quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ministro da Saúde alemão testa positivo para covid-19

Ministério informa que Jens Spahn tem sintomas de resfriado e entrou em quarentena após receber o resultado. Primeiro ministro alemão a contrair o vírus, ele participou de uma reunião do gabinete de Merkel mais cedo.

Jens Spahn, ministro da Saúde alemão

O ministro da Saúde da Alemanha, Jens Spahn, testou positivo para o novo coronavírus, anunciou sua pasta nesta quarta-feira (21/10). Segundo um porta-voz do ministério alemão, o titular entrou imediatamente em quarentena em sua residência após receber o resultado.

Spahn, de 40 anos, uma das figuras mais célebres na luta contra a covid-19 na Alemanha, apresentou apenas sintomas semelhantes aos de um resfriado, afirmou o porta-voz, acrescentando que todas as pessoas com quem ele teve contato nos últimos dias estão sendo informadas.

O titular da Saúde havia participado nesta mesma quarta-feira de uma reunião entre ministros da chanceler federal Angela Merkel, mas, segundo o ministério, o teste positivo de Spahn não significa que todo o gabinete deverá entrar em quarentena. Merkel também estava presente na reunião.

O porta-voz observou que o encontro cumpriu todas as precauções de distanciamento social e higiene para garantir que a quarentena fosse desnecessária em um caso como este. Fotos mostram Spahn usando máscara durante a reunião.

Spahn é o primeiro ministro de Merkel a testar positivo para a covid-19, mas não foi o único a entrar em isolamento. Além dele, atualmente o ministro do Trabalho, Hubertus Heil, e o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, estão em quarentena após terem tido contato com infectados. Nesta quarta-feira, Steinmeier testou negativo para o coronavírus pela segunda vez, mas deve permanecer isolado até 29 de outubro.

Merkel também ficou em quarentena no início da pandemia, por precaução, após ter tido contato com um médico infectado, mas acabou posteriormente testando negativo para a covid-19. O ministro do Exterior, Heiko Maas, também chegou a ficar isolado depois de um de seus seguranças ter contraído o vírus.

A Alemanha enfrenta um aumento de casos do novo coronavírus. Nesta quarta-feira, o Instituto Robert Koch (RKI), agência governamental para controle e prevenção de doenças infecciosas, registrou 7.595 casos de covid-19 em 24 horas. Ao todo, já foram contabilizados 380.762 casos e 9.875 óbitos ligados à doença no país desde o início da pandemia.

De acordo com o RKI, nove cidades e distritos administrativos alemães não são mais capazes de cumprir completamente todas as medidas de proteção a propagação do vírus estipuladas, como a identificação de novos casos e o rastreamento de contatos dos infectado.

Publicado por Deutsch Wlle, em 21.10.2020

Pazuello testa positivo para covid-19

Ministro da Saúde é o 12º integrante do primeiro escalão do governo Bolsonaro a contrair o coronavírus, além do próprio presidente. Ele teve febre e chegou a cancelar participação em evento.

Pazuello teria relatado a auxiliares que estava se sentindo mal na segunda-feira

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, testou positivo para a covid-19, informou o Ministério da Saúde nesta quarta-feira (21/10). Ele passa a ser o 12º integrante do primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro a contrair o coronavírus.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, Pazuello teria relatado a auxiliares que estava se sentindo mal na segunda-feira e chegou a cancelar sua participação em um evento no Palácio do Planalto. No dia seguinte, com febre e suspeita de covid-19, resolveu fazer o teste.

Ele está no cargo desde maio, primeiro como ministro interino e depois efetivo, tendo substituído o médico Nelson Teich, que ficou menos de um mês no posto.

Sem experiência na área de gestão da saúde pública, Pazuello logo se tornou um facilitador das vontades de Bolsonaro no ministério, mesmo quando as ordens se chocavam com o consenso científico. Ele editou protocolos para a expansão do uso da hidroxicloroquina e chegou a tentar esconder os números da pandemia.

Por outro lado, tentou melhorar as relações do ministério com os governadores do país, que estavam em pé de guerra com Bolsonaro por causa das atitudes erráticas do presidente – o mandatário sempre minimizou o vírus e agiu sistematicamente para sabotar a imposição de medidas de distanciamento social no país.

Além de Pazuello, outros 11 dos 23 ministros de Bolsonaro já foram infectados. Entre eles estão Walter Braga Netto (Casa Civil), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Onyx Lorenzoni (Cidadania), Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovações), Milton Ribeiro (Educação) e Bento Albuquerque (Minas e Energia).

Em julho, o próprio presidente também testou positivo para a covid-19, após meses ignorando recomendações médicas sobre evitar aglomerações. Pouco menos de três semanas depois, ele disse ter ficado livre do vírus. Sua esposa, Michelle, e seu filho Flávio Bolsonaro também foram infectados.

Todos os chefes dos três Poderes no Brasil já contraíram o vírus. O primeiro deles foi o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que anunciou estar com covid-19 em março. Mais recentemente, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, informou seu teste positivo, apenas quatro dias após tomar posse, em setembro.

Em seguida, foi a vez de o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, se juntar a essa lista. Maia esteve na posse de Fux, na sede do STF, em Brasília. Na ocasião, usou máscara.

Ele não foi o único convidado a anunciar posteriormente que havia sido contaminado. Dois ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que também estiveram na cerimônia, Luis Felipe Salomão e Antonio Saldanha Palheiro, também testaram positivo.

Publicado por Deutsch Welle, em 21.10.22

Papa Francisco defende união civil homossexual

Pela primeira vez desde que assumiu a liderança da Igreja Católica, pontífice se manifesta a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo. "Gays têm direito a ter família, são filhos de Deus", diz em documentário.


Papa Francisco dá sua bênção durante a oração do meio-dia feita da janela de seu estúdio com vista para a Praça de São Pedro, no Vaticano

"Precisamos de uma lei de união civil. Eles têm o direito de ser cobertos legalmente", afirma Francisco no filme

A união de casais homossexuais recebeu a mais explícita aprovação do papa Francisco, a primeira desde que ele se tornou líder da Igreja Católica, em 2013. O endosso foi divulgado em um documentário que estreou nesta quarta-feira (21/10) no Festival de Cinema de Roma.

Em Francesco, o pontífice pede uma "lei de união civil" que permita que pessoas LGBTs "estejam em uma família".

"Os homossexuais têm direito a ter uma família, são filhos de Deus [...]. Ninguém pode ser expulso de uma família, e a vida dessas pessoas não pode se tornar impossível por esse motivo."

Francisco já havia se pronunciado a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo anteriormente, mas quando servia como arcebispo de Buenos Aires. Na ocasião, ele saudou tais uniões como uma alternativa ao casamento gay, mas se opôs ao casamento em si.

Desde que assumiu a cadeira papal, portanto, esta é a primeira vez em que o pontífice de 83 anos endossa publicamente a união civil homossexual.

"O que temos que fazer é uma lei de união civil. Eles têm o direito de ser cobertos legalmente. Eu defendi isso", afirma o papa no documentário de duas horas, que trata sobre os sete anos de seu pontificado com depoimentos e entrevistas.

A Igreja Católica perseguiu gays durante grande parte de sua história, e ainda vê a homossexualidade como uma "desordem intrínseca". A igreja também ensina que atos homossexuais são pecaminosos, mas sua postura moderna prega que ser gay não é um pecado por si só.

O autor jesuíta James Martin, que atua como consultor do Secretariado de Comunicações do Vaticano, elogiou a medida do papa como um "grande passo à frente".

"Ela está de acordo com sua abordagem pastoral à comunidade LGBT, incluindo católicos LGBT, e envia um forte sinal aos países onde a Igreja se opõe a tais leis", escreveu ele no Twitter.

Um telefonema do papa

O documentário foi dirigido pelo cineasta Evgeny Afineevsky, um cidadão americano nascido na Rússia e de origem judaica. Além do papa, a produção também é estrelada por outros clérigos, bem como um sobrevivente gay de abuso sexual.

Um dos momentos mais emocionantes do longa detalha a interação entre o papa e um homossexual que, junto com seu companheiro, adotou três filhos.

O homem afirmou ter entregado uma carta a Francisco explicando sua situação, dizendo que ele e seu parceiro queriam criar os filhos como católicos, mas não sabiam como seriam recebidos.

Dias depois, o pontífice teria ligado para o homem dizendo que ficou comovido com a carta e pedindo-lhe que apresentasse as crianças à paróquia local, apesar da possível oposição.

"O fio condutor deste filme é mais sobre nós como seres humanos, que estamos criando desastres todos os dias. E ele [o papa] é quem está nos conectando por meio desses fios", disse o diretor do filme em uma entrevista.

Afineevsky, que compareceu à audiência geral do Papa no Vaticano na quarta-feira, ganhou o Prêmio Kineo de Humanidade com Francesco. A premiação é voltada a quem promove questões sociais e humanitárias.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, em 21.10.20

terça-feira, 20 de outubro de 2020

STF dá domiciliar a presos provisórios responsáveis por crianças e portadores de deficiência

Em decisão unânime, ministros da Segunda Turma atenderam habeas corpus coletivo apresentado pela Defensoria Pública da União que pode beneficiar cerca de 31 mil detentos


Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte de São Paulo Foto: Tiago Queiroz / Estadão

Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) atendeu, em julgamento por videoconferência nesta terça-feira, 20, um habeas corpus coletivo apresentado pela Defensoria Pública da União (DPU) para conceder prisão domiciliar a todos os presos provisórios que têm sob sua única responsabilidade a tutela de pessoas com deficiência e crianças menores de 12 anos de idade. Cerca de 31 mil detentos podem ser beneficiados com a determinação, segundo levantamento preliminar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso, foi acompanhado pelos colegas Edson Fachin, Cármen Lucia e Ricardo Lewandowski. Antes da leitura dos pareceres, o subprocurador-geral José Elaeres também se manifestou em nome do Ministério Público Federal (MPF) a favor da concessão do HC.

Em seu voto, Gilmar Mendes registrou que há ‘elementos concretos’ que justificam a conversão da prisão preventiva em domiciliar nos termos solicitados pela Defensoria. O ministro citou o entendimento fixado pelo próprio Supremo em julgamento, em fevereiro do ano passado, que concedeu o benefício a grávidas e mães de crianças de até 12 anos.

“O referido writ restringiu a concessão da ordem à figura materna, analisando as especificidades de gênero no encarceramento feminino e destacando as peculiaridades das mulheres nos estabelecimentos prisionais”, observou Gilmar.

O ministro lembrou ainda uma série de dispositivos de proteção a menores e pessoas com deficiência previstos no ordenamento jurídico do País.

“Entre os integrantes do núcleo familiar das pessoas submetidas a medidas restritivas da liberdade, a Constituição, as normas internacionais e a legislação federal atribuem especial relevância às crianças e às pessoas portadores de deficiência”, afirmou.

Com a decisão, todos os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais serão notificados e devem apresentar ao STF, em até 45 dias, a listagem dos casos de concessão de habeas corpus com base no julgamento de hoje. Isso porque o relaxamento do regime de prisão não é automático, mas deve ser autorizado individualmente pelo juízo responsável.

“O pedido formulado pela DPU está em consonância com a própria solução legal delineada pelo Congresso brasileiro. Por outro lado, vislumbra-se certa resistência por parte de alguns Juízes e Tribunais na aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, o que justifica o interesse no ajuizamento desta ação e a necessidade de concessão da ordem pleiteada”, registrou o relator.

Entre as condições fixadas para a concessão do benefício estão a comprovação, no caso dos homens, de que são os únicos responsáveis pelos dependentes. Se não for pai nem mãe, o preso tem que demonstrar ser ‘imprescindível’ para cuidar da pessoa com deficiência ou da criança, que, nesse caso, deverá ter menos de seis anos.

“A execução desta decisão deve ser realizada de forma diligente, verificando-se as peculiaridades de cada caso, cabendo ao magistrado justificar os casos excepcionais onde as situações de riscos sociais ou do processo exijam a fixação de outras cautelares, inclusive a manutenção da prisão preventiva”, determinou Gilmar.

Na mesma linha do relator, Fachin lembrou a ‘sensibilidade e relevância’ da matéria. “Esta Segunda Turma tem, nesta ocasião, a oportunidade de fazer parte do cumprimento das promessas constitucionais não realizadas e que foram outorgadas em favor das crianças brasileiras e das pessoas com deficiência pelo Constituinte em 1988”, disse.

O habeas corpus coletivo — tipo de ação que julgada — foi ajuizado no Supremo em 2018 pela DPU. No pedido, a Defensoria alegou que crianças, muitas vezes fragilizadas pelo sofrimento do afastamento materno, são ainda mais expostas com a prisão dos responsáveis legais.

Para o defensor federal Gustavo de Almeida Ribeiro, que atuou no caso perante o Supremo Tribunal Federal, a decisão amplia a proteção a menores e pessoas com deficiência.

“Foi uma decisão importante porque nem toda criança é criada pela mãe, por uma série de fatores. Seja por falecimento, abandono, então essas outras crianças merecem o mesmo tratamento àquele que foi dado às crianças que são criadas pela mãe”, afirmou o defensor. Ele destaca que a decisão não é uma ‘concessão automática’ e que foram estabelecidos uma série de condicionamentos. “Mas, pelo menos, (a decisão) pode gerar essa possibilidade de reavaliação da situação”.

Rayssa Motta e Paulo Roberto Netto / O Estado de São Paulo.

Sobre privilégios e tartarugas

Privilégios emperram quaisquer reformas sérias, principalmente a administrativa

Por Ives Gandra da Silva Martins

Aos 85 anos ainda procuro entender a lógica daqueles que exercem o poder, de seus conselheiros e dos ideólogos que os inspiram, assim como do povo que os apoia. Meu país oferece ao observador externo um palco excelente para esse tipo de pesquisa. 

No Brasil denomina-se “servidor público” o cidadão que deve servir ao povo, sendo dois vocábulos prenhes de significação. “Servidor” é quem serve, “público” é quem se volta para o povo.

Ora, na pandemia o povo sofreu terrível redução de sua renda – entidades calculam em 25% do que antes ganhava, na média –, assim como as empresas produtoras de riquezas e tributos reduziram sua atividade em face do confinamento. Além disso, mais de 700 mil fecharam, elevando o desemprego para além de 13% da população trabalhadora. Se analisarmos o subemprego, a cifra dos que estão sem trabalho ou na linha extrema da sobrevivência sobre para cerca de 30%. Esse contingente representa o povo que deveria ser servido pelos servidores.

Em duas decisões, contudo, a Suprema Corte declarou não poder haver redução de subsídios e benesses concedidas aos servidores; e se não houver recursos orçamentários para remunerá-los, que o Executivo encontre formas de atendê-los. No tema da irredutibilidade, a votação foi de 7 a 4 e no “vire-se o Executivo”, 6 a 5.

Ora, no País o custo da “mão de obra” dos servidores é de 13,1% a 13,8% do PIB, conforme se adotem os critérios da OCDE ou de institutos nacionais de aferição. Diga-se de passagem que a média da OCDE para seus membros é de 10,2%, numa demonstração de que no Brasil os funcionários ganham muito mais que os dos países desenvolvidos. Por essa razão Brasília se transformou numa autêntica Versalhes de Luís XVI em pleno século 21.

Pergunto eu: quem serve a quem? Nos três Poderes fala-se em democracia, mas será que a democracia que nós, comuns mortais, desejamos não é aquela em que o povo comande e seja servido, e não aquela em que é transfigurado em “escravo da gleba” dos tempos modernos, para servir aos senhores feudais enquistados nas delícias das cortes brasilienses?

Compreende-se, pois, o motivo de ser a carga tributária brasileira tão alta e, apesar disso, o endividamento crescer assustadoramente, pois o governo toma dinheiro no mercado para pagar despesas correntes. Tal lógica democrática contemporânea eu só queria entender, pois o parágrafo único do artigo 1.° da Constituição estabelece que “todo o poder emana do povo”!

Outro ponto que este velho cidadão não consegue compreender diz respeito à diferença do tratamento dispensado aos “nascituros tartarugais” e aos “nascituros humanos”. Pela Lei nº 9.605/93, destruir ovos de tartarugas é um crime, punido seja por restrição à liberdade ou por penas alternativas. A destruição de seres humanos, todavia, na sua forma embrionária, já foi autorizada pela Suprema Corte, há 13 anos, para pesquisas até hoje sem sucesso, assim como há inúmeros projetos propondo a legalização do homicídio uterino, sobre haver proposta no pretório excelso a permitir a produção de lixo hospitalar humano até três meses após a concepção.

Ora, o artigo 1.°, inciso III, da Lei Maior fala em dignidade humana e o caput do artigo 5.°, na inviolabilidade do direito à vida, assegurada no artigo 2.° do Código Civil, ao dizer que todos os direitos do nascituro estão garantidos desde a concepção. Tal dispositivo vem do Código de 1917. Nunca consegui explicar aos meus alunos que lógica existe em dizer que todos os direitos do nascituro são assegurados desde a concepção, menos um direito de pouca relevância, como é o “direito à vida”. O próprio Tratado de Direitos Humanos do Pacto de São José o assegura, no artigo 4.º.

Gostaria, pois, de entender por que o “nascituro tartarugal” deve ser mais protegido que o “nascituro humano”, quando o caput do artigo 5.° da Constituição federal, que garante a inviolabilidade do direito à vida – que no ser humano começa com o zigoto, ou seja, a fecundação do óvulo por um espermatozoide –, e o artigo 2.° do Código Civil são manipulados de tal forma que as tartarugas e os ursos pandas valham mais que os seres da nossa espécie. Por essa razão já propus a defensores públicos e membros do Ministério Público a criação de uma Curadoria do Nascituro, como existe a Curadoria dos Menores.

Enfim, em tempos de pandemia e aos 85 anos, gostaria de compreender melhor esses privilégios de que não dispõem os cidadãos comuns e os de direitos “tartarugais” superiores aos direitos humanos.

Perguntarão os leitores que relação existe entre os privilégios e as tartarugas, para um artigo escrito para as páginas do Estado, que frequento há pelo menos meio século. É que os privilégios emperram quaisquer reformas sérias, principalmente a administrativa, o que faz que todas elas, objetivando tornar o Estado eficiente, andem, neste país, a passo de tartaruga. Talvez por essa razão os “nascituros tartarugais” sejam mais importantes do que os “nascituros humanos”.

IVES GANDRA MARTINS É PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DE DIREITO DA FECOMERCIO-SP, É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE MACKENZIE E DAS ESCOLAS DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO (ECEME) E SUPERIOR DE GUERRA (ESG).PUBLICADO ORIGINALMENTE POR 'O ESTADO DE SÃO PAULO', EDIÇÃO DE 20.10.2020

O presidente do Supremo pode cassar liminar de outro ministro?

Em respeito aos meus colegas criminalistas, não tratarei aqui sobre a legalidade ou ilegalidade, o acerto ou desacerto da soltura de André Oliveira Macedo, chefe da facção PCC conhecido como André do Rap. Também não ouso sugerir a interpretação correta do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, que trata da reavaliação das prisões preventivas a cada 90 dias. Tudo isso é, na verdade, irrelevante para o que aqui quero dizer.

O resumo da ópera é o seguinte: André do Rap impetrou Habeas Corpus para o Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática, determinou a soltura do preso sob o argumento de que o simples fato de sua prisão não ter sido reavaliada dentro do prazo de 90 dias seria ilegal.

Depois de quatro longos dias de exposição na mídia, a Procuradoria-Geral da República percebeu o tamanho da presepada e disparou a primeira arma que viu à frente: a suspensão de liminar, prevista no artigo 4ª da Lei nº 8.437/1992. Pediu ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, a cassação da liminar do ministro Marco Aurélio.

Fux não hesitou e, de forma praticamente autofágica, censurou seu par. Cassou a liminar e submeteu a controvérsia ao plenário. O pleno do Supremo referendou, por 9 a 1 (vencido sozinho o ministro Marco Aurélio), a decisão do presidente na tarde da última quinta-feira (15/10) de manter a prisão preventiva de André do Rap que, por sua vez, enquanto os ministros trocavam caneladas, já estava a alguns quilômetros depois de onde Judas perdeu as botas.

O curioso é que, apesar da votação expressiva pela manutenção da prisão, alguns dos ministros, como Rosa Weber, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, manifestaram inconformismo com a atitude do presidente de, monocraticamente, cassar a decisão de outro ministro da corte. No entanto, como se estava diante de "situação excepcionalíssima", fizeram vista grossa e a votação seguiu o resultado ontem visto.

A prática do presidente do Supremo Tribunal Federal de cassar decisões de outros ministros da própria corte tem se tornado comum e aceita por boa parte dos juristas e da mídia, principalmente quando o resultado lhes interessa. Na história recente, mais precisamente nos últimos dois anos, isso aconteceu pelo menos três vezes — isso sem falar do que é feito, de forma semelhante, nos tribunais federais das cinco regiões e nos demais tribunais estaduais.

Do caso mais recente para o mais antigo: em janeiro de 2019, o ministro Marco Aurélio havia determinado que a eleição da mesa diretiva do Senado se desse mediante voto aberto. O ministro Toffoli foi acionado e derrubou a decisão, mantendo secreta a votação.

Em dezembro de 2018, o ministro Toffoli cassou a decisão do ministro Marco Aurélio (de novo, ele), que havia determinado, às vésperas do recesso forense, a soltura de todos os presos cumprindo pena após condenação em segunda instância. Houve desgaste extremo internamente na corte e o caso foi amplamente noticiado na mídia dado que afetaria, entre outros, o ex-presidente Lula, custodiado em Curitiba.

Antes, foi o ministro Ricardo Lewandowski a vítima. Depois de permitir ao ex-presidente Lula conceder entrevista da prisão, teve sua decisão cassada pelo ministro Luiz Fux, que estava exercendo provisoriamente a presidência do Supremo na ausência do titular. Ao reassumir a presidência, Toffoli ratificou a decisão de Fux. 

O fundamento invocado pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, enquanto na presidência, para suspender as decisões de seus pares é a suspensão de liminar prevista no artigo 4º da Lei nº 8.437/1992, que prescreve o seguinte:

"Artigo 4º — Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas".

O dispositivo não autoriza, nem de perto, que o presidente do Supremo Tribunal Federal casse decisões de outros ministros. O artigo em questão é aplicável, em primeiro lugar, contra decisões que afetem o "poder público e seus agentes". Ou seja, em decisões proferidas contra a Administração Pública, não contra particulares.

No caso concreto de André do Rap, não houve decisão contra o poder público ou agente mandando fazer ou deixar de fazer algo. A decisão envolvendo diz respeito e atinge um sujeito determinado: o próprio André do Rap. Apesar de tido como chefe de organização criminosa que tem orçamento maior do que muitos municípios do país, André ou o PCC não podem, por óbvio, ser considerados entes da Administração Pública para os efeitos de suspensão de liminar. A questão é unicamente privada, mesmo ciente dos reflexos e danos colaterais de sua soltura na sociedade.

Demais disso, o pedido não serve para a cassação de decisões de membros do mesmo órgão colegiado. Ou seja, o dispositivo permite aos presidentes dos tribunais suspenderem os efeitos de liminares proferidas contra o poder público por juízes de instâncias inferiores, nunca da mesma. As competências do presidente estão dispostas na lei processual e no artigo 13 do Regimento Interno do Supremo Tribunal e, em nenhum desses dois lugares, o presidente tem o poder de censor ou de superministro.

Em resumo, por mais que a decisão de um ministro agrade ou desagrade, não existe hierarquia dentro do Supremo Tribunal Federal (e em nenhum dos outros tribunais do país), o presidente não manda mais que ninguém e não pode cassar decisões de seus pares. Foi exatamente o que consignou o ministro Lewandowski ontem (15/10) em seu voto:

"O presidente do Supremo Tribunal Federal, assim como o seu vice, não são órgãos jurisdicionais hierarquicamente superiores a nenhum dos ministros da Corte. Apenas as funções de ordem estritamente administrativa para a organização dos trabalhos e o funcionamento do Tribunal é que os diferencia dos demais membros da Casa.

Por essa razão, não se pode admitir que, fazendo uso processualmente inadequado do instituto da Suspensão de Liminar, o presidente ou o vice do STF se transformem em órgãos revisores de decisões jurisdicionais proferidas por seus pares, convertendo-se em verdadeiros em superministros.

O perigo de conceder-se uma tal discricionariedade aos dirigentes da Corte, permitindo que atuem em situações por eles próprios consideradas excepcionais, consiste no risco de que passem a cassar decisões de colegas com base em meras idiossincrasias pessoais ou quiçá movidos por algum viés político".

O ministro Fux até parece saber, nas entrelinhas, que não tinha competência para cassar a decisão do colega. Mas justificou a medida dizendo tratar-se de situação excepcionalíssima, envolvendo preso de "comprovada altíssima periculosidade" e grave violação da ordem pública.

Nenhum dos fundamentos invocados pelo presidente é juridicamente sustentável. A lei não prevê suspensão de decisão de outros ministros pelo presidente com fundamento em situação "excepcionalíssima" ou outros superlativos que se queira alegar. Aliás, o que é situação excepcionalíssima? Em quais casos o presidente poderia cassar a decisão? Em situações excepcionais (como as que vemos todos os dias nos tribunais do país) ou apenas nas excepcionalíssimas?

E mais, o caminho processual já está trilhado na regra do jogo. Caberia, na hipótese, o agravo regimental. Só que esse recurso é conduzido pelo mesmo relator, e depende de sua vontade de reconsiderar a decisão ou levar ao colegiado (que seria uma das turmas, e não o pleno. Aliás, hoje em dia tudo chega ao pleno). A Procuradoria-Geral da República sabia disso e quis encurtar o caminho pela via transversa buscando a sorte com o presidente, que lhe seria mais simpático. A PGR lançou a tarrafa e agora mostra o troféu.

Com o devido respeito ao excelentíssimo presidente, situações excepcionalíssimas não são fundamento para transgredir a ordem jurídica e valer-se de um instrumento processual manifestamente incabível para justificar os fins. É evidente que se trata de situação excepcional, mas o ordenamento jurídico existe justamente para garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões.

Não é admissível romper a ordem jurídica com o pretexto de protegê-la. A história recente do país já nos mostrou os efeitos deletérios desse tipo indesejável de voluntarismo. E o Supremo Tribunal Federal, a quem compete a guarda da Constituição, é justamente quem deve dar o peito a protegê-la, não dobrá-la.

Gustavo Ramos da Silva Quint, o autor deste artigo, é advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro-fundador do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP, da Universidade Federal de Santa Catarina. Publicado originalmente, sob o título "O Presidente do Supremo não pode cassar liminares dos outros Ministro, pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em 20.10.1010.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Ignorância como ativo eleitoral

Na ânsia de criticar as medidas de combate à pandemia, bolsonaristas escancaram seu darwinismo social, o que deveria custar votos

Não é somente a corrupção que degrada a política, como querem fazer crer os oportunistas que se travestiram de cruzados anticorrupção para alcançar o poder nas eleições passadas. A política também perde o sentido quando a ignorância é elevada à categoria de ativo eleitoral.

Tome-se como exemplo a declaração de Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, segundo a qual “não temos uma quantidade imensa de moradores de rua com problema de covid” porque “talvez eles sejam mais resistentes que a gente porque convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias, et cetera e tal”.

Seria um erro tratar essa declaração grotesca como simples anedota de campanha eleitoral, como tantas que períodos estranhos como esse costumam produzir. É, ao contrário, fortemente simbólica do pesadelo que o País atravessa, entregue em parte a políticos que deliberadamente tratam os eleitores como néscios e, pasme o leitor, ainda ganham votos com isso. 

Ao classificar os pobres como uma espécie diferente, “mais resistente que a gente” porque vive nas ruas e não toma banho, o candidato Celso Russomanno nada mais fez do que imitar seu padrinho, o presidente Jair Bolsonaro – que não faz muito tempo, também a propósito da pandemia, disse que “o brasileiro tem que ser estudado” porque “ele não pega nada: você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo?, e não acontece nada com ele”.

Na ânsia de criticar as medidas de combate à pandemia, sobretudo o isolamento social, adotadas pelos governos estaduais e prefeituras, os bolsonaristas escancaram seu darwinismo social e fazem o elogio do obscurantismo, o que deveria escandalizar os cidadãos brasileiros e custar votos. Mas não é isso o que acontece: a popularidade de Bolsonaro vem subindo e o candidato Celso Russomanno está liderando as pesquisas.

Esse aparente sucesso da impostura como capital eleitoral pode sugerir que candidatos aumentarão suas chances de vitória se deliberadamente investirem em embustes grosseiros, impressão que tende a multiplicar as candidaturas sustentadas por discursos fraudulentos. Como resultado, a campanha eleitoral, que normalmente já é repleta de promessas grandiloquentes e distorções da realidade, corre o risco de ser conduzida para o terreno da farsa absoluta – em que opiniões absurdas como a do candidato Russomanno, chanceladas pelo presidente Bolsonaro, ganham mais valor que os argumentos embasados em fatos comprovados.

Isso nada tem a ver com política: é, ao contrário, sua completa negação, pois não é possível falar em política sem que haja uma realidade compartilhada por todos, a partir da qual se discutirão as soluções concretas para os problemas da comunidade. 

Quando candidatos favoritos a cargos eletivos e líderes políticos da envergadura de um presidente da República se esforçam para conduzir o debate para o terreno da mais absoluta mistificação, negando a razão e a ciência como se estas fossem prejudiciais ao País, salga-se o terreno comum da política, enquanto germina o campo do charlatanismo autoritário.

Tudo isso no momento em que a pandemia já matou mais de 150 mil brasileiros. Ou seja, não é um capricho qualquer, tampouco um tema que possa ser tratado de forma leviana na campanha: é de vida ou morte que se trata. Se um postulante à prefeitura da maior cidade da América Latina, apoiado por ninguém menos que o presidente da República, “argumenta”, sem nenhuma base na realidade, que moradores de rua devem ser imunes à covid-19 porque não tomam banho e vivem aglomerados, é o caso de levantar as mãos aos céus e agradecer pelo fato de não ser ele o prefeito neste momento.

Mas pode vir a ser, segundo indicam as pesquisas de intenção de voto. E esse desfecho eleitoral, a julgar pelo que se viu até aqui, pode ajudar a aprofundar o empreendimento bolsonarista de aniquilação da inteligência e da capacidade de julgamento, sem as quais não se administra racionalmente um governo nem, muito menos, se constrói uma democracia saudável.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. 15.10.2020

PF encontra dinheiro na cueca de vice-líder do governo Bolsonaro

Auxiliares de Bolsonaro dizem que Chico Rodrigues (DEM-RR) deve deixar o cargo; senador é alvo da Operação Desvid-19 deflagrada nesta quarta-feira, 14, para investigar desvios de recursos públicos destinados ao combate à pandemia de covid-19, oriundos de emendas parlamentares.


Chico Rodrigues. Foto: Pedro França/Agência Senado

O vice-líder do governo no Senado, Chico Rodrigues (DEM-RR), alvo de operação da Polícia Federal nesta quarta-feira, 14, em Boa Vista (RR), escondeu dinheiro na cueca durante a abordagem dos policiais. A investigação, sob sigilo, apura desvios de recursos públicos destinados ao combate à pandemia de covid-19, oriundos de emendas parlamentares. A ordem de busca e apreensão foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso.

Segundo o Estadão apurou com duas fontes que tiveram acesso a informações da investigação, foram encontrados R$ 30 mil dentro da cueca do vice-líder do governo Jair Bolsonaro. Ao todo, os valores descobertos na casa do senador chegariam a R$ 100 mil. A investigação apura indícios de irregularidades em contratações feitas com dinheiro público, que teriam gerado sobrepreço de quase R$ 1 milhão.

No Palácio do Planalto, auxiliares de Bolsonaro ouvidos pelo Estadão, sob reserva, disseram que Rodrigues deve deixar o cargo de vice-líder do governo. O argumento é que seria péssimo para a imagem de Bolsonaro manter o senador nesse posto depois do escândalo. A expectativa é a de que o próprio parlamentar entregue o cargo.

As informações oficiais da PF, dado o sigilo do caso, se limitam a dizer que foram cumpridos sete mandados de busca e apreensão durante a operação, em Boa Vista, que busca a “desarticulação de possível esquema criminoso voltado ao desvio de recursos públicos, oriundos de emendas parlamentares”.

A Controladoria-Geral da União (CGU), que também faz parte da investigação, disse que a operação Desvid-19, realizada em Roraima, apura o “desvio de recursos públicos por meio do direcionamento de licitações”. Ainda segundo a CGU, as contratações suspeitas de irregularidades, realizadas no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde (SESAU/RR), envolveriam aproximadamente R$ 20 milhões que deveriam ser utilizados no combate ao coronavírus.

A operação que alvejou o senador foi realizada no mesmo dia em que Bolsonaro disse que dará uma “voadora no pescoço” de quem se envolver em corrupção. A nova expressão foi usada uma semana depois de o presidente ter afirmado que a Lava Jato acabou porque, segundo ele, não há casos de irregularidades em sua gestão. A promessa também foi feita no momento em que Bolsonaro vem sendo criticado por militantes e por lavajatistas que apontam o enfraquecimento da pauta anticorrupção no governo.

Chico Rodrigues emprega Leo Índio como assessor parlamentar, em seu gabinete no Senado. Primo dos filhos do presidente, Léo Índio é muito próximo do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), conhecido como “zero dois”, e por ter livre trânsito no Palácio do Planalto.

Em nota à imprensa, Rodrigues disse que tem “um passado limpo e uma vida decente” e afirmou nunca ter se envolvido em escândalos. “Acredito na justiça dos homens e na justiça divina. Por este motivo estou tranquilo com o fato ocorrido hoje em minha residência em Boa Vista, capital de Roraima. A Polícia Federal cumpriu sua parte em fazer buscas em uma investigação na qual meu nome foi citado. No entanto, tive meu lar invadido por apenas ter feito meu trabalho como parlamentar, trazendo recursos para o combate ao Covid-19 para a saúde do Estado”, afirmou o senador.

O senador observou, ainda, que ao longo de 30 anos na política conheceu “muita gente mal intencionada”, a fim de macular sua imagem. “Ainda mais em um período eleitoral conturbado como está sendo o pleito em nossa capital”, declarou.

Durante o julgamento do caso do traficante André do Rap, o ministro do Supremo Tribunal Federal STF) Luís Roberto Barroso fez uma menção à operação realizada nesta quarta-feira, 14, pela Polícia Federal. Na ocasião, Barroso afirmou que estava monitorando o cumprimento de mandados de busca e apreensão que envolviam uma autoridade com foro no Supremo, sem revelar o nome. “Desviar dinheiro da saúde em plena pandemia é mais do que corrupção e chega bem próximo do assassinato. Devemos ter em conta que isso não é aceitável. Precisamos continuar no esforço de desnaturalização das coisas erradas no Brasil”, argumentou o ministro.

COM A PALAVRA, O SENADOR

“Acredito na justiça dos homens e na justiça divina. Por este motivo estou tranquilo com o fato ocorrido hoje em minha residência em Boa Vista, capital de Roraima. A Policia Federal cumpriu sua parte em fazer buscas em uma investigação na qual meu nome foi citado. No entanto, tive meu lar invadido por apenas ter feito meu trabalho como parlamentar, trazendo recursos para o combate ao Covid-19 para a saúde do Estado.

Tenho um passado limpo e uma vida decente. Nunca me envolvi em escândalos de nenhum porte. Se houve processos contra minha pessoa no passado, foi provado na justiça que sou inocente. Na vida pública é assim, e ao logo dos meus 30 anos dentro da política conheci muita gente mal intencionada a fim de macular minha imagem. Ainda mais em um período eleitoral conturbado como está sendo o pleito em nossa capital.

Digo a quem me conhece que, fiquem tranquilos. Confio na justiça, vou provar que não tenho, nem tive nada a ver com qualquer ato ilícito. Não sou executivo, portanto, não sou ordenador de despesas, e como legislativo sigo fazendo minha parte trazendo recursos para que Roraima se desenvolva. Que a justiça seja feita e que se houver algum culpado que seja punido nos rigores de lei.

Chico Rodrigues

Senador”

Breno Pires e Jussara Soares/BRASÍLIA. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Sindemia? Covid-19 pode ser mais que uma pandemia

Glossário da crise do coronavírus ganha novo termo. Ele reflete a ideia de que o vírus não atua simplesmente sozinho, mas sim compactuando com outras doenças. E isso demanda uma abordagem diferente.


Corpo é carregado em Lima, no Peru: países mais pobres são especialmente vulneráveis à covid-19

Um artigo publicado no final do mês de setembro no semanário The Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas publicações científicas do mundo, pôs um novo termo no já extenso debate sobre o novo coronavírus. O texto defende que o mundo não enfrenta simplesmente uma pandemia, mas uma "sindemia".

O artigo é assinado pelo editor-chefe da revista, Richard Horton. Ele argumenta que a covid-19 não é uma peste como outra qualquer já vista no passado e que, por isso, merece abordagem diferente. O termo sindemia, por isso, seria mais adequado: o vírus não atua sozinho, mas compactuando com outras doenças. E a desigualdade social tem papel-chave nisso.

"A covid-19 não é uma pandemia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa ser necessária uma abordagem mais diversificada se quisermos proteger a saúde de nossas comunidades", escreve Horton.

O artigo repercutiu em alguns dos principais meios de comunicação internacionais e ganhou eco no mundo científico. A americana Sociedade de Medicina de Catástrofes e Saúde Pública, por exemplo, defendeu, em artigo intitulado "Covid-19 à Covid-20", que a resposta institucional à atual crise seja baseada num "pensamento sindêmico, e não pandêmico".

A palavra "sindemia", portanto, entra aos poucos no glossário do debate sobre a covid-19, ao lado de termos como "lockdown", "imunidade de rebanho" e "achatar a curva", antes praticamente desconhecidos do grande público. Mas o que significa exatamente sindemia?

O que é uma sindemia?
O termo "sindemia" foi cunhado nos anos 1990 pelo antropólogo médico americano Merrill Singer, mais conhecido por suas pesquisas sobre abuso de substâncias, HIV/aids e disparidades sociais na saúde da população.

Singer definiu a sindemia como "um modelo de saúde que se concentra no complexo biossocial" – ou seja, nos fatores sociais e ambientais que promovem e potencializam os efeitos negativos da interação de uma determinada doença.

Em outras palavras, de acordo com a tese de Singer, a abordagem sindêmica olha para a doença de forma mais ampla, explorando as consequências gerais de medidas como lockdowns e o distanciamento social.

E é nessa tecla que Richard Horton bate em seu artigo na Lancet. Ele escreve que, à medida que o mundo se aproxima de 1 milhão de mortes por covid-19, é importante enfrentar o fato de que a atual abordagem é demasiadamente restrita para administrar a crise do novo coronavírus.

Segundo Horton, todas as intervenções se concentraram até agora em cortar linhas de transmissão viral. A "ciência" que tem guiado os governos, afirma ele, é baseada principalmente em modelos de combate a epidemias que enquadram a atual emergência sanitária num conceito de peste que tem séculos de existência.

"Mas a história da covid-19 não é tão simples assim", argumenta o editor da Lancet. "Duas categorias de doenças estão interagindo dentro de populações específicas – a síndrome respiratória aguda severa (Sars-Cov-2) e uma série de doenças não transmissíveis (DNTs). Estas condições estão se agrupando dentro de grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados em nossas sociedades. A agregação dessas doenças em um contexto de disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença separada."

Como combater uma sindemia?
Uma epidemia sindêmica refere-se à ideia de que o vírus não age isoladamente, como o coronavírus como um vilão solitário que simplesmente espalha pneumonia e falência de órgãos entre a população. Ele tem cúmplices, como a obesidade, diabetes, doenças cardíacas e condições sociais, que acabam agravando a situação do infectado.

A questão é que muitos dos "cúmplices" da covid-19 já são uma epidemia isolada por si só em algumas sociedades. A obesidade, por exemplo, é um fator de risco para o desenvolvimento de diabetes e doenças cardíacas. Um artigo recente na revista Obesity Reviews, por exemplo, concluiu que pessoas obesas têm 50% mais chances de morrer de coronavírus.

Em seu artigo, Richard Horton destaca que as sindemias são caracterizadas por interações biológicas e sociais, interações estas que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa ver seu estado de saúde piorar ao contrair uma doença.

No caso da covid-19, argumenta o editor da Lancet, atacar doenças não transmissíveis é um pré-requisito para um combate bem-sucedido à atual crise. "O número total de pessoas que vivem com doenças crônicas está crescendo. Abordar a covid-19 significa abordar a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas, e câncer", diz.

Horton afirma ainda ser especialmente importante prestar maior atenção às doenças não transmissíveis em países mais pobres. Ele cita ainda um artigo na Lancet, também de setembro, em que os especialistas Gene Bukhman e Ana Mocumbi descreveram algo que chamam de DNTLs – adicionando lesões à categoria de "doenças não transmissíveis".

Para o bilhão de pessoas mais pobres do mundo, as DNTLs representam mais de um terço do seu fardo com doenças. O artigo citado por Horton afirma que a disponibilidade de intervenções acessíveis e econômicas durante a próxima década poderia evitar quase 5 milhões de mortes entre as pessoas mais pobres do mundo. E isso sem considerar os riscos reduzidos de morrer por covid-19.

"A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter as profundas disparidades, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente seguras da covid-19", conclui Horton. "A crise econômica que está avançando em nossa direção não será resolvida por uma droga ou uma vacina."

Fonte: Deutsch Welle, em 14.10.2020

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Mentiras e aglomeração marcam volta de Trump à campanha

Internação por covid-19 não muda postura do presidente americano sobre a pandemia que já matou mais de 200 mil nos EUA. Primeiro comício após sua doença tem imprecisões, exageros e mentiras.

Apoiadores de Trump ignoraram regras de distanciamento social e uso de máscara

Ainda mais desafiador do que antes em relação ao coronavírus, o presidente americano e candidato à reeleição, Donald Trump, fez nesta segunda-feira (12/10) seu primeiro comício desde que se declarou livre da covid-19.

O discurso de cerca de uma hora em Sanford, na Flórida, foi acompanhado por milhares de apoiadores de Trump, que se aglomeram diante do palanque sem uso de máscara e o distanciamento social recomendado. 

Apenas uma semanas atrás, Trump estava internado devido à covid. Mas sua mensagem sobre a pandemia que já matou mais de 200 mil americanos e continua a tirar a vida de centenas de outros diariamente segue igual: uma avaliação questionável, baseada em exageros, distorções e mentiras, de que a pandemia é coisa do passado. 

A DW checou algumas das principais declarações de Trump no discurso.

Sobre sua doença:

"Eu passei por isso. Agora - eles dizem - estou imune, e me sinto tão forte que poderia ir ao público e beijar qualquer um. Vou beijar os rapazes e as mulheres bonitas (...) Vou dar em todos vocês um beijo grande e gordo."

A afirmação de Trump de que é imune não pode ser verificada neste momento. Sua equipe de médicos só forneceu informações de forma escassa sobre a doença e praticamente não respondeu a nenhuma pergunta dos jornalistas.

Entretanto, a afirmação de Trump não foi surpresa: já em 8 de outubro, o presidente havia dito em uma entrevista à estação de TV preferida, a Fox News, que ele estava imune. Ele também anunciou isso no Twitter, e a plataforma prontamente anexou o aviso "enganoso" e "possivelmente perigoso" ao seu post.

Pesquisas mostram que a maioria dos pacientes com covid-19 desenvolve anticorpos após uma cura bem-sucedida - mas não todos eles. O Instituto alemão Robert Koch, responsável pela prevenção e controle de doenças, cita dois estudos nos quais não foi possível detectar anticorpos neutralizantes em 41% das pessoas testadas.

Além disso, segundo o instituto, neste momento, ainda não está claro o quão regular, robusto e permanente é esse estado imunológico.

Gérard Krause, epidemiologista do Centro Helmholtz de Pesquisa de Infecções (HZI), disse à DW que a imunidade ainda não foi pesquisada a fundo e que declarações precisas só serão possíveis através de uma série mais longa de estudos.

Há, além disso, casos de reinfecção pelo coronavírus, como o relatado nesta terça-feiraem artigo publicado na revista The Lancet. 

Sobre uma possível vacina:

"Estamos muito à frente no tema vacina, e ela estará disponível em breve. Para ser honesto, há uma coisa política em curso. Eles não querem que seja liberada antes das eleições. Mas temos grandes vacinas que estão prontas: da Johnson & Johnson, Modena, Pfizer - grandes coisas vão acontecer com estas vacinas."

O fato é que não há nenhuma vacina contra o coronavírus disponível no mundo que comprovadamente funcione de acordo com as regras aceitas internacionalmente. As vacinas são geralmente testadas em procedimentos de múltiplos estágios com milhares de voluntários e examinadas quanto a efeitos colaterais.

Várias empresas farmacêuticas relataram recentemente progresso na pesquisa de possíveis drogas, incluindo a Johnson & Johnson, a fabricante americana de medicamentos mencionada por Trump. Entretanto, a empresa teve agora que interromper os testes da potencial vacina porque um paciente adoeceu, e médicos estão investigando o incidente.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 42 projetos de potenciais vacinas estão atualmente em fase de ensaio clínico e 151 candidatos estão em fase de testes pré-clínicos.

A Ministra alemã da Pesquisa, Anja Karliczek, por exemplo, admite que amplos setores da população não serão vacinados até "meados do próximo ano" e que não deveria haver "atalhos" nesse processo.

Trump, além disso, não fornece provas para a afirmação de que as forças políticas querem impedir que uma vacina seja liberada antes das eleições presidenciais de 3 de novembro.

Sobre Joe Biden:

"Sabe, nosso adversário, o 'Sleepy Joe' (Joe Dorminhoco), fez uma aparição em campanha hoje, e praticamente ninguém apareceu."

Trump refere-se nesta declaração ao comício do candidato democrata Joe Biden em Toledo, Ohio, naquele mesmo dia. Foi em um estacionamento onde - a uma distância uns dos outros - cerca de 30 carros estacionados receberam o candidato democrata com buzinaço.

"Praticamente ninguém" é uma declaração exagerada de Trump. Mas diretamente em frente ao estacionamento pelo menos o mesmo número de apoiadores republicanos gritava "Trump, Trump" enquanto a comitiva de Biden passava apressada. O comício de Trump na Flórida teve a presença de milhares de pessoas.

Sobre as pesquisas:

"Estamos indo muito melhor do que em 2016. O entusiasmo é maior, o sentimento é melhor. Se isso for possível, celebraremos uma vitória ainda maior do que há quatro anos. (...) Ganharemos na Flórida de lavada. Vamos ganhar muitos estados. Vamos liderar no Arizona, Nevada, e acho que vamos liderar na Pensilvânia."

Trump está atualmente atrás de Biden nas pesquisas em todo o país. O site FiveThirtyEight calcula a vantagem de Biden, três semanas antes da eleição, com base em várias pesquisas de opinião pública, em dez pontos percentuais atualmente.

Em comparação com o mesmo período de 2016, quando a eleição foi realizada em 8 de novembro, Trump não está melhor, mas pior. O instituto britânico de pesquisa de mercado e opinião Yougov mostrou na época uma vantagem de quatro pontos percentuais para Hillary Clinton sobre Trump.

Somente a noite eleitoral mostrará se a promessa de Trump aos seus apoiadores de ganhar o importante estado da Flórida pode realmente ser realizada. Na Flórida, as pesquisas atualmente apontam Biden à frente com vantagem média de quatro pontos. A situação é semelhante no Arizona (Biden lidera com cerca de três pontos), Nevada (sete pontos) e Pensilvânia (seis pontos). Biden está na liderança em todos os estados mencionados por Trump.

Publicado por Deutsh Welle, em 13.10.2020

Bolsonarismo sem Bolsonaro

A base radical bolsonarista está decepcionada com o presidente Jair Bolsonaro. A gota d’água foi a indicação do desembargador Kassio Marques para a vaga no Supremo Tribunal Federal. 

Assim que o nome do magistrado foi anunciado, as redes sociais bolsonaristas entraram em parafuso, e Bolsonaro chegou a ser chamado de “traidor”. Tudo porque Kassio Marques é considerado “petista” por ter sido nomeado pela presidente Dilma Rousseff em 2011 para o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região.

Para piorar, o senador Renan Calheiros, alvo de 17 inquéritos em curso no Supremo, resolveu dar seu apoio explícito a Bolsonaro, dizendo que o presidente “pode deixar um grande legado para o Brasil que é o desmonte desse Estado policialesco que tomou conta de nosso país” – em referência à Operação Lava Jato. Segundo Renan Calheiros, a nomeação de Kassio Marques para o Supremo, bem como a de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República e a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, faz parte desse “desmonte”.

O próprio Bolsonaro não se fez de rogado e disse: “Acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo”. Os intérpretes benevolentes da glossolalia bolsonarista podem dizer que o presidente só usou uma força de expressão para enfatizar a desnecessidade da Lava Jato ante a lisura de seu governo; já quem não é bobo viu aí um ato falho que trai um desejo.

Para aqueles que elegeram um político que prometia solenemente levar a Lava Jato para o centro do poder em Brasília – e para isso carregou a tiracolo o juiz símbolo da operação, Sérgio Moro – deve ser mesmo uma decepção e tanto.

O fato é que Bolsonaro está se descolando do chamado “bolsonarismo”, o movimento que leva seu nome, mas, como a esta altura já está claro, quase nada tem a ver, em essência, com o ex-deputado do baixo clero.

Para os fanáticos “bolsonaristas”, quase todos os políticos são corruptos, o “establishment”, dominado por “comunistas”, é o grande inimigo do País e a própria atividade política é irremediavelmente criminosa, razão pela qual defendem rupturas institucionais e, no limite, a instalação de uma ditadura. Era um discurso reacionário à procura de quem o declamasse sem qualquer pudor. 

A certa altura, Bolsonaro se ofereceu como o político que empunharia essa bandeira golpista, em nome do saneamento moral na Nação, e acabou por se viabilizar eleitoralmente, sobretudo em face dos muitos desmandos do PT e dos muitos erros cometidos pelos partidos do centro democrático.

Bolsonaro, contudo, nunca foi “bolsonarista”, no sentido dado por seus agora abalados seguidores. Mau militar e parlamentar de baixíssima extração, fez carreira medíocre na defesa de corporações de servidores públicos, sendo muito mais bem-sucedido como cabo eleitoral dos filhos.

Era preciso ser muito ingênuo, mal informado ou vesano para acreditar que alguém com essa folha corrida, sem qualquer serviço prestado ao País, fosse de fato liderar um movimento pelo resgate ético do Brasil. Passados quase dois anos do mandato, Bolsonaro já parece estar muito mais à vontade para rasgar a fantasia de impoluto defensor dos valores morais da Pátria, que nunca lhe caiu bem, e exibir-se como sempre foi, sem tirar nem pôr.

Bolsonaro caiu nos braços do Centrão, grupo de partidos fisiológicos com os quais tem muito mais afinidade do que os sabujos que o chamam de “mito” gostariam de admitir. Em meio a políticos que dedicam tempo e energia pensando exclusivamente na eleição seguinte e em como extrair vantagens do poder, o presidente deve estar se sentindo em casa.

Assim, com as bênçãos do sempiterno Renan Calheiros, governista sob qualquer governo, Jair Bolsonaro pode se entregar de corpo e alma a seu projeto de reeleição e concentrar energias na costura para evitar que sua prole, encalacrada na Justiça, responda por seus atos. 

Tudo isso mostra que, para Bolsonaro, o “bolsonarismo” nunca existiu senão como veículo para seu oportunismo político. Os zelotes desse movimento de araque terão que procurar outro messias para adorar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 13.10.2020

Marco Aurélio mandou soltar quase 80 presos usando o mesmo critério do caso André do Rap

Decisões apontam falta de revisão das prisões preventivas; regra vale desde janeiro, como trecho do pacote anticrime. Fux suspendeu decisão sobre André do Rap, que agora está foragido.

O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu neste ano pelo menos 79 pedidos de soltura com base no trecho do pacote anticrime que trata das prisões preventivas. O entendimento usado foi o mesmo que beneficiou o traficante André Oliveira Macedo, conhecido como André do Rap.

O levantamento exclusivo feito pelo G1 leva em conta apenas decisões publicadas pelo STF, o que exclui processos em segredo de justiça. O número de pessoas beneficiadas pode ser ainda maior, já que um mesmo habeas corpus pode beneficiar mais de um preso.

Em todas essas decisões, Marco Aurélio Mello se baseou no artigo 316 do Código de Processo Penal, que foi alterado em janeiro a partir da lei do pacote anticrime. O texto prevê que, quando uma prisão preventiva (definida por precaução) não é reanalisada a cada 90 dias pelo juízo responsável, ela se torna ilegal.

O caso André do Rap

André do Rap é um dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios de São Paulo, e estava preso desde setembro de 2019.

Fux estuda levar ao plenário do STF o caso do traficante André do Rap

Condenado em segunda instância por tráfico internacional de drogas, e sentenciado a penas que totalizam mais de 25 anos de reclusão, foi solto no sábado (12) após a liminar concedida por Marco Aurélio Mello.

O ministro afirmou que não houve a reavaliação da preventiva, ficando demonstrado o “constrangimento ilegal” da prisão, o que, segundo o pacote anticrime, autoriza a soltura.

Na noite de sábado, horas após a libertação de André do Rap, o presidente do STF, Luiz Fux, suspendeu a decisão de Marco Aurélio Mello e determinou uma nova prisão para o traficante. O Ministério Público e a Polícia Federal acreditam, no entanto, que ele tenha fugido em jatinho particular para o Paraguai ou Bolívia.

PF pede a inclusão de André do Rap na lista dos mais procurados da Interpol

Os outros casos

Entre os outros habeas corpus concedidos por Marco Aurélio, estão pedidos de presos e condenados por crimes diversos – a maioria, por tráfico de drogas e organização criminosa.

Há também acusados de homicídio qualificado, tentativa de feminicídio, corrupção ativa e outros crimes de menor potencial, como furto e receptação.

O ministro segue o entendimento de declarar a prisão ilegal e determinar a soltura do detento à risca, qualquer que seja a gravidade do crime. Sempre, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal, que diz:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Marco Aurélio Mello também recebeu, no gabinete, pedidos de habeas corpus para prisões preventivas que tinham sido devidamente reanalisadas. Em pelo menos 68 situações como essa, o ministro deu respaldo à prisão e negou a soltura dos envolvidos.

A previsão de revisão periódica dessas detenções não estava no texto original do pacote anticrime, organizado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro – o trecho foi adicionado pelo Congresso. Moro, na época, chegou a pedir o veto desse trecho, afirmando que juízes não teriam condição de revisar todas as preventivas do país.

Moro defende rever trecho do pacote anticrime que levou à soltura de André do Rap

Segundo os pedidos de habeas corpus que chegam ao STF, isso tem acontecido de fato. Em alguns dos casos julgados por Marco Aurélio Mello, o cronograma de revisões periódicas até foi cumprido em parte, mas a irregularidade nos prazos levou o ministro a decidir pela soltura.

Ministros divergem sobre decisão

Ao reavaliar o caso de André do Rap atendendo a um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente do STF, Luiz Fux, divergiu do entendimento de Marco Aurélio Mello.

O presidente do STF entendeu que a soltura compromete a ordem e a segurança públicas, por se tratar de paciente de comprovada altíssima periculosidade e com dupla condenação em segundo grau por tráfico transnacional de drogas.

Em entrevista à TV Globo, o ministro Marco Aurélio afirmou que atuou como “Supremo e não como cidadão Marco Aurélio” e que não mudaria sua decisão. "Não cabe ao intérprete distinguir e aí potencializar o que não está na norma em termos de exceção, ou seja, a periculosidade do agente”, afirmou.

Marco Aurélio reage à decisão de Fux de mandar prender novamente o traficante André do Rap

Na decisão de sábado, Fux não chegou a analisar em profundidade o artigo do Código de Processo Penal.

Até agora, apenas outros dois ministros divergiram explicitamente do entendimento de Marco Aurélio Mello em processos julgados: Edson Fachin e Gilmar Mendes. Ambos negaram a soltura de presos, mesmo nos casos em que a revisão tinha sido desrespeitada.

O ministro Edson Fachin argumentou que a ausência da reavaliação “não retira do juiz singular o poder-dever de averiguar a presença dos requisitos da prisão preventiva” e não revoga automaticamente a preventiva do preso.

Para o ministro, não faria sentido soltar o preso preventivo se a custódia ainda pode ser renovada pelo juiz da primeira instância. Por isso, Fachin negou o pedido e determinou a imediata revisão da prisão.

O ministro Gilmar Mendes julgou um pedido em que a defesa alegava que “a ausência da revisão conduz, automaticamente, à revogação da prisão”, mas decidiu negar a soltura.

O ministro disse que “preso tem direito à revisão da necessidade da prisão preventiva a cada noventa dias e, na sua ausência, cabe ao Poder Judiciário determinar sua pronta satisfação”.

Segundo Gilmar Mendes, o Legislativo pretendeu “garantir ao preso o direito de ter sua prisão regularmente analisada, a fim de se evitarem prisões processuais alongadas sem qualquer necessidade, impostas a todos os acusados/suspeitos/indiciados, mas em especial aos tecnicamente desassistidos”.

O ministro, no entanto, afirmou entender “que a melhor solução para a falta de revisão da necessidade da prisão preventiva seja mesmo a determinação para a sua realização pelo tribunal”.

Por Rosanne D'Agostino, G1 — Brasília, em 13/10/2020 05h00  Atualizado há 1 hora

Os 'documentos secretos' levados por Joe Biden ao Brasil que desafiam versão de Bolsonaro sobre ditadura

Dilma e Biden sorriem um para o outro, sentados em sala

CRÉDITO,ROBERTO STUCKERT FILHO/PRESIDÊNCIA DA REP. (2015)

Dilma e Biden em foto de 2015; na época, governo americano se aproximou de países latino-americanos com abertura de documentos históricos sobre violações de direitos humanos

Se havia alguma dúvida de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o presidenciável democrata Joe Biden estão em lados políticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na última semana tratou de dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da Amazônia e aventou até sanções econômicas ao país.

O meio ambiente, no entanto, está longe de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro. O ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.

Em 17 de junho de 2014, Biden, o então vice-presidente na gestão Barack Obama, desembarcou em Brasília com um objeto especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão, os relatórios americanos detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.

Até aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte do período em que os militares estiveram no poder.

Biden sabia bem do que se tratava. E sabia também que produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da então presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos porões da ditadura.

É certo que o governo americano poderia ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.

Mas a gestão Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela transparência e pelos direitos humanos.

Mais do que isso, queria melhorar relações diplomáticas com base na troca de informações altamente relevantes para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.

No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico já que a revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) havia espionado conversas da mandatária brasileira abalou o alicerce das relações entre os dois países.

"Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.

Sem ditadura

A própria definição dada por Biden do regime militar é hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no país.

"Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden.

Cinco anos após esse encontro entre Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revelações feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden são peça fundamental.


"A questão de 64 não existem documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?", disse Bolsonaro.

O presidente respondia à imprensa, que questionava uma declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela última vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas mãos dos agentes.

"Comissão da Verdade? Você acredita em Comissão da Verdade?Você quer documento para isso, meu Deus do céu? Documento é quando você casa, quando você se divorcia. Eles têm documento dizendo o contrário?, acrescentou Bolsonaro.

Mas, afinal, o que há nos documentos trazidos por Biden?

                                        reprodução de documento datilografado

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Documento enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro descreve padrão de tortura

"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até confessar."

"Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água."

O texto acima é um trecho de um documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua visita.

A comunicação diplomática informa que 126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao relatado, além de outras formas de sevícias, como o "pau de arara". O informe é feito não só com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cuja identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.

Detalhes

"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes".

Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e não matar".

E dois anos mais tarde, em meados de 2018, quando já estava em pré-campanha presidencial, confrontado com a informação de um relatório da CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de desclassificação de Biden, que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execução sumária de adversários do regime, o atual presidente disse à rádio Super Notícia: "Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece."

Tortura e morte

Um dos outros documentos trazidos por Biden evidencia que a máquina repressiva da ditadura brasileira não só torturou como matou. Nele, o cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de Inteligência Militar de Osasco", em São Paulo.



Reprodução de documento digitalizado

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Telegrama de 1973 descreve a tortura de um policial e de uma amiga dele que, inicialmente, se recusou a colaborar

Em um telegrama de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma célula 'comunista' envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou água."

"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco. Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com uma arma automática."

O termo "costurar" seria referência a um método para desfigurar o cadáver e evitar sua futura identificação.

Assassinatos cometidos pela repressão

O cônsul Chapin relata ainda que "vários agentes de segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado (1972)".

Ao registrar as mortes em São Paulo, Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos de repressão do país, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela Justiça pelos crimes de tortura. Ele é também considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.

"Sou capitão do Exército, conhecia e era amigo do coronel, sou amigo da viúva. (...) o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do Exército, a Medalha do Pacificador, é um herói brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.

Enquanto era deputado, no dia da votação da abertura de processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim".


"Só terroristas"

Outro documento da leva de Biden desafia um argumento central de Bolsonaro sobre o período: o de que o regime militar só prendeu, torturou e matou "terroristas".

Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou liberdades individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro ocupou o plenário da Câmara para dizer: "Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em nosso País".

reprodução de documento datilografado, com palavra 'confidencial' riscada em vermelho

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

O Serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS

Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.

Horth não era um comunista subversivo e afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política".


Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em Ribeirão Preto.

"Mais do que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia dos Estados Unidos, que não tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares", afirmou à BBC News Brasil Pedro Dallari, relator da CNV.

Prova de que o governo americano era, naquele período, abertamente a favor do regime está em uma comunicação do embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer críticas públicas contra o que qualifica como "excessos" cometidos contra os direitos humanos poderia "prejudicar nossas relações gerais".


CNV


Os documentos americanos tornaram-se especialmente importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas Brasileiras de oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas de tortura em dependências militares.

"Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não localizaram nada", afirma Dallari.

Kornbluh concorda que, enquanto muito da documentação brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos americanos são fonte importante para acessar a história brasileira.

"Parte dos militares brasileiros esconderam com sucesso a maioria de seus próprios documentos e mantiveram isso fora do escrutínio público. E conseguiram escapar de qualquer tipo de responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos humanos. E então os documentos americanos fornecem um histórico fidedigno de pelo menos alguns casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas são evidências de crimes que ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da Anistia, de 1979, que impediu a responsabilização criminal de agentes e oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.

Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o Exército brasileiro afirmou que não opinaria sobre o reconhecimento do Estado Brasileiro em relação às torturas, enquanto a Força Aérea e a Marinha disseram não ter provas para reconhecer, tampouco refutar as acusações de violações de direitos humanos nas décadas de 60 e 70.

reprodução de telegrama em inglês, datilografado e com anotações manuscritas

CRÉDITO,ARQUIVO COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

Embaixador escreveu sobre não condenar excessos publicamente

O que o histórico diz sobre relação Brasil-EUA em possível governo Biden?

Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio do governo americano, então sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos governos na região e o papel dos Estados Unidos nelas

"Eu não tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informações. E o primeiro presidente americano a se opor a violações dos direitos humanos na região foi outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao presidente americano entre 1977 e 1981.

Na verdade, desde a administração Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas têm se tornado públicos. Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de política de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da abertura".

Além do Brasil, Argentina e Chile também receberam acesso a documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na região.

E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já que as relações foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014.

"Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar esses documentos que descrevem violações graves dos direitos humanos durante a era militar. Certamente foi uma experiência de aprendizado para o vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.

Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é central para o candidato, especialmente na América Latina.

Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a história da ditadura do Brasil, especialmente de informações dos órgãos de inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer nova abertura se vencer as eleições.

Isso porque documentos secretos americanos sobre outros países só podem se tornar públicos se os governos dessas nações requisitarem acesso aos americanos. E hoje não há interesse no governo brasileiro por esse tipo de informação.

"Naquele momento, a abertura foi importante e ajudou os dois países a se reaproximarem. Agora, em um possível governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, é um contexto completamente diferente. Mas se Bolsonaro cometer violações de direitos humanos, a administração Biden agiria de modo muito mais rápido e negativo do que Trump e pressionaria Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um país travado

Urge que o presidente deixe o papel de candidato antecipado de si mesmo e governe

 Um país travado é um país que não descortina horizontes. O futuro se vislumbra sombrio, pois os impasses do presente não se resolvem. A dívida pública torna-se cada vez mais preocupante, a crise fiscal não consegue ser equacionada, o desemprego é enorme, a pandemia persiste e seus efeitos certamente se prolongarão para o próximo ano. Pessoas estão desorientadas e inseguras, com uma quebra brutal de expectativas. E no meio de situação de tal gravidade se discutem a reeleição de 2022 e uma série de questões menores e secundárias.

A trava econômica é de natureza política. Ela se traduz pela desconfiança e pela insegurança, sem que os investidores nacionais ou estrangeiros se sintam confortáveis para apostar num país paralisado em suas decisões. As reformas não andam, as discussões sobre o auxílio aos mais necessitados não encontram fontes de financiamento, sobretudo porque os privilegiados socialmente não querem abrir mão de seus benefícios, e o presidente não consegue decidir, embora a própria omissão seja uma forma de decisão. Envia-se uma reforma administrativa que não mexe com nenhum dos privilégios atuais do funcionalismo público, nem chega sequer a cogitar, mesmo para o futuro, de mudar os privilégios do Judiciário, do Ministério Público e do Poder Legislativo. Os mais carentes são, mais uma vez, os perdedores.

O presidente optou pela inação, atento aos seus grupos de apoio, agindo nas redes sociais, olhando para a sua reeleição. Segue a pauta conservadora que o elegeu, apesar de dar sinais cada vez mais evidentes de que não cumprirá suas promessas eleitorais de uma reforma liberal da economia. Pouco foi feito nessa área, salvo a reforma da Previdência. De um lado é consequente consigo mesmo, de outro é incoerente. Acontece que estamos no final da primeira metade de seu mandato e há um longo caminho a percorrer, uma senda em que pessoas morrem de covid-19, estão famintas e perdem esperança na procura de um emprego ou de um meio digno de vida. O Brasil não pode esperar 2022.

O que fazer? O instituto da reeleição foi um erro histórico. O governante assume suas funções pensando no horizonte eleitoral, quando deveria preocupar-se unicamente com o governamental. Sua função consiste em governar, e não em se reeleger. A reeleição, quando muito, deveria ser somente uma consequência, e não um projeto exercido cotidianamente. Quando das últimas eleições, o candidato Bolsonaro acertadamente se voltou contra o instituto da reeleição, ciente dos prejuízos que isso causa à Nação. Ao assumir o poder, mudou de posição. O mais sensato seria voltar à sua opinião anterior!

Se não mais pretende fazê-lo, haveria talvez uma possibilidade intermediária. O presidente interditaria o debate sobre as eleições de 2022, declarando que essa questão só se colocará, por exemplo, em março de 2022, assumindo uma atitude de governante. Sua justificativa seria evidente: os problemas do País precisam ser enfrentados, e com medidas concretas que contrariariam muitos interesses encastelados na atual estrutura de poder. Decidir significa contrariar, pois os não contemplados sempre manifestarão seu descontentamento. O norte deve ser o bem coletivo, o Brasil acima de todos. Se isso vai ou não favorecer a eventual pretensão reeleitoral do presidente, só o tempo dirá. Quanto antes decidir, melhor para o País e também para a sua imagem. O que não se deve, em todo caso, admitir é que o Brasil siga definhando, problemas se acumulando sem solução.

Se para isso for necessário uma reforma ministerial, então que afaste os ruídos internos e a belicosidade contra inimigos reais ou imaginários na cena nacional e estrangeira, e o faça em nome dessa renovação. Passaria a mensagem de que realizaria uma grande mudança para governar, preocupado com a crise e assumindo suas próprias responsabilidades. Certamente contaria com o apoio do Poder Legislativo, que tem mostrado convicção reformista, particularmente clara na aprovação da reforma da Previdência. Tem sido, infelizmente, subaproveitado por vaidades e conflitos totalmente desnecessários e secundários. O mesmo se diga do Supremo, que tenderia – com um apaziguamento político e não sendo objeto de ataques – a exercer menor protagonismo político. Poderia até ser menos demandado, tendo como efeito uma menor judicialização da política.

Urge que o presidente tome uma atitude de governante, e não de candidato antecipado de si mesmo. Se o fizer, o clima no País mudará substancialmente. Vivemos politicamente fraturados, radicalizados, para além da imensa divisão que se traduz por uma desigualdade social gritante. O Brasil poderá viver um período de paz política, propício ao diálogo e à busca de equacionar os nossos problemas. O presidente poderia propor uma pauta concreta de medidas a serem adotadas, tendo como eixo o coletivo, e não o atendimento dos distintos interesses particulares, sejam eles sociais, estamentais ou econômicos. 

A paz política propicia o diálogo e, por via de consequência, o entendimento.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente por O Estado de São Paulo, edição de 12.10.2020

Brasil tem 8,4 mil casos de covid-19 em 24 horas

País acumula 150.689 mortes e 5.103.408 casos da doença. Diretor da OMS avalia como positiva a queda nos números do coronavírus no Brasil, mas alerta para possível novo aumento das infecções.

Autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam para a subnotificação dos dados referentes à covid-19

Autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam para a subnotificação dos dados referentes à covid-19

O Brasil registrou oficialmente 8.429 novos casos confirmados e 201 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (12/10) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Os novos números elevam o total de infectados para 5.103.408, enquanto o de óbitos chega a 150.689. Segundo o Ministério da Saúde, 4.495.269 pessoas se recuperaram da doença. O Conass não divulga o número de pessoas recuperadas.

Nos finais de semana e feriados, o registro de dados pelas Secretarias de Saúde tende a ser prejudicado em razão de dificuldades na coleta de informações.

O diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS), Michael Ryan, disse nesta segunda-feira os que os números recentes da covid-19 no Brasil demonstram uma estabilização e queda dos casos da doença, mas alertou que essa tendência ocorre a partir de números bastante altos.

"Dizer que a doença está caindo no Brasil é algo positivo", afirmou. Ryan, porém, observou que "deve haver um alto índice de desconfiança conforme os números caem para garantir que sejam detectadas áreas em que eles possam estar aumentando".

"Nenhum país está fora de perigo ainda", advertiu. Ele disse que o Brasil é um país de proporções continentais e que as autoridades precisam estar atentas. "Como todos nós aprendemos duramente nos últimos meses, o fato de a doença estar em declínio não significa que ela não se agravará novamente. Precisamos continuar vigilantes", alertou.

Diversas autoridades e instituições de saúde brasileiras alertam que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores do que os registrados oficialmente, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 1.038.344 casos e 37.279 mortes. O total de infectados no território paulista supera o dos registrados em praticamente todos os países do mundo, exceto Estados Unidos, Índia e Rússia.

A Bahia é o segundo estado brasileiro com maior número de casos, somando 326.634, seguida de Minas Gerais (323.967), Rio de Janeiro (283.858), Ceará (260.222) e Pará (237.958).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 19.312 óbitos. Em seguida vêm Ceará (9.135), Pernambuco (8.414), Minas Gerais (8.130), Bahia (7.159) e Pará (6.656).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil é de 71,7, uma das mais altas do mundo – só fica abaixo dos índices registrados no Peru (104,11), Bélgica (89,22) e Bolívia (73,18), não levando em conta o país nanico San Marino (124,32).

A cifra brasileira é bem mais alta que a registrada em países vizinhos como Argentina (53,64) e Uruguai (1,45), e também supera a dos EUA (65,64), nação mais atingida pela pandemia no planeta, e a do Reino Unido (64,54), país europeu com maior número de mortes.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 7,7 milhões de casos, e da Índia, com 6,9 milhões. Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, onde morreram mais de 214 mil pessoas.

Ao todo, mais de 37,6 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, enquanto mais de 1 milhão morreram em decorrência da doença, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Publicado por Deutsch Welle, em 12.10.2020