segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A ideologia bolsonarista sob a análise de Denis Lerrer Rosenfield

É uma concepção de extrema direita, que não se confunde com direita conservadora e liberal   

A ideologia bolsonarista configura um caso de concepção de extrema direita, que não se deixa confundir com posições de direita conservadora e liberal. Ela se constitui enquanto conjunto de ideias que estrutura a sua ação, visando à instituição de sua própria forma de poder. Criticá-la por “insensata”, “maluca”, “macabra” ou “contraditória” realça isoladamente determinados aspectos seus sem, no entanto, abarcar a sua totalidade. São posições que, por assim dizer, se situam em outra perspectiva, a de uma normalidade que é posta em questão. Vejamos alguns de seus eixos estruturantes.

A figura do líder – Bolsonaro se produz como um líder de massas, que com elas procura estabelecer uma interação direta, sem o uso de mediações, como a Câmara dos Deputados e o Senado. Ou seja, a representação política é objeto de escárnio, salvo nos casos em que se torna necessária, como hoje ocorre com o restabelecimento das relações com alguns partidos políticos, por temor de impeachment ou de perda de poder. Seu objetivo consiste em colocar-se acima das instituições e da sociedade, como se só ele soubesse o que é melhor para elas. Não hesita em se colocar como grande médico e cientista, prescrevendo medicamentos ineficazes, como a cloroquina. Sozinho sabe o que é melhor para a saúde dos brasileiros, menosprezando a ciência por princípio. Em outra versão, é o “super-homem” contra os “maricas”. Eis por que é tratado por mito, por maior que seja a bobagem que diga. O mito é o lugar do seu saber.

O medo – Insufla ele o medo da pandemia e do desemprego, ao mesmo tempo que se apresenta como a solução da pandemia e do desemprego. Não é ele responsável por nada, tudo atribui aos outros como causadores desta situação, sejam os chineses, os comunistas ou os políticos a ele não alinhados. Ele precisa do medo para governar e se põe na posição de “salvador”. Isso pode soar paradoxal, porém só o é na perspectiva da política clássica, e não da de extrema direita, que expressa a sua concepção. Mais especificamente, o seu modo de tratamento da pandemia corresponde a essa orientação, jogando com o medo da doença e da morte, declarando procurar minimizá-las. O Brasil chega às 210 mil mortes, no entanto, é como se fosse “da vida” a morte causada por descaso, incúria e, em certo sentido, intencionalmente, visto que vem a fazer parte desse jogo macabro da política.

Ausência do princípio da não contradição – O princípio da não contradição, formulado por Aristóteles, que veio a fazer parte do exercício da razão e da política, não opera numa concepção de extrema direita. O líder diz uma coisa num dia e o seu contraditório no dia seguinte, e assim indefinidamente. Seu traço característico é que sempre tem razão, por mais irracional que seja a sua posição. Um dia declara o presidente que jamais comprará uma vacina chinesa, em outro a compra; um dia a covid-19 é uma mera “gripezinha”, em outro, uma doença mortal; um dia, ao arrepio de qualquer verdade, considera que apenas seus medicamentos mágicos são eficazes e em outro, que o Brasil é o país que tem o melhor desempenho mundial no combate a essa pandemia. Um dia é contra a corrupção na política, em outro protege os seus que estão nela envolvidos.

Distinção amigo e inimigo – A política de extrema direita está baseada na distinção amigo/inimigo, formulada pelo teórico nazista Carl Schmitt. Todo aquele que não se alinha ao líder em suas mutáveis posições, uma vez que ele detém a razão e a verdade, é tido por inimigo. Não há possibilidade de diálogo e conciliação, salvo sob a forma enganosa produzida por alguma oportunidade do momento. Ela está centrada na destruição do outro, na não aceitação da crítica e na tentativa de impor diretamente uma relação hierárquica de comando: sou “eu” quem manda! Quem não estiver comigo deve ser abatido, o que vale para “amigos” que, por discordância, deixaram de sê-lo. Veja-se o caso de agora “ex-amigos” do presidente que ousaram discordar de suas opiniões. Observe-se que tal tipo de política cria a desordem institucional, sanitária, econômica e social, embora a sua justificativa seja a de que o “salvador” é o fiador da ordem.

Milícias digitais – As milícias do líder apresentam-se sob a forma contemporânea de milícias digitais. De um lado, não há nada de novo, uma vez que tanto o nazismo quanto o fascismo fizeram uso intensivo dos meios de comunicação vigentes na época, muito particularmente do rádio; de outro lado, as novas redes digitais são muito mais abrangentes, alcançando diretamente as pessoas, prescindem dos meios de comunicação tradicionais e também dos seus meios de controle. Mentiras e o que se denomina fake news têm livre trânsito, como se um mundo paralelo por meio delas se criasse, pretendendo alguns ser o verdadeiro. Mais particularmente, os meios digitais, por seu modo de transmissão e mensagem, são particularmente adequados para a distinção amigo/inimigo, tratando o “discordante”, o “opositor”, com desprezo e escárnio, como inimigo a ser abatido.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ESte artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Pauloem 18 de janeiro de 18.01.2021
18 de janeiro de 2021 

domingo, 17 de janeiro de 2021

Bolsonaro é louco, diz Reale em entrevista a Nêumanne

Co-autor do impeachment de Dilma, ex-ministro da Justiça cobra do procurador-geral da República convocação de junta médica para atestar verdadeiro estado de sanidade mental do presidente da República


Para ver a entrevista no YouTub acesse: https://www.youtube.com/watch?v=jrPV5vT6qa4&feature=youtu.be

Tendo atuado no processo de impeachment de Collor e autor, em parceria com a colega Janaína Paschoal, do processo do de Dilma, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. exige do Ministério Público Federal que determine já que uma junta psiquiátrica ateste a eventual saúde mental do presidente da República, Jair Bolsonaro. 

Ciente da probabilidade de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, não cumpra seu dever legal, o professor da Faculdade de Direito da USP relacionou na edição desta semana da série Nêumanne Entrevista uma relação de crimes de responsabilidade, que vão de conspirações contra as instituições da democracia, configurando evidências de autogolpe, até o comportamento criminoso na necessidade de coordenar o combate à pandemia da covid 19, atuando de forma declarada contra medidas sanitárias e sabotando providências para imunização. 

Reale reconhece a dificuldade de iniciar o processo pela cumplicidade de parlamentares e dirigentes de várias instituições da sociedade civil. Direto ao assunto. Inté. E só a verdade nos salvará.

Publicado por O Estado de São Paulo, em 17 de janeiro de 2021 | 12h00

Opositor russo Alexei Navalny é detido ao aterrissar em Moscou

O ativista havia retornado neste domingo da Alemanha, onde se recuperava de um envenenamento atribuído por ele ao presidente Putin


O opositor russo Alexei Navalny, ao chegar a um aeroporto de Moscou.KIRILL KUDRYAVTSEV / AFP

As ameaças foram cumpridas. Logo após ele colocar o pé na Rússia, neste domingo, o opositor Alexei Navalny foi detido pelas autoridades no aeroporto onde aterrissou. O ativista e blogueiro anticorrupção, que regressou da Alemanha, onde se recuperava do grave ataque com uma neurotoxina de uso militar sofrido no verão passado na Sibéria, é acusado de violar os termos de uma polêmica sentença anterior que lhe impôs uma condenação e liberdade condicional. O Serviço Penitenciário Federal, que informa que ele permanecerá sob custódia até que haja uma decisão judicial, acusa-o de não comparecer aos controles periódicos e pede a substituição da pena suspensa por uma real.

O líder opositor enfrenta também as recentes acusações de fraude em grande escala, com as quais ele diz que o Kremlin tenta silenciá-lo. O voo em que Navalny regressava, e que deveria pousar no aeroporto de Vnukovo, em Moscou —onde dezenas de partidários o esperavam, apesar do frio extremo e das restrições, e 53 foram presos—, foi desviado no último momento para outro aeródromo, ao norte da capital.

“Este é meu melhor dia dos últimos cinco meses, esta é minha casa, não tenho medo, sei que tenho razão, e todos os processos penais contra mim são fabricados”, disse o opositor aos passageiros e jornalistas que voaram com ele e com sua esposa, Yulia, logo após pisar em Moscou. A polícia o levou assim que ele atravessou o controle de passageiros.

Era ordem de prisão ou o exílio. E, desde que recuperou a consciência, Navalny, um dos críticos mais visíveis contra o presidente russo, Vladimir Putin, a quem acusa diretamente do envenenamento que quase lhe custou a vida, sempre afirmou que sua intenção era voltar. “Estão fazendo todo o possível para me assustar, mas não importa. A Rússia é o meu país, Moscou é a minha cidade. Sinto saudade”, escreveu, dias atrás, nas redes sociais.

O gesto marca mais um degrau na crescente escalada de repressão do Kremlin contra opositores, meios de comunicação e organizações civis. E ocorre apenas alguns dias antes da posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, o que poderia desencadear um conflito imediato com a nova Administração democrata. Mas o Kremlin tampouco cedeu ante a possibilidade de novas tensões com o Ocidente. A União Europeia sancionou em outubro altos funcionários do círculo íntimo de Putin pelo envenenamento de Navalny. Bruxelas afirma que o ataque com uma substância como o Novichok não seria possível sem o conhecimento do Governo, ainda mais considerando que agentes da inteligência russa seguiam o opositor.

Com a popularidade em baixa e na mira do Ocidente, o Kremlin, que negou qualquer participação no envenenamento, tentou impedir uma recepção multitudinária a Navalny, que desembarcou na Rússia a bordo da companhia aérea de baixo custo Pobeda (Vitória, em russo). As autoridades se empenharam intensamente para evitar a recepção, e não apenas desviando o avião. O aeroporto previsto (Vnukovo) foi cercado, e a polícia proibiu a entrada ao lugar, justificando a medida como prevenção ao coronavírus. A imprensa também foi impedida de entrar. As autoridades advertiram que uma concentração seria considerada um “ato político” não autorizado e, portanto, ilegal.

Foram presos três dos colaboradores mais próximos de Navalny, entre eles a política opositora Lyubov Sobol, sua número dois, além de vários partidários e jornalistas. Em São Petersburgo, Moscou e outras cidades russas, a polícia deteve na manhã deste domingo diversos colaboradores do ativista que planejavam comparecer à sua chegada, cinco meses após Navalny ter tido que abandonar a Rússia para receber tratamento em Berlim.

O Kremlin e seu entorno não param de aumentar a pressão contra o destacado opositor, que se tornou muito conhecido por suas investigações sobre a corrupção das elites políticas e econômicas da Rússia. No final de dezembro, o Serviço Penitenciário Federal deu um ultimato a Navalny para que comparecesse em Moscou dentro de algumas horas; como ele não o fez, foi acusado de violar as condições de uma sentença de 2014 que determinava uma pena condicional de mais de três anos de prisão, em um polêmico processo considerado “arbitrário” pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

As autoridades afirmam agora que são “obrigadas” a prender Navalny, já que ele não compareceu aos controles estipulados pela sentença já antes de ser levado, em coma, para a Alemanha a bordo de um avião de evacuação médica. O opositor, de 44 anos, pode pegar vários anos de prisão.

O Kremlin está agora numa encruzilhada. A detenção pode desencadear protestos que aumentariam ainda mais a tensão num ano chave, com importantes eleições legislativas no outono e com a população insatisfeita por causa da crise econômica e da pandemia; uma pena de prisão também prejudicaria as relações da Rússia com a Alemanha (até pouco tempo atrás, e sobretudo devido a Navalny, próximas) e a França. Mas não detê-lo, depois das reiteradas ameaças e de aumentar as expectativas dos mais conservadores sobre a ideia de pulso firme, pode ser considerado um sinal de fraqueza, segundo a analista Tatiana Stanovaya. “O que acontece com Navalny é como dois trens que avançam um contra o outro e estão destinados a bater”, diz a cientista política.

Putin, que evita mencionar o nome do opositor, chamando-o ultimamente de “o paciente de Berlim”, negou que seus serviços de inteligência tenham envenenado Navalny. Definiu-o como um colaborador da CIA e ironizou: se quisessem matá-lo, “teriam terminado o trabalho”.

A Rússia evitou abrir um processo judicial formal sobre o envenenamento do líder opositor, atacado com a mesma substância utilizada em 2018 contra o ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha, Yulia, em solo britânico. Foi um ataque em que a inteligência do Reino Unido identificou membros da inteligência militar russa. No sábado, a Alemanha entregou às autoridades russas as transcrições das entrevistas que os promotores alemães realizaram com o opositor, com perguntas enviadas pelo escritório do procurador geral russo.

“O Governo alemão assume que o Executivo russo adotará, imediatamente, todas as medidas necessárias para esclarecer o crime contra o senhor Navalny”, afirmou o porta-voz do Ministério da Justiça da Alemanha, lembrando que Moscou tem agora todos os elementos necessários, incluindo as amostras de sangue e tecidos, para realizar uma investigação criminal.

Em dezembro, uma investigação jornalística liderada pelo site especializado Bellingcat identificou vários agentes da inteligência russa como os responsáveis pelo ataque contra Navalny na cidade siberiana de Tomsk. Segundo a investigação, baseada em registros de voos e telefonemas, o Serviço Federal de Segurança (FSB, sucessor da KGB) vinha seguindo o opositor durante anos e em pelo menos 40 voos.

MARÍA R. SAHUQUILLO, de Moscou para o EL PAÍS, em 17 JAN 2021 - 19:15

Vacinas trazem alento ao Brasil em dia de redenção para a ciência e revés político para Bolsonaro

Aprovação de uso emergencial de imunizantes pela Anvisa coroa triunfo simbólico dos cientistas sobre negacionismo, mas vacinação ainda tem obstáculos logísticos e políticos pela frente


Rival político de Bolsonaro, governador de São Paulo comemora vacinação de enfermeira, a primeira a ser imunizada no Brasil. / FERNANDO BIZERRA JR / EFE
BREILLER PIRES

A decisão da Anvisa, que, neste domingo, aprovou por unanimidade o uso emergencial das vacinas de Oxford e AstraZeneca no Brasil, é celebrada não apenas como um alento diante do recrudescimento da pandemia de coronavírus, mas também como uma vitória do aparato científico sobre o negacionismo e os discursos antivacinas que ecoam até mesmo no Governo federal. Decisiva para o desenvolvimento dos imunizantes contra a covid-19, a ciência foi aclamada, sobretudo, nas análises técnicas e justificativas de votos favoráveis ao aval para o início da vacinação em território brasileiro.

“No nosso vocabulário, não há espaço para negação da ciência nem para a politização das vacinas. Verdadeiramente, não há”, disse Alex Machado Campos, ex-chefe de gabinete de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, ao proferir o voto que decretou maioria para a aprovação das vacinas. Antes, o diretor da Anvisa elogiou o rigor científico do parecer conduzido pela relatora Meiruze Freitas, que, ao esmiuçar seu relatório, cobrou que autoridades e governos sensibilizem a população sobre a importância de se vacinar. “A vacinação contra a covid-19 ajudará na proteção individual e coletiva. Uma vacina só é eficaz se as pessoas estiverem dispostas a tomá-la”, discursou. Ela ainda criticou a prescrição de medicamentos sem comprovação científica.

Durante a apresentação técnica da análise das vacinas, o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, destacou que o panorama de “muita tensão pela falta de insumos necessários para o enfrentamento da doença” no Brasil justifica a autorização para o início de aplicação dos imunizantes. Ao longo da reunião, a Anvisa deixou claro que um dos motivos que embasaram a decisão de liberar o uso emergencial é a “ausência de alternativas terapêuticas” para o vírus, contrapondo a tese de “tratamento precoce” —sem comprovação científica— defendida pelo Governo Bolsonaro.

Miguel Nicolelis, colunista do EL PAÍS e coordenador do projeto Mandacaru, um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia, encara a aprovação em caráter de emergência das vacinas no Brasil como um marco para a ciência global. “É um ponto de partida muito importante, uma vitória da ciência em termos gerais”, diz o neurocientista. “Presenciamos uma ampla colaboração entre a ciência chinesa, que desenvolveu a tecnologia das vacinas com uma agilidade sem precedentes, e a ciência brasileira. Se Butantan e Fiocruz não tivessem sido capacitados ao longo de décadas, não viveríamos esse momento. É uma prova de sucesso do método de colaboração científica sem fronteiras, e de que as instituições de Estado devem ser sempre apoiadas, independentemente de quem governa o país.”

Nas redes sociais, a autorização da Anvisa também foi comemorada sob ares triunfais pela comunidade científica. “Estamos vendo a história ser escrita e transparência é fundamental. Assim como critérios técnicos”, escreveu o pesquisador Atila Iamarino ao elogiar a exposição minuciosa da agência reguladora. “Nós temos a solução que a ciência nos trouxe: vacinas seguras e eficazes.” Segunda pessoa a ser vacinada no Brasil, logo após a enfermeira Mônica Calazans, o também enfermeiro Wilson Paes de Pádua, 57, exaltou o trabalho científico por trás da batalha contra o coronavírus. “Nós temos de lutar pela vacina, lutar pela ciência, para melhorar a saúde e sair dessa pandemia. Eu me sinto muito orgulhoso de fazer parte desse momento histórico.”

Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) acompanhou a reunião da Anvisa ao lado de uma comissão científica, congregando, segundo ele, “alguns dos mais renomados cientistas do país”. Assim que foi anunciada a aprovação, Doria publicou um vídeo para comemorar o início da imunização de profissionais da saúde no Estado. “Dia histórico para ciência brasileira”, afirmou o governador. “A vacina do Butantan é uma vitória da ciência. Vitória da vida. Vitória do Brasil.” Para ele, particularmente, uma vitória política sobre o presidente Jair Bolsonaro, com quem passou a travar corrida para exibir a primeira foto de uma pessoa vacinada no país.

O baque do espetáculo midiático protagonizado por Doria, que chegou ao fim do dia com mais de 100 pessoas imunizadas em São Paulo, foi rapidamente acusado pelo Governo. Enquanto o governador paulista posava para as câmeras com a enfermeira Mônica Calazans, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, abria uma coletiva de imprensa irritado com o que qualificou como “jogada de marketing” do rival de Bolsonaro. “Nós poderíamos iniciar a primeira dose em uma pessoa hoje mesmo, num ato simbólico. Em respeito a todos os governadores, não faremos isso. Não podemos desprezar a lealdade federativa”, disse o ministro.

Pazuello ainda fez uma espécie de desabafo, em que cobrou do Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, exclusividade sobre as 6 milhões de doses atualmente disponíveis da Coronavac. Para o ministro, a aplicação de doses neste domingo “está em desacordo com a lei” e acusou “movimentos políticos e eleitoreiros” de capitalizarem com a pandemia. “Ouço calado, o tempo todo, a politização da vacina. A produção do Butantan, por exemplo, foi bancada com recursos do Ministério da Saúde.” Doria, por sua vez, rebateu o ministro, afirmando que não houve investimento da pasta nem nos testes nem na fabricação da Coronavac. “Não há um centavo do Governo Federal na produção da vacina”.

De acordo com o Ministério da Saúde, a distribuição proporcional das vacinas aos Estados começará a partir das 7h desta segunda-feira, e a data inicial da vacinação segue mantida para quarta, 20 de janeiro, apesar do atraso na remessa de 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e do embate político com São Paulo pelo estoque de 6 milhões da Coronavac. Por enquanto, Doria só assegura o envio de 4,7 milhões de doses, pois 1,3 milhão ficam em São Paulo. O governador dedicou grande parte do tempo de coletiva de imprensa para criticar o Governo Bolsonaro e identificá-lo como afeito à morte, uma característica cruel em plena pandemia.

Pazuello, por sua vez, também fará seu ‘marketing’ num ato simbólico às 7 da manhã em Guarulhos, na grande São Paulo, para marcar a distribuição das doses da Coronavac. O ministro espera que, até o fim da semana, a Índia libere o lote retido dos insumos produzidos pelo Serum Institute. O Ministério da Saúde não detalhou como pretende distribuir o percentual de cada Estado nem como será a logística de entrega das vacinas. A única sinalização do Governo é de que o Ministério da Defesa auxiliará o transporte por via aérea.

Ainda na entrevista coletiva, o ministro Eduardo Pazuello afirmou que a China não tem dado celeridade aos trâmites burocráticos para fornecimento de matéria-prima das vacinas ao Brasil. Remessas de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário para a produção tanto do imunizante de Oxford quanto da Coronavac, ainda não chegaram à Fiocruz. Segundo o ministro, o ministério está mapeando essas “resistências” para avançar na produção.O ministro só esqueceu que o Governo Bolsonaro, os filhos do presidente e seus seguidores, tem se notabilizado por ataques à China, inclusive com deboches ao composto desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, pejorativamente chamado de “vachina” pela tropa de choque bolsonarista.

Neste domingo, o esforço de bolsonaristas em assumir a paternidade do imunizante era escancarado. “Governo Bolsonaro bancou a vacina do Butantã!”, escreveu em letras maiúsculas o senador Flavio Bolsonaro, filho do mandatário. Uma ironia aos brasileiros que viram seu pai questionar até os efeitos nos sistema imunológico de quem tomasse a Coronavac, incluindo virar “jacaré”.

Para além da vitória de Doria neste domingo, a guerra pública entre ele e Bolsonaro até mesmo durante o dia de uma boa notícia nacional deixa claro que o caminho para a vacinação tem percalços políticos pela frente. O tucano anunciou que enviaria diretamente 50.000 doses da Coronavac a Manaus por não confiar no ministério numa provocação explícita. As frases causam desconforto em quem conhece as engrenagens da saúde pública por entender que não há benefício numa relação tensa entre um Estado que vai responder pela produção de vacinas e o governo federal.

Em que pesem as barreiras políticas e logísticas para a distribuição dos lotes, a vacinação em massa da população brasileira tem pela frente processos ainda mais complexos que a autorização de uso emergencial. Vacinas como a de Oxford e a Coronavac ainda precisam requisitar a aprovação definitiva na Anvisa, algo que não ocorrerá de imediato, já que a agência reguladora informou que há pendências de documentação para a manutenção do aval provisório votado neste domingo. Por outro lado, o país observa um crescimento alarmante dos números de casos e mortes por coronavírus em todas as regiões.

Para Nicolelis, a aprovação das vacinas não pode gerar a ilusão de que o Brasil está próximo de superar a pandemia. “A decisão da Anvisa é uma vitória a ser celebrada, mas existem ações em paralelo que precisam ser tomadas imediatamente”, afirma o cientista, que defende que o país deveria adotar um lockdown nacional, de duas ou três semanas, para frear a onda de novas infecções e ganhar tempo para a imunização gradual, citando o drama vivido pelo Reino Unido —onde a vacinação começou em dezembro, mas o número de contágio ainda não desacelerou de maneira significativa. “O impacto desse avanço sincronizado do vírus pelo Brasil tende a ser pior que o da primeira onda. A vacina vai demorar meses para fazer efeito por aqui e neste momento, temos um percentual mínimo de doses. É hora de reimplementar as medidas restritivas. Não podemos abandonar o barco enquanto a vacina está longe de contemplar a maioria da população.”

BREILLER PIRES e CARLA JIMÉNEZ, de São Paulo para o EL PAÍS, em  17 JAN 2021 - 21:10

Quando Trump for para Miami. Comentário de José Sarney

 A paisagem mundial ainda está dominada pelas travessuras do Trump, que culminaram num episódio a que ninguém no mundo pensava assistir depois que os ingleses começaram a estruturar o governo democrático, há oitocentos anos, passando pela Carta do Rei João, a Revolução Gloriosa, a consolidação da Independência das Colônias Americanas — com as ideias então estruturadas a partir do rascunho da Declaração de Independência de Thomas Jefferson — e a Convenção de Filadélfia, que dominaram o pensamento político do mundo ocidental a partir das liberdades individuais e econômicas.

Quem poderia imaginar que, depois das lutas pela democracia, iríamos assistir a um Presidente dos Estados Unidos pregando a invasão do Congresso e, para ficarmos mais chocados ainda, veríamos a imagem de forças militares deitadas nos corredores do Capitólio como se ali fosse um acampamento militar?

Em menos de dez dias esperamos que essa pressão que varre o mundo desapareça com a posse de Biden e que se possa criar um clima com menos medo e mais tranquilidade, passando aquele arrepio de vermos a bolsa preta atrás do Trump com o código do arsenal atômico americano. Que agora esteja em mãos mais sensatas, de um homem experiente, que já foi Vice-Presidente, conviveu e aprendeu com um dos maiores estadistas de nosso tempo: Barack Obama, que exerceu o governo com uma visão de mundo baseada na paz, no diálogo: a resolução dos problemas nunca pela força e sempre com negociação, buscando um terreno comum onde os homens vivam o entendimento e a concórdia.

Trump acabou com a utopia da paz e nos barrou a visão de um Oriente Médio sem as mortes e as vinditas diárias onde morrem palestinos e judeus. De um povo com esperança de viver sem as atrocidades que, diariamente, presenciamos, estarrecidos. De um mundo sem dentes cerrados pedindo a ressurreição da babilônica Lei de Talião (ou de retaliação), do “dente por dente e olho por olho”. Da noção de organismos multinacionais como um local de encontro para acabar com divergências, com a crença na força de práticas humanitárias e de combate ao terrorismo, que invade a tranquilidade das relações internacionais.

Que Biden não frustre o otimismo daqueles que torceram por sua vitória, por direitos humanos, com a certeza de que os Estados Unidos possam ser ainda âncora da paz, da igualdade e da fraternidade. Com a esperança de os Estados Unidos voltarem a ser o farol da democracia e de defesa da liberdade.

Quando Trump voltar a jogar golfe nos seus excelentes campos de Miami, estaremos todos aliviados.

José Sarney foi Presidente da República Federativa do Brasil. Publicado originalmente por O Estado do Maranhão, edição de 17.01.2021.

Anvisa aprova uso da vacina de Oxford e da Coronavac

Em decisão unânime, agência libera registro emergencial dos dois primeiros imunizantes contra covid-19. Minutos após a autorização, enfermeira de São Paulo se torna a primeira pessoa a receber vacina no país.


Ao lado de Doria, enfermeira Monica Calazans, de 54 anos, foi a primeira a receber a vacina no Brasil

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou neste domingo (17/01) o uso emergencial de duas vacinas contra a covid-19: a Coronavac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e o imunizante criado pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que têm parceria com a Fiocruz.

A decisão foi tomada por unanimidade pela diretoria da Anvisa em uma reunião transmitida ao vivo, em resposta aos pedidos de registro emergencial feitos em 8 de janeiro pelo Butantan, ligado ao governo de São Paulo, e pela Fiocruz, uma entidade do governo federal.

Os pedidos se referem a 6 milhões de doses da Coronavac importadas prontas da China, e 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford, que serão importadas do laboratório Serum, da Índia. Tanto o Butantan quanto a Fiocruz desenvolvem as respectivas vacinas no Brasil.

Minutos após a autorização da Anvisa, São Paulo realizou a primeira aplicação da vacina em território brasileiro, fora dos ensaios clínicos. Em caráter simbólico, a primeira pessoa a ser imunizada foi a enfermeira Monica Calazans, de 54 anos, que faz parte do grupo de risco por sofrer de obesidade, hipertensão e diabetes. Ela trabalha na UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, na capital paulista.

A foto da primeira aplicação no país, que mostra o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ao lado da vacinada, tem um valor político e deve dar ainda mais combustível à disputa travada ao longo dos últimos meses entre o tucano e o presidente Jair Bolsonaro em relação à vacinação.

Também neste domingo, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que a campanha de vacinação nacional terá início na próxima quarta-feira, 20 de janeiro, conforme havia adiantado em reunião com prefeitos durante a semana.

Segundo Pazuello, a distribuição das doses aos estados será feita a partir das 7h (horário de Brasília) desta segunda-feira. A vacinação nacional começará com a Coronavac, aposta do governo paulista, já que a outra vacina aprovada pela Anvisa ainda não está disponível no país.

Para dar largada à imunização, o governo federal contava com 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford que seriam importadas prontas da Índia, mas o voo para buscar os imunizantes acabou sendo adiado depois que o governo indiano declarou que não poderia dar uma data para a exportação de doses produzidas no país.

Assim, o governo federal exigiu que o Butantan entregasse todos os 6 milhões de doses da Coronavac que já estão em seus estoques. Neste domingo, antes da aprovação da Anvisa, Doria declarou que determinou a entrega das vacinas ao Ministério da Saúde ainda neste domingo. "O Brasil tem pressa em salvar vidas", disse o governador paulista.

O direitor do Butantan, Dimas Covas, disse que dos quase 6 milhões de doses disponíveis no instituto, um total de 4.636.936 está reservado para outros estados, enquanto São Paulo ficará com os demais 1.357.640 para distribuição em seu território.

A decisão da Anvisa

Cinco diretores da Anvisa votaram neste domingo. Todos seguiram o voto da relatora dos pedidos, Meiruze Freitas, favorável às aprovações. "Guiada pela ciência e pelos dados, a equipe concluiu que os benefícios conhecidos e potenciais dessas vacinas superam seus riscos. Os servidores vêm trabalhando com dedicação integral e senso de urgência", disse a relatora.

Ao proferir seus votos, os diretores defenderam a utilização de critérios técnicos e científicos para qualquer decisão relativa à covid-19, bem como que todos os brasileiros sejam vacinados e respeitem as medidas recomendadas por especialistas, autoridades sanitárias e a Organização Mundial da Saúde (OMS) contra a proliferação do vírus, como o uso de máscaras, distanciamento social e higienização das mãos.

Ao abrir a reunião neste domingo, o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, alertou que, mesmo com o início da campanha de imunização, o país só terá sucesso no combate ao coronavírus se houver "mudança no comportamento social".

"O momento é de conscientização, união e trabalho. O inimigo é um só. A nossa chance, a nossa melhor chance nesta guerra passa, obrigatoriamente, pela mudança de comportamento social, sem a qual, mesmo com vacinas, a vitória não será alcançada", afirmou, referindo-se às medidas contra a disseminação da doença.

A primeira etapa de verificação da Anvisa analisou se a documentação e as informações essenciais estavam nos materiais apresentados pelos centros de pesquisa. Após essa triagem, os técnicos da Anvisa passaram a examinar os relatórios enviados e os dados constantes nos requerimentos submetidos.

Ao todo, três áreas da agência fizeram exame da documentação apresentada: a de registro de medicamentos, a de boas práticas de fabricação e a de farmacovigilância de medicamentos. Cada setor elaborou um parecer, todos favoráveis à autorização, que serviram como base para a análise e decisão da diretoria colegiada.

Eficácia das vacinas

Em testes realizados no Brasil, a Coronavac obteve uma eficácia geral de 50,38%. O índice indica a capacidade da vacina de proteger contra todos os casos da doença, independente da gravidade.

Já testes preliminares realizados com o imunizante da AstraZeneca-Oxford apontaram eficácia média de 70,4%. Especialistas afirmam, contudo, que os resultados das duas vacinas não podem ser comparados, já que os estudos foram realizados em público diferente e usando métodos e cálculos diferentes.

Ambos os imunizantes requerem duas doses para atingir sua eficácia máxima de proteção contra a covid-19, e podem ser armazenados em temperatura de geladeira, o que facilita a logística de distribuição pelo país.

Guerra das vacinas

A aprovação vem somente semanas depois do início das campanhas de imunização em vários países, como Estados Unidos, Reino Unido e Estados-membros da União Europeia (UE). O Brasil não está apenas atrás de dezenas de países, mas é também a única nação do mundo em que o presidente vem agindo ativamente para sabotar esforços de imunização. Bolsonaro ainda afirmou diversas vezes que não vai se vacinar.

A guerra de Bolsonaro contra as vacinas eclodiu no segundo semestre de 2020, quando avançou a iniciativa paralela do governo de São Paulo para garantir doses de maneira independente, diante da inação da administração federal.

A vacina promovida por um desafeto político provocou a fúria de Bolsonaro. A partir de agosto, o presidente passou a sistematicamente minar a confiança na Coronavac do governo paulista. Em novembro, Bolsonaro chegou a celebrar a morte de um voluntário brasileiro da vacina – num caso sem relação com o estudo – e a suspensão temporária dos testes.

Atrás do governo paulista, a administração federal apostou num acordo com a AstraZeneca para a produção de vacinas, em parceria com a Fiocruz.

Na contramão de quase todos os países do mundo, o Ministério da Saúde se comprometeu inicialmente com apenas uma vacina, e não com um leque diversificado como ocorreu, por exemplo, na União Europeia. Contatos com a americana Pfizer no segundo semestre inicialmente não despertaram o interesse do governo.

Bolsonaro também chegou a desautorizar Pazuello quando o ministro mostrou interesse em adquirir a vacina paulista. O lançamento da vacina da AstraZeneca acabou sofrendo atrasos após problemas na análise de dados sobre a eficácia, colocando inicialmente o precário plano de imunização federal em dúvida.

Em dezembro, diante do progresso na elaboração do plano de imunização paulista, o governo finalmente resolveu se apressar. Manifestou interesse pela vacina da Pfizer, mas esbarrou na alta demanda mundial. A Pfizer ainda reclamou dos entraves impostos pelo governo para a aprovação da vacina. A resposta de Bolsonaro foi desdenhar da empresa. "Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?"

Anúncios contraditórios

Diante do avanço da imunização em outros países, Pazuello começou a fazer anúncios contraditórios e promessas que logo eram desmentidas. Chegou a afirmar que a vacinação poderia começar em dezembro com doses da Pfizer, mesmo depois de a empresa dizer que não poderia fornecer nenhuma dose naquele mês. Em um espaço de dias, ele ainda lançou datas como janeiro, fevereiro ou março para o início da vacinação.

Em dezembro, o governo finalmente apresentou um vago plano de imunização, sem datas e com informações incompletas sobre protocolos de segurança. Cientistas que foram citados como colaboradores reclamaram que nunca tinham visto o documento.

Tardiamente, o governo lançou em dezembro uma licitação para comprar mais de 330 milhões de seringas. O setor que produz o material reclamou que já vinha alertando o governo desde julho para apressar a compra do material. A licitação foi um fracasso. Só 7,9 milhões foram garantidos.

Bolsonaro acabou suspendendo a compra e culpou os fabricantes por supostamente elevarem os preços. No entanto, ele não havia feito objeções em 2020 ao adquirir doses de hidroxicloroquina por três vezes o valor de mercado.

E quando o fracasso da licitação foi revelado pela imprensa, o Ministério da Saúde usou suas redes para publicar um falso desmentido. No entanto, o próprio governo usou o fracasso como justificativa para barrar a exportação de seringas em documento enviado à Secretaria de Comércio Exterior.

Deustsche Welle, em 17.01.2021

Brasil tem 551 mortes por covid-19 em 24 horas

País confirma ainda mais de 33 mil novos casos de coronavírus. Total de mortos se aproxima de 210 mil, enquanto soma de infectados chega a 8,48 milhões.

A vida que o vírus devora e leva ao além túmulo. Cena corriqueira em Manaus, Capital do Amazonas, o maior Estado da amazonia. 

O Brasil registrou oficialmente neste domingo (17/01) 551 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

O número vem após o país registrar mais de mil mortes diárias por cinco dias consecutivos. As cifras nos fins de semana, contudo, costumam ser mais baixas, já que as equipes responsáveis pelas notificações nos estados trabalham em escala reduzida.

Também foram registrados neste domingo 33.040 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas no país subiu para 8.488.099, enquanto os óbitos chegaram a 209.847 desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Ao todo, 7.388.784 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados no sábado. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 99,9 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 23,8 milhões de casos, e da Índia, com 10,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 397 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 94,8 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus. O planeta superou ainda a marca de 2 milhões de mortes em decorrência da doença na última sexta-feira.

Publicado por Deutsche Welle, em 17.02.2021,há 2 horas.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Voto impresso, uma discussão descabida

A Nação não só pode confiar na segurança do voto eletrônico, como dele deve se orgulhar.

O presidente Jair Bolsonaro está obcecado pelo retorno do voto impresso como nenhuma autoridade jamais o foi desde que o voto eletrônico foi implementado com sucesso no País, em 1996. Diante da miríade de temas que afligem a Nação – uma pandemia mortal, desemprego em alta, produtividade e investimentos em queda, milhões de brasileiros jogados na extrema pobreza e educação pública em colapso –, custa crer que o presidente da República dedique tanto tempo e energia a um tema rigorosamente irrelevante. Não bastasse sua incompetência para lidar com os problemas reais que se acumulam sobre sua mesa de trabalho, Bolsonaro ainda impõe à sociedade um falso problema.

Há poucos dias, Bolsonaro voltou a falar em voto impresso horas após uma horda de terroristas tomar o Capitólio de assalto para interromper a sessão conjunta do Congresso americano que acabou por certificar a eleição do democrata Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. A um grupo de apoiadores, Bolsonaro afirmou que, “se no Brasil não tivermos voto impresso em 2022, vamos ter problema pior do que está acontecendo lá (nos Estados Unidos)”.

A fala do presidente brasileiro pode ser interpretada, se não como ameaça, como sinal inequívoco de que ele pretende reproduzir aqui a estratégia de seu xamã, Donald Trump, qual seja: alegar uma fraude que não houve a fim de justificar a eventual derrota em uma eleição legítima e, quem sabe, tentar se aferrar ao poder por meios ilegais. A intentona de Trump foi malsucedida, como se viu. Mas a mera tentativa foi suficiente para tensionar ainda mais uma sociedade já polarizada.

Agora, Bolsonaro volta a martelar a tecla do voto impresso. “Já estou conversando com lideranças do Parlamento (sobre uma PEC de autoria da deputada Bia Kicis, do PSL-DF). Quem decide o voto impresso somos nós, o Poder Executivo e o Parlamento. Ponto final. E, acima de nós, o povo, que quer o voto impresso”, disse Bolsonaro a um grupo de apoiadores na saída do Palácio da Alvorada.

É importante que se diga que não há nada errado no fato de o chefe do Poder Executivo defender uma determinada proposta ou ideia e negociar sua aprovação com o Poder Legislativo. Trata-se de uma prática comezinha nas democracias presidencialistas. O erro está na insistência do presidente da República em algo que só interessa a ele, e não à Nação. Ao contrário do que diz Bolsonaro, não há qualquer indicação de que “o povo quer voto impresso”. Há, sim, razões para que o presidente se dedique com tanto afinco a uma pauta totalmente descabida e inoportuna.

As supostas fraudes denunciadas por Bolsonaro na eleição americana de 2020 e na eleição brasileira de 2018, da qual saiu vencedor, jamais foram provadas. E não serão porque simplesmente não ocorreram, como já atestado por autoridades judiciárias dos Estados Unidos e do Brasil.

Ora, se houve fraudes nos pleitos realizados no País, elas ocorreram justamente no tempo em que aqui se utilizava o voto impresso. Sempre foi mais fácil “aparecer” o voto de um morto em uma urna de lona. Ou em uma ata manuscrita de seção eleitoral. Um eleitor bem vivo, por sua vez, não conseguirá registrar seu voto duas vezes ou mais em uma eletrônica, cujo sistema é completamente auditável por meio dos detalhados relatórios que gera. É absurdo pôr em dúvida a segurança da urna eletrônica passadas tantas eleições bem-sucedidas realizadas por meio delas, sem quaisquer contestações fundamentadas dos resultados.

A Nação não só pode confiar na segurança do voto eletrônico, como dele deve se orgulhar. Poucos países têm uma apuração eleitoral tão rápida e segura como o Brasil. E toda essa agilidade não implica qualquer ameaça às legítimas escolhas que são feitas pelos eleitores a cada eleição.

Bolsonaro continuará sua cruzada pelo voto impresso. À sociedade e ao Congresso cabe não lhe dar ouvidos sobre este assunto.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 16 de janeiro de 2021 | 03h00


Cresce pressão por responsabilizar Bolsonaro por Manaus e ideia de impeachment volta a ser aventada

Por via legal, investigação teria que motivar PGR, alinhada ao Planalto, a questionar presidente. Impotência com gestão de pandemia amplia debate sobre afastamento do mandatário

Um homem carrega um cilindro de oxigênio em Manaus.BRUNO KELLY / REUTERS

“Aqui em Manaus não é segunda onda, é o tsunami inteiro. Não deixem isso acontecer no resto do país”

A tragédia anunciada em Manaus, onde a falta de oxigênio nos hospitais fez com que pacientes morressem asfixiados, é mais um capítulo sombrio da pandemia de covid-19 no Brasil e fez ressurgir o debate sobre a possibilidade de responsabilizar as autoridades, em especial as do Executivo, pela gestão crise sanitária. De acordo com a Constituição federal e a legislação que institui o SUS (Sistema Único de Saúde), quando se trata de saúde, a competência é dividida entre os entes federativos. Quer dizer, a responsabilidade está nas mãos tanto do Estado e do município quanto do Governo federal. “Mas o Ministério da Saúde é a cabeça do SUS e se o Governo Federal não está usando essa cabeça, assume uma responsabilidade específica”, argumenta a jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional.

O argumento é endossado por entidades internacionais como a Human Rights Watch, que, em seu relatório anual sobre a situação dos direitos humanos lançado nesta semana, acusa Bolsonaro de “sabotar” os esforços para controlar a disseminação da covid-19. Nesta sexta, a Conectas Direitos Humanos engrossou o coro, cobrando “uma inflexão radical na postura negacionista do Governo Jair Bolsonaro” e a “remoção imediata do general Eduardo Pazuello”, ministro da Saúde.

Entre as tentativas jurídicas de responsabilizar Jair Bolsonaro —que sempre negou os riscos e impacto da pandemia e é, quiçá, o único presidente antivacinas no mundo neste momento— cogita-se, inclusive, aumentar a pressão pelo impeachment, instrumento que seria mais rápido, em tese. As buscas pelo termo “impeachment Bolsonaro” cresceram notoriamente no Google nesta sexta, 15, e continuaram neste sábado, 16. No Twitter, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que deixará o cargo em breve, foi cobrado insistentemente para que aceite um dos 60 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Maia, que passou a criticar de forma mais veemente o presidente pela gestão da pandemia nas últimas semanas, preferiu ser evasivo ao falar do assunto numa entrevista na televisão ao afirmar que o debate sobre o impeachment no Congresso será “inevitável no futuro”.

A saída radical, no entanto, depende da pressão popular, refém do isolamento, e de uma articulação política que ainda é inconsistente. O forte panelaço desta sexta deu uma certa vazão a esse impulso e já começam os placares de deputados que seriam favoráveis ao afastamento de Bolsonaro. Tudo embrionário, mas um debate que não existia há duas semanas. O jornalista Marlos Apyus deu início a uma campanha informal nas redes para cobrar posicionamento de deputados sobre um eventual impeachment e chegou ao número de 92 parlamentares que se dizem favoráveis —muito aquém dos 342 necessários se houvesse um processo para valer.

Por ora, há uma tentativa de dissecar a cronologia do colapso na saúde para encontrar saídas legais que cobrem do Governo suas falhas. Na quinta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) e do Estado do Amazonas (MP-AM), além da Defensoria Pública da União (DPU) e do Estado (DPE-AM) apresentaram à Justiça Federal de Manaus uma ação civil pública na qual afirmam que a responsabilidade do colapso sanitário é do Governo Federal e que cabe à União assegurar o fornecimento regular de oxigênio para os hospitais. Já nesta sexta, Bolsonaro reconheceu que a situação no Amazonas é “terrível”, mas se isentou da responsabilidade: “Fizemos nossa parte, com recursos e meios”, afirmou. No início da semana, o presidente já havia culpado os gestores regionais: “O Governo estadual e municipal deixou (sic) acabar o oxigênio”. O vice-presidente, Hamilton Mourão, argumenta que não era possível prever o problema, ainda que pesquisadores alertem desde outubro sobre o agravamento da pandemia. “O Governo está fazendo além do que pode, dentro dos meios que a gente dispõe”, declarou ele.

O governador do Amazonas, Wilson Lima, aliado de Bolsonaro, disse, em entrevista à GloboNews, que todas as decisões tomadas “foram baseadas em critérios técnicos, tentando encontrar um equilíbrio entre a proteção da vida e as atividades econômicas”. Já o prefeito de Manaus, David Almeida, culpou o isolamento geográfico do Estado pela crise de abastecimento de oxigênio.

Medidas deliberadas para atraso

De acordo com Rafael Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), para que o caso chegue aos tribunais é preciso, antes, investigar como chegou-se ao colapso em curso em Manaus, que pode se espraiar para outros Estados. Nos últimos dias, surgem elementos que compõe o panorama. A principal empresa fornecedora de oxigênio em Manaus diz ter alertado o Governo federal sobre a possibilidade de escassez. Some-se a isso, o Governo federal aumentou o imposto de importação para cilindros de gás em dezembro, mesmo se tratando de uma elemento básico no tratamento e com demanda crescente. “A depender do que for apurado, se houver, por exemplo, suspeita de que agente público deliberadamente causou a redução de estoque de oxigênio ou a possibilidade de atendimento, pode haver julgamento”, explica.

Outra possibilidade, diz Mafei, é se for encontrado um crime de prevaricação, se for comprovado que houve atraso em uma licitação de compra de insumos. “Isso poderia abrir um inquérito civil no MPF ou uma CPI, uma investigação parlamentar”. O jurista ressalta, no entanto, que a atribuição de responsabilidade político-administrativa, através de um processo de impeachment, seria, em tese o mais rápido entre os mecanismos, previsto justamente para proteger as instituições de governantes que não as respeitam nem à Constituição.

“Não vejo a possibilidade de um processo criminal contra o presidente, porque não há sequer um esboço de vontade de [Augusto] Aras [procurador geral da República e aliado de Bolsonaro] de mover uma palha no sentido de apresentar uma denúncia contra ele. E, mesmo que ele o fizesse, seria necessária uma aprovação da Câmara dos Deputados, onde o Governo tem o apoio de um terço dos parlamentares”, explica Mafei.

Apesar de concordar que o impeachment seria o caminho para atribuir responsabilidades administrativas, Mauricio Dieter, professor de Criminologia e Direito Constitucional da USP, é cético quanto à aplicação do mecanismo neste momento. “Crimes de responsabilidade não são crimes, de fato. São atos ilícitos previstos —na minha opinião, muito frouxamente— na Constituição. Desde março de 2020, Bolsonaro já cometeu uma série deles e não deu em nada. É preciso mobilizar todas as forças políticas para que essa responsabilização aconteça”, afirma.

Tais forças, porém, só se movem se houver pressão popular capaz de fazer o assunto crescer. “É preciso abrir a discussão porque os fatos [que envolvem Bolsonaro em eventual crime de responsabilidade] são graves. Mas o ritmo dele será ditado pelas ruas e pelo Congresso Nacional”, disse o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Bolsonaro tem ainda uma blindagem de seus apoiadores que lhe conferem quase um terço de apoio popular. Ainda que baixo para um início de terceiro ano de mandato, é o suficiente para fazer barulho em defesa do presidente. Seja como for, Bolsonaro já farejou a pressão e afirmou nesta sexta em entrevista a um programa popular na TV “Só Deus me tira daqui. Não há nada concreto contra mim.”

Não há, de fato, nada por enquanto concreto, mas o debate avança. Segundo Mauricio Dieter, a responsabilidade criminal é a mais difícil de atribuir, porque seria necessário construir uma retrospectiva causal até a Presidência. Seria preciso provar, por exemplo, que um indivíduo morreu sem oxigênio diretamente porque o presidente fez ou deixou de fazer alguma coisa. “Outro caminho seria provar uma política de morte intencional, mas falar em genocídio já é uma analogia muito difícil de fazer. Porque, para haver genocídio, é preciso ter um projeto declarado nesse sentido e isso não acontece no Brasil, ainda que esse projeto não declarado se efetue como tal”, explica Dieter. Em termos técnicos, segundo ele, não se pode falar de crime contra a humanidade. “O que há aqui é uma política de banalização da morte. Mas é uma ilusão acreditar que Bolsonaro vá enfrentar um julgamento criminal no STF. Até porque, analisando tecnicamente, o que essas mortes de Manaus têm de diferente das outras 200 mil mortes causadas pela pandemia no país?” argumenta e enfatiza: “O direito penal não vai resolver a catástrofe do Governo Bolsonaro”.

Esperança no âmbito internacional

No dia 23 de dezembro, o Governo do Amazonas decretou o fechamento das atividades não essenciais. Por pressão política da base bolsonarista, o governador voltou atrás e os apoiadores do presidente comemoraram a vitória sobre o que chamam de fecha-tudo. No dia 4 de janeiro, uma ordem judicial revalidou o decreto, mas já era tarde demais. Para Deisy Ventura, o fato de que a medida preventiva foi “combatida ativamente pelo Governo Federal” é mais um ônus de culpa. “No momento em que dou esta entrevista, o presidente do país está em um programa televisivo de grande audiência popular mentindo ao dizer que o STF o proibiu de tomar medidas de controle da pandemia, quando o que a Corte determinou foi que o exercício de competência de um deles não isenta a competência dos demais”, Ventura enumera o que seria mais um crime de responsabilidade.

A jurista argumenta que o Ministério Público também deveria ser instado judicialmente a “parar de mentir sobre a existência de um tratamento precoce contra a covid-19″ —enquanto os pacientes amazonenses lutam para respirar, Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, alegam que o colapso atual se deu por fatores como a falta de aplicação de tal “tratamento precoce com antimaláricos”, como a hidroxocloroquina, medicamentos sem eficácia comprovada no combate ao coronavírus. Nesta sexta, o Twitter tirou do ar uma postagem do presidente que falava em tratamento precoce.

“De ontem para hoje, novas demandas judiciais foram apresentadas ao Ministério Público Federal. A judicialização da pandemia já é enorme e se intensificará nos próximos dias. O STF, por enquanto, não responsabilizou ninguém, mas tem agido para amenizar a má gestão. A responsabilização esbarra no foro privilegiado do presidente e na atitude da Procuradoria Geral da República (PGR) que não dá prosseguimento a essas demandas”, explica Ventura.

Ela acredita que, independente do uso do conceito de genocídio, Bolsonaro pode enfrentar uma investigação no Tribunal Penal Internacional (TPI) e que o Estado Brasileiro pode responder ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. “É muito difícil saber se vai dar em alguma coisa, mas quem tem anos de experiência em situações dessa natureza no contexto internacional já viu processos que pareciam impossíveis acontecerem, de repente, principalmente quando há mudança na opinião internacional e no cenário econômico”, argumenta Ventura. Segundo ela, a posse de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, no dia 20 de janeiro, poder ser o início dessa mudança de conjuntura. “Nesse caso, ser um pária internacional, como Bolsonaro já disse orgulhar-se de ser, custará cada vez mais caro”, diz a jurista, que salienta que a mudança também depende de “uma tomada de atitude da sociedade civil” diante da fragilidade política de governadores e prefeitos. “Trabalhamos com a impotência de não fazer cessar os crimes que estão sendo cometidos contra a saúde dos brasileiros”, conclui.

JOANA OLIVEIRA e CARLA JIMÉNEZ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 16 de Jan 2021, às 12:04 hrs.

Brasil registra mais 1.163 mortes por covid-19

País confirma ainda mais de 64 mil novos casos de coronavírus, segundo dados do Conass. Total de mortos já passa de 209 mil, enquanto infectados somam 8,45 milhões.

Em meio ao colapso no sistema de saúde de Manaus, pacientes são transferidos para outros estados

O Brasil registrou neste sábado (16/01), pelo quinta dia consecutivo, mais de mil mortes diárias ligadas à covid-19. Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), foram 1.163 óbitos nas últimas 24 horas.

O país registrou ainda 64.718 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.455.059, enquanto os óbitos chegaram a 209.296.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números deste sábado incluem os dados das últimas 48 horas no Amazonas, que ficou de fora da contagem do Conass na sexta-feira, devido a problemas técnicos no acesso às bases de dados dos sistemas de informação.

O estado vive atualmente uma explosão de casos, internações e mortes, o que acabou gerando um verdadeiro colapso de seu sistema de saúde e uma superlotação de cemitérios. Hospitais chegaram a ficar sem oxigênio para os pacientes, e vários morreram sem ar. Alguns dos internados estão sendo transferidos para outros estados.

Ao todo, 7.361.379 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na sexta-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 99,6 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 23,6 milhões de casos, e da Índia, com 10,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 393 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 94,2 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus. O planeta superou ainda a marca de 2 milhões de mortes em decorrência da doença na sexta-feira.

Deutsche Welle, em 16.01.2021, há 2 horas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Mortalidade por covid em hospitais do Brasil é das maiores do mundo, mostra estudo

Número de mortes nos hospitais tende a ser alto em todo o mundo porque, de forma geral, só os casos mais graves são internados

A mortalidade por covid-19 nos hospitais brasileiros - públicos e privados - é uma das mais altas do mundo, chegando a 38%.  Entre os pacientes em estado grave, internados em UTIs e com ventilação mecânica, a mortalidade é ainda mais alta, podendo chegar a 80%. A informação está em estudo brasileiro publicado nesta sexta-feira, 15, na The Lancet, uma das mais importantes revistas de divulgação científica do mundo.


         Enterro de vítima de coronavírus em Manaus, no Amazonas Foto: Michel Dantas/ AFP                                                                                13/1/2021

OMS sobre Manaus: 'Culpar vírus é fácil; é preciso aceitar responsabilidade por perda do controle'

A mortalidade por covid-19 nos hospitais tende a ser alta em todo o mundo porque, de forma geral, só os casos mais graves são internados. No entanto, na Alemanha, por exemplo, esse porcentual é de 22%. No Reino Unido, a taxa de mortalidade dos pacientes intubados é de aproximadamente 50%.

A comparação internacional é difícil, porque a grande maioria dos países não tem um sistema de saúde unificado como o brasileiro, nem números nacionais. Um estudo pontual feito no Irã revelou uma mortalidade geral de 24%. Outro trabalho, no México, indica mortalidade de 74% para os internados em UTIs.

Ainda assim, segundo os autores do estudo, a mortalidade hospitalar brasileira pode ser considerada muito alta, sobretudo porque os pacientes brasileiros são, em média, dez anos mais jovens que os europeus. Essa mortalidade alta, segundo os cientistas, pode ser explicada por vários fatores. São eles a gravidade da doença, a explosão de casos, a fragilidade de boa parte do sistema de saúde no Brasil e o colapso das estruturas de muitos municípios diante da covid-19.

“A mortalidade que observamos no Brasil também observamos em outros países, nos momentos de pico da epidemia”, afirmou o epidemiologista intensivista Otávio Ranzani, um dos autores do estudo. “Como a nossa população é bem mais jovem, esperávamos um número menor de mortes. Mas a gravidade da doença, o grande volume de casos e a estrutura hospitalar brasileira não deram conta.”


O infectologista Fernando Bozza, da Fiocruz, também assina o trabalho.

“Na Europa, mesmo com uma população eminentemente idosa, os números não são tão ruins quanto os nossos”, disse Bozza. “E os dados do Brasil mostram taxas de mortalidade altas também nas populações mais jovens.”

O estudo é assinado por sete pesquisadores brasileiros de diferentes instituições. Partiu da SIVEP-Gripe , base de dados do Ministério da Saúde com 254.288 casos de pessoas com mais de 20 anos internadas com diagnóstico de covid feito pelo teste PCR. Os casos foram registrados ainda na primeira onda da epidemia no Brasil, entre 16 de fevereiro de 2020 e 15 de agosto de 2020.  Nesse período, havia pouco mais de três milhões de casos confirmados da doença no País, espalhados por 5.506 municípios. Esse número representa 99% do total de cidades brasileiras.

A mortalidade dos pacientes internados sobe com a faixa etária. Entre os pacientes de 20 a 39 anos é de 12%; na faixa de 50 a 69 fica em 27% e entre aqueles com mais de 80 anos chega a 66%. A gravidade da doença também faz aumentar a taxa de mortalidade. Entre os que estão internados nas unidades de terapia intensiva, a taxa média é de 59%. Para os que precisam de ventilação mecânica, chega a 80%.

“Um aspecto importante que o estudo ressalta é que os efeitos da pandemia não são iguais para todas as populações, nem para todos os sistemas de saúde”, disse Bozza. “A doença afeta mais as populações vulneráveis e os sistemas de saúde frágeis, como mostra a comparação regional. A região norte, em particular, é a que tem menos leitos, menos recursos, menos profissionais preparados, ou seja, um sistema ineficiente desde antes da epidemia. Na primeira onda, foi a mais afetada, com o colapso do sistema de saúde; e, agora, a situação se repete.”

De fato, os piores números são da Região Norte, onde a taxa de mortalidade entre os mais jovens (20 a 39 anos) era de 20%. No Nordeste, no mesmo grupo de idade, chegava a 19%. Porcentuais bem superiores aos encontrados no Sudeste (10%) e no Sul (8%). Para os pacientes em estado grave, intubados, com menos de 60 anos, as taxas também variam muito. O porcentual é de 77% (considerado extremamente alto para a faixa etária) no Nordeste contra 55% no Sul.

“Essa mortalidade alta entre pessoas mais jovens em algumas regiões indica que o sistema passou da capacidade possível de atendimento, e começam a surgir casos de pessoas que poderiam ser salvas, mas acabam morrendo porque não chegam a receber os cuidados adequados”, explicou Ranzani.

Bozza lembrou que a epidemia começou há mais de um ano e, ainda assim, o País não foi capaz de se preparar para a segunda onda. Para ele, a situação atual continua extremamente grave.

“O País não se preparou e não aprendeu com o que aconteceu”, resumiu. “A mensagem passada foi de que a epidemia estava passando e não estava. Com as novas variantes do vírus se espalhando, o cenário tende a ser pior do que esse atual, que já é horrível. E não são dois milhões de doses de vacina que vão resolver o problema.”

Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo, em 15 de janeiro de 2021 | 20h55

Maia diz que vai pedir a Alcolumbre convocação de comissão do Congresso e ataca governo

Presidente da Câmara quer interrupção de recesso para também chamar ministro da Saúde e representantes da Anvisa

 O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que pedirá ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a convocação da Comissão Representativa do Congresso para tratar da "tragédia que está acontecendo em Manaus" e também da vacinação contra covid-19 no País.

“Queremos retomar os trabalhos no Congresso para convocar Pazuello e Anvisa”, disse Maia, nesta sexta-feira, 16, numa referência ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “Falta projeto de Brasil e planejamento para a crise. Não podemos tratar vidas com tamanho desprezo”.

Para Maia, impeachment de Bolsonaro é tema que inevitavelmente será debatido no futuro

Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados Foto: Dida Sampaio/Estadão

 A Comissão Representativa do Congresso é um colegiado temporário, previsto na Constituição, para atuar nos períodos de recesso parlamentar, em situações excepcionais e urgentes. Os deputados e senadores estão de férias, com retorno previsto para 1º de fevereiro.

"Vou encaminhar agora à tarde ao presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, um pedido de convocação da Comissão Representativa para que possamos discutir a tragédia que está acontecendo em Manaus e também todo processo que envolve a vacinação no País", escreveu Maia no Twitter, antes da entrevista na qual criticou o que chamou de falta de projeto do governo federal. “É mais do que urgente que o Parlamento esteja de portas abertas, trabalhando para encontrar soluções para essa situação tão drástica e urgente. Não podemos nos omitir!”

Composta por sete senadores e 16 deputados representantes de todos os blocos e partidos do Congresso, a Comissão citada por Maia é eleita na última sessão dos trabalhos legislativos. Compete ao grupo, entre outras prerrogativas, exercer as atribuições do Congresso durante o recesso. O colegiado pode, por exemplo, convocar o ministro da Saúde para explicar a situação da pandemia de covid-19 no País e o caso específico de Manaus, que entrou em colapso. Outro assunto que pode ser deliberado pela comissão é a eventual intervenção federal no Amazonas, caso seja solicitada pelo presidente Jair Bolsonaro.

A convocação da Comissão depende do aval de Alcolumbre, que, como presidente do Senado, também comanda o Congresso. Desde o início do recesso parlamentar, porém, ele demonstra oposição a essa medida.

Parlamentares pressionam Bolsonaro a decretar intervenção no Amazonas, mas Congresso se divide

O senador Eduardo Braga (AM), líder da bancada do MDB, encaminhou nesta sexta-feira, 16, ofício ao presidente Jair Bolsonaro pedindo intervenção federal no Amazonas. “Toda a nação brasileira tomou conhecimento de que o atendimento aos pacientes acometidos de covid-19 pelas autoridades sanitárias do Estado do Amazonas não está sendo possível de ser realizado, inclusive pela falta de insumos básicos, como oxigênio, tornando forçosa a transferência de doentes da rede hospitalar de Manaus para outras capitais do país, inclusive Brasília”, afirmou Braga no documento. “Trata-se de situação que exige ação imediata do Governo Federal, guardando semelhança com o quadro de ineficiência do Estado do Rio de Janeiro no combate ao crime e à violência, o que ensejou a intervenção federal naquele Estado “com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”, acrescentou o senador, lembrando decreto editado no governo de Michel Temer, em fevereiro de 2018.

O Congresso está dividido sobre a possibilidade de o governo  Bolsonaro intervir no Amazonas. A explosão de casos de covid-19 em Manaus levou o sistema de saúde da capital ao colapso. O estoque de oxigênio se esgotou em diversos hospitais e pacientes morreram por asfixia, segundo relato de médicos.

Uma parte dos congressistas considera que a intervenção é essencial para controlar a situação no Estado. Nos bastidores, porém, muitos temem a posição negacionista do governo Bolsonaro e avaliam que a insistência na defesa de medicamentos sem comprovação científica e no fim do isolamento social podem ser ainda pior.

O requerimento pela intervenção federal na área da saúde do Amazonas foi protocolado ontem, 14, pelos deputados Delegado Pablo (PSL-AM), Felício Laterça (PSL-RJ) e Marcelo Freitas (PSL-MG). "O povo não aguenta mais, hoje chegamos no limite, desde abril do ano passado vemos a pandemia crescer a níveis alarmantes", afirmou Pablo, em vídeo divulgado nas redes sociais.

Pablo disse ao Estadão/Broadcat já ter solicitado uma audiência com Bolsonaro para debater a questão, mas ainda aguarda a resposta. "Já fizemos uma intervenção branca, mas o que precisamos agora é de uma intervenção real", disse.

O Palácio do Planalto chegou a cogitar uma intervenção federal no Amazonas em abril, mas, na época, o governador Wilson Lima (PSC) disse que a situação estava sob controle, o que fez o governo recuar.

Decretos de intervenção federal em Estados são editados pelo presidente, mas precisam ser aprovados pelo Congresso. O Legislativo, porém, está em recesso até o início de fevereiro. Uma sessão extraordinária somente seria realizada com a aprovação da maioria absoluta da Câmara e do Senado, ou seja, 257 deputados e 41 senadores. Se houver convocação, a intervenção poderia ser aprovada por maioria simples de votos.

O retorno dos trabalhos do Congresso, a quem cabe a análise do pedido de intervenção, tem sido defendido por vários deputados e senadores. Um manifesto assinado por 37 parlamentares do movimento suprapartidário 'Acredito' – entre os quais eles Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-SP) – também apoia a retomada do Congresso. "O Brasil vive um dos seus piores momentos desde o início da pandemia e discussões importantes acerca do estado de calamidade, do fim do auxílio emergencial e do cronograma de vacinação não podem esperar", diz nota do movimento.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-ES) também apresentou um requerimento para a convocação de uma sessão extraordinária do Congresso para deliberar sobre assuntos de urgência nacional.

Nem todos os parlamentares, no entanto, são favoráveis à intervenção e à convocação do Congresso, que está em campanha para definir os próximos presidentes das duas Casas legislativas. "Não é momento de pedir intervenção federal. É hora de união de todos. Neste momento, não há culpados. Temos que atravessar esse túnel escuro. Quando clarear, e vai clarear, aí então veremos onde erramos e o que é preciso fazer para corrigir", afirmou o senador Plínio Valério (PSDB-AM).

 "Sou contra a intervenção. Tanto o governo do Amazonas como o governo federal têm demonstrado dificuldades para enfrentar a crise. A hora é de uma ação sinérgica entre os governos. Quanto menos trauma e ruptura, mais rápido superaremos esse drama", argumentou o deputado Marcelo Ramos (PL-AM).

Bruno de Castro, Camila Turtelli e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo, em 15 de janeiro de 2021 | 17h44

Em meio a caos na saúde em Manaus, panelaços contra Bolsonaro são registrados em todo o país

Manifestantes protestam contra condução do presidente e do Ministério da Saúde nas medidas de controle da pandemia do novo coronavírus

Panelaço em Copacabana com a presenca de crianças nas janelas Foto: Ana Branco / Agência O Globo

O presidente Jair Bolsonaro foi alvo de "panelaços" na noite desta sexta-feira em cidades espalhadas por todo o país. As manifestações contrárias ao presidente foram  convocadas nas redes sociais em meio ao colapso do sistema de saúde do Amazonas pelo crescimento de casos e mortes causadas pela Covid-19 em todo o estado e a situação da pandemia do novo coronavírus no país.

No Rio de Janeiro, foram registrados panelaçõs em bairros da Zona Sul, como Ipanema, Copacabana, Botafogo, Humaitá, Flamengo e Leme. Há ainda registros de manifestações na Lapa e Santa Tereza, no Centro da cidade, e na Barra da Tijuca, na Zona Oeste.

No dia em que o colapso da saúde em Manaus, capital do Amazonas, ficou evidente diante da transferência de pacientes com Covid-19 para outros estados e o fim do oxigênio para tratar os doentes do estado, brasileiros por todo o Brasil foram às janelas bater panelas e protestar contra o presidente Jair Bolsonaro.

No dia em que o colapso da saúde em Manaus, capital do Amazonas, ficou evidente diante da transferência de pacientes com Covid-19 para outros estados e o fim do oxigênio para tratar os doentes do estado, brasileiros por todo o Brasil foram às janelas bater panelas e protestar contra o presidente Jair Bolsonaro.

Em São Paulo, os panelaços e gritos de "fora Bolsonaro", "genocida" , "impeachment já" e "governo assassino" começaram a ser ouvidos um pouco depois das oito horas da noite em diferentes bairros. O protesto foi intenso em Pinheiros, Vila Madalena, Pompeia, Jardins, Vila Mariana, Higienópolis. Moema e Campo Belo. Em alguns lugares, o primeiro panelaço de 2021 soou como o maior desde a posse de Jair Bolsonaro.

Nas redes sociais, há relatos de na Asa Norte e na Asa Sul de Brasília; Manaus, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre.

Panelaço na Rua General Glicério em Laranjeiras contra o governo Bolsonaro Foto: Luiza Moraes / Agência O Globo

A cidade enfrenta um colapso no atendimento de saúde, segundo o ministro Eduardo Pazuello e o governador chegou a estabelecer um toque de recolher para reduzir a incidência da Covid-19.

Os hospitais da capital amazonense estão sem oxigênio e leitos necessários para o atendimento de todas as pessoas contaminadas por Covid-19 em estado grave. Desde quinta-feira, pacientes passaram a ser transferidos para outros estados em busca de atendiemnto.

O Globo, em 15/01/2021 - 20:40 / Atualizado em 15/01/2021 - 21:58

Brasil tem 1.038 mortes por covid-19 em 24 horas

País registra mais de mil óbitos diários pelo quarto dia consecutivo e 66 mil novos casos, mas números não incluem dados do Amazonas. Total de mortos passa de 208 mil, e infectados já somam 8,39 milhões.

Manaus vive explosão de infecções e mortes, causando superlotação de hospitais e cemitérios

O Brasil registrou nesta sexta-feira (15/01), pelo quarto dia consecutivo, mais de mil mortes diárias ligadas à covid-19. Segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), foram 1.038 óbitos nas últimas 24 horas.

O país registrou ainda 66.047 novos casos confirmados da doença. Com isso, o total de infecções oficialmente identificadas subiu para 8.390.341, enquanto os óbitos chegaram a 208.133.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números desta sexta-feira também não incluem os dados do Amazonas, que foram mantidos os da véspera devido a problemas técnicos no acesso às bases de dados dos sistemas de informação, indicando que as cifras brasileiras devem ser ainda mais dramáticas. O estado vive atualmente uma explosão de casos, internações e mortes, o que acabou gerando um verdadeiro colapso de seu sistema de saúde. 

Ao todo, 7.339.703 pacientes se recuperaram da doença no país, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados na quinta-feira. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 99,0 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Andorra e Liechtenstein.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 23,4 milhões de casos, e da Índia, com 10,5 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, já que mais de 390 mil pessoas morreram em território americano.

Em todo o mundo, mais de 93,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus. O planeta superou ainda a marca de 2 milhões de mortes em decorrência da doença nesta sexta-feira.

Publicado por Deutsche Welle, em 15.01.2021, há 1 hora.

“Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigadas por genocídio”

A jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional, afirma que há todos os elementos necessários à tipificação de crimes contra a humanidade na resposta do Governo brasileiro à covid-19: intenção, plano e ataque sistemático.

Entrevista a Eliane Brum, de EL PAÍS

Uma indígena yanomami com uma máscara em 30 de junho em Alto Alegre. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, há mais de 17.000 indígenas contaminados por covid-19, 547 mortos e 143 povos atingidos.

Desde que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionou a palavra “genocídio” à atuação do Governo de Jair Bolsonaro diante da covid-19, o debate entrou na pauta pelo andar de cima. Não só no Brasil, mas no mundo. As denúncias de genocídio, tanto dos povos indígenas quanto da população negra, pelo atual Governo, não são novas. Em geral, são tratadas como evocações subalternas, da mesma forma subalterna que essas populações são tratadas historicamente pelas elites brasileiras. Ao desembarcar da boca togada de um ministro do STF, a palavra ganhou outra densidade. E, principalmente, se instalou. Já não é mais uma palavra fantasma, que ao ser dita nada move. Genocídio, pela boca de Gilmar Mendes, deixou de ser uma carta deliberadamente extraviada e chegou ao seu destino.

Em 11 de julho, o ministro afirmou em um debate online: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do Governo federal, é atribuir a responsabilidade a Estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

Generais como o vice-presidente Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, que não só pertencem e representam o Governo Bolsonaro, mas também o sustentam e o legitimam, se alvoroçaram porque sentiram o risco real de, em algum momento do futuro próximo, responderem por crimes contra a humanidade. Mesmo entre os que não apoiam Bolsonaro, termos como “hipérbole”, “exagero” e “banalização” foram usados para reduzir a potência da declaração do ministro. A palavra, porém, finalmente encarnada, permanece ativa.

Exatamente porque o genocídio, assim como os demais crimes contra a humanidade, são da maior gravidade é que se torna preciso debater o tema com a máxima seriedade, impedindo que ele seja capturado pela polarização ou pelas conveniências políticas de ocasião. Exatamente porque se trata da morte de pessoas que, num país que já ultrapassa as 80.000 vítimas por covid-19, mesmo com a reconhecida subnotificação, é urgente debater com responsabilidade: há ou não evidências de que o presidente da República e outras autoridades brasileiras possam ter cometido genocídio na resposta à covid-19?

Para responder a essa pergunta crucial, entrevistei a jurista Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da Universidade de São Paulo (USP). Autora do livro Direito e saúde global – o caso da pandemia de gripe A - H1N1 (Editora Outras Expressões), Ventura é uma das mais respeitadas autoridades no estudo da relação entre pandemias e direito internacional. É também mestre em direito europeu, doutora em direito internacional pela Universidade Paris 1 e foi professora convidada do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o prestigiado Sciences-Po.

Desde que iniciou a pandemia, é uma das articuladores do Projeto Direitos na Pandemia, realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direitos Sanitários da USP e a organização Conectas Direitos Humanos. Todos os atos e a legislação brasileiras sobre a covid-19 são coletados e classificados em seu impacto sobre os direitos humanos. Isso impõe à jurista um acompanhamento cotidiano e permanente do Diário Oficial da União, onde muito se passa sem que a maioria dos brasileiros perceba.

Já não estamos no século 20, quando o conceito de genocídio foi criado a partir da necessidade de nomear o crime perpetrado pelo nazismo contra os judeus. O século 21 não é apenas uma convenção temporal, ele trouxe desafios novos, como o enfrentamento das pandemias e da emergência climática. Apenas há alguns anos, Ventura, então professora de direito internacional no Instituto de Relações Internacionais da USP, precisava constantemente explicar por que havia escolhido estudar uma pandemia no contexto do direito internacional. Hoje, já não é mais preciso explicar. O entendimento é imediato.

Nesta entrevista, feita por telefone ao longo de duas horas na última segunda-feira (20/7), Deisy Ventura explica por que há elementos suficientes para investigar o presidente Jair Bolsonaro, assim como outras autoridades do Governo, por crimes contra a humanidade, tanto no Tribunal Penal Internacional como na Justiça brasileira. Ela explica também por que é essencial para o futuro do Brasil que esse debate aconteça.

A jurista Deisy Ventura é uma das mais renomadas especialistas no estudo de pandemias e direito internacionalDIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL

Pergunta. A declaração do ministro do STF Gilmar Mendes, alertando que os militares poderiam estar se associando a um genocídio, referindo-se à forma como a pandemia de covid-19 estava sendo tratada pelo Governo brasileiro, produziu várias reações. Alguns juristas e intelectuais foram rápidos em classificar a declaração como uma “banalização” do conceito de genocídio. Houve banalização?

Resposta. Existe uma banalização da palavra genocídio, mas não é o caso agora. O ministro Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um genocídio, referindo-se à resposta brasileira à pandemia. Naquele momento, o número de mortes já estava em 70.000 pessoas. É muito importante que um membro do Supremo Tribunal Federal, que é conhecido como alguém politicamente conservador, utilize essa palavra, porque ele certamente não usou essa palavra por acaso. É alguém que conhece o conceito de genocídio, conhece o direito e não é novato nem no mundo jurídico nem no mundo político. É importante não só por ser ministro, mas também pela percepção internacional dessa fala. A diplomacia brasileira teria recebido desde o ano passado uma orientação clara para frear o uso deste termo. Existe um alerta para não deixar que se difunda no Exterior a ideia de que está ocorrendo um genocídio no Brasil. Assim, cada vez que a palavra é pronunciada em relação ao Brasil, a diplomacia reage. Infelizmente, em geral desqualificando quem fez a declaração e caracterizando-a como banalização. Até então o genocídio era associado à população indígena e não relacionado à pandemia. Agora, com a fala do ministro, chegamos a outro patamar e precisamos discutir com muita serenidade essa questão. Não podemos falar sobre genocídio de uma forma polarizada e vulgar. É chegado o momento de falar do genocídio fora da clivagem da banalização. Não é apenas um grito dos mais fracos para chamar a atenção. Estamos agora diante de indícios muito significativos de que existe um genocídio em curso no Brasil.

P. E quais são esses indícios?

R. Primeiro, preciso dizer que, no que se refere à população em geral, acredito que há o crime de extermínio, artigo sétimo, letra b, do Estatuto de Roma. É também um crime contra a humanidade. E, no caso específico dos povos indígenas, minha opinião é de que pode ser tipificado como genocídio, o mais grave entre os crimes contra a humanidade. O crime de extermínio é a sujeição intencional a condições de vida que podem causar a destruição de uma parte da população. O que chama a atenção, neste caso, é que o exemplo usado no texto do Estatuto de Roma é justamente o da privação ao acesso a alimentos e ao acesso a medicamentos. Desde o início da pandemia, o Governo federal assumiu o comportamento que tem até hoje: de um lado o negacionismo em relação à doença e, de outro, uma ação objetiva contra os governos locais que tentam dar uma resposta efetiva à doença, contra aqueles que tentam controlar a propagação e o avanço da covid-19. E desde o início tenho dito que se trata de uma política de extermínio. Por quê? Porque os estudos têm nos mostrado que as populações mais atingidas são as populações negras, são as populações mais pobres, são os mais vulneráveis, entre eles também os idosos e os que têm comorbidades. E, infelizmente, o que prevíamos aconteceu. Apesar da subnotificação, que é consensual, já que todos estão de acordo que há mais casos no Brasil do que são reconhecidos, ainda assim há um volume impressionante e existe um perfil claríssimo das pessoas que são mais atingidos pela doença. Tanto no genocídio da população indígena quanto no que, na minha opinião, é uma política de extermínio com relação à resposta geral da pandemia, eu vejo claramente uma intencionalidade.

P. A intencionalidade é fundamental para tipificar a autoria tanto do genocídio quanto do extermínio. Mas há juristas experientes defendendo que seria difícil provar a intencionalidade no caso da resposta do Governo brasileiro à pandemia...

R. Existem pessoas por quem tenho o maior respeito e que conhecem o sistema penal internacional e que pensam que não é o caso de um crime de genocídio ou outro crime contra a humanidade porque se trataria de uma política fracassada do Estado brasileiro. Nesta interpretação, o que estaria acontecendo no Brasil é que o Governo fracassou na resposta à pandemia. Seria apenas uma resposta ineficiente. E os tribunais internacionais não julgam políticas, julgam pessoas que cometem crimes. Assim, só poderíamos reclamar junto ao sistema interamericano de direitos humanos ou outras instâncias de controle do respeito aos tratados de direitos humanos. Eu não penso assim. Vejo uma intenção clara.

P. Como essa intenção se expressa, em sua opinião?

R. Faz parte da definição dos crimes contra a humanidade a existência de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Estes dois elementos são muito importantes. Algumas pessoas dizem também que o Tribunal Penal Internacional seria para conflitos armados. Isso também não é verdade. O estatuto é claríssimo. Não é preciso haver uma guerra ou conflito armado para que se pratique um crime contra a humanidade. E, mais do que isso, até a tentativa de genocídio é punível pelo estatuto. Sequer é necessário que ele tenha sido consumado. Da mesma forma, se pune também a incitação ao genocídio. A incitação é punida, a tentativa é punida. Precisamos analisar com muita serenidade o que tem acontecido no Brasil. Afirmo que nem de longe se trata de uma política fracassada de resposta à covid-19. Nem de longe. O Governo age de uma maneira claríssima em combate à saúde pública. Ele não só dissemina falsas informações sobre a doença e, portanto, age no plano da comunicação para disseminar o negacionismo, como ele também construiu um conjunto de ações, inclusive por via legislativa, para obstaculizar as medidas de combate e prevenção à covid-19 de iniciativa de outros poderes. Vejo aqui todos os elementos configurados: ataques sistemáticos e a intenção de sujeitar uma parte importante da população brasileira a condições de vida que podem implicar a sua destruição.

R. Por que, então, juristas respeitáveis estão sendo, digamos, tão cautelosos?

P. É evidente que o Tribunal Penal Internacional nunca foi confrontado a uma situação como a que estamos vivendo no Brasil. Então é natural que alguns juristas, por maior que seja a sua experiência e o seu valor, digam que nunca cuidaram de uma questão como esta. Nunca vivemos uma pandemia com esse alcance na contemporaneidade, com a existência de um sistema de saúde pública universal, na qual temos os meios para uma resposta eficiente, e o Governo federal optou por não oferecer essa resposta. Muitas pessoas são grandes estudiosas do direito penal internacional, mas talvez não tenham estudado de forma mais detida o que o Governo brasileiro tem feito com relação à covid-19. Uma coisa é acompanhar as falsas polêmicas, e também as verdadeiras, nesta forma de fazer política do Brasil atual, onde o falso se mistura com o verdadeiro. O presidente da República é um agitador de extrema direita e o movimento que o levou ao poder busca de forma ostensiva aparelhar o Estado brasileiro. Órgãos do Estado, como a própria Secretaria de Comunicação, segundo o Poder Judiciário, tentaram veicular campanhas que insuflam a população contra as autoridades. O presidente da República chegou a sugerir a invasão de hospitais para que seus seguidores os fotografassem, para assim “comprovar” a tese complotista de que a covid-19 não seria tão grave nem teria se propagado nessa dimensão. Nós temos configurada aqui muito mais do que uma omissão. Nós temos uma ação intencional clara e também um caráter sistemático. Mas uma coisa é acompanhar as declarações do Governo por lives e pela imprensa, acompanhar essas ofensas, assim como o descaso com a dor das famílias que perderam pessoas queridas por covid-19. Além desse circo de mentiras e distorções, precisamos também ir lá olhar o Diário Oficial, para entender o que acontece atrás da cortina de fumaça. Quando a gente vai lá ver, vai somando evidências claríssimas dessa intencionalidade. Não são apenas as falas do presidente, mas uma sucessão de atos que demonstram uma intenção clara e uma ataque sistemático às tentativas de controle da propagação da doença. Por isso, em minha opinião, existe uma política de extermínio em curso.

P. Para provar que há genocídio e outros crimes contra a humanidade é necessário também mostrar que há um plano. É possível estabelecer a existência de um plano, no caso da resposta do Governo brasileiro à covid-19?

R. Sim. E também o plano é muito claro para quem acompanha e pesquisa diariamente o que está acontecendo com a covid-19. Aquilo que o presidente da República chamou de “guerra” e de “jogar pesado” contra os governadores constitui claramente um plano para obstruir uma resposta eficiente dos Estados à pandemia, com etapas como o pedido a empresários para que deixassem de financiar campanhas eleitorais de governadores não alinhados, ameaças constantes em declarações públicas e incitação à desobediência civil, entre muitas outras medidas legislativas ou administrativas. O presidente chegou a demitir dois ministros da Saúde que não concordavam com seus planos para a pandemia.

P. Qual é a importância de um debate como este, num momento tão grave como o que o Brasil está vivendo?

R. Quando a gente atribui um crime a alguém é preciso uma investigação, é preciso um processo e é preciso um julgamento. Eu vejo todas estas etapas como extremamente importantes para que possamos entender o que acontece no Brasil em um outro patamar. Seria muito ruim se, ao final desse acontecimento terrível, a versão sobre o que aconteceu fosse a de que esse Governo foi simplesmente incompetente. E seria muito ruim porque isso não é verdade. A discussão sobre a tipificação dos crimes contra a humanidade me parece fundamental, mas ela precisa ser feita de uma forma muito tranquila, porque não se trata de agitação, nem se trata de insuflar pessoas. Se trata, sim, de uma tese muito séria, que tem condições de prosperar na esfera internacional. E não só isso. Tem condições de prosperar também na esfera interna, porque genocídio é um crime tipificado na legislação brasileira. Temos toda uma base também no direito brasileiro para discutir se o que está acontecendo aqui é um genocídio ou não ―e também temos a discussão internacional. Nada disso me parece uma questão sobre políticas públicas, mas sim uma questão sobre responsabilização individual. Precisamos responsabilizar criminalmente as pessoas que estão promovendo genocídio ou outros crimes contra a humanidade, como o de extermínio

P. O que você está dizendo é que, no que se refere à resposta do Governo brasileiro à covid-19, não se trata de incompetência, como alguns querem fazer crer. Você está afirmando que há dolo, há intenção. Além das declarações bem conhecidas do presidente Jair Bolsonaro, quais são os atos, publicados no Diário Oficial, que provam isso?

R. Mesmo naquela famosa declaração de 24 de março, em que o presidente usa a expressão “gripezinha” para se referir à covid-19, há muito mais do ponto de vista jurídico. No mesmo pronunciamento o presidente critica, por exemplo, o fechamento das escolas. Existe o que aparece mais, o mais comentado, mas também existem outros elementos que configuram que não se trata apenas de uma expressão infeliz. Imagine, numa corte internacional, um juiz que se defronta com uma fala de um presidente da República que, em plena pandemia, se pronuncia contra o fechamento das escolas...

P. E quanto aos atos, você poderia citar alguns?

R. Há muitos. Existe um enorme exemplo com relação à população em geral que é a lei 14.019, de 2 de julho, que trata do uso das máscaras. O presidente vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de informar em cartazes a forma correta de usar as máscaras e vetou a obrigação dos estabelecimentos comerciais de afixar o número máximo de pessoas que deveriam estar lá dentro. Se construiu uma lei sobre o uso de máscaras para conter o avanço da pandemia, e perceba que esta lei é de 2 de julho, quando já estamos com dezenas de milhares de mortos e com a interiorização da doença. O presidente então veta essas obrigações. Entre outros vetos, veta a obrigação do uso da máscara no sistema carcerário, veta nos estabelecimentos de ensino e veta nos templos. Isso sim é banalização do veto. E são vetos contra a saúde pública. Outro exemplo é o atraso na sanção da norma que liberava recursos financeiros para os Estados. Este é um debate que chega a me causar arrepios. Muitos Estados estavam já sem recursos para comprar insumos, como respiradores e até sedativos. Os Estados então pedem essa ajuda, o Congresso aprova a ajuda e o presidente retarda ao máximo a sanção à lei que provê socorro financeiro aos Estados que estão na linha de frente da resposta. O que é isso senão obstaculizar a contenção da propagação da doença? Outra questão evidente. Quando o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), depois de pedir muitas vezes ajuda ao Governo Federal e de tentar muito conseguir insumos, especialmente respiradores, organiza uma compra, é ameaçado e a Receita Federal declara que haveria processo contra ele e todas as pessoas envolvidas. Mais. As ameaças de operações policiais contra os governadores, na tentativa de caracterizar a resposta à pandemia, a compra de insumos, como corrupção, como se gastos com hospitais de campanha e respiradores fossem necessariamente uma forma de enriquecimento ilícito. Há a substituição de quadros experientes do Ministério da Saúde, com grande conhecimento sobre a resposta a doenças infectocontagiosas, por pessoas sem nenhuma experiência. Segue. A tentativa de manipulação de dados da covid-19... Há ainda o uso de cloroquina, inclusive em comunidades indígenas. No começo a própria Organização Mundial da Saúde estava investigando a eficácia ou não. Mas, hoje, não há a menor dúvida. Além de tudo o que significa o uso da cloroquina, ainda se configura a intenção de iludir as pessoas de que existe uma forma de tratar a doença. Você quer mais exemplos? Posso continuar por algumas horas.

P. Acho que está claro.

R. É necessário entender que existem duas grandes vertentes para dizer da pertinência dos crimes contra a humanidade, inclusive o de genocídio. Uma é a vertente da comunicação e a outra é o ataque contra os Governos dos Estados. A comunicação é absolutamente criminosa, porque incita as pessoas a pensarem que a doença não é tão grave, incita a não se protegerem, e existe a obstrução constante por atos, constrangimentos e ameaças aos Governos locais que conduzem a resposta à pandemia.

P. E quanto aos povos indígenas, especificamente?

R. Com relação aos indígenas, duas questões são especialmente relevantes entre muitas. Sem hesitar, eu daria dois exemplos. O primeiro é o debate sobre o contato com os povos isolados. Uma portaria da Fundação Nacional do Índio, a portaria 419, se apresenta como uma portaria que vai coibir o contato com as comunidades isoladas. Só que, no meio, olhando com lupa, essa portaria abre uma exceção: a de que poderia haver o contato com as populações isoladas com autorização da Funai. O Governo tenta, sempre. A intenção é clara. Há então uma resposta muito forte da sociedade civil. Há uma recomendação do Ministério Público Federal, ainda em março, e então essa portaria é modificada. Mas a tentativa está lá. Em fevereiro deste ano, a Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os povos indígenas, ao saber que um líder evangélico poderia chefiar a coordenação de povos isolados da Funai, já tinha apontado o potencial de produzir um genocídio. O genocídio está muito longe, portanto, da banalização. Estamos falando de uma relatora das Nações Unidas para os direitos dos povos indígenas. O segundo ponto ―e é até difícil falar tranquilamente sobre isso― é a lei do plano emergencial de enfrentamento da covid-19 nos territórios indígenas. Para começar a conversa: o plano emergencial é uma lei de 7 de julho ―7 de julho! Ou seja. Em julho nós vamos aprovar o plano emergencial para enfrentar uma emergência que foi declarada pela Organização Mundial da Saúde em 30 de janeiro e, pelo Brasil, em 3 de fevereiro. Aqui mesmo, no Brasil, já se reconhecia a emergência nacional desde fevereiro! E só em julho vão fazer o plano para combater a pandemia nos territórios indígenas. Bem, neste plano, a União precisa garantir um conjunto de medidas para enfrentar o vírus...

P. E Bolsonaro vetou a garantia de acesso à água potável aos povos indígenas...

R. Muita gente ficou chocada com o fato de o presidente da República vetar a garantia de acesso à água potável. Mas, se nós formos ler o conjunto dos vetos, vamos ver que vai muito além de uma suposta crueldade com relação à água. Foi vetada a obrigação de organizar o atendimento de média e alta complexidade nos centros urbanos, foi vetado o acompanhamento diferenciado dos casos que envolvam os indígenas, inclusive foi vetada a oferta emergencial de leitos hospitalares e de UTI. Foi vetada a obrigação de aquisição ou disponibilização de ventiladores de máquinas de oxigenação sanguínea, foi vetada a inclusão dos povos indígenas nos planos emergenciais de atendimento dos pacientes graves das secretarias municipais e estaduais, que inclusive obrigava o SUS a fazer o registro e a notificação da declaração de raça e de cor. Com este veto, se tenta dificultar a identificação dos indígenas atendidos no SUS. Veja como a comunicação é importante... Foi vetada a parte da obrigação de elaboração de materiais informativos sobre os sintomas da covid-19 em formatos diversos e por meios de rádios comunitárias e de redes sociais com tradução e linguagem acessível. Isso foi vetado. Foi vetada a obrigação de explicar para os indígenas a gravidade da doença! Foi vetada a obrigação de oferecer pontos de internet nas aldeia para não ser preciso se deslocar aos centros urbanos. Foi vetada a distribuição de cestas básicas, de sementes e ferramentas agrícolas a famílias indígenas. Por isso, eu afirmo: a questão vai muito além das frases de efeito, vai muito além de tudo aquilo que é promovido pelo Governo Federal para insuflar a sua base de apoio a odiar as instituições, a odiar os partidos de oposição, a odiar a população que é considerada por eles inferior e subalterna, como indígenas e negros, aqueles que atrapalham seus interesses e são considerados por eles um obstáculo do ponto de vista da racionalidade econômica que eles defendem.

P. Que racionalidade econômica é esta?

R. A racionalidade econômica que eles defendem é a do lucro imediato, a dos privilégios para os amigos do rei. E esta é uma racionalidade que sequer é uma preocupação com a economia do país. Não é. É uma preocupação com interesses de determinadas pessoas. A questão econômica é da maior importância na resposta à pandemia. Eu gosto muito do trabalho da (economista) Laura Carvalho, não só pela sua linguagem acessível, mas porque ela diz claramente que o problema da pandemia não são as medidas de contenção, é a pandemia em si. Morrer é muito ruim também para a economia de uma família. Sofrer por uma doença evitável é muito ruim também para a economia. Uma resposta séria para efetivamente conter a propagação da doença seria mais efetiva para a economia do que o negacionismo. O prefeito de Itabuna, na Bahia, falou muito claramente sobre o significado dessa posição, ao anunciar no início de julho que reabriria o comércio. Ele disse: “Morra quem morrer”. E se sabe exatamente quem vai morrer mais. Na elite brasileira vai haver algo que eles provavelmente vão chamar de dano colateral. Mas a regra, quando se observa o que tem acontecido no Brasil desde fevereiro, é que as pessoas que têm acesso principalmente à terapia intensiva têm muito mais chance de sobreviver, mesmo sendo idosas e mesmo tendo comorbidades. Não é possível dizer que os brasileiros, em geral, não têm acesso, porque nós temos o SUS, e em alguns locais o SUS conseguiu oferecer um tratamento de excelência, apesar das dificuldades. Mas o SUS não consegue atuar de forma igual em todos os lugares. Então, se sabe exatamente quem vai morrer mais.

P. No que se refere aos povos indígenas, que outros elementos mostram que pode ter acontecido o crime de genocídio contra eles?

R. A diferença essencial, que facilita a identificação do genocídio nas populações indígenas, é o interesse claro que existe em utilizar as terras, as riquezas naturais, em eliminar o “obstáculo” que estas figuras representam, na medida em que são os grandes guardiões da floresta, do meio ambiente, do patrimônio natural brasileiro. Eliminar esses guardiões facilitaria muito a apropriação de suas terras, basta ver o ritmo de desmatamento e de ocupação ilegal de terras protegidas que está ocorrendo no Brasil. O motivo do crime é evidente. A velha pergunta dos filmes de mistério ―quem ganha com o crime?― tem aqui uma resposta muito evidente.

P. Qual é a história do conceito de genocídio, para podermos entender melhor o que está em disputa nesse debate?

R. Começa com (Winston) Churchill, em outubro de 1943, quando vêm a público as atrocidades cometidas pelos nazistas. Ele diz: “Nós estamos diante de um crime sem nome”. E então um jurista polonês, Raphael Lemkin, publica um artigo, em novembro de 1943, afirmando: “Por genocídio nós entendemos a destruição de uma nação ou grupo étnico”. É ele que usa pela primeira vez essa palavra, combinando “genos”, do grego, que é raça ou tribo, com a palavra latina “cídio”, que significa matar. Nunca deixou de ser um conceito polêmico, em função do negacionismo e, principalmente, por causa do dilema de alguns países, que queriam punir o genocídio praticado por Hitler contra os judeus, mas que estavam fazendo seus genocídios alhures, como os próprios ingleses, os americanos, os franceses, que tinham o genocídio nas suas histórias, algumas até bem recentes. Então, como constituir o conceito de um crime que não fosse depois se voltar contra eles? O debate, portanto, sempre existiu. E o Lemkin já dizia neste artigo: “o genocídio não significa necessariamente a destruição imediata de uma nação, ele significa muito mais um plano coordenado de diferentes ações que visam à destruição dos fundamentos essenciais à vida de grupos, com objetivo de, mais adiante, exterminá-los”.

P. O fato de a palavra se originar com o holocausto judeu perpetrado por Hitler e pelos nazistas, na Segunda Guerra, não é também o que dificulta hoje, mesmo para juristas experientes, entenderem que estamos num outro momento da história? Assim como para alguns é difícil compreender que os golpes hoje nem sempre são com tanques na rua, como foram no séculos 20, não estaria sendo difícil compreender que, no tempo das pandemias e da emergência climática, a interpretação também precisa se atualizar porque os desafios e as ameaças são também outros?

R. Genocídio não é só colocar pessoas num paredão (ou numa câmara de gás) e fuzilar as pessoas. O genocídio se dá também ao suprimir as condições necessárias à vida e às condições à saúde. Eu trabalho há mais de 10 anos no estudo e pesquisa de pandemias e da Organização Mundial da Saúde. As pessoas achavam curioso que alguém do direito internacional se interessasse por esses assuntos. Agora já não precisa mais explicar por que fiz minha livre docência sobre a gripe H1N1. Há algo novo que os sistemas internacionais vão ter que levar em conta. O fato de não haver um precedente significa apenas que, na contemporaneidade, a humanidade não tinha chegado a essa fase da história. Com toda a tecnologia e ciência, é a primeira vez que nos confrontamos com um fenômeno dessa magnitude. A grande maioria dos Estados fez o máximo possível com as condições que tinha para enfrentar essa situação. Não foi esta a decisão do Estado brasileiro.

P. Algumas pessoas confundem o negacionismo como algo equivocado, porém honesto, no sentido de que os negacionistas realmente acreditariam na não existência de algo. Claramente, porém, o negacionismo é uma manipulação e uma estratégia...

R. O negacionismo surge, historicamente, justamente com relação ao holocausto. Essa palavra vai surgir nos ambientes universitários dos anos 70, dos anos 80, para se referir a algumas teses acadêmicas e discursos políticos que diziam que o holocausto judeu ou não foi tão grave assim ou não ocorreu. É muito interessante isso. As extremas direitas europeias, e principalmente a francesa, não tinham condições de se apresentar politicamente com suas ideias diante da monstruosidade do que aconteceu com o povo judeu. Então, como estava claro que essas ideias fascistas necessariamente levam ao extermínio e ao genocídio, para que se tornassem palatáveis de novo era preciso negar o que aconteceu. Do contrário, não haveria como se apresentar de novo no espaço público. Universidades francesas importantes acabaram envolvidas nesse escândalo por permitirem a existência de teses que afirmavam que ou não foi tão grande assim ―a banalização― ou não aconteceu. A coerência não é algo importante para a extrema direita, nunca foi. É aí que surge essa expressão ―negacionismo. Os judeus são obrigados a, periodicamente, provar que o holocausto aconteceu porque os negacionistas jogam com o que se chama ônus da prova. Eles não provam que não aconteceu, mas te obrigam a cada momento a provar que aconteceu.

P. Como acontece, especialmente nesse Governo, com a memória da ditadura militar (1964-1985) no Brasil....

R. Sim. E aí eu quero dizer, muito enfaticamente, que isso vai acontecer conosco com relação à pandemia de covid-19 no Brasil. Periodicamente, nós vamos ter que provar essas dezenas de milhares de mortes. Periodicamente, nós vamos ter que voltar a explicar como aconteceu. Tenho certeza absoluta que essa disputa vai acontecer. Será preciso fazer um memorial para esses mortos. A história terá que ser contada de forma incessante. Da mesma forma que acontece com as vítimas da ditadura militar, haverá desmentidos. Entendo a preocupação de preservar o termo genocídio, mas o fulcro do que estou dizendo desde que começamos a conversar é que não há exagero em falar de crimes contra a humanidade com relação ao que está acontecendo hoje no Brasil referente à covid-19. Por tudo o que já falei e porque essas mortes eram evitáveis.

P. Como fica claro que essas mortes seriam evitáveis?

R. O Brasil não é um país miserável, que não tem sistema de saúde e estava fadado a ter uma evolução trágica da doença. O Brasil é referência internacional de cobertura universal de saúde. Nos países em desenvolvimento, não há nada como o nosso Sistema Único de Saúde. O Brasil tem profissionais de saúde de altíssimo nível, sanitaristas de altíssimo nível, todos ejetados do Ministério da Saúde. O Brasil tinha todos os quesitos para ter uma das melhores respostas do mundo à covid-19. Muitos brasileiros pensavam que o Brasil não tinha dinheiro. E nós descobrimos que o Brasil tem muito dinheiro, que uma parte muito significativa do PIB foi destinada à resposta à covid-19, mas ela não tem chegado onde precisa chegar, por uma série de razões, entre elas as que eu já mencionei. Então, como é possível? Poderíamos ter tido uma realidade em que todas as autoridades alertassem para a doença, pedissem para a população ficar em casa apoiando as medidas e, por alguma razão, o sistema tivesse uma disfunção. Mas não é nem de longe o que estamos vivendo no Brasil. Nós não temos um governo federal que aja no sentido de conter a pandemia mas não tem êxito. Ao contrário. Existe uma obstrução reiterada, com a justificativa de proteger a economia brasileira, uma justificativa pífia, que quem entende de economia diz que não é sequer a melhor forma de proteger a economia. E quero chamar muito enfaticamente a atenção para a comunicação. A comunicação de risco durante a emergência é um dos principais pilares do enfrentamento em todos os manuais. O primeiro ponto é a confiança nas autoridades sanitárias, o segundo ponto é a comunicação clara, inclusive de incertezas científicas sobre o que está ocorrendo. Em nenhum momento podemos subestimar a comunicação como elemento de resposta. Na comunicação, assim como em tantos pontos, a intencionalidade de não deixar a população se proteger como deveria é claríssima.

P. O que diz exatamente a legislação?

R. O conceito de genocídio, na legislação brasileira (Lei 2.889, de 1º de Outubro de 1956), é límpido. Começa referindo-se à intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Refere-se a matar membros do grupo, causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo, submeter o grupo ou membros do grupo a condições de existência capaz de ocasionar a destruição física total ou parcial, assim como adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. Também menciona a incitação direta ou indireta e diz ainda que a pena será agravada em um terço quando o crime for cometido por governante ou funcionário público.

P. Em quais destes casos o Governo brasileiro se enquadraria, no que diz respeito à resposta à covid-19?

R. Causar lesão grave física ou mental a membros do grupo, isso me parece evidente nos argumentos que já mencionei. Submeter o grupo a condições de existência capazes de ocasionar a destruição física parcial ou total, está mais do que claro. Imagina, o Governo vetou até mesmo a obrigação de realizar uma campanha para os indígenas traduzida nos seus idiomas, explicando a gravidade da doença. No Tribunal Penal Internacional, o conceito é semelhante. Me parece que, em relação aos indígenas, existe uma circunscrição geográfica que facilita a configuração da prova da prática desse crime num eventual processo. Essa tipificação do crime entre os indígenas me parece ter um amplo leque de evidências. Ninguém pode, porém, ser condenado previamente. O que estamos dizendo é que é possível que esse crime esteja acontecendo e que isso precisa ser investigado nessa clivagem, como crime de genocídio. O que é muito importante é que não exista mais lugar para o argumento da banalização da palavra genocídio. Que deixe de ser considerado algo distante, denuncista ou absurdo e passe a ser investigado.

P. E quanto aos negros que, segundo pesquisas, são a maioria dos que morrem por covid-19?

R. Na população negra, eu vejo muito mais do que matar ou deixar morrer, o que também é um crime contra humanidade. Quando o Governo faz essa série de ações que obstaculizam a prevenção e o combate à covid-19, ele joga com a evolução natural da doença: se deixar a evolução natural da doença rolar sem intervenções mais efetivas, a tendência é que ela atinja mais as populações vulneráveis e extermine esses atores, cujas vidas consideraria que não importam. Na população em geral, os caminhos do crime contra a humanidade são mais velados do que os crimes contra as populações indígenas.

P. Já ouvi pessoas dizendo que até agora morreram “poucos” indígenas, para se considerar genocídio (cerca de 500, segundo organizações indígenas). É uma afirmação bastante terrível, para dizer o mínimo, mas é importante perguntar, para que todos possam compreender um debate que diz respeito não só aos brasileiros, mas à população global: para ser considerado genocídio ou extermínio é necessário um número elevado de mortes?

R. Do ponto de vista da tipificação do crime, do ponto de vista técnico, é irrelevante o número de pessoas que morreram. Nem na lei brasileira nem na lei internacional existe um número mínimo de pessoas para configurar genocídio. Para a tipificação do crime, a essência é a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo. Uma intenção que não necessariamente vai resultar em mortes. É claro que, do ponto de vista ético, o número de mortes é totalmente relevante. Mas, como disse antes, mesmo a tentativa de genocídio é punível.

P. Uma outra pergunta bem óbvia, mas importante. No caso de uma ação de genocídio no Tribunal Penal Internacional, quem é responsabilizado é a pessoa, não o governo, certo? Poderia, por exemplo, no caso brasileiro, serem responsabilizados o presidente Jair Bolsonaro e os generais, assim como outros funcionários com poder de decisão?

R. Sim. O TPI é uma grande conquista da humanidade também porque ele permite responsabilizar pessoas por crime contra a humanidade. Alguém chega ao poder em determinado Estado, mas há limites do que pode fazer ao exercer seu poder contra o próprio povo. Existem gestos que agora têm nome e são tipificados, e o mais grave deles é o genocídio. Há possibilidade de processar chefes de Estado, generais, grandes empresários, grileiros, funcionários públicos com cargos de responsabilidade, pessoas que participaram do crime.

P. Você defende que esse debate precisa ser feito e que precisa ser feito com serenidade, porque é importante para o Brasil. Por que é importante?

R. Só o fato de debater já é importante. Pode levar anos para o TPI decidir se abre a investigação ou não. Mas a construção de denúncias bem fundamentadas tecnicamente é um processo no qual todos ganham. O Brasil ganha, e as instituições brasileiras ganham.

P. Por quê?

R. Processos que são movidos em busca da justiça, para responsabilizar pessoas que atentam contra a vida de populações vulneráveis ou contra grupos específicos, como os indígenas, são processos que fazem emergir a verdade. O processo vai dando voz às vítimas, oportunizando que sejam escutadas nas mais diversas instâncias. A construção, organização e sistematização dessas provas vão despertando a consciência das pessoas. No Brasil, o mais importante é mostrar que o que está acontecendo vai muito além de um debate vulgar sobre questões da maior gravidade, vai muito além da suposta incompetência do Governo federal na resposta à covid-19. Um processo faz com que a verdade apareça na voz das vítimas ou de seus familiares. Vai mostrando que não é só uma forma infeliz de se manifestar, não é só ignorância, não é só incompetência. Existe uma intencionalidade. No caso de uma ação por genocídio ou por outro crime contra a humanidade, como o extermínio, o caminho é mais importante do que o destino.

P. Por que então uma reação tão forte à declaração do ministro Gilmar Mendes, mesmo entre pessoas que se opõem ao Governo Bolsonaro?

R. Acredito que a reação à fala de Gilmar Mendes tem duas causas. Uma delas é de que o presidente estaria supostamente mais calmo. Em função da prisão do (Fabricio) Queiroz, ele modificou suas estratégias de ataque às instituições. Neste momento, em que a tensão supostamente está diminuindo, um ministro do STF usa uma expressão referente ao pior tipo de crime que pode existir. E utiliza uma expressão que tem transcendência internacional imediata, porque o mundo inteiro sabe o que é um genocídio. Fica parecendo então que é um gesto que gera tensão num momento em que supostamente as tensões estariam sendo aliviadas. E eu digo supostamente porque, neste momento de pandemia, temos acompanhado o Diário Oficial todos os dias. Quando a gente vê atos como os vetos ao plano emergencial para os indígenas, a gente vê que a tensão não está baixando de forma alguma. O segundo elemento é a dificuldade de identificar essa sistematicidade no ataque às tentativas de controle da pandemia. No dia a dia, esses elementos vão sendo interpretados como vulgaridade, leviandade, incompetência. Mas esse fio do tempo, com ações concretas, este que demonstra o ataque sistemático à saúde pública, fica menos visível. Acredito que muitas pessoas, com a melhor das intenções, dizem que não vai levar a nada discutir a tipificação como crimes contra a humanidade porque é uma questão política, porque seria um caso para o sistema de controle dos direitos humanos, onde o Estado pode ser responsabilizado. Eu não concordo com isso. Acredito que existem pessoas agindo de uma forma sistemática contra a saúde pública e a vida dos brasileiros. Eu teria muita dificuldade de dizer que relacionar a morte de mais de 80.000 pessoas como crime contra a humanidade seja banalizar a palavra genocídio. E não apenas pelo número de pessoas, mas principalmente, é importante repetir, porque essas mortes seriam evitáveis.

P. Você afirmaria que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é um genocida?

R. Eu afirmo que é preciso investigar a acusação de genocídio com relação ao presidente do Brasil. Se queremos dar densidade técnica a esse debate, não podemos condenar antes do julgamento. Devemos denunciar e esperar a decisão. Tanto que, no jornalismo, quando alguém é acusado de um crime, vocês se referem a ele como suspeito. Acho que esse é um valor a se preservar. Acredito que o presidente do Brasil é suspeito de crimes contra a humanidade, entre eles o genocídio. E o caminho pelo qual formulamos essa acusação é um caminho importante para a sociedade brasileira, porque é mais um indicativo da gravidade do que está acontecendo e que algumas pessoas estão encarando de uma forma bastante irresponsável. Permitir que esses comportamentos existam e se repitam é muito grave. Nós precisamos discutir com a tranquilidade e com a seriedade que assuntos desse tipo exigem. E faz parte disso não prejulgar. Não se referir a alguém que ainda não foi condenado como se já o tivesse sido. Mas não tenho nenhum problema em dizer que diversas autoridades brasileiras, entre elas o presidente da República, me parecem suspeitas de crimes contra a humanidade e precisam ser investigadas.

Publicada em EL PAÍS, em 22.07.2020