segunda-feira, 13 de julho de 2020

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro com historinhas do Pará.

E as crianças?

O Pará já teve políticos muito engraçados. Um deles, João Botelho, foi interventor, deputado e constituinte. Certo dia encontra um cabo eleitoral:

– Como vai? E a senhora sua esposa? E as crianças?

– Tudo bem, deputado. Minha mulher está ótima. Mas, por enquanto, é só um menino, certo?

– E eu não sei que é um filho só? Mas é um menino que vale por muitos. Então, como vão os meninos?

Por unânimidade

Outra figura folclórica do Pará foi Magalhães Barata, revolucionário em 1924 e 1930, interventor, constituinte em 46, senador e governador. Tinha ele um candidato a prefeito de Santarém. Mas o diretório local do PSD queria outro. Ia perder. Foi lá, conversou, pediu votos. Não teve jeito. Perdeu a eleição no diretório: 15 a 5. Pegou o microfone:

– Meus senhores, pela primeira vez a minoria vai ganhar. Está escolhido o candidato que perdeu.

A plateia bateu palmas. O velho Barata encerrou os trabalhos:

– E, pela primeira vez, a minoria ganhou por unanimidade.

Bolsonaro com Covid-19

Pois é, depois de tanta polêmica o vírus chega ao presidente, que deverá anunciar, depois de alguns dias, que foi curado pela cloroquina. A pandemia agora chegou ao gabinete presidencial. Vem mais polêmica pela frente. É o Brasil.

Aberturas e risco

A pressão política e a situação de aperto que aflige setores produtivos com a virulência da pandemia do Covid-19 têm empurrado governadores e prefeitos de praticamente todas as regiões do país a aliviar o distanciamento social e autorizar a abertura de diversos setores, como a de bares, restaurantes e academias. Mas a realidade tem sido cruel para a sociedade. Repiques e aumento nos volumes de contaminados e mortos ocorrem em diversas praças. As aglomerações se multiplicam, quebrando as taxas razoáveis de isolamento social. O Brasil está na linha de frente das maiores ocorrências. E um clima de festa toma conta das ruas, principalmente à noite.

Porém....

Mas há um contraponto em São Paulo. Vejam.

"As mortes por Covid-19 atingiram o pico entre 2 e 4 de junho e, desde a segunda quinzena do mês passado, estão em queda na cidade de São Paulo", revela um novo estudo do epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP, com base em dados recolhidos pelo Programa de Aprimoramento de Informações da Mortalidade (PRO-AIM), da Secretaria Municipal da Saúde paulistana. A análise é corroborada por um mapeamento ainda não publicado do Imperial College londrino. "A retomada das atividades sociais e econômicas em São Paulo está acontecendo de modo planejado, prudente e responsável, com protocolos de saúde e faseamento baseado em dados e critérios científicos".

Trump e o Corcovado

Até agora não entendi bem o propósito de Donald Trump, em campanha nos EUA, em anunciar que "vai defender isto". Ao lado, uma foto do Cristo no Corcovado, designado por isto, que estaria ameaçado pela extrema esquerda. Desvario. Loucura. Ou desespero.

Livro devastador

Mary Trump, psicóloga, sobrinha de Donald Trump, está lançando um livro devastador nos EUA: "Too Much and Never Enough: How My Family Created the World's Most Dangerous Man" (Demais e Nunca o Suficiente: Como Minha Família Criou o Homem Mais Perigoso do Mundo). Filha de Fred, o irmão mais velho do presidente, diz que o livro é a descrição de um "pesadelo de traumas, relacionamentos destrutivos e uma trágica combinação de negligência e abuso".

A imagem do Brasil

A imagem do Brasil na textura internacional está no fundo do poço. O mal que a visão do presidente Bolsonaro defende sobre o combate à epidemia vai ficar gravada por décadas. Na ONU, as manifestações contra a maneira com que o país está tratando do Covid-19 são intensas. O prejuízo abalará nossa identidade.

Eleições municipais

O adiamento das eleições municipais para 15 e 29 de novembro será benéfico para os candidatos novos, que terão um tempinho maior para expor suas ideias ao eleitorado. Os atuais prefeitos e vereadores já contam com o conhecimento do eleitor, apesar da inexorável inclinação do cidadão de passar uma vassoura nos velhos padrões. Quem mais poderá se beneficiar do momento e das circunstâncias de uma eleição "contaminada" pelo danado do novo coronavírus?

Tendências

Um apontamento sobre tendências haverá de considerar o que este analista batiza de Produto Nacional Bruto da Felicidade, que abriga vetores da saúde, educação, alimentação, mobilidade urbana, dinheiro no bolso, satisfação social. Abaixo de 5, a desgraceira será geral, com alto índice de renovação nos perfis dos alcaides. Acima de 5, teremos uma mescla de gente nova, prefeitos reeleitos e até velhos nomes de volta ao palco. Alguns perfis podem ser beneficiados. As mulheres, por exemplo, ganharam evidência na conjuntura de crise. Falantes e valentes na crítica aos precários serviços públicos apareceram com grande visibilidade. Avoca-se, ainda, condição feminina nas atividades do cotidiano. É a mulher que se apresenta falando na educação dos filhos, no trabalho que se torna mais difícil, na azáfama que ela tenta organizar para diminuir as intempéries enfrentadas pela família. Serão reconhecidas como tal, merecendo o voto de fortes parcelas eleitorais.

O perfil dos movimentos

Um fenômeno que se expande no país, ao sabor dos movimentos que se multiplicam no contexto das Nações, é o da organicidade social. Observo esta tendência, já consolidada na Europa e nos EUA e atravessando novas fronteiras nos países orientais – vejam Hong-Kong –, e que se desenvolve no Brasil de maneira mais consistente desde a Constituição de 1988. A chamada Constituição Cidadã abriu um imenso leque de direitos individuais e sociais que, nos últimos anos, se tornaram movimentos organizados, com personalidade jurídica, capazes de fazer mobilizações de rua. Os políticos estão desacreditados. A descrença na política abriu imenso vácuo entre a sociedade e o universo político. E quem ocupou este vácuo? Exatamente as entidades organizadas, que fundaram novos polos de poder.

Frentes parlamentares

A intermediação social entrou forte nas frentes de pressão. Os corredores do Congresso tornaram-se passarela para o desfile de associações, sindicatos, federações, núcleos, grupos, movimentos de todos os tipos. Pois bem, o voto em novembro terá essa forte alavanca organizativa. Outro vetor de peso eleitoral é o das frentes parlamentares, formadas por bancadas de defesa de círculos de negócios. Os deputados tentarão aumentar suas bases, elegendo vereadores e prefeitos de bancadas organizadas, como a religiosa, do agronegócio, dos servidores públicos, dos militares, do setor de serviços, dos profissionais liberais etc.

Voto distrital

Essas bancadas tendem a se consolidar na moldura organizativa do país, seguindo uma tendência mundial, muito característica dos EUA, onde o voto vai geralmente para o representante dos interesses locais e das regiões. Nesse sentido, podemos deduzir que o voto distrital tende a se fortalecer na paisagem social, onde as classes sociais se subdividem em núcleos específicos. Os deputados querem aumentar suas bases. Candidatos a vereador, com intensa presença em determinados bairros, serão aquinhoados.

Voto racional

A par dessas projeções, podemos divisar uma composição ditada pelo modo como categorias enxergam a política. Os profissionais liberais, por exemplo, tendem a depositar na urna um voto mais racional que emocional. A escolha no Brasil está deixando o coração para subir à cabeça. Significa que estamos subindo degraus na escada da racionalidade. Esse tipo de voto se concentra nas grandes e médias cidades, mais abertas aos meios de comunicação e às críticas aos governantes. No contraponto, enxergamos traços do passado em rincões que pararam no tempo. Aí estarão em disputa nacos de administrações falidas.

"Eu salvo a República"

Anotação de Lauro Jardim em O Globo: "Paulo Guedes continua insistindo: a recuperação da economia brasileira será em V, ou seja, vai cair no fundo do poço e depois, com a mesma velocidade, vai empinar. Repete isso seja diante das câmeras de TV, seja em conversas reservadas com empresários ou jornalistas. Discorda, por exemplo, da avaliação do diretor de Política Monetária do BC, Fabio Kanczuk, para quem a recuperação se dará não em 'V', mas no formato do swoosh, o símbolo da Nike". Guedes, no entanto, segue confiante. Anteontem, disse a um interlocutor:

– Eu salvo a República de duas a três vezes por semana.

O vaivém de ministros

A dificuldade do presidente em encontrar o ministro da Educação deriva das querelas que movem a administração Federal: a ala ideológica, "olavista", quer um perfil alinhado à extrema direita; os evangélicos defendem um perfil de sua ligação; os generais do entorno presidencial – atordoados com a brigalhada sem fim entre os grupos – querem um nome técnico; os políticos gostariam que o ministro saísse da esfera parlamentar. O secretário de Educação do Paraná, Renato Feder, tinha a intenção de topar o desafio. Quando viu o bombardeio sobre ele, "escafedeu-se". O nome – seja qual for – vai enfrentar um corredor polonês, tapas e socos por todos os lados.

Guru ao relento?

Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, enfrenta problemas na Justiça. Tem perdido causas. E mostra-se raivoso ao se sentir ao relento. Colaborou para a vitória de Bolsonaro, juntando núcleos de extrema direita. Processos continuam na Justiça, a partir do mais volumoso, aberto por Caetano Veloso. Sentindo-se abandonado, deve disparar artefatos verbais. A não ser que os amigos façam uma "vaquinha".

Atenção, prefeitada

O ciclo de vida da administração – A maximização de um programa de marketing para prefeitos implica compreender o ciclo de vida da gestão. Como no ciclo de vida de um produto, podemos distinguir seis fases:

1. O lançamento – Os primeiros seis meses são dedicados ao diagnóstico e ao ajustamento da administração. O marketing deverá procurar trabalhar com o campo das dificuldades.

2. O ajuste da identidade – Na segunda metade do primeiro ano começam a aparecer os primeiros sinais de visibilidade e os primeiros programas de ação. Trata-se da fase propícia para ajustar a identidade.

3. Fase de crescimento – No segundo ano, as administrações começam a operar, de modo mais firme, seus programas, com destaque para as prioridades. O conceito da administração deve emergir de modo forte.

4. A fase da consolidação e maturidade – O terceiro ano é o ciclo das realizações, quando se procura consolidar os programas. A administração está madura, a equipe ganha experiência e a identidade da administração ganha destaque no sistema cognitivo do eleitor.

5. Clímax/auge – O último ano é, geralmente, o ciclo mais político, com a administração voltada para programas de inaugurações e demandas políticas. Se até o presente a administração não ganhou um conceito, perdeu a chance. Passará em branco.

6. Declínio – O governante entra no despenhadeiro e joga sua imagem nas profundezas. Quando isso ocorre ao final da gestão, é pouco provável que se reeleja ou faça o sucessor. A exceção é quando o candidato consegue descolar sua imagem da imagem do patrocinador.

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.
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Livro Porandubas Políticas

A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.

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Cloroquina é inútil contra o desgoverno

Desprezando o direito à vida, Bolsonaro busca reeleição sem nunca ter governado
 
Não tentem curar despreparo, ignorância, incompetência ou irresponsabilidade com cloroquina. Não vai dar certo, como já foi comprovado no Brasil e nos Estados Unidos. Consumidor, defensor e propagandista desse medicamento, o presidente Jair Bolsonaro já testou positivo para o novo coronavírus, mas continuou testando negativo para as funções de governo. No meio de uma pandemia, o Brasil completou na última sexta-feira quase dois meses sem titular no Ministério da Saúde. No mesmo dia, um novo ministro da Educação, o quarto em pouco mais de um ano meio, poderia ser anunciado. Na véspera, numa de suas lives, o presidente havia tentado mostrar otimismo. “A economia vai pegar”, disse ele, atribuindo a profecia ao ministro da Economia. “Se a economia não pegar, fica complicado. Mas acredito no Paulo Guedes”, acrescentou. Acredita mesmo?

Confiando no ministro, mas nem tanto, na mesma live o presidente voltou a cobrar a reabertura mais pronta das atividades. “Há sinais de retomada na economia, mas precisamos de governadores e prefeitos que comecem a abrir o comércio, caso contrário as consequências vão ser danosas para todo mundo no Brasil”, disse Bolsonaro. A insistência contrasta com seu desinteresse, exibido até recentemente, pelos assuntos econômicos. Como explicar a mudança? Uma súbita iluminação?

Bolsonaro completou seu primeiro ano de mandato com a economia em pior estado do que em 2018. O produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que em qualquer dos dois anos precedentes.

No começo deste ano o desemprego, superior a 11%, era pouco menor que o de um ano antes e mais que o dobro da média (5,2%) da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. A indústria, depois de alguma retomada em 2017 e 2018, emperrou de novo. Entre novembro de 2019 e março de 2020, a produção industrial de cada mês foi sempre menor que a de um ano antes.

O presidente nunca se mostrou preocupado com esses números – até a pandemia bater no Brasil e começar a discussão sobre como enfrentar os novos problemas. A gravidade da crise sanitária foi reconhecida com algum atraso pelo Executivo federal, mas em seguida houve ações importantes. A política de saúde foi reforçada com mais dinheiro. Além disso, medidas emergenciais foram anunciadas para ajudar empresas pequenas e médias, defender o emprego e socorrer famílias mais vulneráveis. O governo cuidou de realçar os próprios feitos, como se resultassem de iniciativas excepcionais. O autoelogio, porém, foi um tanto exagerado.

As ações anticrise foram positivas, sem dúvida, mas muito parecidas, em aspectos essenciais, com as implantadas em dezenas de países. Dados da OCDE divulgados mostram amplo recurso a medidas fiscais e monetárias de apoio à atividade econômica, ao emprego e às populações mais necessitadas. Com algumas variações, políticas desse tipo foram lançadas em países tão diferentes quanto Noruega, Alemanha, Tanzânia, Costa Rica, Estados Unidos, Indonésia, Argentina, França, Japão, Vietnã, Coreia do Sul, Uganda, República Dominicana, Colômbia, Peru, Paraguai, Malásia, Austrália, Tunísia, México, Índia, Israel e Nova Zelândia.

Com ou sem Bolsonaro teria prevalecido orientação semelhante. Isso em nada reduz o mérito das políticas. Simplesmente as situa numa perspectiva realista. Mas, ainda assim, suas ações têm algumas características particulares.

Em primeiro lugar, é evidente o destaque dado por Bolsonaro a seus objetivos eleitorais. O Brasil teve, nos últimos meses, um presidente em guerra contra os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, tratados como prováveis adversários na eleição presidencial de 2022. A preocupação política explica também, de modo muito claro, o empenho de Bolsonaro em apressar a reabertura do maior número possível de atividades.

Em segundo lugar, é notória a prevalência dos objetivos políticos sobre as preocupações com a segurança dos cidadãos. Mesmo depois do teste positivo, Bolsonaro continuou minimizando o perigo do coronavírus e, mais que isso, menosprezando o direito à vida. Ele age como se alguns milhares de mortos a mais fossem um preço razoável para apressar a retomada econômica e facilitar sua reeleição. Não se distingue, quanto a isso, de seu líder Donald Trump. Em Tulsa, Oklahoma, mais de 200 casos diários de covid-19 foram registrados duas semanas depois do famigerado comício do presidente americano. Eram menos de 100 por dia antes do evento, segundo o governo local.

Qualquer presidente, dirão boas almas, tem o direito de cuidar de seus objetivos políticos, incluída a reeleição. É verdade. Mas no começo do segundo ano de mandato? E sem ter governado? Desde janeiro de 2019 Bolsonaro cuidou de assuntos como posse de armas, atrapalhou a discussão dos grandes temas, como a reforma da Previdência, deu prioridade a interesses pessoais e familiares. Além disso, tem prestigiado manifestações golpistas. Não se pode, enfim, acusá-lo de ter governado mal. De governo ele jamais cuidou.

Rolf Kuntz, o autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 12 de julho de 2020.

Entre dois vazios

O presidente quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?

Na tradição liberal, a atividade política é entendida como a arte de equacionar os problemas da sociedade com o mínimo possível de confronto e violência. Uma arte que pressupõe o uso do poder do Estado, mas de forma comedida, guiada por um sentimento de proporção.

Em seu primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro ignorou solenemente esse ensinamento fundamental da história política ocidental. Orientado, segundo se diz, pelo sábio da Virgínia, ele adotou uma linguagem radical, como se as urnas lhe houvessem conferido autoridade para mudar as próprias bases da sociedade e do sistema político. Como se a maioria eleitoral lhe tivesse outorgado autoridade para fazer o que lhe aprouvesse. Para refazer os fundamentos da economia e liquidar o que denominou “velha política”. Não hesitaria sequer em intervir no campo dos valores e comportamentos, implantando uma nova moralidade.

Por mais críticos que sejamos das estruturas e práticas públicas vigentes em nosso país, salta aos olhos que o bolsonarismo da primeira fase não se deixava pautar por uma perspectiva de comedimento e proporção. Em vez de se acomodar à distribuição de forças e objetivos corporificada na Constituição e nas leis, não disfarçava sua preferência por uma linha de terra arrasada, bem próxima do que o filósofo Bernard Yack denominou o mito da revolução total.

Nem de longe advogo uma opção pelo status quo. Sabemos todos que o Estado brasileiro está desde há muito corroído por interesses patrimonialistas e corporativistas, e pela corrupção sistêmica. Que nossa economia está travada, desprovida de dinamismo, excessivamente fechada e, portanto, incapaz de superar a chamada “armadilha do crescimento médio”. Que nossas desigualdades sociais, em si inaceitáveis, são diariamente reforçadas por um sistema educacional calamitoso. Que nosso sistema político é manifestamente disfuncional. Não há como ignorar ou subestimar a gravidade de tais desafios, mas o imperativo de superá-los terá de ser compatibilizado com o regime democrático, cujos pilares são, como antes argumentei, o comedimento e um sentimento de proporção.

É óbvio que o projeto inicial do bolsonarismo – se assim pode ser denominado – não poderia dar certo. Nenhuma sociedade, e em particular as regidas por regimes democráticos, se deixa dobrar com a facilidade que ele pressuponha. Ele haveria de esbarrar, como esbarrou, na diversidade corporificada nas instituições do Estado e na miríade de grupos e associações existentes no País. Se tais restrições em alguma medida sempre se impõem, mais dramaticamente ainda se impuseram a partir do momento em que o Brasil e o mundo inteiro sofreram o tremendo impacto da covid-19. Incapaz de levar avante o esforço (sem dúvida, louvável) de ajuste nas contas públicas, o governo viu-se forçado a trilhar o caminho inverso, destinando cifras consideráveis ao combate à doença.

Foi assim, forçado pelos equívocos intrínsecos de sua fantasia inicial e pela chegada da pandemia, que o presidente Bolsonaro se viu obrigado a retroceder. Obrigado não só a desistir do combate ao que vagamente denominava “velha política”, mas a trazer uma parte concreta dela – o chamado Centrão – para dentro do Estado. Não só a desistir do combate à corrupção, mas a aliar-se aos que se empenhavam em deter seu ímpeto, levando de roldão os avanços logrados pela Lava Jato. A opção que lhe restou para conservar certa similitude com o personagem fantasioso que inicialmente quis encarnar foi assumir uma conduta irresponsável em relação à pandemia, solapando abertamente a ação dos agentes médicos que lhe fazem frente nos níveis estadual e municipal.

Quanto ao projeto inicial, o passar do tempo não deixa dúvidas. Era um vazio, um oco total. Um buraco negro que só poderia perdurar engolindo toda a luz que em volta dele restasse. Seu fracasso nos arremessou de volta não ao ponto onde nos encontrávamos, uma vez que, bem ou mal, tínhamos uma agenda de reformas razoavelmente bem delineada. Arremessou-nos a um ponto anterior, a uma molécula nefasta na qual o populismo e a irresponsabilidade do presidente se sobrepuseram ao desafio das reformas que cedo ou tarde teremos de enfrentar.

Sabemos todos que, enquanto não dispusermos de um remédio ou de uma vacina eficaz, milhares de vidas continuarão a ser diariamente ceifadas. Que, por ora, o que podemos fazer é observar estritamente o distanciamento e o uso de máscaras. Isolado em suas crenças, na contramão do resto do mundo, Bolsonaro insiste em fazer o oposto: sai à rua sem máscara, aglomera-se com correligionários e chega mesmo a abraçar crianças e bebês. Cria esse espetáculo para propagandear o remédio milagroso que julga ter descoberto. Com que objetivo? Essa pergunta não parece comportar uma resposta racional. Pretende manter-se na crista da onda, de olhos fitos na eleição de 2022? Despreparado para a vida pública e para o cargo que ocupa, quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?

Só Deus sabe.

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 12 de julho de 2020.

A tolerância para o debate aberto

Espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos

No dia 7 de julho, a revista americana Harper's publicou em seu site uma carta assinada por mais de 150 professores, escritores e artistas de renome mundial, na qual apoiam as manifestações por justiça racial e social que se iniciaram nos Estados Unidos e se difundiram pelo mundo inteiro, após a morte de George Floyd em Minneapolis no final de maio. Ao mesmo tempo, os signatários da Carta sobre justiça e debate aberto – entre eles, Francis Fukuyama, Noam Chomsky, Gloria Steinem, J. K. Rowling e Salman Rushdie – alertam para o “clima de intolerância que se instalou por todos os lados”. O texto oferece uma interessante reflexão sobre a chamada “cultura do cancelamento”.

A carta relata perseguições que vêm ocorrendo em nome da justiça social: “Editores são demitidos por publicar materiais controvertidos, livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos, professores são investigados por citarem livros de literatura durante a aula, um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares”. E constata que, “quaisquer que sejam os argumentos relativos a cada caso em particular, o resultado tem sido estreitar constantemente os limites do que pode ser dito sem a ameaça de represália”.

Trata-se, portanto, de um clima oposto ao que se deve esperar de um ambiente no qual se respeitam as liberdades. Por exemplo, a liberdade de expressão significa precisamente que cada um deve dispor de tranquilidade para expressar o que bem entender, sem medo de represália ou punição. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito mais limites à liberdade que aqueles determinados pela lei.

No entanto, os autores da carta afirmam que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais restrita”. A atitude de censurar quem pensa de forma diferente já não está restrita a alguns grupos extremistas. Ela “está se expandindo em nossa cultura”, denunciam.

O clamor mundial por mais justiça racial e social deve levar a mudanças efetivas, como a reforma da polícia, a proibição de práticas discriminatórias ou a adoção de políticas públicas de inclusão. No entanto, essa espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos de serem ditos. “A restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante, prejudica invariavelmente aqueles que não têm poder e torna todos menos capazes da participação democrática”, diz a carta. Diminuir a liberdade sempre tem consequências nefastas para todos, especialmente para os mais vulneráveis e os grupos minoritários.

É um erro, portanto, pensar que se pode promover a justiça reduzindo as liberdades. “Nós recusamos qualquer falsa disjuntiva entre justiça e liberdade, já que uma não pode existir sem a outra”, dizem os signatários da carta. Existem sim ideias perniciosas, que causam danos, reforçam estereótipos ou reproduzem desigualdades. Mas “o caminho para derrotar as más ideias é expor, argumentar e persuadir, e não tentar silenciá-las ou querer excluí-las”.

Um ponto especialmente importante é abordado no final do texto publicado na Harper’s. “Como escritores, precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para a experimentação, o risco e até erros. Devemos preservar a possibilidade de discordar de boa-fé sem terríveis consequências profissionais”. Para existir liberdade, é preciso que seja permitido errar. Certamente, a liberdade inclui a correspondente responsabilidade. Eventuais danos e prejuízos causados devem ser reparados, por meio de um processo judicial isento, com respeito ao contraditório e ao direito de defesa. Nem por isso se deve deixar que alguns poucos, por gritarem mais alto ou serem mais desabridos no uso da violência, levem ao extermínio o que eles tacham de erro. Nesse modo de agir, não há liberdade, tampouco justiça. Há mera barbárie.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
12 de julho de 2020 | 03h00

O valor da Presidência

Jair Bolsonaro parece alheio às duas dimensões essenciais do cargo que ocupa

Como chefe de Estado e de governo, o presidente da República é o eixo central do sistema político brasileiro. Além das atribuições formais das quais está incumbido por força das leis e da Constituição, a ele compete definir os grandes rumos que o País vai tomar durante sua gestão e, com muita habilidade política, coordenar a execução das políticas públicas por seus ministros e dialogar com as diversas forças vivas da Nação – todas, não só as que o elegeram. Sempre, claro, em harmonia com os Poderes Legislativo e Judiciário.

Ainda mais importância tem a figura presidencial durante graves crises como a que ora o País atravessa, a confluência de crises econômica, política e social com a maior emergência sanitária deste século, o que eviscerou mazelas há muito intratadas. Nesta hora grave, aos aspectos formais da liderança se soma o valor intangível do reconhecimento dos cidadãos na plena capacidade de seu presidente para uni-los e liderá-los durante um momento tão difícil.

Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem se mostrado muito distante dessas duas dimensões da Presidência da República. Até aqui, parece alheio à sua responsabilidade de governar o País, voltado que está para questões menores que dizem respeito aos grupos setoriais que lhe dão apoio e à família. Um interino segue à frente do Ministério da Saúde há mais de 50 dias, a despeito do fato de o Brasil ser um dos países mais duramente atingidos pela pandemia de covid-19. Nada mais distante de um esboço de governo do que este fato.

Para o bem dos brasileiros, o Congresso não tem faltado ao País. Nove em cada dez medidas para enfrentamento da pandemia foram de iniciativa do Poder Legislativo, uma das principais delas a aprovação do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 aos milhões de trabalhadores informais que de uma hora para outra viram sua renda sumir. Pela proposta do Poder Executivo, convém lembrar, o auxílio seria de apenas R$ 200, um terço do valor aprovado pelos parlamentares. Também foram do Congresso as iniciativas de autorizar a prática da telemedicina como mais uma medida para facilitar o isolamento social e frear a disseminação do novo coronavírus e a destinação de uma ajuda financeira aos Estados e municípios no valor de R$ 60 bilhões.

Como essas, a esmagadora maioria das medidas de combate à pandemia no Brasil é fruto da iniciativa do Congresso, não do Palácio do Planalto. O governo federal só conseguiu aprovar um projeto de lei de sua iniciativa, o que autorizou medidas de isolamento e dispensa de licitações públicas durante a vigência do estado de calamidade pública. O levantamento foi feito pelo Estado.

O presidente Jair Bolsonaro editou 49 medidas provisórias (MPs) no período da pandemia, mas apenas 3 foram avalizadas pelos parlamentares: a MP 931, que concedeu mais prazo para as empresas realizarem suas assembleias ordinárias; a MP 932, que cortou pela metade a contribuição empresarial para manutenção do Sistema S; e a MP 936, que permitiu redução de jornada e salários no setor privado no curso da pandemia – medida que foi prorrogada.

O vácuo de ação do governo federal é corolário do descaso do presidente Bolsonaro pela gravidade da doença desde a primeira hora. Some-se a isto a sua inapetência para governar, o que se pôde observar já nos primeiros meses de mandato. “Na pandemia, (o desgoverno) ficou mais evidente, mas já não era diferente antes”, disse ao Estado o relator do projeto de ajuda financeira aos entes federativos, deputado Pedro Paulo (DEM-RJ).

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lembrou que até agora o Planalto não enviou à Casa propostas para o Brasil do pós-pandemia, período que será ainda mais desafiador do que a atual fase. Jair Bolsonaro parece fazer uma clara opção por se abster da responsabilidade de governar o Brasil de todos e de lançar as bases do que virá a ser o Brasil do futuro. Ao agir assim, não faz outra coisa a não ser degradar o valor da Presidência.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
12 de julho de 2020 | 03h00

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Brasil tem 70 mil mortes por coronavírus e mais de 1,8 milhão de infectados,

País registrou 1.270 óbitos em 24 horas e 1.804.338 infectados; foram mais de 45 mil novos casos registrados em um dia.

O consórcio de veículos de imprensa divulgou novo levantamento da situação da epidemia de coronavírus no Brasil a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde, consolidados às 20h desta sexta-feira (10).

O país registrou 1.270 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, chegando ao total de 70.524 óbitos. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil na última semana foi de 1.039 por dia, uma variação de 3% em relação aos óbitos registrados em 14 dias. Em casos confirmados foram 45.235 registrados no último dia, com o total de 1.804.338 de brasileiros infectados pelo novo coronavírus.

Ao comparar a curva do Brasil com outros países também duramente afetados pela doença, especialistas apontam que a pandemia no país não chegou a um pico e uma queda na sequência. Em vez desse comportamento, visto em países da Europa como Reino Unido, Itália e França, os dados mostram que as mortes seguem estáveis em um platô, com patamar alto na média de mortes.

Veja a seguir:

Brasil, em 10 de julho
Total de mortes: 70.524
Mortes em 24 horas: 1.270
Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 1.039 por dia (variação em 14 dias: 3%)
Total de casos confirmados: 1.804.338
Casos confirmados em 24 horas: 45.235
(Antes do balanço das 20h, o consórcio divulgou dois boletins parciais, às 8h, com 69.316 mortes e 1.762.263 casos confirmados, e às 13h, com 69.406 e 1.768.970.)

Estados e DF
Veja como o número de novas mortes tem variado nas últimas duas semanas:

Subindo: PR, RS, SC, MG, DF, GO, MS, MT, TO, PI
Em estabilidade: ES, SP, AM, AL, BA, CE, MA, PB, RN, SE, RR, RO
Em queda: RJ, AC, AP, PA, PE

Publicado originalmente por G1  / O Globo

A rede

Os efeitos daninhos da rede de fake news próxima a Bolsonaro comprometem o viço da democracia brasileira ao falsear a opinião pública

Em setembro do ano passado, o Estadão revelou que no terceiro andar do Palácio do Planalto, bem próximo ao gabinete de Jair Bolsonaro, fora montado um núcleo de “assessoramento de comunicação” composto por ex-assessores parlamentares ligados a dois filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e blogueiros que durante a campanha eleitoral de 2018 ganharam a simpatia do “Zero 2” e do “Zero 3” ao criarem perfis e páginas nas redes sociais cujo conteúdo era amplamente favorável ao então candidato à Presidência e bastante hostil a quem quer que fosse considerado “inimigo” da família, fossem pessoas ou instituições. Naquela ocasião, o País tomou conhecimento da existência do “gabinete do ódio”.

Na quarta-feira passada, o Facebook desencadeou uma operação de combate às fake news e ao discurso de ódio que atingiu em cheio essa rede de apoio ao presidente Bolsonaro na internet. Embora não tenha revelado dado novo – tanto a existência como a forma de atuação do “gabinete do ódio” já eram amplamente conhecidas –, a ação da empresa teve o efeito prático de retirar do ar 35 perfis, 14 páginas e 1 grupo no Facebook, além de 38 perfis no Instagram, empresa que, como o WhatsApp, é controlada pela holding Facebook. Com essas contas e páginas fora do ar, que juntas tinham quase 2 milhões de seguidores, o alcance das ofensas e das falsas informações que circulam por meio das redes sociais haverá de cair substancialmente.

O caráter global da operação do Facebook desfaz quaisquer suspeitas em relação ao possível direcionamento da ação contra alvos políticos predeterminados. Redes similares em vários países – pelo menos 11 – foram atingidas, inclusive nos Estados Unidos, onde pessoas que assessoraram o presidente Donald Trump também tiveram suas contas apagadas.

Os auditores do Facebook vincularam diretamente alguns dos perfis e páginas que foram retirados do ar no Brasil a Tércio Arnaud Tomaz, que ficou conhecido como o administrador da página “Bolsonaro Opressor 2.0” durante a campanha eleitoral de 2018 e hoje está lotado no Palácio do Planalto como assessor especial do presidente Jair Bolsonaro. Tomaz é até agora o elo formal mais forte entre o presidente da República e o tal “gabinete do ódio” que seria chefiado nas sombras por seu filho Carlos Bolsonaro.

A atuação direta de assessor do presidente em uma rede espúria de desinformação e destruição de reputações é algo gravíssimo que pode ter sérias repercussões na CPMI das Fake News, no inquérito que apura a atuação do “gabinete do ódio” contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros e no âmbito do processo que corre no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para apurar abuso de poder econômico da chapa liderada por Jair Bolsonaro justamente pelo uso de uma milionária estrutura de rede digital por meio da qual teriam sido disparadas em massa ofensas e fake news em 2018.

Como a atuação de insidiosa rede já se observava antes da vitória de Jair Bolsonaro no pleito, pelo que revela a operação do Facebook, tudo indica que a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto apenas teve o condão de dar um caráter oficial a práticas que já ocorriam há meses no submundo da internet. Basta ver que não cessaram – aí está o inquérito que corre no STF para apurar ações recentes de blogueiros próximos ao presidente – e, pior, recrudesceram.

É de suma importância o mais rápido esclarecimento das formas de atuação e, não menos importante, dos meios de financiamento dessa rede profissional de disseminação de fake news, ameaças e ofensas contra pessoas e instituições pátrias. Os efeitos daninhos dessa rede extrapolam o âmbito pessoal – o que é grave por si só – e comprometem o próprio viço da democracia brasileira ao falsear a opinião pública por meios insidiosos. A desinformação estabelece um debate público sob falsas premissas. Poucas coisas são mais antidemocráticas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
10 de julho de 2020 | 03h00

Desemprego é aqui mesmo

Desocupação no Brasil segue em 2020 bem acima dos padrões globais

Quando a pandemia atingiu o Brasil, a desocupação no País já estava bem acima dos padrões internacionais. No fim do ano a economia poderá estar mais ativa em todo o mundo, mas no Brasil as condições do emprego continuarão, quase certamente, muito piores que na maior parte dos países. No cenário mais pessimista, com uma segunda onda de covid-19, a média do desemprego poderá chegar a 12,6% no quarto trimestre de 2020, nos 37 países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo a nova projeção da entidade. No Brasil, projeções correntes apontam níveis próximos de 15%, talvez superiores, e com enormes taxas de informalidade e de subutilização de mão de obra.

Diante das incertezas criadas pela pandemia, economistas da OCDE desenharam dois cenários econômicos, apresentados como igualmente prováveis neste momento. Num deles, a economia mundial encolherá 6% neste ano. Nesse caso, o desemprego nos países da organização estará em 9,4% no trimestre final de 2020. No outro, o produto bruto global será 7,6% menor que o de 2019 e o ano terminará com a desocupação em 12,6%, quatro pontos acima do pico alcançado na crise financeira de 2008-2009.

Com o surto de covid-19, o desemprego nos países da OCDE subiu de 5,2% em fevereiro para 8,5% em abril e recuou para 8,4% em maio. No Brasil, o fraco desempenho da economia, com crescimento de apenas 1,1% no ano passado, manteve condições de emprego muito ruins até o começo de 2020. Havia 11,6% de trabalhadores desocupados no trimestre móvel terminado em fevereiro. Era mais que o dobro da taxa média registrada nos países da OCDE. Sem o vírus, o quadro econômico e social do País já era especialmente dramático.

O surto de covid-19 bateu forte na economia brasileira a partir da segunda quinzena de março. O impacto foi muito maior em abril. No trimestre de março a maio a desocupação chegou a 12,9%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas a taxa de desocupação mostra apenas uma parte de um quadro muito mais feio que o encontrado no mundo rico e na maior parte das grandes economias emergentes.

Os desempregados eram 12,7 milhões no trimestre móvel terminado em maio, de acordo com os dados oficiais. Mas o número dos desalentados – 5,4 milhões desanimados de buscar emprego – foi um novo recorde. Também recorde foi a população subutilizada (30,4 milhões). Este conjunto inclui, entre outros componentes, o grupo dos trabalhadores ocupados por um número insuficiente de horas. Além disso, pela primeira vez o contingente ocupado correspondeu a 49,5% da população em idade de trabalhar. A porcentagem nunca havia sido tão baixa desde 2012, quando foi iniciada a pesquisa com as características atuais.

Esse último recorde negativo foi mantido, com pouca variação, até o meio do mês passado. Na segunda semana de junho havia 170 milhões de pessoas em idade de trabalhar, mas apenas 83,5 milhões estavam ocupadas. Eram 49% do total, parcela praticamente igual à da primeira semana de maio.

Dados ligeiramente positivos foram anunciados terça-feira pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Em junho, o Indicador Antecedente de Emprego subiu 14 pontos e atingiu o nível de 56,7. Com isso, recuperou em dois meses um terço da perda de março-abril. Mas o resultado é o terceiro mais baixo da série histórica. Ainda em junho, o Indicador Coincidente de Desemprego caiu 2,2 pontos, para 97,4, apontando um quadro melhor que o de maio. Mas esses dados apenas confirmam uma avaliação corrente: o pior ficou para trás. Não apontam, ainda, condições muito melhores que aquelas estimadas até agora. As projeções correntes no Brasil apontam para este ano uma contração econômica em torno de 6,5%.

No Brasil, a taxa média de desemprego ficará em 18,7% neste ano, segundo estimativa recente da FGV. Logo, os números mensais ainda poderão piorar. Bastará que alguns milhões dos atuais desalentados voltem às filas em busca de vagas. Não se conhece, ainda, um plano do governo para reduzir essas filas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo
10 de julho de 2020 | 03h00

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Brasil registra 1.199 mortes por coronavírus em 24h; total de óbitos vai a 69.254

Com 42.907 novos casos, País atinge a marca de 1.759.103 diagnósticos da doença

    Coveiros durante enterro no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.
Coveiros durante enterro no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Foto: Victor Moriyama / NYT

O Brasil registrou nesta quinta-feira 1.199 óbitos pelo novo coronavírus. Foram mais 42.907 casos confirmados de infecção em 24 horas, segundo dados do levantamento realizado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL junto às secretarias estaduais de Saúde. No total, 69.254 brasileiros já perderam a vida por causa da covid-19 e 1.759.103 pessoas foram infectadas.

O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, registrou 145 mortes por covid-19 e 1.995 novos casos da doença no período de 24 horas, segundo boletim divulgado na tarde desta quinta-feira pela secretaria estadual de Saúde. Até agora, 11.115 pessoas morreram em função do coronavírus no Estado do Rio, que soma 128.324 casos. Se fosse um país, o Estado do Rio seria o 20.º do mundo com mais infectados. Mais 998 mortes estão sendo investigadas, sob suspeita de terem sido causadas pela covid-19, e 106.678 pacientes se curaram.

Desde que as regras de isolamento e distanciamento sociais foram flexibilizadas em meio à pandemia, pelo menos 12 capitais brasileiras viram seus índices de infecções aumentarem.

Divulgação de dados 

O balanço de óbitos e casos é resultado da parceria entre jornalistas dos seis meios de comunicação, que uniram forças para coletar junto às secretarias estaduais de Saúde e divulgar os números totais de mortos e contaminados. A iniciativa inédita é uma resposta à decisão do governo Jair Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia.

Mesmo com o recuo do Ministério da Saúde, que voltou a divulgar o consolidado de casos e mortes, o consórcio dos veículos de imprensa continua com o objetivo de informar os brasileiros sobre a evolução da covid-19 no País, cumprindo o papel de dar transparência aos dados públicos.

Redação, O Estado de S.Paulo
09 de julho de 2020 | 20h06

Brasil é epicentro emergente de fome extrema, diz relatório

Pandemia e falta de apoio do governo federal aos mais vulneráveis ameaçam desfazer os avanços do país no combate à miséria. Pobreza, diz ONG Oxfam, cresce de forma acelerada.

Pessoas de máscara diante de mural no Rio de Janeiro
    
Pessoas de máscara diante de mural no Rio de Janeiro

Oxfam crítica ameaça do governo de reduzir benefícios num momento em que a covid-19 ainda está fora de controle

A pandemia de covid-19, aliada à falta de apoio do governo Jair Bolsonaro aos mais vulneráveis, está acelerando o crescimento da pobreza no Brasil e já coloca o país como "epicentro emergente" da fome extrema, segundo um relatório divulgado nesta quinta-feira (09/07) pela ONG Oxfam.

O Brasil aparece com esta classificação, juntamente com Índia e África do Sul, no relatório O vírus da fome: como a covid-19 está aumentando a fome num mundo faminto. Nele, a ONG analisa os impactos da doença em países onde a situação alimentar e nutricional já era extrema antes da pandemia.

A ONG diz que, em 2014, o Brasil estava vencendo a guerra contra a fome, graças a investimentos governamentais em benefício de pequenos produtores rurais e a um pacote de políticas que incluíram a criação de um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), desenvolvido em parceria com a sociedade civil.

Mas a situação da pobreza e fome no Brasil, afirma o relatório, começou a deteriorar-se em 2015 devido "à crise econômica e a quatro anos de austeridade".

"Até 2018, o número de pessoas em situação de fome no Brasil aumentou em 100 mil (para 5,2 milhões) devido a um aumento acentuado nas taxas de pobreza e desemprego e a cortes radicais nos orçamentos para agricultura e proteção social", afirma o documento.

Como fatores para a deterioração da situação da fome no Brasil o relatório aponta os cortes no programa Bolsa Família e, desde 2019, um "desmantelamento gradual" de políticas e instituições destinadas a combater a pobreza, como o Consea.

 "A pandemia da covid-19 somou-se a essa combinação já tóxica de fatores, aumentando rapidamente as taxas de pobreza e fome em todo o país. As medidas de distanciamento social adotadas para conter a propagação do coronavírus e evitar o colapso do sistema público de saúde agravaram a crise econômica", acrescenta o estudo.

A ONG ressalta que milhões dos trabalhadores mais pobres, que têm poucas economias e acesso limitado a benefícios, perderam empregos ou rendimentos devido à pandemia, sem que tenham sido beneficiados por apoios governamentais.

"Até final de junho, o governo federal distribuiu apenas 10% da ajuda financeira prometida aos trabalhadores e empresas, através do Programa de Apoio Emergencial ao Emprego (PESE), com grandes empresas obtendo mais benefícios do governo do que os trabalhadores ou micro e pequenas empresas", aponta a Oxfam.

Da mesma forma, apenas 47,9% dos fundos destinados à ajuda de emergência a pessoas vulneráveis haviam sido distribuídos até o início de julho. Por isso, a ONG entende que "o governo federal está falhando em apoiar as pessoas mais vulneráveis do Brasil no enfrentamento da pandemia".

De acordo com a Oxfam, a implementação do programa de Renda Básica Emergencial regista longos atrasos na resposta aos pedidos de ajuda, recusas injustificadas de ajuda, além da dificuldade imposta pela necessidade de ter um telefone celular, conexão à internet e endereço de e-mail para se qualificar para a assistência.

Por outro lado, continua a organização, apenas três meses após o início do surto do coronavírus do país, e no momento em que ainda está largamente fora de controle, o governo ameaça reduzir o pagamento dos benefícios. 

O Brasil registrou 1.223 mortes por covid-19 e 44.571 casos confirmados da doença nas últimas 24 horas, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Ministério da Saúde divulgados nesta quarta-feira (08/07).

O balanço diário de novos casos fez com que o país superasse a marca de 1,7 milhão de infectados, somando agora 1.713.160 ocorrências. O Brasil acumula ainda o trágico número de 67.964 óbitos causados pelo vírus Sars-Cov-2.

Publicado originalmente pela Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas.

Estudo alerta para danos cerebrais da covid-19

Neurologistas britânicos dizem que novo coronavírus pode deixar graves sequelas no cérebro, gerando delírios, derrames e inflamações. Eles podem aparecer mesmo em casos leves e se manifestar apenas bem mais tarde.

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Diversos estudos já haviam indicado que o novo coronavírus Sars-Cov-2 ataca não apenas o pulmão e as vias respiratórias, mas também outros órgãos do corpo humano, incluindo o coração, os vasos sanguíneos, os nervos, os rins e a pele.

Mas neurologistas britânicos apresentaram esta semana detalhes impressionantes na revista Brain. Segundo eles, o Sars-Cov-2 pode causar graves danos cerebrais mesmo em pessoas com sintomas leves ou já curadas. Muitas vezes esses danos somente são identificados bem mais tarde.

Os médicos da University College London (UCL) analisaram 43 pacientes de covid-19, alguns com sintomas graves. Em 9 casos eles diagnosticaram uma encefalomielite disseminada aguda (EMDA), uma inflamação do sistema nervoso central que afeta a mielina (o revestimento dos neurônios que permite que os impulsos nervosos percorram as células) no cérebro e na medula.

Entre os 43 pacientes analisados, 12 sofriam de inflamação do sistema nervoso central (sendo 9 com EMDA), outros 10 de uma encefalopatia transitória com delírio ou psicose, 8 tiveram AVCs e outros 8 tiveram problemas nos nervos periféricos, em geral com o diagnóstico síndrome de Guillain-Barré. Uma mulher de 59 anos morreu em decorrência de complicações dessa síndrome.

"A maneira como a covid-19 ataca o cérebro ainda não tínhamos visto em outros vírus", disse o médico Michael Zandi, que liderou a pesquisa. Ele disse que os graves danos cerebrais verificados também em pacientes com sintomas leves são inusitados.

Os casos divulgados confirmam o temor de que a covid-19 pode causar problemas de saúde duradouros em alguns pacientes. Vários deles relatam sintomas como cansaço e falta de ar mesmo já curados. Outros falam em dormência, fraqueza e perda de memória.

"Do ponto de vista biológico, a EMDA tem semelhanças com a esclerose múltipla, mas a evolução é mais grave e, em geral, ocorre apenas uma vez. Alguns pacientes ficarão com uma sequela duradoura, outros vão se recuperar bem", disse Zandi.

Segundo ele, é provável que ainda não se saiba quais são todas as doenças cerebrais e sequelas causadas pelo novo coronavírus. Muitos pacientes estão em estado tão grave que não é possível submetê-los a exames.

"Queremos chamar a atenção de médicos do mundo todo para essas complicações do coronavírus", disse Zandi. Ele acrescentou que neurologistas devem ser consultados quando os pacientes apresentam sintomas cognitivos, problemas de memória, cansaço, dormência ou fraqueza.

Os médicos também relataram alguns casos, como o de uma mulher de 47 anos que, depois de uma semana com febre e tosse, de repente passou a ter dor de cabeça e dormência na mão direita.

No hospital ela apresentou sonolência e parou de reagir. Foi necessária uma operação de emergência pare remover uma parte do crânio e assim aliviar a pressão sobre o cérebro inchado.

Uma mulher de 55 anos que já tinha uma doença psíquica começou a se comportar de maneira estranha no dia em que teve alta do hospital. Ela vestia e tirava o casaco repetidamente e começou a ter alucinações, vendo macacos e leões dentro de casa. De volta ao hospital, passou a receber medicamentos antipsicóticos.

Os neurologistas britânicos temem que os casos de covid-19 possam deixar lesões cerebrais em alguns pacientes. Elas poderão vir a ser percebidas só daqui a alguns anos.

Segundo o estudo, a gripe espanhola de 1918 também deixou sequelas tardias no cérebro de até 1 milhão de pessoas.

"Esperamos, é claro, que isso não aconteça, mas quando há uma pandemia tão grande, que afeta uma grande parte da população, temos de permanecer alertas", diz Zandi.

Publicado originalmente pela Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

Bolsonarice contagiosa

Tal qual um vírus, impostura do presidente infecta o País - analisa Vera Magalhães em artigo publicado ontem n'O Estado de São Paulo.

A notícia de que Jair Bolsonaro, depois de tanto desafiar as regras de bom senso em uma pandemia, foi contaminado pelo novo coronavírus deflagrou um outro surto: a ira irracional daqueles que colocam adesivos antifascistas em seus perfis nas redes sociais e passaram a desejar a morte do presidente da República.

A onda não ficou restrita à internet. Chegou a colunas de jornais, travestida de exercício filosófico-linguístico, mas cujo único resultado prático é vitimizar o presidente que até agora destilou sua falta completa de empatia diante da tragédia. Perde a imprensa, perde o País, perdemos todos nós, que nos desumanizamos a cada dia, sem perceber que, aos poucos, nos transformamos naquilo que mais desprezamos.

Bolsonaro não ganhou apenas corações e mentes dos minions que os segue nas portas dos palácios e em posts ensandecidos. O presidente conseguiu comprometer o fígado e o cérebro de parte daqueles que o criticam, num jogo que apenas rebaixa todos ao seu patamar e permite que ele ganhe espaço, porque no lodaçal é imbatível.

Não há nada que justifique que democratas, pessoas e instituições se ponham a “torcer” pela morte desse ou daquele. Muito menos as indignidades de Bolsonaro, uma vez que é justamente contra elas que se conclama a união de esforços daqueles que prezam a vida, a ciência, a educação, a cultura e a civilidade.

Sim, o presidente colhe de volta a absoluta falta de compaixão que cuspiu na cara de um país estarrecido ao longo dos últimos cinco meses. Andou a cavalo, passeou de jet ski, subiu em boleia de caminhão, assoou o nariz e cumprimentou velhinhos em seguida, receitou cloroquina sem ser médico, mandou invadirem hospitais, chegou ao cúmulo de vetar o uso de máscaras e passeou por aí já infectado, possivelmente transmitindo coronavírus para os poucos com os quais diz se importar.


Reprodução

Bolsonaro faz ‘propaganda’ de hidroxicloroquina. Publicou um vídeo mostrando que estava tomando a terceira dose  Foto: Reprodução

Diante de tanta atrocidade, merece morrer? Não. Porque esse pensamento nos prende à barbárie que o presidente, sua família e seu núcleo insano tratam de cultivar desde antes mesmo da campanha, como terreno fértil para permitir a supressão da razão, único ambiente em que alguém tão virulento pode ser eleito presidente da República.

Aqueles que são de fato a antítese de Bolsonaro só têm um caminho: torcer pela medicina, pela ciência e pela sua cura. E para que ele responda diante dos órgãos competentes pelos crimes de responsabilidade que cometeu e diante dos eleitores pelas vezes em que brincou com a vida como um déspota de quinta categoria.

O oposto de Bolsonaro não é a hashtag “força, corona”. Essa é sua consagração, seu triunfo, o caminho para sua perpetuação.

Construir de forma inteligente e lúcida o caminho para que nos curemos de Bolsonaro significa mostrar com dados e evidências o quanto seu comportamento colocou em risco não apenas a si mesmo e seus familiares, mas um país inteiro.

Como sob a falácia de salvar a economia acabou condenando vidas e boicotando qualquer chance de minimizar o estrago econômico.

É acompanhar seu tratamento e repetir aos incautos que não, cloroquina não tem efeito preventivo nem curativo comprovado. E que um presidente da República virar mascate de remédio e impor a um ministério sem ministro há quase dois meses que enfie esse remédio goela abaixo da população é mais um dado que o inabilita para exercer o cargo que exerce.

A morte de Bolsonaro em nada contribuiria para que o Brasil tivesse alta de sua doença crônica e generalizada, em que a política virou uma peste e que, ao se curar de um vírus, você automaticamente cai acamado por outro ainda mais letal. A vacina para isso se chama democracia, já está disponível e permite a imunidade a esse comportamento de rebanho que nos desumaniza.

O STF e o Poder Legislativo

Futuro presidente do Supremo explicou como a corte se relacionará com o Congresso

Dias depois de ter dado uma palestra virtual na qual anunciou as diretrizes que nortearão sua gestão com relação ao Poder Executivo, o ministro Luiz Fux, recém-eleito para a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) e com posse marcada para o dia 10 de setembro, em declarações feitas no Instituto Justiça e Cidadania, informou como a mais alta Corte do País se relacionará com o Congresso Nacional durante os dois anos de sua gestão.

“Nós temos de agir dentro da Constituição. Além de ser um Estado Democrático, o Brasil é um Estado de Direito. No Estado Democrático de Direito, a instância hegemônica encarregada de resolver os problemas políticos é o Poder Legislativo. O Poder Judiciário deve deferência ao Legislativo porque ele tem a palavra mais importante no regime democrático”, disse Fux. Segundo ele, atualmente muitas questões que têm sido submetidas a decisões pelas diferentes instâncias judiciais são basicamente políticas, motivo pelo qual poderiam ser resolvidas por outras esferas de Poder, como a Câmara dos Deputados e o Senado.

O futuro presidente do Supremo está certo. Há muito tempo, todas as vezes em que há um impasse entre o Executivo e o Legislativo a mais alta Corte do País é chamada a arbitrar, o que quase sempre resulta em alguma tensão institucional. E, todas as vezes em que as lideranças partidárias não conseguem resolver elas próprias eventuais impasses políticos, elas também recorrem aos tribunais superiores.

Nos dois casos, o que se tem é não apenas a judicialização da política, mas, igualmente, a politização da Justiça e, por consequência, a tendência cada vez maior de seus integrantes de interpretar as leis e a Constituição de modo extensivo e criativo, o que os leva a exorbitar e a interferir em áreas que não são de sua competência. E, quanto maior é essa tendência, maior é a corrosão da fronteira entre a criação do direito, tarefa precípua do Congresso, e sua aplicação ao caso concreto, atribuição funcional das diferentes instâncias do Judiciário.

Em sua palestra, Fux classificou essa tendência dos juízes como “sanha de protagonismo judicial”, o que acaba resultando na multiplicação de decisões com fundamentos extrajurídicos e o intervencionismo judicial em políticas públicas. Também afirmou que “o Supremo não é um órgão que resolve tudo”. E disse, ainda, que o ativismo da toga prejudica “muitíssimo” a atuação do próprio Supremo Tribunal Federal, especialmente no exercício de sua função mais importante – a de controle da constitucionalidade das leis.

De certo modo, o ministro repetiu o que o consagrado e insuspeito cientista político Luís Werneck Vianna, em artigos publicados no Estado, chama de “pontificado laico” da magistratura, disseminando incerteza jurídica sob a justificativa de garantir a segurança do direito. Segundo o futuro presidente do Supremo, só há certeza jurídica quando a Corte pacifica entendimentos discrepantes a respeito do significado das leis nas instâncias inferiores da Justiça.

Para Fux, a mais alta Corte do País tem o dever de fazer as interpretações fundamentais que as demais instâncias do Poder Judiciário possam seguir, evitando desse modo uma “judicialização excessiva” que, por não dar à iniciativa privada a segurança de que precisa para voltar a investir, poderia retardar a retomada das atividades econômicas assim que a pandemia de covid-19 passar. “O que preconizo é a fixação de um entendimento jurídico capaz de criar previsibilidade, ou seja, o que se pode fazer e o que não se pode fazer. O Supremo tem de garantir a governabilidade do País”, disse ele.

Nas duas palestras que pronunciou, o futuro presidente do Supremo não fez afirmações novas e ousadas. Mas disse o que é oportuno e necessário para distender as tensões institucionais neste momento em que o Brasil vive uma crise de saúde pública, uma crise econômica e uma crise política.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
09 de julho de 2020 | 03h00


A vida, o vírus e a política

Nos tempos atuais, é preciso relembrar: não se deseja a doença de quem quer que seja. Política é arena de vida, não de morte

Não se comemora doença de ninguém, por pior que possa ser seu desempenho público. Não se torce pelo falecimento de ninguém, por mais deletéria que seja sua conduta. São princípios básicos de civilidade e de respeito à dignidade humana, que não precisariam ser lembrados. São pressupostos mínimos da vida em sociedade, sobre os quais não deve haver nenhuma dúvida. No entanto, nos tempos atuais, assustadoramente esquisitos, é preciso relembrar: não se deseja a doença, e muito menos a morte, de quem quer que seja. A política é – e deve ser – arena de vida, e não de morte.

Num Estado Democrático de Direito, a oposição política, por mais ferrenha que possa ser, nunca almeja ou propõe a aniquilação do adversário. Assim, diante da notícia de que o presidente Jair Bolsonaro contraiu a covid-19, não há opção civilizada a não ser desejar o seu pronto restabelecimento, com votos de que tenha os menores e mais leves sintomas possíveis. Tal atitude não é um favor ou privilégio que se concede ao presidente da República, mas a única reação minimamente humana diante da doença de outro ser humano.

A luta política não entra nos domínios da morte, mesmo que o adversário político não tenha escrúpulos de se valer dessa seara. Por exemplo, quando era deputado federal, Jair Bolsonaro transformou o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso em verdadeira obsessão. Algumas das frases de Jair Bolsonaro: “O governo militar deveria matar pelo menos 30 mil, a começar por Fernando Henrique”, “o erro do governo militar foi não fuzilar o Fernando Henrique”, “defendo o fuzilamento do presidente”. Depois, Jair Bolsonaro alegou que “fuzilamento” era força de expressão, o que, longe de servir de desculpa, ratifica uma mentalidade de barbárie e violência.

A mesma atitude pôde ser observada em entrevista de setembro de 2015. Questionado se a então presidente Dilma Rousseff concluiria o segundo mandato, até o final de 2018, Jair Bolsonaro respondeu: “Espero que o mandato dela acabe hoje, infartada ou com câncer, ou de qualquer maneira”. De enorme brutalidade, a declaração é absolutamente despropositada, a revelar profunda incompreensão não apenas do exercício da política, mas de cidadania e humanidade.

Quase cinco anos depois dessa declaração sobre Dilma Rousseff, o País tomou conhecimento de que o menosprezo de Jair Bolsonaro em relação à vida não era circunscrito a adversários políticos. A pandemia do novo coronavírus revelou um presidente da República capaz de submeter a saúde da população a interesses e cálculos políticos, fosse qual fosse o número de vidas que a doença poderia ceifar. Entre estupefata e incrédula, a população ouviu o “e, daí?” de Jair Bolsonaro, em relação às dezenas de milhares de óbitos pela covid-19.

A confirmar sua indiferença com a saúde pública, no mesmo dia em que recebeu o diagnóstico positivo para o novo coronavírus, Jair Bolsonaro difundiu desinformação sobre o uso de hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Contrariando as evidências médicas, o presidente Bolsonaro atribuiu a ausência de sintomas mais graves da doença ao uso do medicamento que, além de não ter eficácia comprovada, apresenta efeitos colaterais graves. Como se vê, o inquilino do Palácio do Planalto é contumaz na falta de limites.

No entanto, por mais que causem repugnância, as atitudes de Jair Bolsonaro em relação à vida, ao vírus e à política não autorizam outra expectativa que o imediato restabelecimento da saúde do presidente da República. Fazer oposição política não inclui adotar as atitudes do adversário. Se o bolsonarismo manifesta, com estonteante clareza, seus antivalores, a reação contrária não pode ser mero sinal invertido. Não se combate autoritarismo com desumanidade. Num país civilizado, não se enfrenta barbárie pregando a barbárie.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
09 de julho de 2020 | 03h00


Ex-mulher de Bolsonaro presta depoimento nesta quinta em investigação contra Carlos

Ana Cristina Siqueira Valle é apontada como possível 'fantasma' no gabinete do vereador entre 2001 e 2008

Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro, prestará depoimento nesta quinta-feira ao Ministério Público do Rio. O interrogatório se dá no âmbito da investigação contra o filho ‘02’ do mandatário, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, que é suspeito de empregar funcionários fantasmas e de praticar ‘rachadinha’ na Câmara Municipal. Ana Cristina, que não é mãe dele, é uma das que teriam sido empregadas sem de fato trabalhar para o gabinete.

 Ana Cristina Valle

A advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do candidato Jair Bolsonaro, em sua casa em Resende, no interior do Estado Foto: Fabio Motta/Estadão

O depoimento será por videoconferência. A ex-mulher do presidente vive em Resende, no Sul fluminense, cidade em que também moram outros parentes dela acusados de participarem do esquema. Ao Estadão, a defesa de Ana Cristina confirmou a existência do depoimento, noticiado pelo jornal O Globo, mas não disse o horário em que será dado.

Hoje assessora na Câmara de Resende, Ana Cristina ficou de 2001 a 2008 lotada no gabinete de Carlos. Mesmo morando em outro município, outros parentes do então deputado Bolsonaro também ganharam empregos na Câmara do Rio, o que passou a ser considerado nepotismo pelo Supremo Tribunal Federal apenas em 2008.

A investigação contra Carlos começou em julho do ano passado, um ano depois do processo contra o filho ‘01’ do presidente, Flávio, ser aberto. Era, até este mês, tocada por um grupo ligado à Procuradoria-Geral de Justiça, por causa do foro especial. Agora, contudo, com base em decisão recente do STF sobre a ausência de foro para vereadores, o caso desceu para a primeira instância do MP.

Na atual etapa do processo, os depoimentos não são obrigatórios. Os outros familiares de Ana Cristina, por exemplo, não falaram aos investigadores.
     
Caio Sartori, O Estado de S.Paulo
09 de julho de 2020 | 11h48

O que se sabe sobre a derrubada de páginas ligadas a bolsonaristas no Facebook

'A atividade (da rede) incluiu a criação de pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicação de conteúdo e gerenciamento de Páginas fingindo ser veículos de notícias', comunicou o Facebook sobre retirada de páginas

O Facebook tirou do ar na tarde desta quarta-feira (08) uma rede de perfis, páginas e grupos ligados a partidários do presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Segundo a empresa, a rede estaria sendo usada para espalhar conteúdo falso.

Entre os operadores da rede estariam servidores dos gabinetes dos filhos do presidente: o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O assessor especial da Presidência da República, Tércio Arnaud, também estaria ligado a algumas das páginas removidas.

Em comunicado, a empresa disse que foram removidos 35 perfis, 14 páginas e um grupo no Facebook. Também foram removidas 38 contas no Instagram, outra rede social pertencente ao grupo. Segundo o Facebook, a rede de páginas usava uma "combinação de contas duplicadas e contas falsas" para burlar as regras de uso da empresa.

"A atividade (da rede) incluiu a criação de pessoas fictícias fingindo ser repórteres, publicação de conteúdo e gerenciamento de páginas fingindo ser veículos de notícias. Os conteúdos publicados eram sobre notícias e eventos locais, incluindo política e eleições, memes políticos, críticas à oposição política, organizações de mídia e jornalistas, e mais recentemente sobre a pandemia do coronavírus", diz o comunicado do Facebook.

A empresa também disse que os responsáveis estavam ligados ao Partido Social Liberal (PSL), antigo partido de Jair Bolsonaro; e também a funcionários dos gabinetes dos deputados estaduais fluminenses Anderson Moraes (PSL) e Alana Passos (PSL), além de Eduardo, Flávio e do presidente da República.

Segundo a rede social americana, as páginas derrubadas eram seguidas por 883 mil pessoas no Facebook, e por 917 mil no Instagram. Cerca de US$ 1,5 mil (R$ 8 mil) foram gastos para promover as páginas que integravam a rede de desinformação.

Em nota, Flávio Bolsonaro disse que os perfis são "livres e independentes", fruto do apoio espontâneo ao governo.

"O governo Bolsonaro foi eleito com forte apoio popular nas ruas e nas redes sociais e, por isso, é possível encontrar milhares de perfis de apoio. Até onde se sabe, todos eles são livres e independentes", disse o senador.

"Pelo relatório do Facebook, é impossível avaliar que tipo de perfil foi banido e se a plataforma ultrapassou ou não os limites da censura", prossegue a nota de Flávio Bolsonaro. "Julgamentos que não permitem o contraditório e a ampla defesa não condizem com a nossa democracia, são armas que podem destruir reputações e vidas".

O PSL também publicou nota. A agremiação disse que as contas suspensas nada tinham a ver com a sigla. Estavam relacionadas a assessores de deputados do partido, sendo de responsabilidade individual dos parlamentares. Os políticos "na prática, já se afastaram do PSL há alguns meses com a intenção de criar um outro partido", disse a legenda.

A BBC News Brasil também procurou a Secretaria de Comunicação da Presidência da República e o gabinete de Eduardo Bolsonaro, e atualizará a reportagem se houver resposta.

Entre os operadores de rede de conteúdo falso estavam servidores dos gabinetes de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP; na foto, à esquerda) e Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ)

Luiza Bandeira é pesquisadora do Atlantic Council, um centro de estudos que mantém parcerias com o Facebook e que foi em parte responsável pela investigação. Ela disse ter encontrado ligações das páginas derrubadas com assessores de Jair Bolsonaro e seus filhos, via Tércio Arnaud, assessor do presidente e, segundo ela, ex-assessor de outro filho dele, Carlos Bolsonaro.

Bandeira afirma também ter encontrado conexões da rede derrubada com os deputados estaduais do PSL no Rio.

"A ligação que eu estabeleci (das páginas) foi com o Jair (Bolsonaro), pelo Tércio Arnaud, que é um assessor dele (...). Tércio foi assessor, antes, do Carlos Bolsonaro. O Eduardo Bolsonaro tem um assessor ligado a rede também, o Paulo Chuchu, de São Bernardo do Campo", diz ela.

"A Alana Passos costumava empregar o (militante) Leonardo Bolsonéas, cuja conta também foi retirada. Ele era assessor dela até pouco tempo. E o Anderson Moraes empregava no gabinete dele a namorada do Leonardo Bolsonéas, a Vanessa Navarro."

Os dados usados na pesquisa são públicos, acrescenta Bandeira. Só o próprio Facebook tem acesso ao código-fonte da rede social.

"A gente trabalha com open source, com dados abertos. Olhamos os registros dessas contas. Então no caso do Tércio Arnaud (...), a página de Instagram chamada 'Bolsonaro News' estava registrada em nome dele. Estava registrada com (a conta de) e-mail do Gmail dele. Então, está claramente vinculada a ele", diz.

Tércio Arnaud se aproximou de Jair Bolsonaro ainda durante a campanha eleitoral de 2018 e trabalha no Palácio do Planalto desde o começo do governo. Hoje, ocupa o cargo de assessor especial da Presidência da República e despacha no 3º Andar do Palácio do Planalto.

"No caso do Bolsonéas, ele é aberto sobre a conta ser dele. Mas, por exemplo, essa rede usava pelo menos duas páginas que diziam que eram jornais e eram, na verdade, sites superpartidários. Uma delas, chamada Jogo Político, foi registrado pelo Leonardo Rodrigues, o Leonardo Bolsonéas", explica Bandeira.

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Em nota, Alana Passos disse que não foi notificada pelo Facebook sobre nenhuma irregularidade ou violação de regras em suas próprias contas.

"Quanto a perfis de pessoas que trabalharam no meu gabinete, não posso responder pelo conteúdo publicado. Nenhum funcionário teve a rede bloqueada por qualquer suposta irregularidade. Estou à disposição para prestar qualquer esclarecimento, pois nunca orientei sobre criação de perfil falso e nunca incentivei a disseminação de discursos de ódio", disse ela.

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O outro deputado estadual do PSL mencionado, Anderson Moraes, argumentou de forma parecida. Seu próprio perfil, verificado, não sofreu bloqueio ou algo do tipo.

"Mas excluíram a conta de uma pessoa que trabalha no gabinete, uma pessoa com perfil real, não é falsa. A remoção da conta foi absurda e arbitrária, porque postava de acordo com ideologia e aquilo que acreditava", disse, em nota.

"O Facebook em nenhum momento apontou o que estava em desacordo com as regras. (Por) Qual motivo excluíram? Falam em disseminação de ódio, mas será que também vão deletar perfis de quem desejou a morte do presidente?", questionou.

Redes derrubadas em outros países

No comunicado da tarde desta quarta, o Facebook também disse ter retirado do ar outras três redes de desinformação em outros países.

Foram removidas, por exemplo, 72 contas e 35 páginas de Facebook na Ucrânia, voltadas para a política local. Outras 13 páginas de Instagram daquele país também foram tiradas do ar. A rede, diz o Facebook, foi particularmente ativa durante as eleições ucranianas de 2019.

Uma das maiores derrubadas de páginas aconteceu na terra natal do Facebook, os Estados Unidos. Foram 54 perfis e 50 páginas de Facebook derrubadas, e mais 4 páginas do Instagram. No caso dos EUA, a rede parecia estar desativada: foi usada principalmente no período de 2015 e 2016. A rede costumava publicar conteúdos sobre o operador político republicano Roger Stone.

Na América Latina, a "limpa" do Facebook encontrou páginas gerenciadas no exterior cujo alvo parecia ser influenciar a política interna de países do subcontinente.

Foram retirados 41 perfis e 77 páginas de Facebook, e 56 contas de Instagram. A rede era gerenciada a partir do Canadá e do Equador, mas tinha como alvo países como El Salvador, Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador e Chile.

Publicado originalmente pela BBC News

Brasil atingirá 2 milhões de casos de coronavírus já na semana que vem, aponta projeção

A marca simbólica deve ser alcançada entre a próxima terça (14) e quarta-feira (15), uma semana depois de o presidente Jair Bolsonaro ter anunciado que contraiu o vírus e menos de um mês depois de o país ter registrado 1 milhão de casos.

Mapa do Brasil

O Brasil vai atingir 2 milhões de casos confirmados de coronavírus já na semana que vem, com as mortes por covid-19 chegando a 80 mil, indica uma projeção feita a pedido da BBC News Brasil pelo Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo (USP).

Caso as previsões se confirmem, o Brasil chegaria ao patamar de 2 milhões de casos apenas 25 dias depois de atingir 1 milhão de casos, ou seja, quase cinco vezes mais rápido do que os 114 dias que demorou para atingir a primeira marca, no último dia 19 de junho.

O primeiro registro do coronavírus no país aconteceu em 26 de fevereiro.

Até a quarta-feira (8), segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil tinha cerca de 1,7 milhão de casos confirmados de covid-19 e 68 mil mortes.

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Esgoto

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Mas Domingos Alves, responsável pelo LIS, alerta que os números podem mudar "drasticamente", com a reabertura do comércio em vários Estados brasileiros.

"Pode ser que essa marca acabe sendo atingida mais rápido do que inicialmente previmos", diz ele à BBC News Brasil.

Combinação de fatores acelerou a expansão dos casos de coronavírus no último mês
Segundo Alves, uma combinação de fatores acelerou a expansão dos casos de coronavírus no último mês.

A decisão pela reabertura da economia a partir de início de junho, apesar de o Brasil não ter atingido o pico, é o principal deles, em sua visão, por "razões eleitoreiras".

"O Brasil é um dos poucos países do mundo que decidiu pelo relaxamento das medidas de isolamento social enquanto o número de casos e óbitos ainda cresce fora do padrão", diz ele.

"O que balizou essa decisão em vários países europeus foi uma queda substancial do número de casos, óbitos e internações, seguindo o padrão da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esses três indicadores têm que cair por três semanas consecutivas para só então um país flexibilizar as regras. E não foi isso que fizemos. Governadores e prefeitos fizeram essa opção por razões eleitoreiras", acrescenta.

Em outro desdobramento, o presidente Jair Bolsonaro ampliou, na segunda-feira (6), os vetos à obrigatoriedade do uso de máscaras. O item de proteção deixa de ser obrigatório em presídios.

Na sexta-feira passada (3), Bolsonaro já havia vetado pontos do projeto de lei aprovado pelo Congresso no início de junho, entre eles a obrigatoriedade do uso de máscara em igrejas, comércios e escolas.

Estabelecimentos também não vão mais precisar instruir frequentadores sobre o uso correto do equipamento de proteção.

Estudos mostram que as máscaras podem reduzir substancialmente a transmissão do novo coronavírus.

Como resultado, a taxa de isolamento social no Brasil caiu para baixo de 40%, patamar semelhante ao registrado antes do fim de março, quando vários Estados brasileiros decretaram algum tipo de confinamento.

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Sem isolamento social

Ou seja, sem a adesão a essas medidas, não há como interromper o contágio, assinala Alves.

"Se olharmos a curva de aceleração do coronavírus no Brasil, ela permanece positiva, diferentemente da maioria dos países do mundo. Isso não quer dizer que nosso confinamento deu totalmente errado. Pelo contrário, salvamos muitas vidas. Mas ele deveria ter sido mais intenso e por mais tempo", assinala.

"Fizemos uma quarentena 'à brasileira'. Nossa estratégia foi de mitigar a doença e não eliminá-la. Ou seja, achatar a curva e não esmagá-la. Não rompemos a cadeia de transmissão com o intuito de deter a pandemia", completa.

Fato é que a taxa de transmissão, ou R0 (número básico de reprodução), sempre permaneceu alta no Brasil. O R0 indica para quantas pessoas, em média, cada infectado transmite o coronavírus. Quando está acima de 1, a doença está fora de controle e a infecção está se acelerando.

Dados da universidade Imperial College de Londres, no Reino Unido, atualizados nesta semana mostram que a taxa de transmissão efetiva da covid-19 no Brasil é de 1,11, a 23ª mais alta dos 56 países analisados com transmissão ativa do vírus.

Segundo o portal Covid-19 Analytics, da PUC-Rio, em nenhum momento desde o início da pandemia, essa taxa de transmissão esteve abaixo de 1 no Brasil, ou seja, a doença nunca foi realmente controlada.

'Na contramão do mundo'

Alves lembra que, diferentemente de outros países do mundo que conseguiram controlar a pandemia de covid-19, o Brasil não adotou estratégias importantes, como testagem em massa, isolamento dos doentes e rastreamento de seus contatos.

Um exemplo é o Vietnã. Com quase 100 milhões de habitantes e renda per capita inferior à um terço da brasileira, o país tomou tais medidas e, até agora, tem apenas 369 casos confirmados de covid-19 e nenhuma morte.

Especialistas também apontam que declarações negacionistas do presidente Jair Bolsonaro contribuíram para dar a falsa impressão aos brasileiros de que não havia motivos para se preocupar com a pandemia.

Um estudo recente de quatro pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de São Paulo mostrou que, em praticamente todas as ocasiões em que Bolsonaro minimizou a pandemia, a taxa de isolamento social no Brasil caiu.

Eles também observaram que mais pessoas morreram, proporcionalmente, nos municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018.

Jair Bolsonaro

Direito de imagem© ISAC NÓBREGA/EDITOR VV/AGÊNCIA BRASIL

Declarações negacionistas do presidente Jair Bolsonaro contribuíram para dar a falsa impressão aos brasileiros de que não havia motivos para se preocupar com a pandemia, dizem especialistas
Alves destaca ainda que os números oficiais estão longe da realidade. "Há muita subnotificação", destaca.

De acordo com suas estimativas, quando o Brasil atingir 2 milhões de casos confirmados, terá, na verdade, 12 milhões de casos, uma margem de erro de 500% em relação às estatísticas oficiais.

Já sobre as mortes, ele calcula que o número oficial representa apenas 60% do total.

Nesse caso, quando o país registrar oficialmente 80 mil óbitos na semana que vem, mais de 130 mil pessoas já terão morrido de covid-19.

Essas estimativas se baseiam na premissa de que não há testes suficientes feitos no Brasil para se determinar o número de infectados.

Assim, Alves e sua equipe usaram dados da Coreia do Sul — país com um dos melhores sistemas de exames de covid-19 do mundo — para calcular a taxa de mortalidade da doença, ou seja, a proporção das pessoas que morrem em relação ao total de doentes.

Assumindo que essa taxa de letalidade da doença seja fixa para todo o mundo — ou seja, que a covid-19 mata a mesma proporção de pessoas em todos os países —, eles calcularam o total de pessoas contaminadas com covid-19 no Brasil.

Alguns ajustes pontuais foram feitos, considerando diferenças nas pirâmides etárias dos dois países e tempo médio entre internação e óbito.

Foi usando essa "engenharia reversa" que eles concluíram que o Brasil pode estar com até seis vezes mais casos do que mostram as estatísticas oficiais.

Alves diz que seu maior temor agora é com a expansão da pandemia no interior do país.

"Meu maior temor agora é o aumento substancial no número de casos de covid-19 no interior do Brasil. Cidades como Manaus (AM) e Fortaleza (CE) parecem ter passado pelo pior da pandemia, mas a situação é crítica no interior desses Estados", diz.

"Os planos de relaxamento nunca tiveram a ver com saúde pública. Ao voltarmos à normalidade, estamos praticando um genocídio", conclui.

Luis Barrucho - @luisbarrucho
Da BBC News Brasil em Londres
Há 2 horas

quarta-feira, 8 de julho de 2020

O presidencialismo envenenado

Trata-se de um jogo de par ou ímpar entre a sociedade e seus Poderes cheios de dedos

Para Maquiavel, o governante encontra sempre razões legítimas para quebrar sua promessa. Para Lampedusa, quem propõe mudar tudo quer que tudo continue como está. Dois clássicos italianos sobre a incorrigível mania da política de agir acima da lei.

Não escrevo para escarnecer do governante que disse ser fácil implantar uma ditadura no País. Por que confia que a Justiça não encontre a má evidência do que disse? Não vejo lógica em tomar formicida para saber se mata. Melhor levar a sério.

Ninguém se torna o que não pode deixar de ser. A suavização combinada de desejos não extingue o princípio legal da não contradição.

Como todo mundo pode ser presidente pelo princípio da universalidade de direitos, basta partir para cima do eleitor. Espírito de aventura, esquema, capacidade, nada importa. Logo alguém da oligarquia presidencialista aplica no eleito a droga da governabilidade, o sapatinho apertado de cinderela oferecido pelo feudalismo brasileiro a todo vitorioso que chega ao poder. Com o despreparado é pior. Após a posse o governante se acha forte e arrebatador. Não é o primeiro, mas underground assim é insuperável.

Barulho ou silêncio são mobilizadores. O presidente se conecta ao sofrimento psicológico da população como o entende. A eleição presidencial anda impulsionando o enfraquecimento das pessoas como cidadãos. Atordoado pela propaganda política falsa e pela longa e real paralisia econômica, o indivíduo confinou sua alma no outro, e ali alienou sua esperança.

O método segregador, base do presidencialismo pragmático, popular e arregimentador, continua a dividir o País. Visa à dispersão de todos no individualismo dos direitos individuais exclusivos. Nascido da virtude das lutas sociais autônomas, passou a ser manipulado pelos governos. Serviu de atalho para alimentar o patinho feio do livre-arbítrio que sustenta a agenda atual. Porte de arma, codinome, não usar máscara, linguagem libidinal agressiva, informante confidencial, invadir hospital, diplomacia recalcada, justiceiros, fake news, abandono da saúde e da educação.

O governo usa o avesso da política de ação afirmativa para acabar com o diálogo, formar guetos para seu usufruto. Tabus estimulados por Poderes institucionais costumam ser o caos, fantasiados de liberdade.

No presidencialismo cada um desenvolve sua maneira de tocar a coisa. Quando o estilo esbarra num problema, procura logo disfarçar para calibrar a mágoa dos insatisfeitos. É regra do sistema secreto que nos governa agir como areia movediça. Espere no céu para saber quantos problemas são necessários para fazer do governante um problema.

Há um Brasil que não merece o Brasil onde se expressa um Estado falso permanente. De um lado, a humanidade da pessoa comum, de outro, a legalidade dos costumes feudais, o poder da oligarquia. A prevalência do segundo sobre o primeiro não deixa a substância da economia, da cultura e da ordem social sarar a cicatriz da repressão contra a modernidade, a criatividade e a paz. É a tutela da verdade, a falta de crédito da vida comum, a deseducação que paralisa a democracia.

O presidencialismo deve ser compreendido como psicologia aplicada ao comportamento da autoridade. O povo encena a peça do teatro do governante inapto, mas cheio de desejo, oportunidade e aliados de ocasião. A irracionalidade que é mandar sem saber amplia o caminho para o desregramento pessoal dentro do sistema. O que permite à minoria unida impor seu estilo e se expressar por meio da manipulação da maioria dispersa.

Tudo isso funcionou até aqui porque o fardo de empurrar o governo até o fim é a calma do povo. Este privilegiado cidadão é a vítima que assume a culpa pelo que as autoridades não fazem e o acusam de ser a origem de tudo. Não é certo acusar alguém de escolha errada se o candidato – indicado por partido e aprovado pela Justiça – atravessou na frente da urna fazendo o V com dois dedos, sorrindo sem pecado visível.

Já por qualquer slogan somos paralisados em crença errada. Continua o País escamoteando seu futuro, contido nos limites de um sujeito. O presidencialismo é a melhor forma de o governante autoritário contaminar quem o fiscaliza. E como diz o Talmud, se dois saem da mesma chaminé, os dois saem sujos.

Pobre cidadão desconectado, sobrevivente vulnerável da má higienização governamental. De repente fica sabendo que há um nível de decepção para a porca torcer o rabo e nele o sofrimento dos outros não conta. Enquanto o poder, inautêntico na falsa etiqueta, espera que cada um não cumpra seu dever. O eleitor pressente a impotência e o convite patológico para tolerar o agressor.

Assim é o presidencialismo. Não tendo nada que o prenda ao dia a dia das pessoas, o sistema político não exige do governante pudor e cautela. Antes consente nele toda imprudência no presente e negligência diante do futuro.

Não depende tanto de disposição do titular mudar as coisas. O presidencialismo que inventamos é dirigido por mau costume e desinteresse de limites. É um jogo de par ou ímpar entre a sociedade e seus Poderes cheios de dedos.

O autor deste artigo, Paulo Delgado, é sociólogo. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo
08 de julho de 2020 | 03h00