quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

'Leão na jaula': como anda a vida do ex-presidente Lula, segundo amigos próximos

O ex-presidente está confinado em casa por causa da pandemia (Crédito da foto: Reuters / Amanda Perobelli).

Um leão dentro da jaula. Essa é a imagem que um amigo próximo escolhe para descrever o atual estado de espírito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Ele ficou confinado lá em Curitiba mais de 500 dias. Depois vem a pandemia, fica confinado em casa. Vai para Cuba, pega covid, fica confinado em Cuba", diz esse amigo.

"Ele não aguenta mais o confinamento, está louco para ver gente. Ele é o tipo de ser humano para quem o contato com as pessoas é essencial. Está louco para tomar a vacina, para poder voltar a ter mobilidade", conta o confidente, que prefere falar sob anonimato, pois afirma não ter a pretensão de ser um "intérprete" do ex-presidente.

Diante da expectativa de retomada do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a suspeição do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá, a BBC News Brasil ouviu nos últimos dias seis pessoas próximas ao ex-presidente.

Entre elas, estão o ex-presidente e atual diretor do Instituto Lula, Paulo Okamotto; o senador Jaques Wagner (PT-BA); o deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP) e o advogado Cristiano Zanin Martins, defensor do ex-presidente no Supremo. Outras duas pessoas prefeririam não ter seus nomes citados.

Íntimo de Lula, ele não acredita que poderá concorrer à Presidência em 2022, apesar de ainda nutrir o desejo de ser candidato.

"O que ele tem repetido para algumas pessoas no particular é que não tem como desfazerem o mal que fizeram. A mentira foi tão grande, que fica difícil voltar atrás", afirma uma das pessoas que optou pelo anonimato. "Voltar atrás e deixar o Lula readquirir os direitos políticos dele seria muito difícil, porque eles iriam se desmoralizar."

Além da expectativa do ex-presidente quanto ao julgamento no STF e quanto ao futuro do PT nas eleições de 2022, esse círculo de pessoas próximas relata como Lula tem passado os dias; por que desistiu por enquanto de se mudar para a Bahia; por que decidiu viajar para Cuba mesmo em meio à pandemia; e o que tem pensando sobre o governo Jair Bolsonaro (sem partido) e a atuação da oposição diante do avanço da extrema-direita.

Lula deixou a prisão em novembro de 2019, após 580 dias, beneficiado por uma decisão do STF que reconheceu o direito de réus condenados a responderem em liberdade até o último recurso. Condenado em duas instâncias no caso do tríplex no Guarujá, no âmbito da Operação Lava Jato, ele cumpria pena de 8 anos, 10 meses e 20 dias.

No caso do sítio de Atibaia (SP), o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) condenou o ex-presidente em segunda instância a 17 anos, 1 mês e 10 dias de prisão, pela acusação de ter sido beneficiário de reformas pagas por empreiteiras que obtiveram vantagens indevidas em contratos com a Petrobras.

Lula está morando com sua namorada, Janja (Crédito da foto: reprodução Twitter)

Janja e a cadela Resistência

Aos 75 anos, Lula mora atualmente em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, mas não mais no apartamento que dividiu durante anos com sua segunda esposa, Marisa Letícia, morta em fevereiro de 2017, aos 66 anos.

"Ele mora numa casa que era usada antigamente pelos seguranças dele. Depois que ficou junto com a Janja, eles nunca ficaram no apartamento em que ele morou com a Marisa", conta um dos amigos do ex-presidente.

Janja é o apelido da socióloga Rosângela da Silva, 54, noiva do ex-presidente.

O relacionamento entre os dois se tornou público em maio de 2019, quando o economista e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira — no que foi considerado por muitos como uma indiscrição — revelou, após visitar Lula na prisão, que o ex-presidente estava apaixonado e pretendia se casar ao deixar o cárcere.

Na casa térrea, no mesmo bairro de seu antigo apartamento, Lula e Janja moram com três cachorros vira-latas. A mais famosa é a cadela Resistência, adotada filhote por metalúrgicos do ABC que participaram da "Vigília Lula Livre", acampamento que durou todos os 580 dias da prisão do ex-presidente em Curitiba.

"Lembro da Resistência filhotinha. Os metalúrgicos do ABC ficaram com ela um tempão, até que, um belo dia, a Janja, que ainda não era conhecida, resolveu adotá-la", conta uma das pessoas próximas a Lula.

"O presidente dizia sempre que, quando saísse da prisão, ele ia levar a Resistência junto. E de fato levou. Ele gosta muito de cachorro. Às vezes nas lives e entrevistas, dá para ouvir os cachorros latindo."

Cachorrinha Resistência foi adotada por Janja (Crédito da foto: Reprodução / Twitter).

Exercícios físicos e rotina de 'lives' no computador

Segundo os amigos, um dia típico do ex-presidente começa com exercícios físicos. Em geral, ele se exercita em casa mesmo, mas às vezes vai a uma academia de amigos, onde consegue treinar com aparelhos sem a presença de outras pessoas.

"Ele tem uma esteira e faz exercícios físicos regularmente. Na Presidência ele já fazia, mas depois dela, começou a se cuidar mais, também por causa do câncer", diz um amigo dele. "Ele costuma dizer — e não é mentira — que corre 9 km por dia. E ele corre mesmo."

Lula foi diagnosticado com um câncer de laringe em 2011. Em março do ano seguinte, foi considerado curado pela equipe de médicos do Hospital Sírio-Libanês. Desde então, faz acompanhamento regular para assegurar que não há retorno da doença.

Após os exercícios, o dia do ex-presidente é ocupado principalmente por videoconferências e conversas por telefone. Fala com amigos, lideranças do PT, sindicalistas e militantes de movimentos sociais, em grupos ou individualmente. Sem celular próprio e com pouca intimidade com as novas tecnologias, depende da ajuda de assessores e de seus seguranças.

"O presidente nunca gostou de computador, de celular. Era uma coisa muito estranha o computador na vida dele, ele não usava. Mas, com a pandemia, ele começou a fazer muita reunião pelo computador e passou a dizer 'as minhas brigas, que antes eram na porta de fábrica, depois foram nas ruas, agora são pelo computador'. Mas ele fala da vacina toda hora, quer tomar vacina, porque não aguenta mais ficar no computador, isso está sufocando ele."

Sonho de morar na Bahia adiado

No ano passado, notícias davam conta de que Lula tinha planos de se mudar para a Bahia — Estado onde o petista Fernando Haddad venceu nas eleições de 2018, com mais de 72% dos votos no segundo turno, contra pouco mais de 27% para o presidente eleito Jair Bolsonaro.

Quase que instantaneamente, começaram a circular informações falsas, como a de que ele teria comprado uma mansão em Lauro de Freitas, cidade no litoral próxima a Salvador. Ou de que iria morar no mesmo condomínio em que vive Emílio Odebrecht, patriarca da construtora que foi uma das pivôs do escândalo de corrupção da Lava Jato.

"Pelo menos por enquanto, ele suspendeu o projeto. Realmente ele queria vir passar um ano, mas foi atrasando, aí foi para Cuba e voltou. Acredito que ele ainda pensa em passar um tempo aqui, mas por ora esse plano está suspenso", diz o senador Jaques Wagner, que já foi governador da Bahia e ministro da Defesa, da Casa Civil e chefe do Gabinete da Presidência durante o governo Dilma Rousseff (PT).

"Ele tem um desejo de ter sossego, de poder passar um tempo tranquilo. É um sonho dele e da Janja também", conta um outro amigo. "Eles chegaram a analisar a hipótese de morar na Bahia. Começaram a ver casa lá e imediatamente vieram as 'fake news', botando no ar um monte de casas chiques que ele supostamente iria alugar. Ele ficou muito chateado com a confusão toda que deu em torno disso. Mais a dificuldade da pandemia, e eles acabaram adiando esse desejo."

Lula não mora mais em seu apartamento em São Bernardo (Crédito da foto, Reuters)

Viagem para Cuba e covid-19

Esse mesmo desejo de um período de sossego foi um dos fatores que levou Lula a viajar para Cuba, mesmo em meio à piora da pandemia no Brasil. Novamente, o ex-presidente teve seu plano frustrado, ao ser diagnosticado com covid-19 logo nos primeiros dias de viagem.

"Havia há muito tempo um convite insistente do governo cubano e havia um convite do cineasta Oliver Stone para que eles gravassem lá um documentário", conta uma das pessoas do círculo de Lula.

"Como em Cuba a questão da covid está bastante sob controle, era uma forma também de ele dar uma fugida, dar uma descansada. O sonho dele é que ele iria lá, iria gravar o documentário, ia ter contato com as autoridades cubanas e depois ia ficar numa praia descansando, ter uns dias de repouso. Acontece que eles chegaram no dia 22 de dezembro e, no dia 26, no segundo exame que fizeram, constatou-se a covid, aí acabou."

Das 9 pessoas que acompanhavam Lula na comitiva à Cuba, somente 1 não se infectou.

O único que precisou ser internado foi o escritor Fernando Morais, biógrafo de Olga Benário, Paulo Coelho e Assis Chateaubriand, que trabalha atualmente num livro sobre o ex-presidente. O primeiro volume da obra (serão dois no total) tem previsão de lançamento esse ano pela Companhia das Letras no Brasil e pela Penguin nos Estados Unidos e Reino Unido.

O ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Alexandre Padilha tem acompanhando de perto o estado de saúde de Lula.

"Ele está super bem", diz Padilha, que é médico formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com especialização em infectologia pela Universidade de São Paulo (USP). "Ele chegou a ter lesão pulmonar, mas antes de sair de Cuba, uma tomografia já mostrava que havia melhorado. Desde então, ele fez outros exames aqui no Brasil e está tudo absolutamente normal.

"A coisa da covid certamente foi alguém da equipe que já estava infectado, pelo tempo do diagnóstico quando eles chegaram em Cuba", avalia o ex-ministro. "A viagem tinha sido programada em outubro, quando internacionalmente tinha havido uma redução dos casos. Eles seguiram todos os protocolos de viagem internacional, foram de avião fretado pela produção, colheram exames antes e achavam que isso era suficiente. Fica claro que não é."

Quanto à internação depois da volta de Cuba devido a uma infecção bacteriana, Padilha afirma que não há relação com o coronavírus.

"No sábado (6/2), ele teve um episódio intestinal e uma tremedeira, por isso o quadro foi registrado como uma bacteremia. No pronto-socorro, já começou com antibiótico. Só ficou internado até terça-feira (9/2) porque a equipe médica queria ver se identificava o crescimento da bactéria no sangue, para mudar a medicação que seria administrada em casa. Como isso não aconteceu, se manteve o medicamento que estava usando no hospital."

Julgamento no STF e eleições de 2022

Ao menos três das pessoas do círculo pessoal de Lula têm uma mesma avaliação: a de que o ex-presidente não acredita que irá recuperar seus direitos políticos para poder concorrer novamente à Presidência em 2022.

O STF deve retomar ainda esse semestre o julgamento da ação em que a defesa de Lula pede a anulação da condenação no caso do tríplex do Guarujá, alegando parcialidade do juiz Sergio Moro. O julgamento teve início em dezembro de 2018, mas foi interrompido por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Quando foi suspenso, o placar somava dois votos contrários à defesa de Lula, do relator Edson Fachin e da ministra Cármen Lúcia.

Em um desdobramento recente, o STF permitiu à defesa de Lula ter acesso integral às mensagens hackeadas de celulares dos procuradores da Lava Jato, apreendidas pela Operação Spoofing da Polícia Federal.

O advogado Cristiano Zanin Martins afirma, no entanto, que o acesso ao material não alterou a estratégia da defesa de Lula.

"Não pretendemos adicionar nenhum conteúdo ao habeas corpus, porque o nosso objetivo é que ele seja efetivamente julgado num futuro próximo, até porque sobre ele incidem dispositivos legais e regimentais que dão prioridade", afirma o advogado.

"Seja porque o ex-presidente Lula é maior de 60 anos, seja porque o habeas corpus por natureza é uma ação de rito célere, seja porque é um caso cujo julgamento já foi iniciado em 2018 e precisa ser concluído pelo Supremo", completa Zanin Martins.

Em entrevista ao portal UOL na semana passada, o ministro Gilmar Mendes explicou que, mesmo que o habeas corpus referente à condenação do tríplex do Guarujá seja concedido pelo STF, Lula ainda não será considerado ficha limpa, pois foi condenado também pelo caso do sítio de Atibaia.

"Ele pessoalmente é muito cético [com relação ao julgamento do STF]. É uma pessoa muito tarimbada, não alimenta ilusões", diz Paulo Okamotto, que participou da fundação do Instituto Lula e foi presidente da instituição desde sua fundação, em 2011, até o ano passado. Hoje, é diretor do instituto.

"Quem é muito mais otimista são as pessoas que vivem no entorno dele, que acham que uma hora a verdade vai chegar, que cada dia vai ficando mais claro que houve uma farsa."

Essa também é a avaliação de um amigo de Lula que optou pelo anonimato. "Ele é muito cético em relação à situação dele, de ter a possibilidade de ser candidato e ter os direitos políticos devolvidos. Por isso ele procura estimular o Haddad, para que haja uma alternativa, embora ele mantenha profundamente o desejo de voltar a ser candidato."

"Então ele vive uma contradição permanente, que o deixa muito chateado, porque, de um lado, ele quer muito [ser candidato], de outro lado, ele sabe que é muito difícil que o sistema permita isso", completa. "Ele acredita que a suspeição do Moro pode ser feita de tal modo que não o libere para ser candidato, em função do outro processo da chácara [de Atibaia]."

Haddad à beira da piscina e o 'leão dentro da jaula'

"Lula então se equilibra entre o grande desejo de ser [candidato] e o realismo. Aí a preocupação dele é que o PT cresça, tenha força, seja protagonista. Ele fica muito angustiado com isso. E cobra muito do PT uma ação mais efetiva, mais mobilizadora. E cobra também do Fernando Haddad. Por isso ele teve uma conversa com o Haddad, que foi como um empurrão, tipo 'pula na piscina, não fica enrolando'", relata esse amigo.

Haddad esteve ao lado de Lula quando o ex-presidente deixou a prisão (Crédito: Rodolfo Buhrer / Reuters)

Apesar disso, o ex-prefeito de São Paulo e candidato derrotado à Presidência pelo PT em 2018 tem mantido postura ambígua. Em entrevista ao site Brasil 247 no início de fevereiro, Haddad relatou a conversa com Lula.

"Ele [Lula] me chamou para uma conversa no último sábado (30/1) e disse que não temos mais tempo para esperar. Ele me pediu para colocar o bloco na rua e eu aceitei", disse Haddad.

Dias depois, no entanto, em entrevista ao UOL, o ex-prefeito voltou a dizer que seu candidato nas próximas eleições é Lula. "Em 2018 [meu candidato] era o Lula e em 2022 continua sendo", disse Haddad.

Esse mesmo amigo do ex-presidente tenta explicar a ambiguidade. "É por conta do respeito do Fernando a essa contradição vivida pelo Lula. Porque ele sabe que o Lula, tendo condições, adoraria ser [candidato]", afirma. "Acredito que agora, assim que ele [Lula] receba a vacina, vai organizar um roteiro de viagem pelo país, ele quer muito isso. Ele está muito — para usar uma expressão popular — de saco cheio de ficar parado. Isso deixa ele como um leão dentro da jaula."

Segundo o quadro do PT, Lula avalia que o resultado em 2022 pode ser diferente, ainda que o candidato do partido seja o mesmo de 2018.

"Ele [Lula] acha que pode. Primeiro, porque o Haddad terá condições de fazer uma campanha muito mais ampla, com mais tempo. Mas, sobretudo, com a costura de uma aliança mais ampla com a centro-esquerda. Ele trabalha muito a necessidade de essa aliança ser construída."

Lula fez uma live no aniversário do PT (Crédito, reprodução).

Governo Bolsonaro e a oposição

Lula não tem medido palavras para criticar o governo Jair Bolsonaro. Em sua mais recente fala pública, durante evento online em comemoração aos 41 anos do PT, no dia 10 de fevereiro, criticou o que considera uma "destruição" de conquistas históricas pela atual gestão.

"Eu digo sempre que, para construir uma conquista, para construir uma obra, você demora anos e anos. Para destruir, você destrói num dia. E eles estão conseguindo destruir, estão conseguindo desmontar, em poucos meses, aquilo que foi construído em muitos anos."

O ex-presidente mencionou ainda a falta de reação da oposição. "Muitas vezes, nós não estamos conseguindo reagir. Há um certo 'anestesiamento' na sociedade brasileira", disse.

Um amigo de Lula conta que o ex-presidente tem uma reação muito emocional ao ambiente criado pelo atual governo. "Ele sente muito a maneira como o país deixou de ser um lugar alegre, otimista, com certo grau de fraternidade, para essa coisa do ódio de agora. Ele não consegue entender como isso foi acontecer e dói muito para ele isso."

Segundo esse amigo, Lula avalia que os meios de comunicação tiveram papel relevante para o país chegar à situação atual. "Quando ele ataca a Globo, por exemplo, ele simboliza na Globo os meios de comunicação que, na visão dele, criaram no país um clima que levou o povo a fazer essa escolha [de eleger Bolsonaro]. Ele é muito severo em relação aos partidos e aos setores de comunicação que criaram no país um clima onde valia tudo contra o PT."

Por fim, o petista relata a aflição do ex-presidente quanto à falta de reação da sociedade.

"Ele tem um sentimento quase de desespero, em relação à desproporção que existe entre o que está acontecendo — por exemplo, as mortes em Manaus, as mortes no país todo, a volta da fome — e a nossa capacidade de reagir. Ele não se conforma com a quase naturalização dos absurdos que estão acontecendo."

"Aí cabe de novo a figura do leão preso numa jaula. Não poder se movimentar é uma coisa muito dura para ele. Por isso tenho certeza de que, assim que for possível, ele vai sair feito um doido pelo país afora. Para tentar levantar o povo. Porque ele sabe que só a mobilização do povo vai segurar essa situação."

Thais Carrança, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 17.02.2021.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Juan Arias: A macabra e psiquiátrica paixão de Bolsonaro pela pólvora

Talvez o mais grave dessa loucura do presidente seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares

Apoiadores de Jair Bolsonaro, sempre associando sua figura ao uso de armas e à violência. (Crédito da foto: Paulo Whitaker / Reuters) 

Se algo caracteriza a idiossincrasia de Bolsonaro é sua paixão pelas armas, por tudo o que cheira à pólvora. Além do tiro ao alvo ser um dos seus esportes preferidos, sua ânsia por armar até os dentes os brasileiros revela seguramente um distúrbio psiquiátrico que não sei se tem nome científico. Dizer que “o povo está vibrando” de felicidade por poder possuir tantas armas revela mais, talvez, sua obsessão macabra pela violência.

Nos comentários à reportagem de Carla Jiménez e Regiane Oliveira sobre os novos decretos do Presidente que amplia de 4 a 6 o número de armas que uma pessoa pode possuir legalmente e os caçadores, até 40, foram muito significativos. “Menos armas e mais emprego”, “menos armas e mais educação”, “menos armas e mais vacinas”. Outros chegaram a fazer hipóteses que nessa pressa de Bolsonaro em armar a população pode significar que o que deseja é criar sua própria milícia para que o defenda no caso de tentarem retirá-lo do poder ou perca as próximas eleições, criando um clima violento no país de guerra civil.

É uma hipótese bem possível, mas acho que essa paixão desmedida por tudo o que cheira à pólvora e a tudo relacionado às armas de fogo pode fazer parte de sua personalidade de morte e destruição, de negacionismo e de mania de perseguição. E até de medo. 

Ele confessou que dorme com uma arma ao lado de sua cama, como se em sua residência presidencial não existisse segurança suficiente para defendê-lo. 

Esse amor pelas armas e pela violência pode explicar sua frieza às mortes da pandemia. Não sabemos como são os sonhos de Bolsonaro além de que dorme muito pouco porque sofre de insônia, mas certamente são povoados de armas e mortes.

Essa sua paixão desmedida por disparar armas de fogo fez com que em sua viagem oficial a Israel pedisse para realizar uma exibição de tiro ao alvo. E essa paixão pelas armas é evidente vendo suas fotografias imitando com as mãos o gesto de disparar. Três fotos são particularmente eloquentes e aterradoras a esse respeito: a dele e seus três filhos políticos juntos imitando disparar um fuzil e com os quatro sorrindo de orelha a orelha. A do hospital após a operação depois do atentado durante a campanha eleitoral ainda envolto em mistério. A foto o apresenta ainda se recuperando imitando com suas mãos o disparo de um fuzil. E a mais aterrorizante talvez seja a que o mostra com uma menina de cinco anos em seus braços enquanto a ensina a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãozinhas inocentes.

Bolsonaro querer agora que os brasileiros possam se tornar o país mais armado do mundo com até 600 armas para cada cem habitantes é uma aberração em um Brasil já martirizado com mais de 40.000 homicídios por ano. Não porque seja um país mais violento do que os outros e sim porque sofre uma carência crônica de segurança do Estado incapaz de defendê-lo.

Em um país em que as pessoas podem, se desejarem, ter até seis armas em sua casa é se esquecer que isso só é possível para os que podem se permitir esse luxo. Enquanto os de sempre ficarão mais expostos à violência, que costumam ser os negros, os jovens e as mulheres pobres assim como os habitantes das periferias que já são alvo a cada dia de cenas de morte e terror dos policiais e dos traficantes de drogas.

E talvez o mais grave dessa loucura do Presidente por sua paixão pelas armas e a violência seja o silêncio até agora das instituições do Estado frente aos novos decretos para aumentar o número de armas particulares. O STF, o Congresso e o Senado ficarão de mãos cruzadas? Não vão parar esses instintos de morte e violência de um Presidente que pode contribuir para aumentar ainda mais o rio de sangue inocente que corre pelas ruas do país?

Há silêncios que podem acabar sendo mortais. E o silêncio, quando não a cumplicidade das instituições do Estado com os instintos de morte do Presidente, podem acabar em uma tragédia nacional

JUAN ARIAS para o EL PAÍS, em 16 FEV 2021

Brasil tem 1.167 mortes por covid-19 em 24 horas

Total de óbitos supera 240 mil. País registra ainda 63 mil novos casos, elevando o total de infectados para 9,9 milhões. Ricardo Salles testa positivo e é o 15º ministro de Bolsonaro a contrair o coronavírus.

Casal após tomar vacina no Amazonas. Cerca de 2,5% da população brasileira já recebeu primeira dose

O Brasil registrou oficialmente 63.612 casos confirmados de covid-19 e 1.167 mortes ligadas à doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta terça-feira (16/02) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país desde o início da epidemia subiu para 9.921.981 casos, enquanto os óbitos superaram 240 mil, chegando a 240.940.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que as cifras reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Uma das infecções confirmadas nesta terça-feira foi a do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que se tornou o 15º ministro de Jair Bolsonaro a ser diagnosticado, além do próprio presidente. Em nota, a assessoria da pasta informou que Salles "apresentou leve febre, mas passa bem". Ele ficará em isolamento em Brasília, conforme orientação médica

Segundo o Ministério da Saúde, 8.883.191 pacientes haviam se recuperado da doença até esta terça-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes é agora de 114,7 no Brasil.

Segundo um consórcio de veículos da imprensa brasileira, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até a noite de segunda-feira 5.285.981 pessoas haviam recebido a primeira dose da vacina contra a covid-19 – ou 2,50% da população do país.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 27,7 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, atrás dos EUA, que têm mais de 487 mil óbitos.

Ao todo, mais de 109,4 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no planeta, e 2,4 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 16.02.2021, há 14 minutos.

Como os presidentes brasileiros lidaram com a gripe espanhola no início do século 20?

A gripe espanhola não é conhecida como a mãe de todas as pandemias por acaso. No mundo, estima-se que a doença tenha matado mais de 50 milhões de pessoas.

Wenceslau Braz, Delfim Moreira e Epitácio Pessoa foram presidentes do Brasil na época da gripe espanhola (Crédito: Galeria dos Presidentes da República).

No Brasil, os números mais confiáveis da época vêm do Rio de Janeiro, a então capital da República, onde foram contabilizados cerca de 15 mil óbitos entre os meses de setembro e novembro de 1918.

"A gripe espanhola era muito rápida, matava em poucos dias. Há notícias de famílias inteiras que morriam em casa e só eram descobertas por vizinhos que notavam a falta de movimento", relata a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.

Num momento em que os recursos e o conhecimento científico sobre os vírus ainda eram escassos, o governo brasileiro demorou para tomar as primeiras medidas e patinou até conseguir coordenar as ações e criar políticas efetivas contra a "espanhola", como a doença era conhecida no período.

Entre 1918 e 1920, tempo em que a pandemia se manteve ativa no país e no mundo, o Brasil teve três presidentes: Wenceslau Braz (de 15 de novembro de 1914 a 15 de novembro de 1918), Delfim Moreira (de 15 de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919) e Epitácio Pessoa (de 28 de julho de 1919 a 15 de novembro de 1922).

Num cenário de grande incerteza e muitas mortes, alguns personagens importantes da administração pública rapidamente viraram bodes expiatórios e foram execrados pela imprensa.

E ninguém sofreu mais acusações do que o médico Carlos Seidl.

Reputação arranhada

"Carlos Seidl era um médico muito famoso, quase um popstar. Ele chegou a ser capa da revista Fon-Fon, uma das mais populares do período", relembra João Malaia, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria.

Nascido em 1867 no Pará, Seidl foi presidente da Academia Nacional de Medicina entre 1911 e 1913 e até hoje é o patrono da cadeira número 17 da entidade.

O especialista era tão antenado ao seu tempo que foi autor de um dos primeiros artigos científicos da história sobre o uso dos raios-X na medicina.

Em 1912, Seidl assumiu como diretor-geral de Saúde Pública, cargo que hoje equivaleria ao de ministro da Saúde.

O médico Carlos Seidl, diretor geral de saúde pública, na capa da revista FonFon (Crédito: Biblioteca Nacional).

À época, não existia um Ministério da Saúde. As questões relacionadas a esse tema eram centralizadas no Ministério de Justiça e Negócios Interiores.

Tudo ia relativamente bem na gestão de Seidl até o segundo semestre de 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil por meio dos portos.

De piada a assunto sério

Os primeiros relatos de que uma doença nova começara a se espalhar pela Europa foram encarados com ceticismo e humor no Brasil.

Jornais e revistas fizeram piadas com a ameaça que ficava cada vez maior.

Um artigo publicado em A Careta é um exemplo disso. Num trecho, os autores chegam a dizer em tom de pilhéria que o vírus era invenção dos alemães para ganhar a Primeira Guerra Mundial, que naquele ano de 1918 se encaminhava para o fim:

"Em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros".

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Gripe espanhola: por que a epidemia que matou milhões foi tão letal?

Um fator que contribui para essa visão é o fato de a gripe sazonal, que aparece no outono e no inverno todos os anos, ser encarada com naturalidade pela população.

Um artigo de 2005 assinado pela historiadora Adriana da Costa Goulart revela que a doença era tão corriqueira no país que acabou conhecida no período como "limpa-velhos", pelo fato de acometer e matar principalmente a população idosa.

A situação foi encarada com um pouco mais de seriedade quando uma missão de militares brasileiros, que partiu de navio para ajudar nos esforços de guerra, foi acometida pela "espanhola" em setembro de 1918 ao aportar em Dakar, no Senegal.

Recorte de jornal com informações sobre os primeiros brasileiros acometidos pela "espanhola" em Dakar, no Senegal. (Crédito: Cortesia Companhia das Letras).

Nesse mesmo mês, a doença chegou oficialmente ao país no navio Demerara, que partiu de Lisboa, em Portugal, e fez paradas nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

Em cada uma dessas cidades, o desembarque de pessoas infectadas fez com que o vírus causador da gripe se espalhasse país adentro e causasse um estrago sem precedentes.

Ações instantâneas

Ao receber as primeiras notícias sobre a gripe espanhola, a primeira coisa que o governo brasileiro fez foi negar a gravidade dos fatos.

Poucos dias depois, porém, a realidade se impôs: nas última semanas de setembro de 1918, começaram a ser tomadas medidas preventivas, como revela esse artigo escrito pelo próprio Carlos Seidl em 1919:

"Antes do dia 26 de setembro [de 1918] o próprio ministro do Interior, de quem solicitei insistentes informações, não sabia dizer-me qual a natureza da epidemia - falava-me em cólera e peste bubônica. (...) na falta de documentação, tomei a deliberação de recomendar aqui e nos portos uma profilaxia que denominei de indeterminada, isto é, visando tudo que pudesse ser motivo de transmissão mórbida".

A historiadora Daiane Silveira Rossi, pós-doutoranda pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), destaca as primeiras medidas instauradas pela administração pública:

"Quando a pandemia estourou, as autoridades sanitárias recomendaram que as pessoas se mantivessem em casa e não fossem aos locais públicos. Houve decretos para extinguir algumas práticas bastante comuns no período, como o hábito de cuspir no meio da rua", conta.

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A gravidade da situação também exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indivíduos infectados com o vírus.

As políticas restritivas, porém, não foram aceitas por parte da imprensa e, por consequência, pela população.

Em outra edição, a mesma revista A Careta reclamou da "ameaça da medicina oficial e da ditadura científica" e sugeria que as políticas feriam "os direitos dos cidadãos com uma série de medidas coercitivas, preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis".

O bode expiatório

Por mais necessárias que essas medidas de restrição fossem, elas não conseguiram conter a subida vertiginosa no número de mortes pela "espanhola".

E mais uma vez sobrou para Carlos Seidl.

Em editoriais, o médico chegou a ser chamado de "cretino, relapso e sedicioso" e acusado de deixar a população entregue à própria sorte.

No dia 11 de novembro de 1918, um artigo do Rio Jornal dizia que o então diretor-geral de Saúde Pública fez "pouco caso criminoso e abusou da paciência do povo".

Em certos veículos, a gripe espanhola passou a ser chamada de "mal de Seidl".

E o presidente? Em meio a tanta ira, Wenceslau Braz não foi alvo tão frequente assim dos ataques da imprensa.

"Em comparação com alguns de seus sucessores, Braz era mais fraco e se escudou na figura de Carlos Seidl, um profissional que era muito experiente e gabaritado para lidar com a pandemia", avalia Schwarcz, que publicou em outubro de 2020 o livro A Bailarina da Morte: a Gripe Espanhola no Brasil (Companhia das Letras), junto da também historiadora Heloisa Murgel Starling.

Troca de liderança

A situação evoluiu até o ponto em que a permanência de Seidl no comando se tornou insustentável e ele renunciou ao cargo no dia 19 de outubro de 1918, sentindo-se constrangido pelos ataques e pelas notícias de que seria substituído a qualquer momento.

Após alguns convites recusados, coube ao médico carioca Theóphilo Torres assumir o posto de diretor-geral de Saúde Pública.

Uma de suas primeiras ações foi recrutar o também médico e pesquisador Carlos Chagas para assumir as ações de combate à gripe espanhola.

À época, Chagas era diretor do Instituto Oswaldo Cruz e já se tornara reconhecido como o herdeiro intelectual do sanitarista Oswaldo Cruz, que morrera em 1917, um ano antes da pandemia estourar no Brasil e no mundo.

"É muito simbólico o governo olhar para uma instituição científica e escolher o diretor dela para assumir um cargo público de tanta relevância. É como se hoje a pneumologista Margareth Dalcolmo, da FioCruz, fosse convidada para virar ministra da Saúde", compara Rossi.

A pneumologista Margareth Dalcolmo, da FioCruz, recebe a primeira dose da vacina contra a covid-19 (Crédito da foto: André Coelho / Getty Images).

Panteão de heróis

Nos últimos dias de outubro de 1918, Chagas intensificou as medidas preventivas e ordenou a criação de hospitais de campanha e postos de atendimento à população em diversos bairros do Rio de Janeiro.

Neste ponto, a pandemia começava a arrefecer na capital do Brasil e a situação voltava a ficar mais estável.

"Carlos Chagas vai entrar no período em que a doença já está no descenso e acaba ficando com toda a fama. Fica parecendo que ele milagrosamente deu um fim na pandemia", observa Schwarcz.

De acordo com a antropóloga, esse momento histórico marca a construção de alguns heróis nacionais, com o resgate da figura de Oswaldo Cruz como o pai da saúde pública brasileira e o primeiro representante da classe dos médicos políticos que viria a se tornar tão comum no país dali em diante.

Outro nome que voltou com força junto ao de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas foi o de Rodrigues Alves, que havia sido presidente entre 1902 e 1906.

A administração de Alves no início do século 20 ficou muito marcada pelas medidas de saneamento e vacinação implementadas por Oswaldo Cruz, que causaram uma mudança enorme na cidade do Rio de Janeiro — e desembocaram até na famosa "Revolta da Vacina".

O médico Carlos Chagas virou herói nacional após assumir as ações de combate à gripe espanhola (Crédito da foto: Divulgação).

Alves concorreu novamente à Presidência em 1918 e ganhou a eleição para suceder Wenceslau Braz a partir do dia 15 de novembro daquele mesmo ano.

Porém, aos 70 anos e com uma saúde muito frágil, o político paulista não conseguiu assumir o cargo pela segunda vez. Ele morreu no dia 16 de janeiro de 1919 sem tomar posse.

Quem matou Rodrigues Alves?

Até hoje existe o mito de que Alves morreu de gripe espanhola. Mas essa não é a verdade.

O conselheiro, como era conhecido pelo povo, chegou a ir várias vezes para Guaratinguetá (SP), sua cidade natal, para se recuperar

Foram meses de idas e vindas entre o Rio de Janeiro e o interior paulista até a sua morte. E, como explicado mais acima, sabe-se que a "espanhola" matava em poucos dias após o início dos sintomas.

"Alves tinha problemas cardíacos e respiratórios que já vinham há muito tempo. Acontece que as oligarquias mineiras e paulistas queriam um nome forte para disputar as eleições e ele tinha esse capital político", diz Schwarcz.

A partir do óbito, o conselheiro também passou a ser cultuado como um mito nacional.

Capa do jornal "A Gazeta de Notícias" do dia 17 de janeiro de 1919 traz informações sobre a morte do presidente eleito Rodrigues Alves. (Crédito: Acervo Biblioteca Nacional).

"Ao dizer que Alves morreu de gripe espanhola, cria-se a ideia de um herói que morreu junto de seu povo, e não que os brasileiros haviam eleito uma pessoa que já estava doente", completa a especialista.

Linha sucessória

Com a morte de Rodrigues Alves, o advogado mineiro Delfim Moreira foi seu substituto. Ele era o vice-presidente da chapa vencedora das eleições de 1918.

A Constituição da época, porém, exigia que um novo pleito fosse organizado. O vice só poderia virar presidente se o ocupante do cargo principal morresse dois anos depois de sua posse.

Após as novas eleições, o eleito foi o jurista paraibano Epitácio Pessoa, que assumiu a Presidência em 28 de julho de 1919 e ficou até 15 de novembro de 1922.

Nas administrações de Moreira e Pessoa, a situação da gripe espanhola parecia estar relativamente bem controlada no Rio de Janeiro.

A geografia das pandemias: o que faz um novo vírus surgir em determinado lugar do mundo?

As doenças infecciosas derrotadas graças às vacinas

Mas há registros de surtos e situações de calamidade em outras regiões do país.

A exemplo do que ocorre agora em 2020 e 2021, a cidade de Manaus foi uma das mais atingidas pela gripe espanhola.

"A partir de 1919, os presidentes adotam uma postura de 'não é problema meu, não tenho que resolver tudo' muito parecida ao que é feito hoje por Jair Bolsonaro", analisa Schwarcz.

Liberou geral

Com a queda de casos e mortes pela espanhola, houve um relaxamento natural nas medidas de prevenção contra a infecção.

O carnaval de 1919, inclusive, é famoso até hoje como uma das maiores festas populares de todos os tempos.

Malaia usa o futebol como exemplo de como a pandemia virou assunto do passado com uma rapidez impressionante.

"O Brasil seria sede do campeonato sul-americano de 1918, que acabou adiado pela gripe e pela doença de Rodrigues Alves. O torneio aconteceu com estádios lotados em maio de 1919, poucos meses após o pico de mortes", relata.

A disputa acabaria com a seleção brasileira como campeã, no que seria o primeiro título internacional de nosso futebol.

Semelhanças e coincidências

Uma das noções mais equivocadas em relação à gripe espanhola (e que também se aplica à covid-19, diga-se) é a de que a pandemia foi "democrática" e atingiu todas as classes sociais de maneira igual.

"O desenvolvimento das pandemias de 1918 e 2020 é semelhante. As duas chegaram ao país por meio dos ricos, que viajaram ao exterior, voltaram de navio ou avião e tinham condições de buscar algum tratamento. Mas quem morreu aos montes foi a população mais pobre, que vivia nos morros e nas periferias", aponta Schwarcz.

Outro ponto que aproxima os dois momentos históricos é a procura desenfreada por tratamentos milagrosos, que na prática não possuem validação científica.

"No Rio Grande do Sul, o estoque de carne de frango chegou a acabar, porque as pessoas acreditavam que canja e caldo de galinha podiam curar a doença", conta Rossi.

Em 1918, uma das maiores promessas contra a "espanhola" era o sal de quinino, um tratamento usado contra malária e dores nas articulações.

Ele era vendido em algumas farmácias como um "santo remédio", apesar da falta de evidências de sua eficácia contra a infecção.

Na década de 1930, o sal de quinino foi substituído no tratamento da malária por uma outra molécula: a cloroquina.

Bolsonaro fez uma série de apelos públicos para o uso da hidroxicloroquina como suposto 'tratamento precoce' contra a covid-19 (Crédito da foto: Reuters)

Essa mesma cloroquina (ou hidroxicloroquina) hoje é defendida por alguns como "tratamento precoce" contra a covid-19, a despeito das contraindicações de entidades como a Organização Mundial da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Sociedade Brasileira de Infectologia.

"Pelo menos em 1918, não tínhamos nenhuma autoridade política ou científica apoiando o uso de sal de quinino, como Bolsonaro faz hoje com a cloroquina", compara Schwarcz.

Diferença fundamental

Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal ponto que separa as crises de gripe espanhola e de covid-19 está na atuação dos órgãos federais.

"Ao contrário do que aconteceu no início do século 20, vemos hoje uma vontade deliberada do governo de sabotar todas as medidas de prevenção e contra a disseminação do coronavírus", analisa Malaia.

Hospital de campanha da época da gripe espanhola (Foto: Cortesia Companhia das Letras).

O que não dá pra prever no estágio atual é como as pessoas vão encarar esta pandemia quando ela virar coisa do passado.

Schwarcz destaca que, após a pior fase da crise sanitária de 1918, o assunto simplesmente desapareceu das crônicas dos jornais e das conversas nas ruas.

A gripe virou um marcador temporal: "os tempos da espanhola" se tornou uma expressão para lembrar de algum fato ocorrido no período.

Será que o mesmo vai acontecer agora com a covid-19?

A pesquisadora acredita que ainda não dá pra saber se o período pós-pandemia será caracterizado por grandes debates ou um "esquecimento coletivo".

"De uma maneira ou de outra, as pessoas vão ficar muito marcadas. E pode ser que a sociedade prefira lidar com isso através do silêncio. Mas todos saberemos que será um silêncio repleto de barulhos", completa.

André Biernath, de São Paulo, para a BBC News Brasil, em 14 fevereiro 2021

Professor da FGV alerta: O golpe de 2022 será com armas

O que vivemos na eleição fora escrito nos decretos pró-armas que ignoramos

Com ironia, aqui vai um alerta de gatilho (literalmente): todos os fatos futuros narrados aqui jamais ocorrerão e as instituições estão funcionando perfeitamente. Todos os fatos pretéritos, no entanto, ocorreram. Vejo a panela em que o sapo da democracia, lentamente, cozinha. Ali está o sapo banhando-se na água do autoritarismo, como quem flutua na santa paz de um mercado e de um centrão felizes, apesar de você.

30 de outubro de 2022. Quando Jair Bolsonaro perdeu o segundo turno da eleição presidencial com 45% dos votos, apesar do apoio em segundo turno do DEM e do PSDB, de uma oposição dividida e de fake news de fraude eleitoral, as coisas começaram de fato a ficar feias. Não que elas já não estivessem feias, dadas as 400 mil mortes pela pandemia e a vacinação que deslanchou só em 2022. Carnaval em 2022, como no ano anterior, não houve.

Tal qual um tenentismo 2.0, a revolta começou entre militares. O fogo de palha estava nos 12% dos policiais militares, que uma pesquisa de julho de 2020 já mostrara serem favoráveis a prender ministros do STF e fechar o Congresso. Os outros 88%, poucos afetos à revolta, se juntaram ao movimento, mais por demandas corporativas como aumento salarial do que fé na revolução. Diversos estados viram o motim que acontecera no Ceará em fevereiro de 2020 se espalhar no seu quintal.

O bolsonarismo havia cooptado policiais, em especial depois do decreto que, no meio do Carnaval de 2021, os autorizou a terem duas armas de uso restrito, e facilitou a aquisição de armamentos pesados que antes constavam da lista de produtos controlados do Exército. Mais armas em circulação e menos controle é igual a mais armas com o crime organizado e as milícias.

De início, a revolta sofreu resistência dos novos generais das polícias militares, cargo recém-criado pela nova lei orgânica das PMs, adotada no final de 2021 com a bênção do arenão de Lira e Pacheco.

Independentes por lei de seus governadores, os comandantes das PMs decidiram apoiar, com relutância, o desvario de seus subordinados. O STF tentou intervir, mas os ministros bolsonaristas na Corte pediram vista, com medo de se repetir aquele premonitório agosto de 2020 em que Bolsonaro ameaçou mandar tropas para o Supremo.

A população, embora desaprovasse em 72% a proposta de armar cidadãos, ficou com medo de protestar. Milícias armadas a serviço do poder de plantão contribuíram para tanto. A alta de 5% dos assassinatos em 2020 fora alimentada por disputas entre grupos armados, impulsionada pelas armas que migraram do mercado legal para o ilegal. Era previsível: 2020 já tinha visto um aumento de 91% no registro de armas em relação a 2019. E o ano seguinte, 2021, fora pior ainda.

O controle de armas se tornou mais raro. Conforme fora estipulado em decreto de fevereiro de 2021, quem escondia fuzis em casa era avisado, 24 horas antes, de qualquer fiscalização. Estado de direito apenas para humanos direitos com fuzil. O que se seguiu foram meses de um governo à base da bala, sangue e medo, como sempre fora.

Dezenas foram mortos Brasil afora, na balbúrdia militaresca, até que a nova presidência tomou posse, com atraso e sem a presença de Bolsonaro, que foi morar entre Atibaia e Barra da Tijuca.

Lá pelos idos de 2023, quando o golpe fracassado de 2022 esmorecer na memória, colunas de jornal dirão que era possível o STF e o Congresso terem revogado os decretos pró-armas, que a escolha não era tão difícil assim, que não faltou quem avisara que a falta de um projeto progressista de segurança nos custaria a democracia, que a frente poderia ter sido ampla, e que o presidente da república deveria ter sido investigado por genocídio.

Em 2023, no entanto, já era tarde. Quem dera estivéssemos em 2021.

Thiago Amparo, o autor deste artigo, é Advogado e Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos na Fundação Getúlio Vargas/FGV - Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação. Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 15.02.2015.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Fachin reage a tuíte de general Villas Bôas sobre o STF: 'Intolerável e inaceitável'

Ministro reagiu à revelação feita em livro pelo general Eduardo Villas Bôas, no qual ele relata ter articulado com a cúpula do Exército, em 2018, tuítes que faziam 'alerta' ao STF antes do julgamento de um habeas corpus de Lula

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin reagiu à revelação feita em livro pelo general Eduardo Villas Bôas, no qual ele relata ter articulado com a cúpula do Exército, em 2018, tuítes que faziam “alerta” ao Supremo, pouco antes de a corte julgar um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em abril daquele ano, o plenário do STF negou, por maioria de votos, um pedido apresentado pela defesa de Lula, do qual Fachin era o relator.

"Anoto ser intolerável e inaceitável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário. A declaração de tal intuito, se confirmado, é gravíssima e atenta contra a ordem constitucional. E ao Supremo Tribunal Federal compete a guarda da Constituição", afirmou o ministro por meio de nota, ao mencionar publicações sobre o tema feitas pelos jornais O Globo e Folha de S. Paulo.

O ministro do STF Luiz Edson Fachin, no plenário da Corte Foto: Rosinei Coutinho / STF

Fachin lembra que está na Constituição (art. 142) que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Neste contexto, o ministro mencionou a invasão do Capitólio nos Estados Unidos e a atitude dos militares americanos, que controlaram a situação. “Frustrou-se o golpe desferido nos Estados Unidos da América do Norte contra o Capitólio pela postura exemplar das Forças Armadas dentro da legalidade constitucional. A grandeza da tarefa, o sadio orgulho na preservação da ordem democrática e do respeito à Constituição não toleram violações ao Estado de Direito democrático”, afirmou Fachin.

Em seu livro, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), revela ter planejado o tuíte com o Alto Comando. Na ocasião, um dia antes de a Corte julgar um habeas corpus ajuizado pelo petista, o chefe militar primeiro tuitou que a "Força compartilhava o anseio de todos os cidadãos de bem”. Depois, divulgou novo tuíte citando as instituições, com tom ainda mais político.

O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército Foto: Daniel Teixeira

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”, dizia a publicação. O texto chegou a ser interpretado como ameaça de golpe, caso Lula fosse libertado. O ex-presidente cumpria pena estabelecida pelo então juiz Sérgio Moro, no processo do triplex do Guarujá. Sua libertação poderia ter influência na campanha eleitoral. A disputa foi vencida, no segundo turno, pelo atual presidente Jair Bolsonaro, derrotando o petista Fernando Haddad.

A versão está no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante", lançado pela Editora FGV a partir de uma longa entrevista dada ao pesquisador Celso Castro. Nela, o militar detalha, do seu ponto de vista, como se deu a construção daquele recado. Para ele, não foi uma ameaça, e sim um “alerta”.

Segundo o general, houve duas motivações para a mensagem. Uma era o que chamou de insatisfação da população com o País. A outra era a demanda que chegava ao Exército por uma intervenção militar - Villas Bôas afirmou considerar essa medida impensável. Além de planejado com o Alto Comando do Exército, o recado, segundo o general, passou por revisão dos comandantes militares de área, seus subordinados.

André Borges, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021

Investigações atingem 8 dos 14 nomes da cúpula do Congresso

Maior parte dos integrantes das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado responde ou é investigada por crimes como estupro, recebimento de propina, contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação; eles negam irregularidade

A articulação do Palácio do Planalto com o Centrão para controlar o Congresso levou à cúpula da Câmara e do Senado parlamentares com extensa folha de pendências com a Justiça. Dos 14 integrantes das Mesas Diretoras de ambas as casas (presidente, vices e secretários), oito respondem ou são investigados por crimes diversos que vão de estupro e recebimento de propina até contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação.

Observado por Pacheco, Bolsonaro cumprimenta Lira durante a cerimônia de abertura do ano legislativo. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Todos foram alçados às funções pelos colegas parlamentares e com uma ajuda extra do presidente Jair Bolsonaro. Como o Estadão revelou, o governo liberou ao menos R$ 3 bilhões em recursos extras para captar parte dos votos que elegeram Arthur Lira (Progressistas-AL) presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para o comando do Senado e a consolidar uma maioria governista em postos-chave do Congresso.

As demandas judiciais, no entanto, passaram ao largo das discussões para a formação das respectivas Mesas. O único que sofreu algum desgaste por figurar no banco dos réus foi Lira, alvo da Lava Jato e de outros inquéritos. Mas, apesar do discurso anticorrupção repetido a exaustão na campanha eleitoral de 2018, o histórico do líder do Centrão não impediu Bolsonaro de abraçá-lo

Lira é réu no chamado caso do “quadrilhão do PP”, formado por parlamentares que se articularam para desviar dinheiro da Petrobrás, segundo a Procuradoria-Geral da República. Também é acusado de corrupção por indícios de ter recebido R$ 106 mil em propina para emprestar apoio político ao então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos. Um assessor de Lira, de acordo com a denúncia, foi escalado para levar o dinheiro de São Paulo a Brasília. Acabou descoberto ao camuflar cédulas pelo corpo.

Nos escaninhos do Judiciário de Alagoas, o nome de Lira também se repete. Além de órgãos de fiscalização, há litígios com pessoas comuns. Um deles se arrasta desde 2018. Fazendeiro, o deputado arrendou uma propriedade para criar 400 cabeças de gado. Pouco depois, disse que a terra só estava em condições de receber 50 e deixou de pagar o valor contratado. O proprietário faleceu e a família segue sem receber. “Ele se recuperava de um câncer e nem isso amoleceu o coração do deputado. Recuperamos a terra e continua o processo de cobrança dos débitos”, contou o advogado Igor Manoel de Barros Bezerra, que representa a família.

Deputada Marilia Arraes (PT-PE)

A 2.ª Secretaria da Câmara é da deputada Marília Arraes (PT-PE). Aliada de Lira, ela impôs uma derrota ao próprio partido ao vencer a disputa interna e ficar com o cargo. O Ministério Público de Pernambuco ajuizou ação que pede a devolução de R$ 156 mil gastos, segundo o órgão, para pagar quatro assessores que não davam expediente na Câmara do Recife. O caso é de quando ela era vereadora na capital pernambucana.

Em novembro de 2020, a carreira política do senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO) sofreu um abalo. Uma modelo de 22 anos acusou o parlamentar, de 38, de a ter estuprado em um hotel, em São Paulo. O caso teve grande repercussão. Menos de três meses depois, antes de qualquer desfecho na investigação aberta pela polícia paulista, ele foi eleito pelos pares 1.º secretário do Senado, função com elevado poder político e administrativo.

O senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO). Foto: Agência Senado

No Senado, dos sete integrantes da Mesa, seis são alvo de ao menos uma investigação. O 2.º vice-presidente, Romário Faria (Podemos-RJ), é investigado em inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apura indícios do uso irregular da verba de gabinete.

Gestores 

Para além de Irajá e Romário, os outros quatro carregam ações resultantes de atos praticados ainda como gestores, quando eram do Poder Executivo em seus respectivos Estados. São casos que se arrastam há anos na Justiça e passam pelo chamado “elevador processual”, um vaivém de instâncias e esferas competentes para cuidar dos processos. Aliados minimizam as pendências jurídicas e confidenciam o espírito de corpo do Congresso, porque parlamentares que foram ou pretendem ser gestores estão passíveis de serem processados pelo que chamam de “burocracias” da gestão pública.

É o caso de Rogério Carvalho (PT-SE), condenado em primeira instância, em 2019, por irregularidades em contratos assinados quando foi secretário de Saúde de Sergipe. Já 4.º secretário, Weverton Rocha (PDT-MA), comandou a pasta de Esportes do Maranhão e ainda responde a ação por indícios de fraudes em um contrato de 2008.

O 1.º vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), e o 2.º Secretário, Elmano Ferrer (Progressistas-PI), têm pendências relacionadas aos períodos em que foram prefeitos de suas cidades, Campina Grande (PB) e Teresina (PI), respectivamente. Os casos envolvem suspeita de contratação de empresa fantasma a repasses eleitorais não declarados – caixa 2 de campanha.

Na Mesa Diretora do Senado, a exceção é Pacheco. Aos 44 anos, tem uma ascensão meteórica. Antes do atual mandato de senador, teve apenas um outro, de deputado federal. É proveniente da advocacia. Costumava frequentar tribunais não como réu, mas como advogado deles. Atuou em crimes variados, de homicídio a corrupção. No escândalo do mensalão, defendeu o ex-diretor do Banco Rural Vinicius Samarane.

Parlamentares dizem que casos são inconsistentes

Os integrantes das Mesas da Câmara e do Senado alegam que os processos e investigações das quais são alvos têm inconsistências ou são motivados por adversários para gerar desgastes políticos.

Por meio da assessoria, Arthur Lira disse que ao longo de uma década vem apresentando esclarecimentos à Justiça. “Ao longo desses anos, os processos que vieram a julgamento foram arquivados, em geral, porque não existiam provas. Tenho a tranquilidade de que os próximos que vierem a julgamento terão o mesmo desfecho.”

Marília Arraes afirmou que a ação a que responde é fruto de sensacionalismo político. Uma ação penal chegou a ser arquivada, mas um processo na área cível foi aberto em 2020. “Novamente no período eleitoral”, disse.

O senador Veneziano Vital do Rêgo chegou a ter quase 30 investigações no Supremo Tribunal Federal. Ele disse que a maioria é fruto de denúncias infundadas de seus adversários políticos e a maior parte delas já foi arquivada.

O advogado do senador Irajá, Daniel Bialski, disse não haver qualquer indício de crime e que, após a conclusão de perícia no celular da mulher que acusou o parlamentar de estupro, o caso deverá ser arquivado.

A assessoria do senador Weverton Rocha informou que o parlamentar “provará que não houve ilícito”, mas uma “denúncia política”. Rogério Carvalho afirmou que não cometeu qualquer ato ilegal quando secretário em Sergipe. Elmano Férrer e Veneziano Vital do Rêgo também negam irregularidades. Romário, por sua vez, não se manifestou.

 Vinícius Valfré, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021 


Risco à democracia: 'QAnon brasileiro’ segue firme nas redes e se mostra alinhado a movimento de teorias conspiratórias dos EUA

Com temas e métodos que copiam original norte-americano, rede bolsonarista de fake news sabota vacinação e medidas de combate à pandemia, desacredita urnas eletrônicas, defende presidente, ataca seus adversários e luta contra conspiração imaginária da elite global comunista pela pedofilia

Manifestação de seguidores de Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo, em setembro do ano passado. Foto de Sebastião Moreira / EFE 

As eleições presidenciais que derrotaram o republicano Donald Trump e elegeram o democrata Joe Biden nos Estados Unidos foram fraudadas, e no Brasil vai acontecer a mesma coisa em 2022 — já aconteceu em 2020 e em 2018. As vacinas contra a covid-19 devem ser vistas com reservas quando não repulsa, o distanciamento social e as máscaras como forma de prevenção em meio à pandemia são uma farsa de prefeitos e governadores autoritários que querem quebrar a economia do país, e o melhor a fazer é adotar o “tratamento precoce” com cloroquina e outras drogas sem eficácia assim que contrair a doença, algo inevitável. O presidente Jair Bolsonaro e seu séquito de ministros mais ideológicos devem ser apoiados incondicionalmente, pois enfrentam forças literalmente demoníacas de uma elite nacional e global infiltrada no STF, no Congresso, na mídia e em todos os cantos, que busca implantar o autoritarismo comunista e promover a pedofilia e o aborto entre os povos sob coordenação da China. Adversários novos, antigos e imaginários são atacados o tempo todo com memes, notícias falsas e calúnias de toda a espécie. Notícias ruins são distorcidas até ficarem favoráveis, e qualquer dissenso é punido com trolagem e exclusão.

É principalmente em torno dessas temáticas, métodos e variações que vive atualmente o núcleo duro da rede bolsonarista de fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem, acompanhada pelo EL PAÍS e especialistas no início deste ano. Trata-se de uma espécie de ‘QAnon tupiniquim’ que começou a ser exposto pela imprensa nas eleições de 2018 e hoje é investigado pela Polícia Federal em dois inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News do Congresso e em mais de um processo no Tribunal Superior Eleitoral. Enquadrados e em alguns casos até presos, expoentes desse movimento de desinformação com fins de manipulação política a favor do presidente e suas ideias que imita temáticas e métodos do original norte-americano baixaram o tom, mas a milícia digital segue forte e ativa.

Após a invasão do Capitólio nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, e declarações do presidente brasileiro de que aqui seria ainda pior se o país não adotasse o voto impresso para as próximas eleições, especulou-se na imprensa e redes sociais de forma geral se apoiadores do presidente poderiam fazer algo parecido aqui caso ele perdesse a reeleição em 2022. Desde as eleições municipais do ano passado e a exemplo do que foi feito nos EUA, no entanto, a rede bolsonarista de fake news na internet dedica-se a desacreditar as urnas eletrônicas e preparar terreno para um eventual questionamento desfavorável no pleito.

De acordo com estudo da DAPP da FGV, bolsonaristas alvo das investigações no STF por espalhar fake news e promover a organização de atos antidemocráticos no ano passado, assim como deputados federais bolsonaristas, foram os principais responsáveis por espalhar informações falsas sobre fraude eleitoral no primeiro turno de 2020. Oswaldo Eustáquio, blogueiro preso duas vezes por ordem do STF, lidera a lista. Ele cumpre prisão domiciliar e está proibido de usar redes sociais. As postagens sobre o Brasil misturam-se às sobre a fraude apregoada por Trump nos EUA, dando suposta coesão à narrativa e criando uma ligação direta entre o grupo brasileiro e o norte-americano.

Os deputados federais do PSL Carla Zambelli, Bia Kicis, Filipe Barros e Daniel Silveira, além do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, apareceram no levantamento da FGV. Os blogueiros e influenciadores bolsonaristas Leandro Ruschel, Allan dos Santos e Bernardo Küster também. Alguns deles são alvo dos dois inquéritos no STF, de fake news e dos atos antidemocráticos, ambos sob controle do ministro Alexandre de Moraes. As postagens sobre fraudes nas urnas provocaram nova abertura de investigação, desta vez para descobrir quem está por trás da criação e divulgação das notícias contra a Justiça Eleitoral. No TSE, pelo menos duas ações tratam da atuação das milícias digitais nas eleições de 2018. De acordo com o monitoramento da FGV, cerca de 700.000 postagens sobre fraude do sistema eleitoral foram feitas entre o primeiro turno na eleição e o final de novembro. A hashtag mais disseminada foi #votoimpressoja, com mais de 38.000 publicações.

“O mapa de interações feito a partir do sistema de recomendações do YouTube mostra predomínio da repercussão da alegação de fraude nas eleições dos Estados Unidos entre os canais brasileiros”, afirma o estudo. “Junto a canais alternativos e hiper-partidários, conteúdos da grande imprensa são peças-chave para atrair audiências aderentes aos discursos antissistema. A organização e a coordenação em torno do tema produziram engajamento expressivo quando direcionado à crítica ao sistema eleitoral; do ponto de sua defesa não houve mobilização relevante”. O STF já solicitou à FGV o estudo sobre as eleições passadas e segue com os dois inquéritos abertos, sob segredo de Justiça.

Agravamento de pandemia atrapalha discurso negacionista

Familiares de doentes com covid-19 fazem fila em busca de oxigênio em Manaus: colapso no atendimento deixou hospitais sem insumo.BRUNO KELLY / REUTERS

Sob fogo cerrado nas redes sociais pelo fracasso no combate à pandemia — simbolizado pelo atraso na aquisição e distribuição de vacinas e insumos contra o novo coronavírus e o colapso da falta de oxigênio em Manaus que alastrou-se para outras cidades da região — e falta de boas novas na economia, o campo bolsonarista tenta contra-atacar de forma aparentemente coordenada na guerra virtual. No mês passado, quando ficou claro o fracasso da operação montada pelo Ministério da Saúde para buscar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford na Índia, que negou o envio do lote, e a convocação de um panelaço contra o presidente ganhar força nas redes sociais, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) contra-atacou com a postagem de um vídeo de uma pessoa não identificada batendo com um pênis de borracha em uma panela. Em poucas horas, o termo “Angélica” subiu para os assuntos mais comentados do Twitter e lá ficou até o final da noite.

Ao ver as postagens, muitas com os mesmos textos e imagens diversas de pênis artificiais, era possível notar padrões de um ataque coordenado a apresentadora e seu marido, o também apresentador de TV e presidenciável Luciano Huck, que compartilhou uma publicação sobre o protesto mais cedo. No final da tarde, após o presidente conceder uma entrevista na “TV Bandeirantes” onde afirmava mentirosamente que não podia atuar de forma direta no combate à pandemia pois o STF havia proibido, em poucos instantes o tema “STF” subiu para o topo dos mais comentados com o argumento apresentado em links de “notícias” de sites governistas, vídeos de canais amigos no Youtube, memes e gráficos explicativos.

No dia seguinte, sábado, quem abriu o Twitter pela manhã encontrou no topo dos assuntos mais comentados um tema aparentemente desconectado do noticiário naqueles dias: “Adélio”. Afinal Adélio Bispo — aquele que tentou assassinar durante a campanha eleitoral de 2018 o então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro — está preso desde o dia do atentado, foi diagnosticado com graves problemas mentais e não houve nenhuma novidade neste assunto. Ao investigar as hashtags é possível ver que as postagens, muitas delas feitas por perfis com características de robôs, fazem alusão a uma afirmação do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que publicou na mesma rede social “Impeachment ou morte”, sobre a incapacidade do governo de lidar com a pandemia. Distorcida, a declaração era circulada como uma prova de que Adélio, ex-filiado do PSOL, agiu em uma conspiração para matar Bolsonaro urgida pelo partido de Freixo. Nos grupos de WhatsApp, a dinâmica e sequência dos assuntos e o tom conspiratório é parecido.

Em relação à pandemia, a narrativa não tem funcionado. De acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas em 1,18 milhão de postagens no Twitter em 24 horas me meados de janeiro, auge da crise em Manaus, apenas 7,5% isentavam Bolsonaro do caos e propalavam a versão de que ele havia feito muito pelo Amazonas, não podia fazer mais por causa do STF e se havia problemas, a culpa era do governador Wilson Lima, como o próprio presidente declarou em suas redes sociais. Segundo levantamento do cientista político Márcio Coimbra, as menções negativas a Bolsonaro nas redes sociais chegou a 73%, na ocasião, um recorde desde que ele assumiu.

O ranking do Índice de Popularidade Digital (IPD), elaborado pela consultoria Quaest, também acusa o golpe recebido pelo bolsonarismo. A métrica avalia o desempenho de personalidades da política nacional nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Wikipedia e Google. Bolsonaro ainda é o primeiro colocado dentre uma lista de nove nomes que devem influenciar as eleições presidenciais de 2022, mas perdeu quase 20 pontos desde o início do ano e estava com 66,3 no final de janeiro—o IPD é medido em uma escala de 0 a 100, em que o maior valor representa o máximo de popularidade.

Por outro lado, os gráficos no estudo da FGV mostram uma bolha de opinião que apesar de espremida e diminuída pela crise atual, é impermeável a outras versões da realidade.

Na mira do STF

Simpatizantes do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, em manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, durante a pandemia em julho do ano passado. (Foto de Sebastião Mofreira / EFE)

“O inquérito é centralizado no gabinete do ministro Moraes, ele que é o ‘delegado’ do caso, então não temos detalhes”, afirma um dos delegados da PF que trabalha nas investigações sobre as fake news e não pode falar abertamente sobre o assunto, que corre sob sigilo. “Mas a impressão é que o caso está rachado, se quiserem prendem mais um monte de gente, prendem. Acho que estão dando uma segurada, existe um componente político de acomodação das instituições”, avalia. Mas a artilharia está pronta caso haja um revés. “Quando essas investigações foram abertas, o STF estava literalmente sob ataque. O bote está pronto, se precisar aposto que colocam a coisa para andar rapidinho.”

Além de Eustáquio, outros expoentes do ‘QAnon brasileiro’ foram presos ou são formalmente investigados pela PF. Sarah Winter, líder do movimento de extrema-direita 300 do Brasil, grupo que acampou em Brasília no ano passado, atacava o STF e se apresentava como uma milícia política bolsonarista no auge dos protestos golpistas com a participação do presidente, também foi presa e hoje está em casa com tornozeleira eletrônica. Ela foi bloqueada na maioria das redes sociais e perdeu seu canal no Youtube. Allan dos Santos, dono do site bolsonarista Terça Livre, sofreu uma busca e apreensão e foi levado para depor pela PF em Brasília a mando de Moraes. Depois disso mudou-se para os Estados Unidos, onde virou correspondente do próprio site e uma ponte direta entre os integrantes do QAnon norte-americano e seu espelho nacional.

Quando ficou claro que o democrata Joe Biden venceria as eleições nos EUA em meio a contagem de votos Santos que fazia transmissões direto dos EUA para seu site, afirmou que a derrota era um plano de Trump para demonstrar a fraude eleitoral, e que haveria uma reviravolta em breve. No WhatsApp e Telegram, integrantes de grupos de discussão bolsonaristas apoiaram efusivamente a invasão do Capitólio em Washington como início da revolução trumpista, e esperam até agora a reviravolta prometida por Santos, agora adiada para março em alguns posts. Ele já havia sido bloqueado no Twitter, e nesta semana o Youtube extinguiu o canal de Santos da plataforma por violar as políticas de uso e propagar fake news.

O escritor Olavo de Carvalho, referência ideológica do bolsonarismo, também vive nos EUA e ajuda a propagar as teorias conspiratórias.

Vínculo com a “matriz”

Nos Estados Unidos, o termo “QAnon” refere-se a um Universo de teorias conspiratórias baseadas em fake news que agrega grupos e pessoas de extrema-direita, como os que invadiram o Capitólio antes da posse de Joe Biden. Surgiu em 2017, quando um perfil chamado “Q” em um fórum de discussão na Deep Web disse que tinha acesso a segredos do governo, que foram revelados em mensagens posteriores.

Em resumo, o ex-presidente Donald Trump estaria lutando uma guerra secreta contra uma conspiração de gente poderosa infiltrada na mídia, política e outras posições de poder para manter e explorar uma rede de pedofilia internacional. Muita gente acreditou e com o tempo, o termo passou a servir para designar outras teorias políticas conspiratórias e grupos radicais de extrema-direita. Até hoje, não sabe-se nos EUA quem seria o “Q” original, mas ele é considerado um herói pelo núcleo duro dos apoiadores do ex-presidente Trump.

O vínculo com o movimento QAnon norte-americano, apesar de não ser oficial, vai além da temática de fraude eleitoral e do uso de fake news para promover a pauta da extrema-direita. De acordo com relatório da CPMI das Fake News, as redes bolsonaristas passaram a dar ênfase ainda maior ao combate à pedofilia em meados do ano passado — nos EUA, um cidadão está preso após acreditar numa fake news e invadir uma pizzaria armado para resgatar supostas criancinhas vítimas da rede de pedofilia. Os grupos passaram a dar destaque, compartilhar e desenvolver mensagens voltadas ao combate à pedofilia ao mesmo tempo em que atacam, com falsas alegações, personalidades como o youtuber Felipe Neto e a apresentadora de TV Xuxa.

Apoiadores do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, durante a invasão do Capitólio em Washington: adeptos de teorias conspiratórias QAnon.(Foto de Saul Loeb / AFP)

A estratégia seria, de acordo com profissionais que fizeram o monitoramento, desviar o foco em conversas de redes sociais sobre as graves crises nos campos econômico e sanitário no Brasil. Os autores do relatório apontam ainda uma técnica de apresentar “problema e solução”, quando o problema seria a pedofilia, e a solução, a ministra Damares Alves. Ao mesmo tempo em que atacam personalidades, os grupos “alavancam nomes do próprio governo como grandes combatentes contra o tema: além do próprio Jair Bolsonaro, a figura mais associada ao assunto é a ministra Damares Alves”, diz o relatório.

Segundo a narrativa bolsonarista Damares seria responsável por trazer ao Brasil a Operação Storm, uma fictícia força-tarefa internacional secreta sob o comando de Trump para combater a rede internacional de pedofilia, “revelada” por Q nos EUA e peça central no Universo QAnon norte-americano. Após as eleições norte-americanas no geral e a invasão do Capitólio em particular, proliferaram grupos em aplicativos de mensagem e redes sociais criando associações diretas entre o bolsonarismo e o trumpismo mais radical ligado a teorias QAnon.

Gabinete do ódio

De acordo com depoimentos de ex-aliados do presidente como os deputados federais Joyce Hasselmann (PSL) e Alexandre Frota (PSDB), documentos e relatórios da CPMI das Fake News, existe um gabinete do ódio que coordena as ações online. Formada por profissionais da mentira e calúnia lotados em gabinetes oficiais, canais nas redes sociais e sites de fake news, parlamentares de diversos níveis, milhares de voluntários e um sem número de robôs, a rede bolsonarista de fake news na internet está ativa desde pelo menos a eleição presidencial de 2018 e hoje contaria com integrantes que dão expediente no Palácio do Planalto.

De acordo com os ex-aliados, o coordenador do esquema de ação da milícia digital é o vereador Carlos Bolsonaro, com a ajuda de dois assessores especiais lotados na Presidência da República. Eles seriam os responsáveis por pautar a discussão das redes bolsonaristas. Parlamentares aliados e seus assessores teriam a missão de propagar as postagens e assuntos. O esquema inteiro seria impulsionado com a ajuda de robôs e contaria com financiamento de empresários aliados do presidente. A partir daí, a viralização dos conteúdos seira feita de forma orgânica pelos apoiadores bolsonaristas. O esquema funcionou nas eleições de 2018 e foi mantido após a vitória no pleito

AIURI REBELLO, de São Paulo para o EL PAÍS,13 FEV 2021 - 17:58

Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro e tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Uma apaixonada por armas em clube de tiros a 100 km de São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.

CARLA JIMENEZ E REGIANE OLIVEIRA para o EL PAÍS, em 15 FEV 2021