segunda-feira, 1 de março de 2021

Eliana Calmon: O desmanche das instituições

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Eliana Calmon. (Crédito foto: Instituto Não Aceito Corrupção - INAC / Divulgação).

A partir de 1992 o mundo ocidental foi surpreendido com um feito inédito da Justiça: a “Operação Mãos Limpas” que enfrentou os criminosos da “máfia italiana”, infiltrada há anos nas instituições do país,  considerada, à época, a maior investigação destinada a desvendar a engrenagem de corrupção entre políticos e empresários, pondo de cabeça para baixo a política italiana, com 5.000 investigados, 1.300 condenações e sumiço dos dois principais partidos políticos.

O Brasil, nessa época, lutava para implantar as mudanças trazidas com a Constituição Federal de 88, dentre as quais dar nova estrutura à Polícia Federal e ao  Ministério Público Federal, até então despreparados para atender aos desafios de combate à corrupção em um país tradicional e historicamente patrimonialista, onde o interesse público sempre esteve a serviço dos interesses privados das elites política e econômica.

Mas no final do século XX o mundo estava bem diferente: os parceiros comerciais estavam preocupados em estancar a corrupção que tanto prejudicava as relações negociais e exigiam cada vez mais segurança jurídica, enquanto as nações mais desenvolvidas, preocupadas com o terrorismo, incentivavam o combate aos crimes transnacionais, alimentados pelo dinheiro fácil da corrupção.

E o Brasil praticamente foi indiretamente persuadido pelas relações internacionais a ingressar nesse novo quadro da economia globalizada, modernizando a sua defasada legislação anticorrupção e aprovando importantes instrumentos legislativos tais como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Combate às Organizações Criminosas (1995), a Convenção Interamericana da OEA (1996), a Lei de Lavagem de Dinheiro (1998), a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), dentre outras.

Esses ingredientes deram início às primeiras operações  contra os históricos saques aos cofres públicos, com severa atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

A Justiça Brasileira, infelizmente, muito resistiu às mudanças  estruturais e enfrentou a pós-modernidade de forma acanhada, formal e defasada da realidade, preocupada em manter o seu status de privilégios como “super partes”, perdendo-se no tempo. Praticamente quase todas as operações foram inutilizadas pela prescrição consentida, ou pelo formalismo exacerbado, construído de forma sofisticada pelos grandes escritórios de advocacia, sendo certo que as eruditas teses jurídicas tecidas ao sabor de parcerias elitistas e compadrio não tiveram o poder de esconder uma realidade: os que conseguiram fugir da Justiça nunca foram inocentados dos crimes cometidos, nem obrigados a devolver o que furtaram dos cofres públicos. E com o tempo foram esquecidos, voltando à vida pública.

A única operação que prosperou, fugindo de qualquer prognóstico, foi o Mensalão, em 2005, envolvendo políticos, empresários, banqueiros e o Partido dos Trabalhadores, ao qual pertencia o Presidente da República. Foi um divisor de águas. O que aconteceu?

A resposta ficou gravada nas páginas da história, deixando a receita para todo o Poder Judiciário: a forte atuação do  Ministro Presidente do Supremo à época, institucionalmente comprometido como guardião constitucional, a figura de um destemido Ministro Relator, focado unicamente na técnica, um Ministério Público já fortalecido pelo papel constitucional que lhe foi dado na Constituição Cidadã e no descuido das defesas que, à cargo de uma elite de causídicos, acostumada  às facilidades da processualística, descuidaram-se das provas que, de forma ululante,  saltavam dos autos à primeira vista d”olhos.

O Mensalão foi responsável por um novo momento, em que o Poder Judiciário se reabilitou perante a nação brasileira, devolvendo aos magistrados a autoestima, e valorizando as demais instituições parceiras.         E foi neste clima de democracia nova que em junho de 2013 a população foi para rua exigindo punição para os corruptos e serviço público de qualidade.

Assustados com as manifestações deram os parlamentares um jeito de rapidamente aderirem aos pleitos e às pressas aprovaram uma lei importantíssima que lá dormitava há três anos.

Refiro-me à Lei Anticorrupção, a qual traz no seu contexto dois importantíssimos institutos, já conhecidos do ordenamento jurídico brasileiro, mas só sedimentados com a lei nº 12.846: delação premiada e acordo de leniência.

Assim surgiu a Operação Lava Jato, a maior iniciativa de combate a corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil. Iniciada em março de 2014, perante a Justiça Federal de Curitiba, conduzida por uma força tarefa do Ministério Público Federal, sob o comando do Procurador da República Deltan Dallagnol, tendo como juiz principal o Dr. Sergio Moro.

Não esquecidos das inúmeras operações anuladas por Tribunais Superiores, dentre as quais 4 delas tidas como emblemáticas (Banestado, Satiagraha, Castelo de Areia e Boi Barrica), cujas decisões, para tirar  os réus das mãos da Justiça, não se acanharam em colidir com decisões precedentes, dos mesmos tribunais, agiram os investigadores com extrema cautela e estratégia. Iniciaram investigando primeiro os  agentes públicos menos graduados, passando depois aos diretores de empresas estatais, em seguida aos  empresários, sendo deixada a empresa Odebrecht, a maior e mais protegida pelos políticos, por último e em um processo em separado, para só ao final chegarem aos políticos de primeira grandeza. Coincidentemente foi quando começou o desmanche da operação.

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Juristas italianos, ao visitarem o Brasil, sempre advertiam. O Dr. Gherardo Colombo, por exemplo, magistrado protagonista da Operação Mãos Limpas, disse em entrevista ao Estadão: “a Justiça sozinha é incapaz de derrotar a corrupção. No mesmo sentido o pensamento da socióloga italiana Donatella Della Porta, foi enfática ao declarar: “O grande erro foi acreditar que o Poder Judiciário conseguiria mudar sozinho o corrupto sistema italiano. Uma transformação significativa necessitava que profunda reforma política fosse feita em paralelo às investigações policiais e às decisões judiciais”.

O esforço derradeiro do juiz Sergio Moro, ao sentir o que se avizinhava, foi tentar na política provocar a mudança que foi capaz de realizar no Judiciário. Lamentavelmente não deu certo, faltou ao Ministro o necessário apoio político, sendo engolido por uma realidade que o fez recuar e reiniciar na trincheira da cidadania, a única capaz de causar uma mudança significativa na política. Afinal está com os cidadãos o poder de mudança pelo voto, o que não é nada fácil,  mas é o único caminho para mudar.

Não são poucos os cidadãos que estão dispostos a lutar pelo pais, pela democracia, pelos seus filhos e netos, principalmente porque no Brasil a hecatombe foi pior do que a da Itália. A nação está sofrendo ataques poderosos vindos de dentro das próprias instituições, na tentativa de desacreditar os órgãos de controle, deixando a cidadania duvidosa, cabisbaixa e amedrontada. Afinal em quem acreditar quando assistimos a mais  alta Corte de Justiça a assim se comportar?

Sem preocupação em construir uma nação, sem assegurar os postulados da Constituição da qual são ou deveriam ser guardiões, a leniência e incoerência de teses jurídicas, julgando ora de uma forma, ora de outra, destrói a segurança jurídica dos jurisdicionados, a hierarquia do Judiciário que os magistrados acostumaram-se a obedecer, fazendo dos juízes órfãos institucionais.

Como profissional do direito e magistrada que fui, por quarenta anos acreditei, e obedeci, tendo os olhos sempre voltados para uma Corte que respeitei até o momento em que, com tristeza, perdi a minha ingenuidade.

Conservo entretanto a minha fé na cidadania e por ela continuo a defender a Lava Jato, até agora o instrumento mais eficaz para proteger uma democracia que sangra com desmanche de suas instituições.

Eliana Calmon foi Ministra do Superior Tribunal de Justiça e Corregedora Nacional de Justiça. Advogada em Brasília e Professora de Direito Público. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo (blog do Fausto Macedo), edição de 26.02.2021. 

Nenhum comentário: