Com o correr do tempo, a história fixará o
enredo que melhor contará a saga desta quadra em que o Brasil vive. Foi golpe
ou foi constitucional o impeachment que efetivamente a dinâmica política se
encarregou de construir; qual narrativa sobreviverá ao natural olvido das
gerações. A versão ainda é um campo de luta.
O certo é que o pano de fundo de toda a
disputa é, naturalmente, o poder.
O poder tem sua lógica e canta sempre o seu
canto de sereia. Numa democracia, a legitimidade eleitoral não é questão de
menos, mas é de ponto de partida; somente isto não basta. Lidar com o poder é,
sim, condição sine qua non: a eleição renova
o poder, mas não o garante. Ao contrário, o poder minguante põe a perder o
impulso e a renovação que viriam da eleição.
O poder é, portanto, animal indócil que,
domesticado, garante o porvir, a capacidade do fazer, do transformar, do
submeter todo um sistema à vontade do poderoso. Mas, pode ser também a
besta-fera que escapa às rédeas de quem não soube cavalga-lo; de quem não teve
astúcia e arte para se fazer príncipe; de quem acreditou, burocraticamente, que
a eleição bastaria como garantia.
O fato é que Dilma vacilou, o PT vacilou, Lula
vacilou. Acreditaram que a eleição bastaria e, por isso, deram toda a
importância à eleição.
Descuidaram do poder a que, por diversos
caminhos, um dia alçaram. Daí a importância exagerada ao marketing eleitoral, a
equivocada crença de que num sistema democrático eleitoral o feio é perder a
eleição. Collor também se elegeu. E daí? Votos, por si só, nunca bastam.
É necessário saber conduzir o processo: jogar
o jogo ou, antes, modificá-lo, transformá-lo completamente, se possível fosse.
Em Maio de 2002, com a Carta ao Povo Brasileiro, Lula começou a jogar o jogo:
aparou as arestas de sua rejeição, surpreendeu a direita, indignou setores mais
à esquerda, mas seguiu em frente; recarregou o sistema – “deu um reload”.
Em que pese alguns erros de início – o
Mensalão — o fez com habilidade: assimilou um processo viciado e foi assimilado
por ele. Não o transformou, conduziu o poder auxiliado pelo pragmatismo e pelas
circunstâncias. É improvável que não compreendesse os limites e as implicações
de longo prazo do jogo que jogava: o “reload” logo se esgota. O bom momento, no
seu caso, foi mau conselheiro. É possível que tenha avaliado: “para que fazer
reformas e subverter a lógica do sistema quando tudo está indo bem?“ Ora,
simplesmente porque quando tudo for mal não haverá mais força para fazer o que
quer que seja; será tarde.
O fato é que Lula deitou em berço esplêndido.
Para o retirante que tanta dificuldade enfrentou na vida, em seu tempo,
governar o Brasil foi um bálsamo, tudo deu relativamente certo. As coisas se
encaixaram: uma boa conjuntura e uma boa leitura de curto prazo. O poder lhe
pareceu permanente, imutável, constante, deveras para sempre. Isto o fez
escolher, do bolso do colete, Dilma, como se fosse uma gerente às suas ordens e
à disposição.
Dilma teve sua primeira eleição servida de
presente numa bandeja. Tudo lhe era favorável: o país crescia 7,5% e, naquele
momento, Lula era pouco menos que um deus. Entrementes, não seria não um
brinquedinho do padrinho: tinha vontade própria, particular visão de mundo e
inocência para acreditar que seus milhões de votos bastariam. Lula se equivocou
com Dilma e Dilma se equivocou com o mundo que a cercava.
O sistema, afinal, se esgotaria; é claro que
se esgotaria como quase tudo que é vivo se esgota. No caso, seria impossível
satisfazer toda a voracidade por cargos, verbas e esquemas que o sistema consumia;
impossível dar vazão ao crescimento sem reformas; impossível governar com as
manhãs de ontem a sociedade que o presente atropelava.
Dilma, Lula e o PT tiveram seu aviso: o junho
de 2013, incialmente, pela esquerda – sim, inicialmente pela
esquerda – proclamava que o sistema deixara de representar; que a sociedade
moderna estava órfã da política; que novas forças surgiriam, fragmentando o
sistema até então polarizado – PT e PSDB afundariam juntos. Sim, também os
tucanos não se deram e, ao que parece, não se dão conta de que um “reload” não
basta.
Em paralelo, a economia se esgotava, exigia um
novo modelo: olhar para frentes, aos saltos; mas o espelho retrovisor de Dilma
só permitia olhar para trás. A visão ultrapassada de que o governo pode tudo –
ao gosto do Brasil Grande, dos anos 1970 — deixou de considerar que o poder em
si se transformava; que a nova sociedade se defrontaria com o esgotamento do
sistema arcaico. O resto do processo é sabido.
Mais que a renovação circunstancial de alguns
nomes e até de políticas, o sistema carece de mudança, transformação de
métricas, métodos, sentido. Não há, no entanto, poder para isso – poder que
Lula e Dilma um dia tiveram, mas desperdiçaram. A melhora básica da economia,
do ambiente de negócios, o tal choque de expectativas será, evidentemente,
limitado; um “reload” que deixará ouriçados os operadores de mercado, mas de
tiro curto.
Mesmo na economia, as mudanças serão
incrementais; podem dar certo, demonstrando algum resultado, apontando algum
caminho parcial, mas o país continuará sob o signo da precariedade – sub judice
da Lava Jato e da política – com todas as condições para um novo colapso.
O mais provável é que Michel Temer siga por
esta mesma trilha que, no começo, omite erros somente mais tarde revelados. Ao que
tudo indica, não conhece outro caminho. Suas primeiras ações mostram que
tentará recompor o sistema como é: voraz de cargos, recursos e esquemas.
Oriundo de suas cinzas, como haveria de
dissipá-las? Neste momento, seu poder é para fazer o mais do mesmo e, para
isso, nem precisará dos votos que, com efeito, teve enquanto parceiro de chapa
de Dilma.
Sua base de 367 votos no Congresso, ainda
assim, é tão fiel e comprometida quanto a dona de um bordel; enquanto houver
poder – e recursos – lhe jurará amor eterno. Mas, já se sabe, esse tipo de amor
passa com o fim dos estalidos das moedas. Temer dará uma espécie de reloading no sistema. Mas, a página que retornará
à tela é a mesma.
Durará algum tempo, como o amor pago, mas seus
links parecem irremediavelmente comprometidos.
Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper. Artigo publicado
originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.05.16.