16 capitais brasileiras e o DF tinham 90% ou mais dos leitos públicos de UTI para pacientes de covid ocupados, contra 14 na semana anterior, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo. Na cidade do Rio de Janeiro, onde bares e restaurantes estão abertos, a taxa de ocupação é de 96%, contra 93% na semana anterior.

Outro dado preocupante é a maior taxa de letalidade da covid neste momento, que mede a parcela das pessoas diagnosticadas com a doença que morre. Segundo o boletim da Fiocruz divulgado na quarta, a taxa de letalidade foi de 4,4% na semana de 18 a 24 de abril, mais que o dobro da do final do ano passado, quando estava em torno de 2%.

A maior letalidade da doença é atribuída ao sistema de saúde trabalhando próximo ou acima de seu limite, e também pode estar relacionada à variante P1, mais transmissível, identificada pela primeira vez em Manaus e hoje predominante no país – essa cepa do vírus já responde por 90% das amostras analisadas no estado de São Paulo.

Letalidade da doença está em 4,4%, mais que o dobro do final do ano passado

Vacinação lenta

A solução duradoura para a pandemia é a vacinação, mas o Brasil demorou a firmar contratos com um rol variado de produtores e a falta de doses tem provocado atrasos e interrupções no plano de imunização. Esse é um dos pontos que serão investigados pela CPI da Pandemia.

"Temos poucas vacinas, e a perspectiva de vacinar a população de forma que a quantidade de pessoas com imunidade seja realmente grande para segurar a pandemia não vai acontecer tão cedo. Enquanto isso não acontecer, sempre poderemos ter novos surtos e subidas de casos", diz Kraenkel, que também lembra da importância de o país incluir em sua estratégia a testagem em massa e o rastreio de quem teve contatos com pessoas infectadas, "algo que nunca entrou na agenda do governo".

O Brasil é no momento o segundo país do mundo com mais mortes pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos, onde 574 mil pessoas morreram com covid. A distância entre os dois países, porém, está diminuindo. Nas duas últimas semanas, os americanos, que vêm conduzido um programa de vacinação agressivo, registraram cerca de 700 novas mortes por dia.

Bragatte avalia que a pandemia no Brasil apresenta números "funestos" em parte porque o governo federal decidiu "não levar a sério os avisos que a ciência vinha dando desde o início" e baseou suas decisões em uma falsa dualidade entre preservar a saúde pública ou a economia. "Elas são simbióticas. A economia é alicerçada em pessoas, não em números", diz.

Ele também afirma que a postura de Bolsonaro teve papel decisivo na piora da pandemia. "As lideranças têm um efeito forte. Todos os cientistas do país fazendo divulgação não têm o alcance de um presidente dando um exemplo inadequado", diz.

Deutsche Welle Brasil, em 29.04.2021

O Judiciário passando a boiada

O processo judicial eletrônico iniciou a reforma mais expressiva no sistema de justiça nacional neste século. Práticas obsoletas, morosidade, falta de transparência e gargalos de acesso à Justiça são problemas que a tecnologia prometia enfrentar. 

A distribuição dos serviços judiciários ao cidadão depende de usuários profissionais, dentre os quais, a advocacia. É a única profissão que atua em todos os pontos do sistema de justiça e tem contato direto com os cidadãos que demandam por aqueles serviços. Portanto, pode contribuir de maneira decisiva para aprimorar a justiça. Porém, raramente as opiniões da advocacia são consideradas, quando não tratadas como obstáculo.

Por exemplo, a gravação de audiências sempre foi reivindicação da advocacia. Os juízes resistiam com firmeza à medida, mesmo depois de prevista no artigo 367 do Código de Processo Civil. Na diretoria da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), representamos contra juíza que expediu mandado de busca contra um advogado, para apreender o gravador em que ele havia registrado sua audiência.

Com a pandemia, as audiências por videoconferência tornaram a gravação habitual, defendida pelos juízes e regulamentada com rapidez em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça que tratam da “justiça digital”. Formulado ao arrepio do debate público e valendo-se da situação emergencial, há um arsenal de normas de gabinete estreitando a participação cidadã na administração da justiça.

As regras de audiência online estão sendo definidas conforme interesses exclusivos da burocracia judiciária e, na prática, servem para realizar desejo antigo de parcela expressiva dessa burocracia: distanciar-se dos advogados e, por consequências, da população. 

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus processuais e econômicos excessivos e desiguais para a advocacia, também por omissão da OAB. Partes e testemunhas sem meios técnicos ou ambiente adequado para participar de atos judiciais dependem dos escritórios de advocacia, que se tornaram extensão dos fóruns e, assim, têm garantido a continuidade da prestação jurisdicional.

O ingresso livre nos fóruns e tribunais foi substituído por horas em “salas de espera” virtuais, o botão de mudo usado para cassar a palavra de advogados. Há notícias recorrentes de juízes que não atendem advogados pelos meios eletrônicos ou inviabilizam esse imprescindível contato com regras criativas (envio de sustentação oral gravada, despacho por e-mail etc).

A tecnologia sempre será muito útil no campo jurídico. Porém, há que se observar a necessidade de preservação do espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de custódia, de instrução, depoimentos sensíveis, acareações etc. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas com a solenidade devida que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quando tudo ocorre por vídeo, com perda das percepções pessoais, da comunicação não verbal e da mediação direta entre profissionais do direito e jurisdicionados.

O modelo de justiça digital que está sendo implementado é excludente, disfuncional e formatado apenas sob a ótica da burocracia judiciária. No final dos anos 90 desenvolveu-se o conceito de “justiça de proximidade”. Desde 2020, provimentos estão substituindo-o pela “justiça de distanciamento”.

Para reverter esse processo e não desperdiçar mais uma oportunidade de usar bem a tecnologia é essencial que a justiça digital seja tratada em lei. O Parlamento é a arena pública adequada ao debate republicano. E, isso acontecendo, é preciso que a OAB saia da letargia, pense mais nos problemas da justiça e menos em política eleitoral. 

O debate legislativo deve pautar-se por definições que não constam das centenas de provimentos de tribunais e do CNJ, em especial: quais casos e atos judiciais serão realizados apenas por meio digital; quais aqueles que não poderão ser realizados por meio digital e quais os que poderão ser online diante de concordância das partes, não dos juízes. Esta última categoria, empodera o cidadão e democratiza a administração da justiça, além de se alinhar com o princípio de cooperação adotado por nossa legislação em 2015. Sem que essas definições sejam claras e fruto de um processo que passa pela participação e deliberação de todos, a justiça digital, anunciada como panaceia, não será nada além da repetição online de antigos problemas de uma justiça que segue sobrecarregada, arbitrária e errática.

Leonardo Sica, o autor deste artigo, é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) no biênio 2015-2016 e pré-candidato à presidência da OAB-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.04.2021.

Defesa do governo na CPI da Covid mobiliza milícias digitais

Senadores da comissão dizem ter sido alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais; parlamentares recebem ‘dossiês’ apócrifos contra críticos do Planalto

Com o governo Jair Bolsonaro no foco da CPI da Covid, senadores que integram o grupo dizem ser alvo de uma campanha orquestrada de ataques virtuais que tem como origem milícias digitais ligadas ao bolsonarismo. As mensagens incluem desde a disseminação de fake news, como a publicação de declarações descontextualizadas, até ameaças veladas. Em outra frente, parlamentares passaram a receber “dossiês” apócrifos contra adversários políticos do presidente em seus gabinetes.

Nas primeiras 24 horas após a abertura da comissão, anteontem, posts no Facebook com o termo “CPI da Covid” alcançaram mais de 3 milhões de interações (curtidas, comentários e compartilhamentos). Um monitoramento via Crowdtangle indicou que os mais populares partiram de bolsonaristas investigados por compartilhamento de fake news, como a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), que iniciou uma cruzada nas redes e na Justiça para barrar a participação de Renan Calheiros (MDB-AL) na comissão. Crítico do governo Bolsonaro, o senador foi designado relator da CPI.

CPI da Covid em reunião que definiu presidente, vice e relator. (Crédito foto: Edilson Rodrigues/Ag. Senado)

“Você não imagina quantas mensagens grosseiras eu recebi ao longo desses dias. Coisas grosseiras, ameaças perguntando se eu gostava da minha família, xingamentos. É um volume atípico, com robôs. Pagam para fazer isso”, afirmou o senador Otto Alencar (PSD-BA), que se define como independente.

Por trás de algumas das publicações relacionadas à CPI também estão nomes ligados ao chamado “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Revelado pelo Estadão em setembro de 2019, o núcleo costuma dar as diretrizes da atuação digital de bolsonaristas e é influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

O assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz é um dos nomes do grupo. Tércio usou o Twitter para se referir ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta como “genocida”, uma vez que, em várias ocasiões, ele recomendou que pessoas com sintomas leves ficassem em casa, seguindo o que diziam autoridades sanitárias no início da pandemia. A postagem do assessor de Bolsonaro teve mais de 10 mil compartilhamentos. 

Em sua primeira reunião de trabalho, marcada para hoje, a CPI deve analisar um requerimento do senador Humberto Costa (PT-PE) que pede a convocação de três integrantes do “gabinete do ódio”. Além de Tércio, o pedido inclui José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz – todos assessores da Presidência da República – e é fundamentado por informações de que eles são operadores informais das redes bolsonaristas. O requerimento entra no escopo da investigação sobre a atuação da comunicação do governo, suspeita de desinformar e agir contra as medidas em favor da contenção da pandemia. 

‘Dossiês’

Além dos ataques virtuais, Mandetta também passou a ser alvo de “dossiês” apócrifos entregues nesta semana nos gabinetes do Congresso. O Estadão apurou que ao menos três parlamentares receberam envelopes com dados sobre a gestão do ex-ministro e possíveis irregularidades envolvendo contratações da pasta. Os três pediram para não ter os nomes revelados. Embora evitem apontar os autores, senadores que tiveram acesso ao conteúdo afirmaram que apenas pessoas com acesso a informações internas do governo poderiam produzi-los. Mandetta deixou o governo em abril do ano passado por desavenças com Bolsonaro e será o primeiro a ser ouvido pela CPI, na terça-feira. Procurado pelo Estadão, ele não quis se manifestar.

Chefiada pelo general Luiz Eduardo Ramos, a Casa Civil tem coletado informações em várias áreas, sob o argumento de que se trata de uma estratégia para defender o governo na CPI da Covid. A Secretaria de Governo, comandada por Flávia Arruda, também ajuda senadores aliados na comissão com dados e orientações sobre quem convocar. 

A assessora especial da Secretaria de Assuntos Parlamentares da Presidência, Thais Amaral Moura, é indicada como autora de requerimentos preparados pelos senadores governistas Ciro Nogueira (Progressistas-PI) e Jorginho Melo (PL-SC) na CPI. É possível encontrar o nome de Thais ao acessar as propriedades dos arquivos das solicitações dos senadores. A Secretaria é ligada à Segov. O Planalto não se pronunciou sobre a reportagem.

Relator

A articulação de bolsonaristas nas redes sociais vem sendo acompanhada de perto por Renan e discutida com outros integrantes da comissão.  O relator da CPI escalou sua equipe para produzir e apresentar ao colegiado relatórios periódicos sobre o que realmente é debatido pela opinião pública nas redes sociais. A interlocutores, ele disse que sua intenção é permitir que “ninguém seja influenciado pelo gabinete do ódio” e que os senadores “não apanhem calados”.

O modelo é uma adaptação de um sistema usado pela Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, que serve para filtrar comentários e pressões das redes usando uma espécie de checador. Esse aplicativo leva em conta o comportamento dos perfis, o tipo de postagem, o tipo de nome e a participação nos temas.

Eleito vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) também identificou o acirramento nos ataques virtuais. Um levantamento da assessoria do parlamentar aponta que postagens críticas subiram 40% em relação ao ano passado. Em alguns casos, incluem frases como “Deus tenha misericórdia de você” e “Você não tem medo, não?”. “E é sempre à noite. Acho que tem um horário que os robôs saem e aumentam os níveis das agressões”, afirmou Randolfe.

Vinícius Valfré, Marcelo de Moraes e Lauriberto Pompeu para O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 05h00

Economia da obediência

O fracasso do Ministério da Economia, sem rumo, sem projetos e sem peso político, foi comprovado, mais uma vez, pela rendição de Paulo Guedes a pressões.

O fracasso do Ministério da Economia, sem rumo, sem projetos e sem peso político, foi comprovado, mais uma vez, pela rendição do ministro Paulo Guedes a pressões do Congresso, de outras áreas do Executivo e também do presidente da República. Ao substituir alguns de seus principais auxiliares, como o secretário especial da Fazenda, o ministro cuidou apenas de uma reles acomodação política. Ele nem tentou disfarçar. “O que está acontecendo”, explicou, “é remanejamento da equipe justamente para facilitar negociações com o Congresso.” Negociações para quê? Para garantir a execução de uma ambiciosa política econômica? Até poderia ser, mas nada parecido com essa política foi apresentado em quase dois anos e meio de escassa atividade governamental.

A nova rendição é mais um desdobramento da enorme confusão sobre o Orçamento de 2021. Aprovado só em março, o projeto orçamentário, muito ruim desde a origem, ainda foi destroçado no Congresso para atender aos interesses paroquiais de parlamentares. Emendas foram infladas, gastos obrigatórios foram subestimados e a sanção presidencial foi decidida, enfim, no meio das negociações entre Poderes e de graves divergências dentro do Executivo.

Já desgastado em outros episódios, o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, atraiu novas críticas. Com isso, ficou mais exposto à destituição, enfim anunciada, juntamente com outras mudanças, na terça-feira. Considerado um fiscalista rigoroso, ele chegou a propor, no ano passado, o congelamento de aposentadorias ligadas ao salário mínimo. O presidente reagiu, ameaçou demissões e o ministro aceitou a pressão, embora houvesse admitido, inicialmente, a proposta impopular formulada pelo secretário.

A desarticulação da área econômica, no entanto, é muito mais importante que o conteúdo das polêmicas. O Ministério da Economia negociou mal, e de forma confusa, a forma final do Orçamento. O ministro falhou na escalação do pessoal autorizado a se manifestar e na definição dos temas e objetivos da negociação. Os parlamentares conseguiram, afinal, manter boa parte das emendas infladas. Ficou para o Executivo a missão de completar os ajustes. Cortaram-se verbas destinadas ao censo demográfico, já atrasado, ao programa habitacional e a outras ações de importância econômica e social, em áreas como educação, serviços de saúde e pesquisa médica.

Houve pouca discussão sobre os efeitos desse ajuste, mas o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo apontou possíveis consequências. Os cortes, segundo o sindicato, poderão impedir ou dificultar a produção de cerca de 215 mil unidades habitacionais em todo o País, com perda de “mais de 400 mil empregos diretos e indiretos”.

Especialistas podem debater os detalhes, mas o investimento em habitação é conhecido como importante fonte de empregos e de estímulos a vários setores da indústria – nos segmentos de aço, plásticos, cimento, vidros, guindastes, tratores, tintas e móveis, entre outros. Pode-se perguntar se o governo leva em conta informações como essas ao tomar decisões sobre política orçamentária. A resposta é provavelmente negativa, a julgar pela escassa atenção destinada, habitualmente, às condições de funcionamento da economia, isto é, ao dia a dia da produção e dos negócios.

Essa pouca atenção foi demonstrada na decisão de reduzir o auxílio emergencial a partir de setembro e extingui-lo na virada do ano. O aumento da miséria foi uma das consequências. Depois, aparentemente surpreendido, o governo teve de negociar com o Congresso ações para restabelecer a ajuda. Não houve sequer, em 2020, o planejamento necessário para o enfrentamento continuado da crise. Sem plano e sem prioridades para a economia real, o governo se aproxima de um período eleitoral muito perigoso para as finanças públicas, com o Tesouro sujeito às pressões do presidente e de seus aliados dentro e fora do Congresso. Se nada surpreendente ocorrer, a função do Ministério da Economia será tentar a conciliação dessas pressões.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 03h00

O padrão da infâmia

"Há quem sue a camisa tentando ser mais imoral que os Bolsonaros", enfatiza O Estado de S. Paulo em editorial hoje.

O senador Flávio Bolsonaro saiu ao pai. Tal como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro, o parlamentar ofendeu a inteligência alheia ao discursar na abertura da CPI da Pandemia. Na ocasião, o senador, com vergonhosa caradura – outro traço paterno –, queixou-se do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, por ter autorizado a instalação da CPI. Disse que o senador Pacheco estava sendo “irresponsável” porque estava “assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos desta CPI, acontecerem mortes de senadores, mortes de assessores, mortes de funcionários desta Casa, em função da covid”, já que “as sessões vão ter que ser presenciais, no momento em que nem todos estão vacinados”. E arrematou: “Por que não esperar todo mundo se vacinar e fazer com responsabilidade esses trabalhos? Por que essa insistência agora, atropelando protocolos, ignorando a questão sanitária? Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer. Vamos orar para que não aconteça”.

É um acinte. Desde o início da pandemia, os Bolsonaros, com o presidente Jair na vanguarda, fazem campanha sistemática contra os “protocolos” mencionados pelo senador Flávio. O presidente estimula aglomerações, desdenha da vacinação e jamais demonstra preocupação com os doentes nem respeito pelos mortos. Por fim, é Bolsonaro, e não o presidente do Senado, quem defende o fim das medidas de restrição adotadas pelos governadores e prefeitos no momento em que nem mesmo o chamado “grupo de risco” da população está vacinado.

“Alguém, em algum momento, vai ser responsabilizado se algo acontecer”, disse Flávio Bolsonaro, referindo-se a eventuais mortes no Senado em razão do trabalho presencial. Mas “algo” já aconteceu: são quase 400 mil mortes desde o início da pandemia, muitas delas perfeitamente evitáveis, e é justamente para encontrar os responsáveis por esse crime monstruoso que a CPI foi instalada.

O comportamento do senador Flávio Bolsonaro não surpreende. É o padrão da infâmia no governo Bolsonaro – a tal ponto que, numa inconfidência gravada, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, de 64 anos, revelou ter tomado a vacina “escondido”, porque “a orientação era para não criar caso”.

Não se sabe bem a que “orientação” o ministro se referiu, mas, ao dizer que teve que tomar a vacina “escondido”, deixou claro que alguns ministros do governo Bolsonaro não ficam à vontade para se imunizar, pois esse gesto contrariaria a campanha do presidente contra a ciência e contra a vacinação.

“Mas tomei mesmo, não tenho vergonha, não”, continuou o ministro Ramos, que estava numa reunião do Conselho de Saúde Suplementar. “Eu, como qualquer ser humano, quero viver. E se a ciência, a medicina, fala que é a vacina (...), quem sou eu para me contrapor?” E ainda acrescentou que está tentando convencer Bolsonaro a se vacinar, pois o presidente estaria correndo risco de vida. Ou seja, um ministro de Bolsonaro candidamente confirma que, no governo, quem decide alinhar-se à ciência e preservar a vida deve fazê-lo discretamente, para não embaraçar o negacionista militante ocupante da silha presidencial.

Na mesma reunião estava o ministro da Economia, Paulo Guedes, que também teve sua oportunidade para confirmar o assustador padrão do governo. “O Estado quebrou”, disse o ministro Guedes, acrescentando que “todo mundo vai procurar o serviço público” de saúde, pois “todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130”, e “não há capacidade instalada no setor público para isso”. Ou seja, para o ministro que se diz liberal o problema da saúde pública é que os brasileiros desejam viver mais.

A solução para esse problema, segundo o ministro Guedes, seria instituir um “voucher” para que o paciente procure tratamento no sistema privado de saúde. “Você é pobre? Você está doente? Está aqui seu voucher. Vai no Einstein se você quiser”, explicou o ministro, numa escancarada defesa do desmonte do Sistema Único de Saúde – estrutura sem a qual o desastre da pandemia seria muitas vezes maior.

Como se vê, nesse campeonato de desfaçatez, há quem esteja suando a camisa para ser ainda mais imoral que os Bolsonaros. É difícil, mas eles seguem tentando.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 03h00

Em nova derrota para o Planalto, CPI da Covid convoca Queiroga e ex-ministros da Saúde

Colegiado aprovou requerimentos para ouvir Marcelo Queiroga, atual ministro, e seus antecessores no governo Bolsonaro: Eduardo Pazuello, Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta; todos devem prestar esclarecimentos semana que vem.

 Os integrantes da CPI da Covid no Senado aprovaram nesta quinta-feira, 29, os requerimentos para convocação dos ex-ministros da Saúde do governo Jair Bolsonaro e do atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga. Todos devem ser ouvidos pelo colegiado na semana que vem. O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, também foi convocado a prestar depoimento durante a segunda reunião do grupo, que foi marcada mais uma vez por tentativas de obstrução por parte dos governistas. 


Omar Aziz (sentado), presidente da CPI da Covid; Randolfe Rodrigues, vice (esq.); e o relator Renan Calheiros. (Crédito da foto: Edilson Rodrigues/Ag. Senado)

Requerimentos de senadores governistas na CPI foram feitos no Planalto

As primeiras convocações representam uma derrota para o Palácio do Planalto,pois colocam a gestão federal no foco inicial das investigações. Aliados do presidente Jair Bolsonaro criticaram a atuação da comissão e tentaram, sem sucesso, votar ao mesmo tempo requerimentos de interesse direto do presidente. 

Em meio a um clima tenso, os senadores governistas só conseguiram adiar a convocação do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten, cujo pedido teve sua avaliação adiada para a próxima terça-feira, 4. A expectativa, no entanto, é que esse requerimento também seja aprovado e Wajngarten possa ser ouvido na segunda semana de maio.

Todos os requerimentos foram aprovados para que as autoridades sejam ouvidas como testemunhas. Ninguém ainda é formalmente investigado pela CPI da Covid. 

Os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich devem ser ouvidos dia 4. Na quarta, 5, a CPI vai coletar o depoimento de Eduardo Pazuello, que ficou mais tempo à frente da pasta durante a pandemia de covid-19 e é um dos principais alvos da investigação.

Na sequência, dia 6, os senadores querem ouvir o depoimento do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres. As autoridades podem recusar a convocação ou até mesmo ficarem caladas durante a audiência. 

Informações

A CPI aprovou ainda uma série de pedidos de informações propostos pelo relator, Renan Calheiros (MDB-AL). O Ministério da Saúde terá cinco dias úteis para enviar dados sobre o enfrentamento da pandemia, aquisição de vacinas, medidas de isolamento social e distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada, além do repasse de verbas para Estados e municípios.

Autoridades do Amazonas também serão intimadas para o envio de informações sobre o colapso no sistema de saúde de Manaus. Além disso, os senadores vão pedir documentos da CPMI das Fake News do Congresso. 

O foco dos primeiros requerimentos foi criticado pela tropa de choque do presidente Jair Bolsonaro. Governistas pediram para que todos os pedidos fossem aprovados ao mesmo tempo, inclusive aqueles de interesse direto do Executivo federal. Alguns deles foram, inclusive, assinados por uma assessora da Secretaria de Governo da Presidência da República, conforme informação revelada pelo jornal O Globo e confirmada pelo Estadão/Broadcast.

"Não podemos aprovar requerimentos para tirar o foco da investigação", afirmou Renan, em debate com os governistas. "O foco da CPI não pode ser aquele dado pelo relator", retrucou Marcos Rogério (DEM-RO), aliado de Bolsonaro. O comentário provocou reação da oposição. "Também não pode ser o que veio do Palácio do Planalto", disse Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Após o bate-boca, a sessão foi suspensa por meia-hora. 

Um dos autores dos requerimentos que tiveram a digital do Planalto, Ciro Nogueira (PP-PI) afirmou que os pedidos são de autoria formal dos senadores e precisam ser analisados. "Vamos votar os que foram assinados por senadores. O senhor não vai impedir. Vote contrário", disse Ciro a Renan Calheiros.

O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que todos os requerimentos de informações serão analisados, mas que, neste momento, é preciso focar naquilo que será necessário para  levantar dados durante os depoimentos na próxima semana.

Daniel Weterman e Vinicius Valfré para O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2021 | 11h36. / Colaborou Lauriberto Pompeu.


Waak: O milagre da permanência

Bolsonaro cedeu a outras forças políticas o terreno que era seu

Jair Bolsonaro está ganhando fácil a corrida para saber qual ocupante do Palácio do Planalto conseguiu perder mais rápido o capital político conquistado numa eleição direta e plebiscitária. É curioso observar como ele mesmo “trabalhou” para criar um vácuo político imediatamente ocupado. 

De fato, nunca o Executivo brasileiro foi tão controlado, contido ou encurralado pelo Judiciário e Legislativo. Têm razão os generais de pijama que cochicham a Bolsonaro que STF e Congresso extrapolaram suas competências. Mas não se trata, como pretendem Bolsonaro e seus seguidores (em diminuição acentuada) de uma “conspiração”.

A principal responsável é a atuação do próprio Bolsonaro e sua extraordinária incompetência política. No momento em que enfrentar a crise da pandemia e suas consequências para a economia demandaria uma altíssima capacidade de liderança, coordenação e foco estratégico, o “centro” do poder está ocupado por uma curiosa aliança tácita, volátil e fluida de juízes e parlamentares.

Bolsonaro tinha uma grande pauta de mudanças e reformas logo que assumiu que hoje se resume em permanecer onde está. Cedeu instrumentos de poder real e efetivo (como o controle do Orçamento) e foi obrigado a respeitar limites de atuação política (estipulados pelo STF) pela mesma razão: não ter visão, capacidade de condução e muito menos entender o que é a política, embora tivesse passado 27 anos no fundo da Câmara dos Deputados.

Ele sabe muito bem, por outro lado, que o jogo dos donos do poder em Brasília obedece aos fatores de longa memória, a saber: compadrio, patrimonialismo, corporativismo, teias de laços pessoais e oligárquicos, acomodação de interesses à custa dos cofres públicos, clientelismo. Nessa rede que se revelou indevassável (que o diga a Lava Jato) Bolsonaro está manietado, pessoal e politicamente.

Sua mais recente “cartada” é jogar o jogo dos donos do poder no Judiciário, por meio das nomeações que terá de fazer para tribunais superiores e na Procuradoria-Geral da República. É ocupar por dentro instâncias decisivas de poder político, como tem sido o Judiciário brasileiro (e o MPF). O caminho é o mesmo que movimentos como o chavismo percorreram, por exemplo, até desfigurar o que existia de democracia (a base disso é a lealdade ao chefe e não à lei ou instituições).

No caso do Brasil o perigo dessa “marcha por dentro das instituições” é muito menor. O chamado “sistema” continua intacto. E, ao contrário de outros “ismos” da nossa história política (varguismo, ou lulismo), o bolsonarismo é um conjunto de propostas e ideias sem definição clara, rumo definido, coordenação eficaz e com escasso domínio dos instrumentos clássicos de poder ou coerção. Bolsonarismo é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa.

Talvez a única “base social” nítida do bolsonarismo seja a ligação de seus expoentes políticos com as denominações políticas e religiosas evangélicas – mas, aqui, cabe lembrar aos seguidores do “mito” (um atributo que está resvalando para o ridículo) que o conjunto de forças evangélicas é fracionado, dividido entre si e alguns de seus principais nomes apoiaram todos os governos anteriores e provavelmente o farão no futuro. Não acham que devam “lealdade” ao presente chefe.

Por último, esse “estado de espírito” bolsonarista – o da polarização, defesa da ignorância, intolerância e boçalidade política geral – está construindo depressa no grande e movediço terreno das atitudes das pessoas um movimento contrário caracterizado por indignação, cansaço, tristeza e falta de esperanças nesse “mito” e, por enquanto, em qualquer outro candidato (o que inclui Lula). 

Mas esse candidato surgirá: a demanda foi criada por Bolsonaro, assim como ele mesmo atendeu a uma clara demanda. Segue convencido de ter sido beneficiado por um milagre (sobreviveu à facada) e que só Deus pode tirá-lo de onde o colocou. Ignora-se se as forças diversas do chamado Centrão, às quais Bolsonaro entregou seu futuro político, o fazem por acreditar em desígnios divinos. O fato é que, no momento, acham mais conveniente deixá-lo por lá.

Wiliam Waack  é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.04.2021

Renan Calheiros, o insólito novo líder da oposição a Bolsonaro

Político camaleão e hábil interlocutor na câmara alta, senador envia recado: “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), durante a sessão da CPI da Covid. (Crédito da foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado).

Nunca uma CPI começou com tantos sinais de crime

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

Inaugurada nesta terça-feira, a CPI da Covid já demonstrou quem será o segundo principal adversário político de Jair Bolsonaro pelos próximos meses, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Não é o principal, pois, como usualmente se diz em Brasília, o papel de maior opositor do Governo Bolsonaro cabe ao próprio presidente e a seus ministros, com as crises autoinfligidas e declarações que provocam conflito com outros poderes e países ―nesta terça-feira foi a vez de Paulo Guedes (Economia) irritar Pequim dizendo que o “chinês inventou o vírus”, sem saber que estava sendo gravado. Antes desta gafe, foi o discurso de Calheiros como relator da comissão parlamentar de inquérito que trouxe os primeiros indícios do caminho que o experiente senador de Alagoas pretende trilhar e do barulho que a CPI pode causar.

Em sua primeira participação, Calheiros provocou incômodo no primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O herdeiro do presidente reclamou que as sessões presenciais da CPI poderiam resultar na contaminação de mais servidores da Casa e até na morte de parlamentares ―três senadores já morreram de covid-19 desde o ano passado. “Acho que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”, disse Flávio. Indagado por repórteres sobre esta fala, Calheiros ironizou. “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros”, afirmou.

Em seu primeiro discurso na CPI, o senador não citou diretamente Bolsonaro em nenhuma ocasião. Mas enviou recados incômodos. “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”, disse. Ele prometeu ser imparcial em seu relatório, do qual disse querer ser um sintetizador, um redator. E alegou ainda que prezará sempre pela ciência. É um contraponto à rejeição dos preceitos científicos de Bolsonaro e de seus asseclas. “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo, ao negacionismo sepulcral responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano.”

Crítico da operação Lava Jato, Calheiros reforçou essa postura também no discurso inicial da CPI. “[A comissão] tampouco será um cadafalso com sentenças pré-fixadas ou alvos selecionados. Não somos discípulos nem de Deltan Dallagnol nem de Sérgio Moro”, disse em referência ao procurador e ao ex-juiz que atuaram na operação em Curitiba. “Não arquitetaremos teses sem provas ou Power Points contra quem quer que seja. Não desenharemos o alvo para depois disparar a flecha”. 

Ataques nas redes processos judiciais

Assim que passou a circular a informação de que o emedebista seria o relator da comissão, interlocutores do Governo o procuraram para tentar aliviar o relatório para Bolsonaro. Na conta, estaria um eventual apoio ao seu grupo político na eleição estadual do ano que vem. O cenário em Alagoas ainda não está claro. O Estado é governado por Renan Calheiros Filho (MDB), que, em seu segundo mandato, tem dois ou três pré-candidatos a sua sucessão. O apoio de Bolsonaro, no momento, não é bem recebido pelos emedebistas. Por enquanto, eles preferem estar ao lado do lulismo do que do bolsonarismo.

Seja como for, Renan Calheiros é um camaleão político que ocupa cargos públicos e eleitorais há 42 anos. Desde a redemocratização, já foi da base governista de todos os presidentes. De Fernando Collor (PROS) a Michel Temer (MDB). Em alguns momentos foi mais defensor do presidente da ocasião. Em outros, como no de Dilma Rousseff (PT), foi um conciliador que deixou de apoiá-la na reta final de processo de impeachment, mas conseguiu manter os direitos políticos da petista em um grande acordo parlamentar. Por essa razão, é bem-quisto pelos petistas, principalmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Após ser derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência do Senado em 2019, Calheiros atuou nos bastidores contra a gestão Bolsonaro. Fugiu dos holofotes por um período para se defender dos 12 processos aos quais responde no Supremo Tribunal Federal e, agora, volta com todas as cargas contra o presidente e já enfrenta a ira das redes bolsonaristas. 

A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) tentou impedi-lo, por meio de uma ação judicial, retirá-lo da relatoria. Conseguiu, em primeira instância, mas viu na segunda, viu a decisão cair. “Intimidações, e todos os dias nós as vemos sob qualquer modalidade e arreganhos, não nos deterão”, disse. Uma das principais queixas dos bolsonaristas trata exatamente dos elos familiares de Calheiros. “Se for pela questão de interesse, o presidente não deveria nem deixar o Flávio Bolsonaro entrar aqui no colegiado”, disse o líder do PT no Senado, Paulo Rocha.

A característica mutante de Calheiros faz com que ele esteja, hoje, ao lado de quem antes era seu opositor. Agora, caminha de braços dados com Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o senador que liderou o seu partido na Justiça, em 2016, em um movimento para afastar o emedebista da Presidência do Senado. Naquela ocasião, foi a primeira vez que o Senado afrontou uma decisão judicial, dada em caráter liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Próximos passos

Nesta quarta-feira, a CPI deverá receber sugestões de planos de trabalho, que são uma espécie de roteiro do colegiado que inclui as próximas convocações e os documentos que deverão ser entregues para se iniciar a investigação. Três já foram entregues, e o relator espera receber ao menos mais cinco. Antes, contudo, Calheiros já enviou uma série de requerimentos que devem dar o tom dos trabalhos na primeira semana. Na quinta, esses planos de trabalho deverão ser votados pela comissão.

O primeiro a comparecer na comissão, como testemunha, será o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na próxima terça-feira. “Temos a preocupação de começar a cronologia do início, para saber o que foi feito desde o primeiro momento”, disse o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

Mandetta deixou o Governo por discordar da conduta negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Ele defendia medidas de restrição de circulação enquanto o mandatário era contrário. Também havia um confronto sobre o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes no tratamento do coronavírus, sempre propagados pelo presidente.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em  27 ABR 2021 - 21:53 BRT

Biden pede ao Congresso apoio à sua agenda social: “Não podemos parar agora”

Em seu primeiro discurso no Capitólio, prestes a completar 100 dias no cargo nesta quinta-feira, presidente norte-americano pede apoio para taxar alta renda para financiar programas sociais.

100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos

O presidente Joe Biden fez nesta quarta-feira, em seu primeiro discurso perante o Congresso dos Estados Unidos, uma defesa capital do Governo federal em e de seus ambiciosos planos de proteção social e investimento em infraestrutura, que somam quatro trilhões de dólares e que, se efetivados, representarão a maior expansão do Estado de bem-estar social em décadas. 

Às vésperas de seus primeiros 100 dias de mandato, Biden pediu aos republicanos apoio para um novo arcabouço que enterre o credo neoliberal que reina desde os anos 1980 e defendeu as medidas tomadas na Casa Branca: “Os Estados Unidos se movem, estão avançando, não podemos parar agora.“

O discurso do presidente ao Senado e à Câmara dos Representantes, um rito anual da política americana, ocorreu este ano em condições anômalas, como praticamente tudo neste ano pandêmico. Os cerca de 1.600 convidados foram reduzidos, desta vez, para cerca de 200 e a segurança foi reforçada em todo o perímetro do Capitólio, por causa dos alertas ativados desde o assalto sofrido pelo local em 6 de janeiro perpetrado por radicais que estavam precisamente tentando torpedear a chegada de Biden à Casa Branca. 

Nesta noite, ladeado pela primeira vez por duas mulheres ―a presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, e a vice-presidenta do país, Kamala Harris―, o democrata fez uma declaração que dificilmente imaginou que faria durante seus 36 anos como senador, onde conquistou fama de moderado e pacificador. “É hora de fazer crescer a economia de baixo para cima”, sublinhou, em um discurso de pouco mais de uma hora, no qual também fez um apelo pelo fortalecimento do sindicalismo e pela arrecadação de impostos para os mais ricos.

Biden mostrou aquele otimismo que faz parte do DNA do país ―“A América está em movimento novamente. Transformando o perigo em possibilidade. Crise de oportunidades”―, destacou o 1,3 milhão de empregos criados em três meses, um recorde nos primeiros 100 dias para qualquer presidente da história, e pediu mais artilharia. 

O democrata tomou as rédeas do país em um momento inusitado e crítico, diante de um grande desafio, e decidiu aproveitar a crise para lançar um pacote de estímulos e reformas estruturais de grande significado social. 

Em março, conseguiu aprovar um plano de resgate de 1,9 bilhão de dólares que já parecia excessivo aos republicanos, então apresentou um plano de infraestrutura de 2,3 bilhões. Nesta quarta-feira, aproveitou o encontrou entre os norte-americanos e seus legisladores para apresentar um novo programa, dirigido a famílias, que amplia a educação pública, orçado em 1,8 trilhão.

Para financiá-lo, propõe mais recursos para o combate à sonegação fiscal, aumento de impostos para empresas e para cidadãos que ganham mais de 400.000 dólares por ano, de 37% para 39,6%. Qual deve ser o tamanho do governo e a intensidade da intervenção na economia divide os americanos. Os republicanos rejeitam novas medidas de gastos, enquanto os democratas as veem como um investimento. 

Para os republicanos, o aumento dos impostos é um revés, principalmente depois do grande corte aprovado por Donald Trump em 2017. Biden garante que seu foco é apenas “1% mais rico” e que a classe média não vai pagar nada a mais.

Biden enviou uma mensagem cuidadosamente dirigida ao trabalhador de macacão azul, aquele que perdeu nas transformações econômicas das últimas décadas e de quem Trump soube se aproximar. Depois de anos de críticas nos quais os democratas foram acusados de não saberem ler a angústia da América do chão de fábrica, o democrata tentou assegurar-lhe de que pensa nele em todos e em cada um dos planos econômicos que formulou. 

Por exemplo, o presidente apresentou as ambiciosas metas ambientais com as quais os Estados Unidos acabaram de se comprometer como fonte de empregos técnicos e manufatureiros, em vez de a sentença de morte para outras indústrias. 

“Quando penso em mudança climática, penso em empregos”, enfatizou. Não há razão, continuou ele, para que as turbinas para os moinhos de vento “não devam ser produzidas em Pittsburgh, em vez de Pequim”. “Você se sente abandonado e esquecido em uma economia em rápida mudança? Digo que esses empregos são bem pagos e não podem ir para o exterior“, frisou o democrata, que destacou que os “90% dos empregos em infraestrutura não exigem diploma universitário.”

O democrata, em uma guinada muito evidente em relação ao Governo Barack Obama, defendeu o fortalecimento do movimento sindical, destacando: “Wall Street não construiu este país, a classe média construiu este país. E os sindicatos constituem a classe média“. 

E disputou com Trump a bandeira do patriotismo econômico, prometendo que o plano de emprego será baseado “em um único princípio”: “Compre produtos americanos”. “Os dólares dos contribuintes dos EUA serão usados para comprar produtos americanos que criam empregos americanos.”

Biden completou seus primeiros 100 dias no cargo com índices de aprovação razoavelmente bons (59%, de acordo com dados da Pew Research, contra 39% obtidos por Trump por volta das mesmas datas), com a gestão da pandemia como o aspecto mais valorizado e a imigração como o pior. No auge da chegada de migrantes sem documentos à fronteira, o democrata pediu aos legisladores que aprovem seu projeto de lei para aumentar a segurança na fronteira e para fornecer um caminho rumo à cidadania para os cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos que existem nos Estados Unidos.

Ele também se referiu à China e à Rússia, países rivais com os quais o democrata mantém um tom duro. Ele garantiu que não busca uma “escalada de tensão” com o Kremlin, mas alertou que as ações russas ―como interferência eleitoral e ataques cibernéticos― “têm consequências”. Também disse que não busca um “conflito” com Pequim, mas vai lutar contra a concorrência econômica desleal.

O republicano também se referiu à morte do afroamericano George Floyd sob o joelho do agente Derek Chauvin, que foi considerado culpado na semana passada pelo júri em Minneapolis, e pediu ao Congresso que aproveite o aniversário do crime, em 25 de maio, para aprovar uma lei de reforma policial que ajude a prevenir abusos e que leve seu nome.

O último discurso de Donald Trump no Congresso, em fevereiro de 2020, mostrou o clima de hostilidade que prevalece na política americana. Aconteceu um dia antes de ser votado o veredicto do primeiro impeachment, do qual foi absolvido. Logo após iniciar, o republicano se recusou a cumprimentar a presidenta da Câmara dos Deputados, a poderosa democrata Nancy Pelosi. Trump falou por mais de uma hora, defendendo sua gestão e atacando a imigração. Ao terminar, Pelosi se levantou e rasgou os papéis do discurso de Trump com óbvio desprezo. 

Desta vez não houve drama, ninguém rasgou roupas ou papéis, mas os republicanos deixaram a Câmara se dizendo contrários aos planos de expansão do Governo que tinham acabado de ouvir, deixando claro que as negociações no Congresso serão árduas e que a promessa de uma era de cooperação bipartidária será difícil de cumprir.

AMANDA MARS, de Washington para o EL PAÍS, em 28 ABR 2021 - 22:17 BRT